52 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Dogmática jurídica e controvérsias religiosas à luz de Robert Cover: a recusa de transfusão sanguínea por parte das Testemunhas de Jeová Legal dogmatics and religious controversies in the light of Robert Cover: the blood transfusion refusal by Jehovah’s Witness Mauricio Pedroso Flores1 José Rodrigo Rodriguez2 Resumo: O presente artigo se propõe a demonstrar como controvérsias judiciais envolvendo a recusa de transfusão sanguínea por parte das Testemunhas de Jeová podem ser compreendidas sob uma nova perspectiva se reconhecermos que a narrativa religiosa do grupo também comporta uma afirmação de direito. Na primeira parte, após uma rápida descrição sobre as origens e características dessa religião, o artigo reconstitui a forma pela qual a doutrina e a jurisprudência brasileiras têm tratado as controvérsias suscitadas pela recusa de seus membros: como uma colisão normativa entre o direito à vida e a proteção da liberdade religiosa. Em seguida, sugere que, a despeito da qualidade da prestação jurisdicional nesses casos, é possível pensar em uma argumentação mais inclusiva do ponto de vista de uma dogmática preocupada com questões de legitimidade do direito. Para tanto, o artigo recorre às formulações teóricas do jurista norte-americano Robert Cover, especialmente o seu conceito de jurisgenesis, que sugere que a criação de significado jurídico transcende os limites do Estado. Ampliando o raciocínio dogmático aplicável ao caso com base no pensamento desse autor, passa-se a compreender a controvérsia das Testemunhas de Jeová como um choque de normatividades distintas – entre a narrativa religiosa do grupo e os preceitos estatais. Por fim, sugere-se que a recusa das Testemunhas de Jeová pode ser compreendida como uma afirmação de significado jurídico, traçando-se um paralelo com as reflexões feitas por Cover sobre o caso Bob Jones University vs. United States. Palavras-chave: controvérsias religiosas; Testemunhas de Jeová; Robert Cover; jurisgenesis. 1 Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: mauriciopflores@gmail.com 2 Professor de Graduação e do PPG (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Pesquisador Permanente do CEBRAP ligado ao Núcleo Direito e Democracia. E-mail: jrodrigorodriguez@gmail.com 53 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Abstract: This article aims to demonstrate how legal controversies raised by Jehovah’s Witness refusal of blood transfusion may be understood under a new perspective since we recognize that its religious narrative also holds a statement of law. First part of the article briefly describes origins and features of this religion and then shows how legal dogmatics and courts in Brazil have been dealt with these controversies: as a normative collision between right to live and religious freedom protection. Then, it suggests that – despite the quality of jurisdictional responses on these cases – is possible to think of a more inclusive argumentation from the viewpoint of a legal dogmatics worried about law legitimacy issues. Therefore, the article employs the theoretical formulations of north-American jurist Robert Cover and especially his concept of jurisgenesis, which suggests that the creation of legal meaning takes place beyond State limits. By extending – based on this author – the dogmatic reasoning applicable to the case, we come to understand the controversy of Jehovah's Witnesses as a clash of distinct normativities – between the religious narrative of the group and the state precepts. Finally, it is suggested that the refusal of Jehovah's Witnesses can be understood as a statement of legal meaning by drawing a parallel with Cover's comments on Bob Jones University vs. United States case. Keywords: religious controversies; Jehovah’s Witness; Robert Cover; jurisgenesis. 54 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. DOGMÁTICA JURÍDICA E CONTROVÉRSIAS RELIGIOSAS À LUZ DE ROBERT COVER: A RECUSA DE TRANSFUSÃO SANGUÍNEA POR PARTE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ Artigo submetido em 01/04/2018. 1 INTRODUÇÃO A instauração do regime republicano, em 1889, representa um dos principais marcos para as discussões sobre liberdade religiosa no Brasil. Foi nesse momento histórico em que o Estado brasileiro adotou a laicidade como princípio, separando-se da Igreja Católica. A primeira constituição republicana assumia a promessa secular de tolerância com as mais diferentes manifestações religiosas, em especial aquelas não católicas. Essa promessa de liberdade religiosa deu início a um histórico de disputas em torno daquilo que poderia ser considerado como religião e, portanto, seria digno de proteção do Estado. Sob argumentos jurídicos-científicos, algumas religiões – nomeadamente católicas e protestantes – gozaram de plena liberdade de culto, enquanto outras, estigmatizadas por cientistas, juristas, jornalistas e políticos, trilharam um longo caminho pelo devido reconhecimento de suas práticas. As religiões espíritas e de matrizes africanas estiveram por muito tempo no centro desses debates: suas práticas eram classificadas como “mágicas” (em contraposição às religiões “verdadeiras”) e sancionadas pela legislação penal como atos de ameaça à ordem ou à saúde pública (MONTERO et. al., 2017). Após décadas de debates acerca da relação entre Estado e religião, e com forte participação de representantes religiosos em seu processo de elaboração, a Constituição Federal de 1988 consagrou a liberdade religiosa como garantia fundamental em seu artigo 5º, inciso VI.3 Esse dispositivo estabelece o atual marco normativo para discussões acerca da liberdade religiosa, ainda que esteja muito aquém de pretender solucionar eventuais conflitos entre práticas religiosas e preceitos estatais. Ou seja, da mesma forma como aconteceu com boa parte das demandas sociais emergentes no cenário pós-1988, as controvérsias religiosas se transferiram gradativamente para a arena do Judiciário. 3 “[É] inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. (BRASIL, 1988). 55 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Uma dessas controvérsias envolve as Testemunhas de Jeová, uma denominação religiosa que possui milhões de adeptos no mundo todo.4 Em razão de uma crença fortemente arraigada e difundida pelo grupo religioso, as Testemunhas de Jeová se negam a receber qualquer tipo de tratamento médico que envolva transfusão sanguínea, mesmo quando há risco de morte. Mas essa recusa é confrontada por parte do Estado, que visa proteger a vida de seus cidadãos – preservando-os inclusive de suas próprias escolhas quando entende necessário. Essas duas atitudes, baseadas em princípios e textos distintos – recusa e dever de cuidado, lei bíblica e constituição estatal – refletem as posições antagônicas presentes na controvérsia que motiva esse artigo: pode o Estado, no afã de proteger a vida, obrigar que uma pessoa realize um procedimento que contrarie sua crença religiosa? Após uma breve exposição sobre o histórico de formação da organização religiosa, a primeira parte deste artigo mostra como essa controvérsia tem sido enfrentada pela doutrina jurídica e pelos tribunais brasileiros. Nossa pretensão aqui não é exaustiva. Recorremos a um número reduzido de decisões judiciais que apresentam as principais circunstâncias que tais casos podem envolver, tais como a possibilidade de tratamentos alternativos e a ausência de capacidade jurídica da pessoa afetada. Nosso objetivo não é verificar a qualidade da prestação jurisdicional brasileira nessas questões, mas os argumentos que costumam ser invocados nas decisões ou, mais especificamente, a maneira pela qual o Judiciário enquadra a questão. Veremos que, salvo poucas exceções, as cortes – e também a doutrina – costumam colocar a controvérsia em termos de um conflito entre o direito à vida e a liberdade religiosa. Mas quais seriam as consequências de uma crítica e eventual mudança de enquadramento destas decisões? Faz sentido alterar o modo pelo qual a questão é tratada? E, caso haja uma boa justificativa para isso, como seria possível colocar a questão em outros termos? A segunda parte do artigo busca responder a essas questões. Primeiro, procurando demostrar a utilidade de se ampliar a racionalidade das decisões, com base em uma reconsideração do papel da dogmática jurídica; segundo, apontando como alternativa a concepção de direito do jurista norte-americano Robert Cover (1943-1986). Finalmente, a terceira parte do artigo discute como essa concepção poderia ser incorporada à controvérsia das Testemunhas de Jeová, traçando-se um paralelo com o caso Bob Jones University, discutido por Cover em seu principal texto, Nomos and Narrative. Se nosso raciocínio estiver correto, pretendemos demonstrar que a posição religiosa das 4 De acordo com o site oficial das Testemunhas de Jeová, em 2014 o número de adeptos da religião ao redor do mundo chegava a cerca de oito milhões de pessoas. (JEHOVAH'S WITNESS, 2014). 56 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Testemunhas de Jeová, em sua recusa de transfusão sanguínea, implica também uma afirmação de direito. Cumpre desde logo esclarecer que o objetivo de nossa posição é considerar uma argumentação que melhor reflita e respeite o ponto de vista das Testemunhas de Jeová no interior da dogmática jurídica, sem qualquer pretensão, em nenhum momento, de propor uma solução ou falar em nome da organização religiosa.5 2 A CONTROVÉRSIA JURÍDICA DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ Em 1872, um comerciante chamado Charles Taze Russell (1852-1916) fundou em Pittsburgh, nos Estados Unidos, a instituição hoje conhecida como Watch Tower Bible and Tract Society – nome oficial da organização das Testemunhas de Jeová. Fascinado pela escatologia bíblica e insatisfeito com a teologia do cristianismo ortodoxo, Russell enxergou em sua turbulenta época de conflitos sociais o cataclismo que precederia o retorno de Cristo à Terra, segundo uma profecia bíblica6 (HOLDEN, 2002, p. 9). A partir desse diagnóstico, deu origem a um movimento milenarista7 que até hoje reclama possuir a verdade sobre o destino do mundo. As Testemunhas de Jeová crêem firmemente em suas interpretações restritivas sobre a Bíblia, rejeitando qualquer tipo de interação com as doutrinas de outras denominações religiosas, consideradas errôneas (HOLDEN, 2002, p. 1). Em um mundo marcado por uma crescente secularização e uma multiplicidade de crenças e de identidades, as Testemunhas de Jeová resistem como um grupo admiravelmente coeso em torno da autoridade de seus preceitos, cuja ideia central é a de que a humanidade se encontra à beira do fim do mundo como o conhecemos, que se dará com a “segunda chegada” de Cristo à Terra. A despeito de ter sucessivamente falhado em sua profecia – ao menos cinco anos foram apontados como aqueles em que ela se concretizaria – a Watch Tower Bible and Tract Society não deixou de conquistar adeptos ao longo dos anos, crescendo em média 5% 5 Ressalvamos aqui que nenhum de nós faz parte da religião das Testemunhas de Jeová ou compartilha de seus preceitos. Acreditamos, porém que o objeto da controvérsia da transfusão sanguínea pode ser lido, sem prejuízo de nossa posição de observador externo ao grupo, como uma questão atinente à dogmática jurídica. Nossas reflexões são dirigidas tão somente a esse campo, não refletindo atitudes valorativas ou pessoais em relação ao preceito religioso em si. 6 Importantes grupos religiosos heterodoxos como os Mórmons, os Adventistas do Sétimo Dia e a Ciência Cristã também se originaram nesse período de grande agitação social, entre as décadas de 1840 e 1870. Todos eles buscavam, de alguma forma, uma leitura messiânica da Bíblia que apontasse para a superação das mazelas sociais da época. 7 As doutrinas religiosas milenaristas são aquelas que, baseadas no livro bíblico do Apocalipse, sustentam que Jesus Cristo irá retornar à Terra para construir um Reino cuja duração será de mil anos. 57 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. por ano durante o século XX e chegando à marca de seis milhões de seguidores no começo do terceiro milênio (HOLDEN, 2002, p. 1). Ao contrário de outras religiões que se manifestam sobre questões controversas (aborto, pesquisas com células-tronco etc.) ou que buscam reconhecimento perante a esfera pública, as Testemunhas de Jeová mantêm um envolvimento mínimo com a ampla sociedade, sendo proibidas pela administração da Watch Tower de tomar parte em atividades públicas (HOLDEN, 2002, p. 11). A sociedade secular é descartada por seus membros, segundo Holden (2002, p. 12), como um lugar contaminado por práticas imorais. A despeito disso, porém, o grupo não vive em comunidades isoladas – ao contrário de grupos fechados como os Amish norte-americanos, por exemplo. As Testemunhas de Jeová encontram-se assim em uma situação peculiar: renunciam ao mundo onde vivem, mas permanecem vivendo nele. Em uma situação como essa, conflitos com as estruturas seculares nem sempre podem ser evitados. Frequentemente os preceitos sagrados irão se chocar com a realidade circundante e, em especial, com as normas promulgadas pelo Estado. Nesse último caso, reportar-se à autoridade da doutrina teológica da organização, que separa simbolicamente seus membros do mundo exterior (HOLDEN, 2002, p. 22), pode não ser suficiente para evitar os conflitos reais entre o sistema de direitos e liberdades do Estado, por um lado, e as escolhas existenciais do indivíduo, por outro. Esse é o pano de fundo da controvérsia jurídica relacionada à recusa, por parte das Testemunhas de Jeová, de tratamentos médicos que necessitem de transfusão sanguínea. Ao colocarem a autoridade de seus preceitos acima da autoridade do Estado, as Testemunhas de Jeová não reivindicam que o poder legislativo delibere acerca de sua recusa, tida por seus membros como um dogma. Do ponto de vista do grupo, sua visão é indiscutível – tanto mais que a discussão, nesse caso, extrapolará os limites simbólicos entre membros e não membros, envolvendo ambos. De acordo com o site oficial das Testemunhas de Jeová (JW.org), a Bíblia – tanto no Velho como no Novo Testamento (Gênesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29) – ordena claramente a abstenção de sangue sob qualquer via. Dado que o sangue representa a vida (Levítico 17:14)8, diz a organização religiosa, "nós evitamos tomar sangue 8 Segundo a tradução que consta no portal oficial das Testemunhas de Jeová: "Pois a vida de todo tipo de criatura é seu sangue, porque a vida está no sangue. Por isso eu disse aos israelitas: 'Não comam o sangue de nenhuma criatura, porque a vida de todas as criaturas é seu sangue. Quem o comer será eliminado.'" (JEHOVAH'S WITNESS, 2015). 58 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. por qualquer via não só em obediência a Deus, mas também por respeito a ele como Dador da vida.” (JEHOVAH'S WITNESS, 2017). Por outro lado, o Estado encontra-se na obrigação de proteger a vida de seus cidadãos e cidadãs, mesmo contra suas próprias vontades. Na linguagem bioética, trata-se do reconhecimento da dimensão heterônoma do princípio da dignidade humana: busca-se proteger, de forma objetiva e por meio da imposição de padrões sociais exteriores, bens considerados indisponíveis à livre escolha dos indivíduos – sendo a vida o principal deles. Concomitantemente, a bioética também engloba, no entanto, uma dimensão autônoma da dignidade, disposta a tutelar as possíveis escolhas dos indivíduos, notadamente as de caráter existencial – e, dentre elas, as que são envolvidas pelo manto da liberdade religiosa (BARROSO, 2010, p. 28). O atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso, quando instado a elaborar parecer sobre a questão da transfusão sanguínea em Testemunha de Jeová, salientou que a dignidade como autonomia possui preferência no ordenamento constitucional brasileiro, sendo também predominante no âmbito das decisões proferidas pelo STF (BARROSO, 2010, p. 14). Ou seja, a liberdade religiosa costuma se sobrepor ao dever de cuidado do Estado. Com base nessa constatação, Barroso desenvolve uma linha de argumentação que entrelaça os direitos e garantias fundamentais elencados pela Constituição com os principais conceitos da bioética moderna, que substituiu o paradigma paternalista pelo da centralidade da autonomia do paciente. Seu parecer busca responder à questão central da controvérsia religiosa que cerca as Testemunhas de Jeová: “pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de sua liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal?” (BARROSO, 2010, p. 27). Na leitura de Barroso, portanto, a questão se resume ao equacionamento entre dois polos: de um lado, a vida humana; de outro, a liberdade religiosa. A premissa da laicidade do Estado pode, se mal compreendida, levar ao equívoco de se enxergar a questão como resolvida em favor do direito à vida. Com efeito, é preciso ressaltar aqui que laicidade de forma alguma significa hostilidade à religião.9 Não se deve esperar que o poder público seja indiferente às manifestações religiosas existentes, bem como 9 Nesse sentido, afirma Barroso (2010, p. 27): “A ordem constitucional reconhece a religião como uma dimensão relevante da vida das pessoas, quer sejam crentes, quer ateias ou agnósticas. Afinal, submeter um crente a práticas contrárias a sua religião é tão invasivo quanto determinar a um ateu que se ajuste a padrões religiosos. Em qualquer dos casos haverá a imposição externa de valores existenciais e a conseqüente violação da dignidade como autonomia.”. 59 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. a suas práticas específicas. Em alguns casos, inclusive, caberá exigir uma postura ativa do Estado a fim de protegê-las. Isto porque, em um ambiente de multiculturalismo, as questões religiosas, como questões identitárias que são, tendem a comportar relações de poder que se tornam perigosas na medida em que o predomínio de uma crença represente risco para o exercício das demais (ROTHENBURG, 2016, p. 51). Assim, a defesa da liberdade religiosa – que inclui a recusa de transfusão sanguínea das Testemunhas de Jeová – não implica uma afronta ao princípio da laicidade, ainda que a proteção à vida humana esteja em jogo. Mesmo em um caso que envolva um direito fundamental tido como indisponível, “o Estado terá o ônus argumentativo de demonstrar que se trata de uma restrição legítima, e não uma violação à liberdade de escolha do indivíduo” (BARROSO, 2010, p. 19). Em nome do exercício da liberdade religiosa, portanto, Barroso (2010, p. 30) considera legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, devendo esta ser respeitada como escolha existencial que cada um tem o direito de fazer. Quando instados a decidir sobre a controvérsia, os tribunais brasileiros também têm reconhecido a presença do dilema constitucional suscitado por Barroso (2010). No entanto, a tarefa de considerar esse conflito normativo à luz de determinado caso concreto pode se revelar mais espinhosa do que os pareceres técnicos sugerem. Se considerarmos a controvérsia do ponto de vista dos médicos, por exemplo, será preciso levar em conta a existência de um ordenamento próprio atinente a sua conduta, o que torna o problema um pouco mais complexo. De acordo com o artigo 22 do Código de Ética Médica vigente no Brasil, é vedado ao médico "deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte." (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009, p. 37). Portanto, um médico que deixa de realizar um procedimento de transfusão de sangue em uma Testemunha de Jeová em estado terminal corre o risco de ser responsabilizado pelo Conselho Federal de Medicina. Mas casos como esse são tão recorrentes que o próprio Conselho editou, em separado, a Resolução CFM nº 1.021/80, que afirma expressamente: Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 60 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. 2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1980). O Código e a Resolução certamente são orientações válidas para uma equipe médica que se depara com esse tipo de situação. Mas é evidente que seus termos gerais são incapazes de abranger todas as circunstâncias possíveis de cada caso. Sempre que "houver iminente perigo de vida" o médico deverá obrigar o paciente, mesmo sem seu consentimento, a passar por tratamento que envolva transfusão de sangue? O risco de morte sempre justifica tal medida? Questões como essas acabam por exigir do Judiciário uma postura interventiva em assuntos clínicos, seja para obrigar pacientes a aderirem a tratamentos por eles rejeitados seja para deliberar acerca de sua necessidade. Nem sempre, contudo, as instâncias jurisdicionais estarão dispostas a assumir tal postura. Em 2007, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS) considerou que o hospital que buscava obter provimento jurisdicional para submeter uma paciente à transfusão sanguínea carecia de interesse processual, uma vez que os profissionais de saúde tinham o dever de empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente de seu consentimento (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 1). Evidentemente, afirmar que não há necessidade de intervenção judicial em assuntos como esse significa, na prática, apenas deslocar o polo da responsabilidade para os médicos envolvidos, que continuam tendo de enfrentar a questão sem um instrumento que legitime suas decisões – ou seja, sem qualquer garantia de que eles não serão acionados judicialmente no futuro. Dentre os fatos a serem considerados pelos médicos em face da decisão de realizar ou não uma transfusão de sangue está, por exemplo, a existência ou não de tratamentos alternativos disponíveis. Nesse sentido, a questão colocada pelas Testemunhas de Jeová tem levado inclusive a avanços na medicina, que dispõe cada vez mais de métodos de tratamento que dispensam a prática de transfusão sanguínea (THE NEW YORKER, 2015). Mas nesse caso, havendo possibilidade de tratamento diferenciado sem a utilização de transfusão de sangue, o Estado poderia ser compelido a financiá-lo? Em decisão proferida em abril de 2014, o TJ/RS entendeu que não: a liberdade religiosa não garante o direito à prestação diferenciada no serviço público (RIO GRANDE DO SUL, 2014). Mais recentemente, essa questão foi 61 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. levada ao STF, tendo reconhecida sua repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 979742, a ser julgado pela corte (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017). Mas cumpre atentar para outra circunstância extremamente relevante em um caso concreto: quando a controvérsia envolve paciente menor de idade – ou seja, juridicamente incapaz de manifestar sua escolha – cujos pais ou responsáveis recusam, em seu nome, tratamento que envolva transfusão de sangue. Se os tribunais tendem a respeitar a recusa por parte de adultos capazes, a orientação nesses casos costuma ser diferente. Em 2014, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se deparou com um caso desse tipo, em que a recusa dos pais agravou a situação de sua filha de 13 anos de idade, que veio a falecer (BRASIL, 2014). Ambos os genitores foram acusados de homicídio, bem como um médico da Comissão de Ligação com Hospitais das Testemunhas de Jeová (COLIH)10 que teria supostamente pressionado os médicos responsáveis a não realizar a transfusão. Considerando, entre outras coisas, que o processo penal já se arrastava por duas décadas, o tribunal resolveu extinguir a ação penal sob o argumento de atipicidade do comportamento dos genitores. A principal razão apresentada foi a de que os médicos, independentemente do consentimento dos pais, deveriam ter tomado as medidas necessárias para salvar a vida da adolescente. Ao levarem sua filha ao hospital, os pais teriam demonstrado que com ela se preocupavam, a despeito de sua crença religiosa não permitir a transfusão de sangue considerada necessária. Ou seja, embora os pais tenham sido absolvidos no processo penal, o tribunal não entendeu que sua decisão em nome da filha devesse ser respeitada pelos médicos. Em 2006, ao ser confrontado com situação semelhante, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) conseguiu intervir na controvérsia ainda em andamento, substituindo a vontade dos pais pela proteção do interesse do menor envolvido, que foi submetido a tratamento oncológico que incluía transfusão sanguínea (BRASIL, 2006). Quando vista sob a perspectiva de um menor de idade que perdeu a vida antes de sequer poder expressar sua adesão ou não à religião, a controvérsia das Testemunhas de Jeová parece ganhar contornos dramáticos.11 Certamente podemos nos perguntar até que ponto é válido que os pais tomem decisões desse tipo em nome de seus filhos. Uma pessoa adulta pode decidir aceitar as consequências advindas da colisão dos preceitos de suas crenças com 10 Comissão composta por médicos praticantes da religião com o intuito de acompanhar e orientar Testemunhas de Jeová que se submetam a procedimentos médicos possivelmente incompatíveis com a sua crença. 11 A literatura pode proporcionar uma boa noção desses contornos. Sobre essa controvérsia em específico, ver McEWAN, 2014. 62 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. as estruturas da realidade jurisdicional; mas é razoável pensar que uma criança ou um adolescente também possa ser capaz de assumir tamanha responsabilidade, ou que outros possam falar por ela? Segundo a interpretação que vem sendo adotada pelos tribunais brasileiros, não faz sentido respeitar a escolha dos pais quando o envolvido é menor incapaz, ainda mais na presença de risco iminente de morte ou quando não há alternativas para o devido tratamento que não envolvam a transfusão sanguínea. Podemos dizer que, em linhas gerais, a prestação jurisdicional brasileira na controvérsia das Testemunhas de Jeová tem sido satisfatória. Juízes e juízas reconhecem que a liberdade religiosa pode, em alguns casos, se equiparar ou até se sobrepor à proteção da vida – particularmente, da vida da própria pessoa que evoca razões religiosas. Mas haveria outra argumentação possível nesses casos? E por que seria útil empregá-la, se os resultados provavelmente seriam os mesmos que a jurisdição tem alcançado? Depois de descrever a controvérsia, passamos agora à parte propositiva do artigo, que busca responder a esses dois questionamentos, começando pela fundamentação teórica de nosso argumento, baseada em uma reconsideração do papel da dogmática jurídica e nos insights sobre o fenômeno jurídico inscritos na obra do jurista norte-americano Robert Cover. 2 O nomos em conflito de Robert Cover A argumentação adotada pelos tribunais, como vimos acima, utiliza a linguagem tradicional do direito constitucional, que coloca a questão em termos de colisão de princípios – direito à vida de um lado e liberdade religiosa de outro – e mantém no centro da reflexão apenas as normas produzidas pelo Estado. Os conflitos têm sido resolvidos partindo-se do pressuposto de que estamos diante de indivíduos situados em uma controvérsia passível de solução mediante a modulação do alcance de determinados direitos, dentre os quais, a liberdade religiosa, que é tratada aqui como uma “crença”, como uma escolha individual, por assim dizer, fungível, equiparável a outras escolhas quaisquer. As “crenças” no catolicismo, no protestantismo, no islamismo e assim por diante merecem, aos olhos da lei, igual proteção. No entanto, parece razoável imaginar que estas mesmas questões podem ganhar um outro peso, um outro sentido, se imaginarmos que as Testemunhas de Jeová são uma comunidade religiosa com legitimidade para produzir o seu próprio direito, vigente em paralelo ao direito produzido pelo Estado. Neste caso, seria possível atingir os mesmos resultados dogmáticos, mas com fundamento em outros argumentos. 63 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Assim, em vez de apresentar estes problemas como conflitos entre direitos individuais e resolvê-los por meio da modulação de seu âmbito de incidência, tendo em vista as características do caso concreto, seria possível apresentá-los como conflitos entre normas nascidas de fontes normativas diversas e, especialmente no caso da transfusão de sangue em incapazes, de conflitos entre indivíduos e comunidade religiosa. De um ponto de vista radicalmente operacional, ou seja, no que diz respeito aos resultados obtidos pelos raciocínios dogmáticos expostos acima, a discussão proposta neste artigo faz pouco sentido. O direito brasileiro tem produzido respostas razoáveis aos problemas jurídicos apresentados ao Judiciário com fundamento no que se pode chamar de gramática das regras, ou seja, a gramática que gira em torno das normas e princípios positivados pelo Estado. No entanto, discutir os conflitos relativos às Testemunhas de Jeová como conflitos entre indivíduos deixa em segundo plano uma dimensão fundamental destas questões, enfrentadas não apenas pelo direito brasileiro. Se olharmos com mais cuidado os termos do debate, veremos que seu horizonte está para além da capacidade de produzir respostas aos litígios, mas aponta para uma questão importante sobre a própria legitimidade do direito. Afinal, diante de pessoas capazes de colocar seu corpo em questão de forma tão radical, arriscando a própria vida em nome de sua religião, parece ser mais adequado apresentar tais conflitos de outra forma, dando expressão dogmática às práticas religiosas como um corpo normativo relativamente autônomo em relação ao direito estatal – e não apenas como um objeto fungível, passível de escolhas individuais “existenciais”. Se pensarmos a atividade dogmática como um exercício da imaginação a respeito da igualdade (WARAT, 1997), ou como um espaço de conflitos sobre a igualdade (RODRIGUEZ, 2012), o exame das características da fundamentação das decisões judiciais passa a ocupar o primeiro plano do debate. Assim, dar expressão dogmática à comunidade das Testemunhas de Jeová – em que pese sua própria recusa em participações mais diretas – pode contribuir para aumentar a legitimidade do direito e do Estado brasileiro, mesmo que em certos casos suas normas não prevaleçam diante das normas estatais. Ainda mais se levarmos em conta que esta não é a única comunidade vivendo nas fronteiras do Brasil: basta lembrar das comunidades indígenas, cuja normatividade tem o potencial de criar conflitos do mesmo jaez. A centralidade que a narrativa bíblica sobre a abstenção de sangue possui no interior do espaço normativo habitado pelas Testemunhas de Jeová não pode ser ignorada se 64 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. quisermos compreender a real dimensão das crises de consciência pelas quais os fiéis desse grupo religioso passam e também se quisermos produzir uma dogmática capaz de oferecer boas soluções – operacionais e legítimas – para os problemas que este tema levanta. Mas como dar expressão dogmática a um grupo que não pretende ser – ao menos diretamente – ouvido? É exatamente nesse ponto que os insights do jurista norte-americano Robert Cover parecem fundamentais para a controvérsia em questão. Mas, antes de retomar este problema sob uma nova perspectiva, vejamos como Robert Cover pensa os problemas jurídicos e, em especial, como o autor enxerga as ligações e os conflitos entre a gramática das regras produzidas pelo estado e a gramática da regulação social, ou seja, as normas produzidas pela sociedade – neste caso, no âmbito das comunidades religiosas. Robert Cover escreveu Nomos and Narrative, seu mais famoso e debatido texto, no contexto da decisão tomada pela Suprema Corte norte-americana no caso Bob Jones University vs. United States, em 1983. Embora tenham servido como mote, as críticas direcionadas à argumentação dos julgadores – que ocupam a última parte do ensaio – são apenas o desfecho prático de um denso e elaborado raciocínio teórico. A icônica passagem inicial ilustra bem o desafio que Cover estava lançando não apenas aos juízes da Suprema Corte, mas de modo geral a todos os teóricos que partem de concepções jurídicas fixadas na figura do Estado: Nós habitamos um nomos - um universo normativo. Nós constantemente criamos e mantemos um mundo do certo e errado, do lícito e ilícito, do válido e inválido. O estudante de direito pode chegar a identificar o mundo normativo com a parafernália profissional do controle social. As regras e princípios de justiça, as instituições formais do direito e as convenções de uma ordem social são, de fato, importantes para esse mundo; contudo, elas são apenas uma pequena parte do universo normativo que deveria chamar nossa atenção. Nenhum conjunto de instituições ou preceitos legais existe separado das narrativas que o situam e lhe dão sentido. 12 (COVER, 1983, p. 4). O primeiro alvo de Cover nesse ensaio são as concepções de direito que se aferram a um modelo estatista. Sua pretensão é a de que deixemos de lado por um instante a ideia de que o aparato jurídico do Estado, com sua "parafernália profissional", represente tudo o que devemos tomar como direito. Mais do que um conjunto de instituições ou um sistema de regras a ser observado, o direito dá vazão a um nomos, um universo normativo que habitamos 12 Todas as traduções do inglês são nossas. 65 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. e que é, na visão do autor, "tão 'nosso mundo' quanto o universo físico de massa, energia e movimento". (COVER, 1983, p. 5). Para Cover (1983, p. 8), os preceitos legais são mais do que imposições feitas a nós em nome do povo, da sociedade, do Estado; são também signos pelos quais nos comunicamos com os outros. De acordo com essa ideia, o direito é visto como um "sistema de tensão ou uma ponte ligando um conceito da realidade a uma alternativa imaginada" (COVER, 1983, p. 9). O nomos é assim constituído por um elo entre realidade e visão, que supõe a aplicação da vontade humana a um estado de coisas existente de onde se projetam, a partir de dispositivos narrativos, possibilidades de futuros alternativos. Viver em um universo normativo implica saber não apenas o que "é" ou o que "deve ser", mas também o que "poderia ser" (COVER, 1983, p. 10). Um universo normativo é mantido, segundo Cover (1983, p. 7), pela força de compromissos interpretativos – "alguns pequenos e privados, outros imensos e públicos" – que determinam o que o direito significa e o que ele deverá se tornar. Isso quer dizer que o direito não é apenas uma questão de regras distintas: como o autor sugere, duas ordens jurídicas idênticas podem diferir em termos de significado se em uma das ordens os preceitos são universalmente aceitos, mas são considerados injustos na outra. Para Cover, a criação de significado jurídico – batizada por ele de jurisgenesis – implica não apenas a criação de novas regras, mas na instituição de novos mundos, universos normativos que, cumpre ressaltar, não são necessariamente criados pela ação do Estado. Em vez disso, a jurisgenesis é um processo coletivo ou social essencialmente enraizado em um meio cultural, o que implica na possibilidade de que grupos e comunidades articulem suas próprias criações jurídicas sem qualquer prejuízo interpretativo em relação às legislações estatais (COVER, 1983, p. 11). A centralidade comumente atribuída ao Estado na criação e manutenção do direito não decorre, segundo Cover, de uma superioridade interpretativa, mas unicamente porque o Estado é capaz de garantir, através da violência, o comprometimento necessário para a afirmação do significado jurídico. Em outras palavras, o autor nega que o direito estatal seja qualitativamente melhor do que as normas criadas por grupos e comunidades com base em preceitos religiosos ou em identidades sociais. Esta não é uma afirmação trivial no campo da teoria do direito. Não se trata aqui de reconhecer que determinados grupos possuem reivindicações que possam ser traduzidas na gramática do direito e levadas às instâncias 66 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. jurisdicionais,13 mas de que esses grupos vivem seu próprio direito – muitas vezes em franco conflito com as normas estatais. Cover mostra, por exemplo, de que forma comunidades religiosas como os amish e os menonitas tendem a constituir seus próprios nomoi baseados em textos fundamentais e escrituras sagradas, segundo um modelo batizado pelo autor como autonomia insular.14 Nesses casos, as comunidades com pretensões de autorregulação estabelecem significados próprios para interpretar os princípios constitucionais dos Estados onde se localizam. Sempre que possível, tais comunidades procuram respeitar as normas do Estado (no caso, a Constituição Americana), mas negam que ele detenha o monopólio da interpretação sobre o direito. Nasce daí uma luta constante para definir e manter a independência de seus nomoi em relação ao Estado, uma vez que este detém a violência necessária para destruí-los. Do ponto de vista da legalidade estatal, é plenamente justificável que os Estados não estejam facilmente inclinados a aceitar a afirmação de um nomos autônomo dentro de seus domínios. Como afirma Cover (1983, p. 28-29), "cada grupo deve acomodar dentro de seu próprio mundo normativo a realidade objetiva do outro", o que costuma resultar em conflitos interpretativos ou mesmo sangrentos. As narrativas amish e menonita são, não por acaso, marcadas pela resistência e a necessidade de rápida adaptação a mudanças, dada a dificuldade da tarefa de procurar um lugar para poder viver conforme seus preceitos sem sofrer perseguições. Excetuando-se o fato de que não vivem em comunidades isoladas, as Testemunhas de Jeová se parecem com as comunidades descritas por Cover, podendo ser incluídas no rol de movimentos que afirmam o que o autor classifica como de autonomia insular. Embora suas reivindicações não estejam frequentemente explícitas, elas acabam ficando em evidência, de uma forma ou de outra, nos casos levados ao Judiciário sobre a recusa de transfusão sanguínea. Uma primeira forma de se reconhecer as reivindicações desses grupos como legítimas é partir da doutrina estatal da liberdade religiosa, presente tanto no ordenamento constitucional brasileiro como no norte-americano, assim como na maioria das democracias ocidentais. Como vimos, essa tende a ser a atitude não só na esfera judicial, mas também na 13 Sobre os usos da gramática estatal por parte de agentes sociais, ver Rodriguez, 2014. 14 Quando não há pretensão de constituir uma insularidade nômica, mas de transformar o significado constitucional dentro do próprio âmbito estatal, a jurisgenesis assume outra natureza, batizada por Cover de constitucionalismo redentor. Esse registro compreende grupos e instituições que procuram modificar o direito a partir de diferentes narrativas sobre a realidade, com objetivos integrativos, e não sectários. (COVER, 1983. p. 34). 67 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. doutrina brasileira. Mas isso, diria Cover, significaria assumir uma perspectiva inteiramente estatista, cuja compreensão do fenômeno jurídico situado no interior das comunidades é limitada. Para realmente fazer jus a esse modo de constituição de direito, com toda a complexidade que dele deriva, é antes preciso colocar as próprias narrativas desses grupos como o ponto sobre o qual se enxergam as demais manifestações de direito, sejam elas estatais ou não. Apesar da previsão constitucional de liberdade religiosa ter sido indispensável para que o nomos Amish, por exemplo, pudesse prosperar dentro do território norte- americano, o seu texto fundamental não é a Constituição dos Estados Unidos, mas o Novo Testamento – é a partir dele que os membros da comunidade enxergam o mundo em sua forma normativa (COVER, 1983, p. 32-33). Ao postularem um direito estranho ao do Estado, comunidades como os amish ou as Testemunhas de Jeová não se darão por satisfeitas com uma decisão que permita que elas sejam ouvidas15 – sob o argumento da liberdade de expressão, por exemplo – mas que lhes negue a possibilidade de viver conforme suas próprias regras (COVER, 1983, p. 49). Aqui, Cover inverte a perspectiva e mostra como o direito estatal, a quem se costuma pleitear para que reconheça outras manifestações de direito, pode ser ele próprio visto como um "outro", ao assumirmos o ponto de vista de um amish, de uma Testemunha de Jeová ou de um indígena, por exemplo. Esta maneira de pôr o problema contribui para uma reflexão mais ampla sobre as alternativas institucionais disponíveis para regular problemas semelhantes. Pensando a partir do texto “Inverter o Espelho: o direito ocidental em normatividades plurais” de José Rodrigo Rodriguez (RODRIGUEZ, 2010), é possível imaginar alternativas institucionais que se destinem a homogeneizar as formas de vida sobre um determinado território, inclusive com o desenvolvimento de políticas ativas de integração de todas as pessoas a uma mesma forma de pensar e de viver – na terminologia de Cover, como veremos a seguir, modelos de regulação imperial. Também é possível imaginar alternativas institucionais que tratem esta diversidade de formas de vida como casos particulares de normas gerais, as quais sempre irão prevalecer em caso de conflito, deixando clara a posição dominante de uma determinada forma de vida e 15 Como vimos anteriormente, as Testemunhas de Jeová sequer têm interesse em “serem ouvidas”, ao contrário das comunidades religiosas descritas por Cover que, embora não considerem isso como algo suficiente, não deixam de acreditar que é importante para os objetivos do grupo a circunstância de poder ter voz perante a esfera pública. 68 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. marcando seu caráter igualmente imperial. Finalmente, é possível imaginar modelos de regulação, por assim dizer, “multinormativos”, os quais admitam a presença de diversos nomoi e suas respectivas ordens jurídicas em um mesmo espaço social, com a previsão de regras para solucionar conflitos, ponto ao qual Cover dedicou pouca atenção, diga-se de passagem. Ora, a opção por um modelo “multinormativo” a partir de Cover parece evidente em face do caráter radical que o pertencimento a uma ordem normativa pode assumir. Negar reconhecimento a uma determinada ordem normativa, como é o caso do problema que estamos examinando, significa negar a identidade mesma das pessoas Testemunhas de Jeová que pensam a si mesmas como fazendo parte de outro mundo normativo autônomo. Não passa despercebido a Cover, porém, como antecipamos acima, o fato de que o nomos estatal apresenta notáveis diferenças quando comparado a qualquer um dos nomoi formados por grupos ou comunidades menores. Pensando nisso, Cover estabelece uma distinção entre dois modelos típicos de constituição de nomos. O primeiro modelo, denominado paideico, é responsável por "criar mundos"; acontece quando grupos ou comunidades criam seu próprio espaço normativo a partir de um corpo comum de preceitos geralmente provenientes de textos sagrados. Nesse modelo, a possibilidade de novas interpretações encontra-se permanentemente aberta, e o direito assume um caráter pedagógico: os indivíduos são educados na lei (COVER, 1983, p. 12-13). Já o modelo denominado imperial caracteriza-se, por sua vez, pela objetividade de seus preceitos – normas jurídicas abstratas e universais – e pelo fato de que sua aplicação fica a cargo de instituições devidamente constituídas para esse fim. Em sua maior parte, é como o direito moderno funciona; é uma forma de "manter o mundo" diante de suas tendências plurais e potencialmente destrutivas, tornando possível a difícil tarefa de acomodá-las dentro de um mesmo espaço normativo (COVER, 1983, p. 13). Se a forma de organização social adotada pelos estados-nação modernos se aproxima bastante com o modelo imperial, as narrativas que preenchem os seus preceitos com diferentes significados remetem, por outro lado, ao modelo paideico (COVER, 1983, p. 16). Desse estado de coisas deriva, segundo Cover (1983, p. 18), a conclusão de que "há uma dicotomia radical entre a organização social do direito como poder e a organização do direito como significado." Tendo em vista essa distinção, é mais plausível conceber que um tribunal, ao proferir uma sentença que afete a constituição de um nomos, não está afirmando um direito 69 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. hermeneuticamente superior, mas apenas o poder que emana de sua autoridade acerca do sentido do direito no interior de seu território. Entender que a produção do direito, ao menos como significado, encontra-se inteiramente aberta à multiplicidade de preceitos elaborados por grupos que adotam narrativas diferentes daquela do Estado parece ser a grande contribuição que Cover tem a nos oferecer sobre o tema das controvérsias religiosas. Tal afirmação explica, em boa parte, a existência de soluções dogmáticas em conflito no campo do direito. Essa ideia será retomada, a partir da discussão de Cover sobre o caso Bob Jones University, para tratar da questão específica das Testemunhas de Jeová. Em ambos os casos, percebe-se que acomodar diferentes reivindicações de nomoi próprios sob o manto de uma jurisdição que se pretende única não é, na maioria das vezes, uma tarefa simples. 3 Do caso Bob Jones às Testemunhas de Jeová O pano de fundo da controvérsia presente no caso Bob Jones University vs. United States é a decisão, tomada pelo Internal Revenue Service (IRS)16, de retirar o benefício de isenção de impostos das instituições consideradas filantrópicas que mantinham qualquer forma de discriminação racial em suas práticas. Até 1971, a universidade Bob Jones sequer aceitava inscrições de pessoas negras. Por conta das políticas anti-segregação adotadas a partir da década de 70, a instituição educacional passou a aceitar, em um segundo momento, pessoas negras casadas com outras de sua própria raça. Somente em 1975 permitiu, por fim, a adesão de pessoas negras independentemente de seu estado civil, mas com uma ressalva: um regulamento disciplinar proibia relacionamentos interraciais e até mesmo participação em grupos que advogavam pelo casamento interracial, sob pena de expulsão dos estudantes envolvidos (COVER, 1983, p. 62). Insatisfeita com a retirada de seu status de isenção por parte do IRS, a universidade Bob Jones recorreu da decisão administrativa, chegando o caso à apreciação da Suprema Corte. A despeito das questões pontuais que envolviam o caso, o que inicialmente chamou mais a atenção de Cover no julgamento foi o significado contido na manifestação de alguns amicus curiae no decorrer do processo. Entre eles, membros de comunidades anabatistas como os já mencionados amish e menonitas. 16 Instituição do governo norte-americano que executa função semelhante à da Receita Federal no Brasil. 70 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. O que suscitou as manifestações dos porta-vozes desses grupos em favor da universidade não foi, como sublinha Cover, a perda da isenção de impostos em razão da discriminação com base em raça. Senão todos, ao menos a grande maioria dos amicus curiae presentes no processo não praticavam qualquer tipo de discriminação racial. Como explica Cover (1983, p. 28), o que motivou esses grupos a intervir no processo foi a circunstância de que "uma mera 'política pública', ainda que admirável" pudesse triunfar diante da proteção especial à liberdade religiosa contida na Primeira Emenda à Constituição norte-americana. Sem prejuízo do que foi dito antes sobre a ausência de centralidade do direito estatal segundo a concepção de Cover, a invocação de um texto constitucional em vez de uma norma específica do grupo – baseada em uma interpretação da Bíblia, por exemplo – se justifica pelo fato de que a narrativa da liberdade religiosa, além de unir todas as comunidades envolvidas, é muito mais convincente e de reconhecimento obrigatório para o tribunal. Ou seja, o fato de que o centro do universo normativo da comunidade amish seja o Novo Testamento não impede que, em face da jurisdição estatal, seu porta-voz recorra à gramática jurídica oficial – até porque, conforme já mencionado, as comunidades insulares que vivem nos Estados Unidos não têm problemas em aceitar os preceitos constitucionais vigentes no país na medida em que eles não entrem em conflito com o seu próprio nomos. No entanto, ainda que as comunidades religiosas abracem um princípio constitucionalmente vigente e o utilizem como uma salvaguarda contra possíveis violações de direito, não há como compreender suas reivindicações normativas inteiramente sob o viés do direito estatal. De maior importância para todos os grupos e comunidades religiosas mencionadas por Cover é o fato de que, ao menos dentro de seus universos normativos, o respeito pela lei de Deus encontra-se acima do respeito pelas leis humanas. É o que acontece com as Testemunhas de Jeová e também o que se verifica, por exemplo, no depoimento do amicus curiae que representou a comunidade menonita no caso Bob Jones: Nossa fé e entendimento das escrituras nos impõem respeito e obediência pelos governos seculares sob os quais vivemos. Nós os reconhecemos como instituições estabelecidas por Deus para colocar ordem na sociedade. Apenas por essa razão nós sempre exercemos completamente o papel de cumpridores da lei, sem a aflição adicional de sermos punidos ao falhar em seu cumprimento. Nossas crenças religiosas, entretanto, são profundamente arraigadas. Quando essas crenças colidem com as demandas da sociedade, a nossa mais alta submissão deve ser a Deus, e nós devemos dizer com os homens de Deus do passado: 'Nós devemos obedecer a Deus acima dos homens'; essas são as crises das quais nós gostaríamos de ser poupados. (COVER, 1983, p. 27). 71 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Por melhores que sejam as intenções dessas comunidades, entretanto, as “crises” precipitadas por conflitos entre a lei de Deus e os ordenamentos estatais são muitas vezes inevitáveis. Nesses casos, o que se deve fazer? Estimular a criação de ordenamentos próprios dentro do Estado, respeitando as decisões tomadas por grupos autônomos baseados em narrativas próprias? Ou reafirmar a autoridade do Estado, via jurisdição, de impor a sua lei mesmo sobre aqueles que colocam o respeito a Deus acima de qualquer coisa? As respostas nesses casos costumam ser difíceis, como o próprio Cover atesta. No caso Bob Jones, por exemplo, o autor ficou insatisfeito com a decisão da Suprema Corte – não com o resultado em si, mas sim com o entendimento que foi adotado. O tribunal simplesmente reiterou o compromisso dos órgãos governamentais de erradicar prát icas de discriminação racial em ambientes educacionais, assegurando o cabimento da medida tomada pelo IRS. O que a Suprema Corte fez, na verdade, foi afirmar que não havia nada de inconstitucional com a política pública adotada pelo IRS. Cover, no entanto, queria mais. Caso levasse a sério as implicações contidas nas reivindicações de insularidade do grupo, o tribunal teria sido capaz de produzir uma narrativa redentora (narrative of redemption)17 que deixasse claro a todos os grupos ou comunidades que práticas de discriminação racial não seriam toleradas em um país realmente democrático como os Estados Unidos pretendiam se afirmar. Tal posição, segundo ele, revelou uma fraqueza na interpretação adotada: [...] a força da interpretação da Corte no Caso Bob Jones University é muito débil. Débil não por causa da forma do argumento, mas em razão da falta de comprometimento da Corte - uma falta que se manifesta na designação de autoridade para a decisão. A Corte assume uma posição que não coloca nada em risco e por meio da qual não faz nenhum gesto interpretativo em absoluto, salvo o gesto essencial aos cânones jurisdicionais: a declaração de que um exercício de autoridade política não era inconstitucional. O grande esforço nacional contra a discriminação não ganha status normativo na opinião da Corte, salvo que ela significa que o IRS não estava errado. (COVER, 1983, p. 66). Em vez de estabelecer uma narrativa redentora baseada na proibição de discriminação racial que agregasse as diferentes reivindicações de nomos existentes no interior dos Estados 17 O tribunal sempre pode escolher tolerar ou não normas provenientes de ordenamentos jurídicos não-estatais, mas não pode se furtar de fornecer narrativas que reintegrem esses ordenamentos no quadro geral de seu nomos: "As cortes podem muito bem se fixar sobre o painel jurisdicional e as regras de tolerância de modo a evitar matar o direito das comunidades insulares que habitam nossa paisagem normativa. Mas elas não podem evitar a responsabilidade de aplicar ou se recusar a aplicar seu poder para preencher uma visão redentora." (COVER, 1983, p. 60). 72 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Unidos, a interpretação da Suprema Corte se limitou a não interferir na discricionariedade que uma agência do governo possui no momento de colocar políticas públicas em prática. Se a medida do IRS foi aceita por "não estar errada", isso significa, pergunta Cover (1983, p. 66), que as comunidades insulares como os amish e os menonitas estão à mercê de qualquer política pública que "não esteja errada", independentemente das disposições que constituem seus universos normativos? Para que fique claro, Cover não queria que o tribunal acatasse o pedido da universidade, reavendo a decisão tomada pelo IRS. Na verdade, o autor advoga por uma interpretação que afirmasse de forma mais enfática a necessidade de se proibir práticas discriminatórias nos Estados Unidos: uma decisão que transformasse a antidiscriminação em narrativa fundamental a ser seguida por todos os grupos e comunidades que compartilham o espaço normativo norte-americano; uma narrativa redentora que, considerando as implicações dos diversos nomos que se apresentam, não deixasse dúvidas acerca desse tema em específico. De outra parte, Cover também critica a falta de comprometimento da própria universidade ao recuar em suas interpretações racistas diante da ameaça de um significativo corte em seu orçamento. Se a interpretação das escrituras adotada pela instituição era contrária a relacionamentos interraciais, o que explica as constantes mudanças de posicionamento em relação ao tema, senão a postura cada vez menos tolerante do poder público com práticas de discriminação racial? Sem levar suas interpretações à última instância, juízes e representantes da universidade fizeram do caso Bob Jones, segundo Cover (1983, p. 67), "uma peça para 1983 - atores prudentes e cautelosos, alguma eloquência, mas nenhum comprometimento". O comprometimento com as regras a que um grupo se propõe seguir se mostram de profunda importância para a descrição que Cover faz sobre a jurisgenesis. Não basta simplesmente criar significado jurídico, como num passe de mágica: é preciso comprometer- se com ele. E por comprometimento entenda-se o ato de aceitar as exigências que a defesa de uma determinada interpretação legal implica na prática, ou seja, as consequências fáticas da transformação pretendida na realidade do nomos.18 Mas, voltando a nosso assunto principal, é possível dizer que a ausência ou fraqueza de comprometimento apontada por Cover em relação à universidade Bob Jones não encontra correspondência na controvérsia jurídica sobre as Testemunhas de Jeová. A recusa de 18 "Dado que o nomos não é mais do que um processo de ação humana tensionado entre a visão e a realidade, uma interpretação legal não pode ser válida se não se está preparado para viver de acordo com ela." (COVER, 1983, p. 44). 73 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. transfusão de sangue, tida por esse grupo religioso como uma narrativa sagrada, é defendida de forma implacável por seus membros, a despeito de ser pouco usual entre as demais ordens cristãs existentes. Ao menos nos casos sob julgamento, a recusa é levada às últimas consequências, sendo que muitas vezes as partes não recuam nem mesmo sob a ameaça de sanções criminais. Esse é um ponto importante para se compreender quão dramáticas são as decisões proferidas nesse âmbito. Se, como afirma Judith Resnik (2005, p. 34), "as apostas das comunidades insulares para viver conforme suas próprias leis mudam na medida em que o Estado ou outros agentes poderosos lançam objeções", isso não parece se confirmar em relação às Testemunhas de Jeová. A narrativa nesse caso é – muitas vezes literalmente – de vida ou morte; e o objeto da narrativa é o próprio corpo dos indivíduos, que se colocam perante as ameaças do poder estatal com a firmeza de quem age simplesmente no cumprimento de um dever. Se aceitarmos as Testemunhas de Jeová como um grupo que forma um nomos, temos de aceitar que a recusa de transfusão sanguínea é parte inseparável de seu universo normativo.19 Mas isso significa que o Estado deveria reconhecer integralmente um nomos com regras tão divergentes das suas? Não há resposta óbvia a partir da leitura de Cover. Percebe-se, aliás, certa ambiguidade no pensamento do autor nesse ponto. Do fato de que o Estado deveria reconhecer outras ordens normativas – uma vez que não possui o monopólio do direito – não deriva a conclusão de que ele sempre deva buscar aceitar as regras elaboradas por grupos e comunidades. A jurisgenesis pode ser incontrolável, mas isso não implica que os tribunais devam se abster de controlar as possibilidades de significados jurídicos dentro de seu espaço normativo. Para tanto, as cortes recorrem a um elemento que, segundo o autor, é indissociável da interpretação legal: a violência. "A intepretação legal", começa Cover (1986, p. 1601) em seu artigo chamado Violence and the Word, "tem lugar em um campo de dor e morte." Em outras palavras, a interpretação legal sempre justifica uma violência que já ocorreu ou que está por acontecer. E se entenda violência aqui tanto em sentido físico – conter fisicamente os condenados e levá-los para a prisão, ordenar execuções – como em sentido epistêmico – o ato 19 Sobre a possível existência de relações de poder dentro do próprio grupo, ver RESNIK, 2005, p. 47. 74 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. de afirmar determinado significado jurídico em detrimento de outros, o que significa eliminar interpretações que não sejam aceitas.20 Nesse sentido, ao mesmo tempo em que estimula a criação e a proliferação de novos universos normativos21, Cover faz uma espécie de apologia ao trabalho "violento", mas aparentemente necessário, dos tribunais: [...] o princípio jurisgenerativo pelo qual o significado jurídico se prolifera em todas as comunidades nunca existe apartado da violência. A interpretação sempre tem lugar à sombra da coerção. E a partir desse fato podemos reconhecer um papel especial para as cortes. As cortes, ao menos as estatais, são caracteristicamente "jurispáticas". [...] É a multiplicidade de leis, a fecundidade do princípio jurisgenerativo, que cria o problema para o qual o tribunal e o Estado são a solução. (COVER, 1983, p. 40). Essas duas tendências conflitantes sugerem a mensagem de que, sempre que possível, a violência deve ser contida, deixando que novos universos normativos floresçam; no entanto, não se deve esquecer que às vezes ela é necessária. O direito deve ser violento, isso é inevitável; mas deve ser o menos violento possível. 22 O trabalho das cortes jurispáticas é fundamental para colocar uma ordem mínima dentro de universos normativos que, de outra forma, se desintegrariam. Não há espaço aqui para desenvolver de forma mais elaborada a tensão entre violência e interpretação legal na obra de Cover.23 De fato, este parece ser um ponto mal resolvido de sua teoria que poderia receber uma resposta mais adequada por meio de uma reflexão normativa que apresente critérios para que se possa escolher entre uma forma de vida social homogênea ou uma forma marcada pela multinormatividade. Este ponto, diga- se, permitiria aproximar, inclusive, a obra de Robert Cover da Teoria Crítica.24 Importa notar, entretanto, que o autor está atento às implicações, para o direito estatal, de se aceitar ou não a presença de novos significados jurídicos. Os preceitos que denominamos direito são marcados "pelo controle social sobre sua origem, seu modo de articulação e seus efeitos" (COVER, 1983, p. 17), e os tribunais não podem escapar da responsabilidade de assumir esse controle. 20 Sobre esses dois tipos de violência, e também para uma crítica ao peso que Cover concederia à violência física, ver BECKETT, 2011. 21 Como na conclusão de Nomos and Narrative: "O significado jurídico é um enriquecimento desafiador da vida social, e uma potencial restrição ao poder arbitrário e à violência. Nós deveríamos parar de circunscrever o nomos; nós deveríamos encorajar novos mundos." (COVER, 1983, p. 68). 22 Sobre essa interpretação, ver SARAT e KEARNS, 2001, p. 65. Os autores entretanto negam que um balanço dessa natureza seja possível dentro da teoria de Cover, denunciando a impossibilidade de reconciliar as lições de Nomos and Narrative (COVER, 1983) com o diagnóstico de Violence and the Word (COVER, 1986). 23 Para uma descrição mais completa, ver SARAT e KEARNS, 2001. 24 Para uma tentativa nesse sentido ver Benhabib, 2006. Uma aproximação mais detalhada poderia caminhar no sentido de uma reflexão sobre o lugar do pensamento de Cover em uma teoria da institucionalização democrática como transformação institucional permanente, no sentido de Rodriguez, 2013a. 75 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Essa constatação é bem exemplificada pelos casos levados ao Judiciário brasileiro envolvendo Testemunhas de Jeová que recusaram, a si próprias ou aos filhos menores de idade, tratamentos médicos nos quais a transfusão de sangue é utilizada. Com base nas reflexões de Cover, é possível ler a controvérsia sob outro viés, procurando fazer jus ao peso que a organização religiosa e seus fiéis concedem à questão. Antes, porém, uma ressalva: ao retomar o pensamento de Cover, não pretendemos apresentar uma teoria estrangeira que possa (ou deva) ser aplicada ou incorporada no Brasil, superando um suposto déficit de racionalidade em nossa jurisdição. Isso porque, em pr imeiro lugar, não podemos dizer sequer com alguma certeza que Cover possua uma teoria do direito propriamente dita – sua morte precoce, aos 42 anos, limitou sua obra a alguns poucos textos, muito deles sem qualquer traço de continuidade. Mas em segundo lugar, e mais importante, é preciso notar que seus conceitos mais importantes (nomos e jurisgenesis), bem como as análises possíveis a partir de cada um deles, não parecem implicar necessariamente a adoção de uma teoria do direito ou de uma teoria da decisão jurídica em específico.25 Sua descrição sobre as fases do processo de criação jurídica – narrativa, interpretação, comprometimento, objetivação e, por fim, a violência – contempla uma multiplicidade de atores (estatais ou não), espaços (local, nacional, transnacional26) e tempos distintos (antiga lei judaica, Estados Unidos da década de oitenta ou mesmo a discussão no contexto brasileiro que estamos propondo). Feita essa ressalva, voltemos à jurisdição brasileira como forma de demonstrar a pertinência de nosso argumento geral sobre como podemos entender a discussão dogmática, a partir de Cover, sobre a controvérsia das Testemunhas de Jeová. Em 2010, o TJ/RS reformou uma decisão de primeiro grau que autorizava a realização de transfusão de sangue em Testemunha de Jeová mesmo contra sua vontade expressa. O tribunal afirmou, na ocasião, a "inexistência do direito estatal de 'salvar a pessoa dela própria', quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros." (RIO GRANDE DO SUL, 2010, p. 1). Chama atenção nesse acórdão, porém, a seguinte consideração feita pelo relator, o desembargador Cláudio Baldino Maciel: Não se trata de singelamente ponderar qual direito fundamental deve ser preservado e qual deve sofrer limitação. 25 Violence and the Word (COVER, 1986) contém alguns esboços do que poderia ser uma teoria da decisão jurídica, mas de forma muito incipiente. 26 Para autores que leem as categorias de Cover a partir dos regimes jurídicos transnacionais, ver BENHABIB, 2006; BERMAN, 2007; DUNOFF, 2012; MELISSARIS, 2004. 76 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. A liberdade de crença expressada pela paciente, ora agravante, reveste sua vida de sentido, sentido este não compreendido, na sua verdadeira dimensão, por quem não vive e não comunga de tais valores. A dignidade que emana da sua escolha religiosa tem tamanha importância para ela que, entre correr o risco de perder a vida, mas permanecer íntegra em relação aos seus valores/ideais religiosos, e receber uma transfusão de sangue, tendo violados seus valores e sua dignidade de pessoa humana, esta escolheu manter-se íntegra em sua crença. (RIO GRANDE DO SUL, 2010, p. 5). Constitucionalmente, é a liberdade religiosa que assegura à paciente em questão o direito de não se submeter a procedimentos médicos que contrariem suas convicções. Mas a afirmação de “liberdade religiosa” é, nesse caso, apenas uma tentativa – ainda que válida – de traduzir convicções existenciais profundas para a linguagem principiológica do direito constitucional. É evidente que tal crença possa soar aos julgadores como absurda; contudo, o tribunal se furta de juízos de valor acerca da narrativa religiosa e do preceito dela extraído. Ao atentar para a importância da narrativa religiosa situada no centro da controvérsia, o Des. Cláudio Baldino executa um movimento interessante: afastando a linguagem do direito constitucional por um momento, o julgador reconhece a dignidade da pessoa afetada dentro da lógica colocada pela sua própria crença. Ao fazer isso, em vez de direitos fundamentais em colisão, o desembargador vislumbra um dilema de vida ou morte – diante do qual a paciente escolheu firmemente manter-se de acordo com a sua crença. Essa posição é bastante elogiável do ponto de vista da concepção de direito trazida por Cover. A terminologia adotada pelo julgador não chega a deixar explícito aquilo que, para Cover, é um fato evidente. Não é por certo a “liberdade de crença”, como afirma o desembargador, que reveste a vida da paciente de sentido; mas sim a própria crença, manifestada na recusa. Da mesma forma, o julgador coloca a defesa da escolha religiosa em termos de “dignidade” – o que é plenamente aceito tendo em vista ser um termo constitucional, habitualmente empregado por juízes e demais atores judiciais. A partir de Cover, porém, poderíamos dizer que seria mais adequado falar nessa escolha religiosa como uma manifestação de direito: como a afirmação de um determinado significado jurídico. Seria equivocado, no entanto, deduzir que essa posição implica na aceitação passiva de um direito “não-estatal”. Não estamos propondo qualquer versão alternativa de direito, muito menos querendo afastar o direito constitucional das decisões judiciais. Há uma grande diferença em reconhecer, por um lado, que uma posição de caráter moral ou religioso possua um significado jurídico e, por outro, entender que a narrativa das Testemunhas de Jeová ou de qualquer outra organização religiosa deva ser entendida como “norma” ou como “princípio” 77 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. legal que deva ser sopesado (ou combatido) pelas normas e princípios de direito estatal. No primeiro caso, trata-se de ampliar os limites da dogmática jurídica e da racionalidade das decisões judiciais. No segundo, tratar-se-ia de opor duas narrativas (a do Estado e a da organização religiosa), dotadas de sentido e legitimidade distintos, por meio de uma instância decisória que, conforme se espera, se apoia em uma delas – a narrativa do direito estatal e da Constituição. Uma das circunstâncias que descrevemos na primeira parte ajuda a esclarecer esse ponto. Quando a controvérsia envolve menores de idade, devemos aceitar a manifestação de seus pais ou responsáveis? Pensamos que, nesse caso, a narrativa das Testemunhas de Jeová colide com outra estrutura do direito estatal, a da capacidade jurídica. O Estado concede, através de suas normas e princípios, proteção especial a alguns indivíduos. É razoável que não se abra mão dessa proteção, salvo em raros casos. Isso implica refutar o nosso argumento? Pensamos que não – e a solução passa, uma vez mais, por Robert Cover. Entendemos que, em um estado laico, a integridade da narrativa das Testemunhas de Jeová deveria, na medida do possível, ser preservada. Isso está implicado na garantia do exercício da liberdade religiosa. Ao mesmo tempo, não podemos fechar os olhos para o fato de que haverá conflitos entre essa narrativa e os preceitos estatais. As mesmas circunstâncias estavam presentes no caso Bob Jones University, segundo a leitura de Cover: ao mesmo tempo em que garantiam a sobrevivência de suas práticas religiosas sob o manto da Constituição norte-americana, grupos como os amish e os menonitas lutavam para que o mesmo Estado que os protegia não os proibisse de viver conforme seus preceitos. Mas Cover entendeu que, nesse caso, a balança pendia a favor do Estado e de seus esforços pelo fim da segregação racial. Essa “narrativa redentora”, para utilizar os termos do autor, seria declarada como fundamental para a continuidade da ordem estatal e todos aqueles que habitam seu espaço normativo. Sob a lógica do argumento, o Estado reafirmaria os contornos de seu nomos e, consequentemente, dos diferentes nomoi que o integram. Mas, o que é mais importante: tal narrativa redentora não implica na negação de um direito amish ou menonita. Pensamos que uma narrativa redentora desse tipo seja possível no caso das Testemunhas de Jeová quando a recusa da transfusão envolve menores de idade. Por meio dessa narrativa, o Estado estaria afirmando um compromisso público e permanente com a defesa desses indivíduos em tais assuntos. Seria, certamente, uma intromissão no espaço normativo das Testemunhas de Jeová; porém, visto que esse espaço é compartilhado com o 78 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. Estado, algum grau de intromissão sempre vai haver – como demonstrado, aliás, na primeira parte do artigo. A diferença é que, nesse caso, as Testemunhas de Jeová não ficariam reféns de decisões judiciais pontuais – diferentemente de como os grupos e comunidades mencionados por Cover ficaram, com a decisão da Suprema Corte, em relação a quaisquer políticas públicas que não fossem consideradas inconstitucionais. A narrativa das Testemunhas de Jeová, que inclui a proibição de transfusão sanguínea, é uma realidade objetiva para seus membros. Ao manifestar sua recusa, mesmo em casos extremos, o indivíduo membro coloca seu próprio corpo à prova de forma a não comprometer a totalidade de sua visão de mundo. A linguagem do direito estatal pode, no máximo, proteger essa atitude sob o manto da liberdade religiosa; ao fazê-lo, inscreve a significação jurídica desse ato dentro de um rol de normas e princípios que devem ser balanceados. Nada disso fará muito sentido para uma Testemunha de Jeová. Por outro lado, se o que realmente importar, afinal, for o resultado, então devemos dizer que a jurisdição brasileira tem, na medida do possível, dado conta do problema – e, nesse caso, nada do que dissemos até aqui terá feito muito sentido. Porém, um último ponto cumpre ser mencionado: mesmo que os resultados atingidos pela jurisdição sejam relativamente iguais, as razões para decidir podem variar. Direito à vida e liberdade religiosa sempre estarão no cerne do conflito, mas uma maior ou menor importância pode ser dada a um ou outro princípio e, como diagnosticado por Rodriguez (2013b), a racionalidade jurisdicional brasileira parece ser guiada muito mais por argumentos de autoridade, que podem fazer a decisão pender para qualquer um dos lados, do que por raciocínios dogmáticos que incorporem decisões anteriores ou que procurem decidir casos semelhantes de forma igualmente semelhante. Se for verdade que a dogmática, dentro de um Estado de direito, é um exercício da imaginação a respeito da igualdade, como sugeriu Warat (1997), então podemos afirmar que uma argumentação que reconheça a narrativa religiosa das Testemunhas de Jeová como contendo uma afirmação de significado jurídico coloca a questão da igualdade em primeiro plano – seja no sentido de não estabelecer hierarquias (ao menos do ponto de vista argumentativo) entre diferentes ordens normativas, seja no sentido de discutir casos semelhantes de acordo com um padrão de racionalidade comum. Diante de casos como os que trouxemos à tona, os julgadores poderiam se perguntar: há comprometimento com uma ordem normativa que não a estatal? A pessoa está disposta a levar adiante o entendimento de seu 79 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. nomos? Nesses casos, como a própria doutrina e jurisprudência têm reconhecido, a melhor escolha parece ser não invadir o espaço normativo do indivíduo, respeitando sua escolha. Nos demais casos, onde pais ou responsáveis tomam a decisão em nome de menores de idade, é possível perguntar: a exigência de manutenção da integridade do nomos compartilhado pelos pais e responsáveis é suficiente para afastar a narrativa da capacidade jurídica, fixada pelo Estado como forma de defender menores e incapazes? Conforme a própria jurisprudência igualmente tem se manifestado, nesses casos a resposta tende a ser negativa: o dever de cuidado que o Estado assumiu para si o compele a não abrir mão da capacidade jurídica em favor de outra ordem normativa, não obstante a reconheça enquanto tal. CONCLUSÃO De acordo com nosso raciocínio, a controvérsia aqui debatida pode ser vista da seguinte maneira: as Testemunhas de Jeová recusam a transfusão sanguínea mesmo sob risco de morte, e tal recusa não é passível de discussão na esfera pública – antes de tudo porque, para as Testemunhas de Jeová, essa não é a “sua” esfera pública, mas a do mundo exterior. Quando a controvérsia suscitada por esse preceito chega ao Judiciário, a resposta jurisdicional costuma ser dada pelo equacionamento de dois polos: direito à vida e liberdade religiosa. Sugerimos que essa linguagem constitucional, apesar de válida, não se aproxima do dilema efetivo que se coloca às Testemunhas de Jeová. Com base no pensamento de Robert Cover, formulamos uma alternativa que aponta para o reconhecimento de um significado jurídico na escolha religiosa em questão. Pensamos que, dessa forma, é possível dar maior legitimidade às decisões tomadas e, ao mesmo tempo, lidar com a impossibilidade de falar do ponto de vista de uma Testemunha de Jeová, para quem a narrativa religiosa é inquestionável e se sobrepõe a qualquer regra de direito estatal. Dito isso, gostaríamos de esclarecer dois pontos que podem gerar confusões ou interpretações equivocadas. Em primeiro lugar, não pretendemos de forma alguma subestimar a importância do princípio da liberdade religiosa: sem ele, uma discussão desse tipo sequer seria possível. O mesmo vale para a aqui mencionada “linguagem constitucional”. Não cremos que haja algo de errado com ela. Como linguagem normativa, é evidente que ela não é capaz de dar conta de situações reais de forma plena. É justamente por isso que pensamos ser possível ir além dela na controvérsia das Testemunhas de Jeová. Se o pensamento dogmático 80 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.21-n°26, 2018, pg.52- 83 . ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2018. “organiza o material jurídico com o objetivo de fornecer balizas decisórias” (RODRIGUEZ, 2012, p. 22) à jurisdição, então reconhecer a existência de um significado jurídico na escolha religiosa das Testemunhas de Jeová representa a ampliação do raciocínio dogmático. Em segundo lugar, seria possível questionar se nossa argumentação acarreta a conclusão de que todo preceito religioso deve ser visto também como uma afirmação de direito. Não concordaríamos, de imediato, com essa conclusão; seria preciso analisar os elementos de cada controvérsia. Além disso, reconhecemos que os limites poderiam não ser muito claros. Acreditamos, porém, que em face de uma determinada concepção religiosa como a que foi aqui discutida – ou seja, uma concepção representativa dentro da sociedade, que é cultivada há um tempo razoável pelo grupo, e é tão profundamente arraigada que envolva, por exemplo, uma escolha de vida ou morte – seja verdadeiramente possível pensar dogmaticamente da forma como sugerimos, em termos não de colisão entre direitos, mas de diferentes normatividades. Em suma, não estamos pensando aqui em afirmação de direito (ou melhor, de significado jurídico) como normalização ou adoção de princípio. Não é preciso que o Estado positive um “direito de recusar a transfusão sanguínea” para que essa recusa, que é real e efetiva para as Testemunhas de Jeová, possa ser reconhecida como um argumento válido para a dogmática jurídica. Esse reconhecimento poderá, certamente, parecer algo distante de nossas práticas jurídicas. No entanto, manifestações como as contidas no voto do Des. Cláudio Baldino Maciel, ao enfatizarem a integridade da crença religiosa professada por uma das partes, parecem demonstrar que um reconhecimento desse tipo não é inimaginável. Pelo contrário, e sem prejuízo da aplicação do direito estatal, pode se constituir até mesmo em um esforço desejável. Em um contexto marcado não mais apenas pela secularização, mas também pelo retorno do fenômeno religioso sob diferentes matizes, com diferentes narrativas que expressam visões de mundo também distintas, resta saber até que ponto o direito e os tribunais brasileiros irão tolerar ou restringir a pluralidade de significados jurídicos contidos nessas manifestações religiosas. REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Parecer em processo administrativo da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 05 de abril 81 Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. 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