FA 749 HARVARD UNESTY WERARY 26 EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA DE ARTE ORNAMENTAL PORTUGUEZA E HESPANHOLA EM LISBOA CARTAS AO REDACTOR DO « CORREIO DA NOITE » POR A. FILIPPE SIMÕES Com uma carta do Sr. FERNANDO PALHA ao auctor ácerca da collecção de ceramica LISBOA TYPOGRAPHIA UNIVERSAL DE THOMAZ QUIXTINO ANTUNES, IMPRESSOR DA CASA REAL Rua dos Calafates, 110 1882 Ar an anig een berada neste line o tomeTamante Gathe M A kép Bima EXPOSICÃO RETROSPECTIVA DE ARTE ORNAMENTAL PORTUGUEZA E HESPANHOLA EM LISBOA CARTAS AO REDACTOR DO ( CORREIO DA NOITE » POR A. FILIPPE SIMÕES Com uma carta do Sr. FERNANDO PALHA ao auctor acerca da collecção de ceramica 2.39 T3 21 EU 73 LISBOA TYPOGRAPHIA UNIVERSAL DE THOMAZ QUINTINO ANTUNES, IMPRESSOR DA CAJA REAL Rua dos Calafates, 110 1882 FA 749.10 HARVARD COLLEGE LIBRARY FROM THE LIBRARY OF FERNANDO FALHA.. DECEMBER 3, 1928 As salas A, C e H Lisboa, 20 de janeiro de 1882. Meu amigo. — Pediu-me para escrever no Correio da Noite acerca da nossa exposição de arte orna- mental. Prometti satisfazer ao pedido, dando aos seus leitores esclarecimentos, que até certo ponto suppram a falta do catalogo, ainda no prélo, e que não poderá estar concluido, senão passados muitos dias. O processo mais facil para organisar a exposição seria aquelle que o museu South Kensington, de Londres, adoptou, dispondo os exemplares por gru- pos, segundo as suas procedencias. A commissão executiva, a que tenho a honra de pertencer, en- tendeu porém que seria muito mais util fazer uma classificação racional, que permittisse agrupar os objectos, não pelas pessoas a quem pertencem, mas pelas suas naturaes analogias. E, assim, fazendo apenas justificaveis excepções com relação aquelles com que sua magestade el-rei o senhor D. Luiz, sua magestade el-rei o senhor D. Fernando e a sr.& con- Eis aqui a parte mais numerosa e mais impor- tante da grande collecção de tecidos e bordados. Infelizmente não encontramos em Portugal exem- plares de épocas muito remotas. Os mais antigos são dos fins do seculo xv, excepto um que apparece solitario, como um animal antidiluviano entre a fauna dos tempos modernos. É uma velha mitra (79) de seda branca, bordada a oiro, do seculo xii, que foi encontrada com um baculo da mesma época, na egreja da Ermida, perto de Castro Daire, n'uma gaveta de farrapos, que por esquecimento não ti- nham deitado ainda para o lixo. Deve-se ao digno prelado da sé de Lamego a indicação d’estas curio- sas antigualhas que, sem a exposição, de certo se perderiam. Os exemplares dos seculos xv e xvi, principal- mente d’este ultimo, são muito notaveis. N'essa parle a exposição revela-nos maravilhas desconhe- cidas, e que de todo o ponto correspondem ao es- plendor da architectura, da pintura e da ourivesa- ria na mesma época. Repare, meu amigo, nos bordados a oiro de grande relevo, nas orlas da capa de asperges (102) da abbadessa de Lorvão com os seus grandes ni- chos povoados de santas, nas bellas ramagens que cobrem um fragmento de velludo (8) e um frontal (4) da sé de Coimbra, na casula e frontal da sé de Braga (108 e 1) bordados a oiro, prata e coral, imagine ainda as pedras de côres, as perolas e al- jofares desapparecidos n’estas ultimas peças, at- tenda ao frontal (42) do extincto convento de Jesus de Aveiro, com os seus grandes leões bordados a oiro em tela, e diga-me se toda esta brilhante e re- levada bordadura não corresponde em verdade aos cordões e laçarias das fachadas dos Jeronymos ou de Thomar, ou á complexa e profusa ornamentação dos grandes pratos doirados da sala de sua mages- tade el-rei D. Fernando, ou da collecção geral da ourivesaria na sala da edade media e do seculo xvi! Mas outros muitos exemplares corroboram com egual força a minha asserção. Citarei apenas al- guns: - os bordados a oiro e matiz em alto relevo do convento da Conceição de Beja (16); da sé (26) e da egreja de Santo Antão (14), de Evora; os fron- taes de Lorvão (11, 61 e 19) e de Carnide (32); as casulas e dalmaticas com orlas e sebastos orna- dos de imagens de santos (29); a capa de asperges da egreja de Belem (75), com grandes bordados a oiro e matiz, que representam Nossa Senhora sen- tada n’uma cadeira e varios santos sobre o fundo de rico velludo lavrado, etc. Fixado o typo geral dos bordados do seculo XVI, facilmente se discriminarão os anteriores. Eis aqui uma casula unica no seu genero (81), pertencente á sé de Portalegre. É de velludo car- mezim com bordaduras de applicação de retroz de côres e fio de oíro em alto relevo, que represen- tam vasos, ramos, apjos, aguias com duas cabeças, flores de liz, etc. Os sebastos, adornados com figu- ras de santos em baldaquinos acastellados, formam uma cruz, na qual foi bordada com maiores dimen- sões a imagem do Crucificado, com um anjo de cada lado. Todo o desenho é incorrectissimo, e poderia até attribuir-se a época mais remota, se não fosse a viveza das cores e a excellente conservação d'esta curiosa peça. Os baldaquinos egualmente acastellados dos se- bastos das dalmaticas da egreja matriz de Ponta Delgada (23 e 97), similhantes aos da casula de Por- talegre, porém menos imperfeitos, denotam ainda a grandes dimensões, não pode ficar todo patente. Sobre um fundo de seda vermelha vèem-se, borda- dos a oiro e matiz, animaes phantasticos, ramagens e flores com bellissimo colorido. No centro um grande medalhão representa Ganimedes arrebatado pela aguia ao Olympo. Com a grande revolução da Renascença a mythologia entrava desassombrada- mente nos templos como nos poemas. Os bordado- res acompanhavam os architectos, os esculptores e os poetas. Não está porém aqui somente a analogia. No bor- dado de Lorvão, a par com a mythologia, appare- cem bem patentes is influencias orientaes. O dese- nho de alguns ornatos, as formas de alguns animaes são asiaticas, tornando-se bem clara a similhança geral dos bordados com o de algumas colchas orien- taes expostas na mesma sala. Já que fallei d'estes artefactos não devo deixar de apontar as bellas col- chas da egreja de Belem (9), dos srs. Osborne de Sampaio (12), conde de Redondo (15), Martinho Montenegro (18), marqueza da Fronteira (33), mar- quezes de Monfalim (59), viscondessa da Fonte Ar- cada (45) e Adriano de Moraes Pinto de Almeida (5). O estylo das colchas importadas do Oriente imi- tava-se não somente n'outras obras congeneres, fa- bricadas na Europa, mas tambem n'alguns para- mentos ecclesiasticos. Entre outros da sala A, citarei a casula da egreja de Miragaya do Porto (55). Uma das obras de maior effeito é o panno de es- tante de velludo vermelho bordado a oiro (54) do convento de Santa Clara de Coimbra. O sceptro e corôa reaes, de correcto e elegante desenho, repetem- se em varias partes cercados de bellas ramagens. É tambem digna de menção, pela antiga passa- maneria de oiro, uma capa de asperges de velludo verde da Sé de Coimbra (48). Emfim, notam-se ainda, entre os bordados dos fins do seculo xvi ou dos principios do seculo xvii, um frontal da Madre de Deus (44) de velludo carmezim com sebastos de relevo; uma casula de velludo carmezim com se- bastos bordados a oiro, com bellas figuras de santos, de uma egreja de Ponta Delgada (7) com as armas de Inglaterra, d'onde parece ter vindo para os Açores; e um frontal de velludo carmezim bordado a oiro e prata, da mesma egreja (24). Das colchas de linho bordadas a seda da mesma epoca, mas sem caracter oriental, ha exemplares muito interessantes. A colcha do sr. Vasco Ferreira Pinto Basto (20) é das melhores d'este genero. Re- presenta batalhas, guerreiros e costumes da epoca. Não tanto pela belleza da bordadura, como pela singularidade do assumpto, torna-se notavel a colcha do sr. Antonio Teixeira de Sousa (98), de Lamego, na qual se vê a cidade de Din, os seus baluartes designados com palavras portuguezas e guerreiros trajados e armados ao modo da epoca. As colchas de setim bordadas a matiz no seculo XVII OU XVIII produzem um grande effeito. Sirvam de exemplo as da sr.a D. Guilhermina Pereira Ma- chado (31), do Porto e do sr. Victor Carlos Sasseti (50). Outras ha, não menos bellas, bordadas somente a oiro, como a da Sé de Vizeu (56) e a do sr. D. Luiz de Carvalho e Lorena (36). Entre os paramentos mais admiraveis do seculo XVIII notam-se uma casula de lhama verde bordada a oiro, da Sé de Lisboa (86), uma grande capa de asperges (73) com as armas do geral de Santa Cruz de Coimbra, hoje pertencente á sé da mesma cidade, outra capa de asperges de tela escarlate bordada a oiro (87) que faz parte do thesouro da capella de S. João Baptista de S. Roque. Outros bordados da mesma capella foram dispostos por outras salas. Entre os bordados a matiz de melhor effeito ci- tarei finalmente um veu de hombros da egreja de Santa Justa de Lisboa (64), e uma casula (66) da sr.a D. Henriqueta Gomes Mora de Araujo, de Lis- boa. Nas paredes da sala sobresaem seis quadros bor- dados a matiz com grande perfeição no seculo XVII (40, 40 a, 70, 71, 72 e 73). Representam assum- ptos historicos e pertencem á sr. D. Maria de Lemos e Alvellos, do Porto. Além dos frontaes que em molduras doiradas es- tão por cima dos grandes armarios envidraçados, de alguns dos quaes já tive occasião de fallar, veem-se ainda varias tapeçarias interessantes. A mais notavel, pelas dimensões e pelo alto relevo de algu- mas das suas partes, é a que reveste o fundo da sala (B-180). Representa grandes columnas salomo- nicas, vasos com flores, um veado, etc. Pertence a secção hespanhola e diz-se ter sido da casa do conde duque de Olivares. Uma colcha, tambem hespa- nhola, de pellucia e com vivo colorido foi exposta pelo sr. visconde de Monserrate. É da confraria da Boa Morte da Sé de Coimbra um bello tapete orien- tal, que adorna uma das paredes lateraes. Na parede do fundo da sala A, aos lados do grande panno hespanhol; estão dois medalhões (38 e 39) que foram do pendão da inquisição de Lis- boa. São bordados a oiro e torçal em alto relevo, e tanto um como o outro teem as armas d'aquelle, tribunal. 0 pendão da inquisição de Evora (41) conser- vou-se inteiro. É de damasco escarlate, e tem de um lado as armas respectivas, e do outro a imagem de S. Pedro Martyr (Pedro d'Arbués), com esta le- genda : PRO SANCTO MUNERE MARTIRII OBTINERE ME- RUIT PALMAM. Foi collocado sobre a porta do fundo da sala. Do mesmo lado, entre os frontaes collocados por cima dos armarios, está um bello quadro de tape- çaria de Arras (43) que representa o Baptismo de Christo. O desenho e o colorido assimelham-se extre- mamente aos das pinturas flamengas do seculo xv. Era do extincto convento da Madre de Deus. A collecção dos trajos foi exposta nas salas A e C. Interessantes para a historia do costume, não tem comtudo grande valor artistico. Infelizmente raros serão anteriores a 1700; e só o podem ser dois fa- tos de homem (218 e 219), um do sr. Osborne de Sampaio, outro do sr. Bento de Queiroz. Corres- pondem á época de Luiz xiv em França, de D. Pe- dro ii ou D. João v em Portugal. Outros fatos de homem, menos antigos, porém notaveis pelas bordaduras, foram expostos pela sr.a condessa da Anadia (223, 224, 229 e 230). Dos vestidos de damas o mais antigo pertence ao sr. Ruy Lopes de Sousa, de Santar (231). É de lā de camello com barra bordada a matiz e vidros; e corresponde á primeira metade do seculo xviii. O sr. Francisco Ribeiro da Cunha expõe um vestido de seda verde, com ramagens tecidas a matiz e prata (228), e o sr. Bento de Queiroz, de Vizeu, outro de tulle branca, bordada a palheta de prata (232). Estes ultimos são da segunda metade do se- culo passado. Na sala C, não se admiram os esplendidos exem- plares do seculo xvi, são porém muito interessantes os dos seculos XVII e XVIII, expostos nos armarios lateraes. 10 Na classe dos paramentos merecem particular menção uma casula de lhama branca, bordada a oiro e a matiz da sé de Angra (110); uma capa de as- perges de gorgorão carmezim, bordada a oiro, que do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra passou para a sé do Porto (118); uma casula de velludo branco quasi toda coberta de bordados de applicação, per- tencente ao sr. Antonio de Albuquerque, de Vizeu (130). Esta peça, bem como as anteriores, é obra do seculo xvii e muito notavel pela belleza da bor- dadura a oiro e matiz, representando anjos, meda- lhões e ramagens de grande effeito. Entre os paramentos do seculo xviii mencionarei uma casula, bordada a oiro e matiz, da egreja de S. Domingos de Lisboa (132), e alguns dos frontaes que adornam as paredes por cima dos armarios. Das colchas da sala C, as mais notaveis são uma de linho bordada a retroz de cores com figuras emblematicas dos cinco sentidos, designados com palavras portuguezas, bordadas tambem a retroz (117). Interessa-nos esta particularidade, como todas as provas de que quaesquer dos objectos expostos foram fabricados em Portugal. A bordadura das colchas era de certo uma occupação predilecta das ricas ou nobres damas purtuguezas durante as horas que lhes deixavam livres outros lavores domesticos. A colcha que representa os cinco sentidos é do sr. Bento de Queiroz, de Vizeu. N'estes trabalhos, re- vela-se em geral uma grande paciencia, ás vezes certo gosto na escolha das cores que formam o ma- tiz, mas quasi sempre a ignorancia do desenho. Não se observa porém esta falta ein grande parte das colchas bordadas a oiro, trabalho que parece mais que simplesmente domestico e ter sido talvez desempenhado por artistas especiaes. Tal é a colcha 12 dos (191); e finalmente as dos mantos de baptisado dos srs. marquez de Penalva (191) e conde de Rio Maior (132). Entre os bordados expostos mencionarei uma coberta ou toalha bordada á lacis do convento das Chagas de Lamego (196) representando animaes de phantasia, e um vestido de filó bordado a prata do sr. Bento de Queiroz, de Vizeu (199), a quem perten- ce tambem um lenço de cambraia, bordado a cabello de differentes côres, imitando com perfeição uma aquarella. A grande collecção de tecidos e bordados conti- núa e termina na sala H, para o visitante; pois a sua verdadeira terminação, segundo o catalogo, é na sala C. O sr. Julio Cordeiro expõe dois bordados (141 e 179); um, o mais bello e mais antigo, representa a Morte de Nossa Senhora; o outro a Adoração dos Magos. Já vimos alguns dos bellos e ricos paramentos da capella de S. João Baptista, da egreja de S. Roque, na sala A. Na sala H estão expostos outros, que vem a ser dois reposteiros, dois frontaes, uma ca- sula e um véo de hombros (164, 165, 166, 170 e 175). Do outro lado da sala estão alguns paramen- tos de seda bordados a torçal, de Mafra (146, 152, 155, 161 e 182) Uns e outros são obras italianas do seculo passado. Tambem n’esta sala estão expostas muitas col- chas, sendo mais dignas de attenção as dos srs. con- des de Prime, conde de Mesquitella, Ernesto do Canto, Tenreiro e Osborne Sampaio (154, 173, 168, 163 e 167). Finalmente mencionarei um lindissimo baixo-relevo em marmore que está sobre uma mesa, e um meda- 13 lhão Della Robbia suspenso da parede. O primeiro, uma das esculpturas mais notaveis do estylo da Renas- cença que se conservam em Portugal, veiu da Casa da Misericordia de Vianna do Alemtejo, o segundo, que tem a parte central de marmore e a moldura similhante ás dos outros, collocados em varias salas, procede do extincto convento da Madre de Deus. As duas vitrines da sala H e todos os objectos que ellas conteem, foram enviados pelo museu South Kensington de Londres para a exposição de arte or- namental em Lisboa. Este museu, que é um dos mais ricos da Eu- ropa, especialmente em productos industriaes, pos- sue muitos exemplares das industrias hespanhola e portugueza. Quando foi a Londres o sr. Sousa Vi- terbo, para fazer conduzir os objectos que Portu- gal mandou á exposição, promovida por aquelle mu- seu, e que deu origem á de Lisboa, permittiram- lhe que escolhesse das collecções os exemplares que julgasse mais dignos de virem a Portugal. São es- tes que hoje occupam as duas vitrines da sala H. O mais antigo é um cofre de marfim (368 -- 80), todo coberlo de ornatos em relevo, com a tampa á maneira de cupula, articulada com a parte restante por meio de longas e estreitas charneiras de bronze cinzelado e doirado. Nos tres grandes medalhões que occupam a maior parte da superficie do cofre parece estarem representadas scenas da vida de um personagem, caçando, no primeiro; sentado n'um throno, no segundo; e finalmente viajando n'um pa- lanqué sobre um elephante, no terceiro. Os espaços que separam os medalhões são intei- ramente cobertos de ornatos minuciosos represen- tando animaes de caça, aves, gryphos, flores, etc. A tampa, similhantemente ornada, tem na borda uma inscripção em caracteres cuficos, mutilada no principio por faltar um grande pedaço a esta parte do cofre : E PROSPERIDADE E FELICIDADE PARA RIAYDH BEN AFLAH CAPITÃO DA GUARDA SUPERIOR; ISTO FOI FEITO NO ANNO 359. Este anno da Hegira corresponde ao de Christo de 989. Este cofre do museu Kensington, juntamente com outro muito similhante da sé de Braga, exposto na sala M, e com os outros dois pertencentes aquelle museu, expostos na mesma vitrine da sala H (301, - 66, 217 — 6 :), constituem uma collecção interes- sante para o estudo da arte hispano-arabe dos se- culos x e xi. Conserva-se na Sé de Pamplona outro cofre do mesmo genero. Quem desejar fazer a comparação da arte maho- metana com a christã, na esculptura do marfim, n'esses tempos remotos, compare com os cofres ci- tados aquelle que na secção hespanhola é attribuido ao seculo x, e tambem o crucifixo de Fernando o Magno da mesma secção, obras de que hei de fallar n'uma das minhas cartas seguintes. Essa comparação levará a attribuir á arte christã outro cofre de marfim do museu Kensington, ex- posto na mesma vitrine, e attribuido ao seculo x ou XI (10—66). A ornamentação em baixo-relevo, re- presentando aves, quadrupedes e folhagens, asse- melha-se à do crucifixo citado, com quanto não seja tão perfeita e delicada. Encontram-se pois na exposição seis exemplares interessantissimos para o estudo da arte da escul- ptura em marfim nas épocas em que é menos co- nhecida. O museu Kensington expõe ainda um pequeno contador (1067 — 55) e um cofre de marfim (205 –79), attribuiveis á industria indiana dos seculos xvi e xvii, e outros dois cofres de madeira tambem indo portugueza, ambos do seculo svi. Um, mais singelo, (783 – 65) tem uma grande aguia na tampa e outros ornatos em baixo-relevo nas quatro faces. O outro (381 – 72) é mais nota- vel pela minuciosidade e delicadeza dos ornatos que totalmente o revestem. Na tampa estão representa- das muitas scenas da vida de Christo. Numerosis- simas figuras, algumas em alto-relevo, povoam os nichos ou ediculos ornados com arcos ou com outros elementos architectonicos ou esculpturaes do estylo indiano. Emfim nota-se ainda na collecção dos cofres e caixas, uma forrada de couro estampado (972 — 75), obra hespanhola do seculo xvi, e producto de uma industria muito conhecida — a das cadeiras de sola. Occupam a outra vitrine algumas obras da ouri- vesaria hespanhola e portugueza e um grande nu. mero de joias, interessantes pela sua belleza, anti- guidade e perfeita conservação. Os fructeiros portuguezes (72—24, 50 - 67), e como taes classificados no catalogo do museu Ken- sington, são analogos aos que foram expostos em outras salas. Uma pyxide de 1490 (135 — 79), e dois calices de 1540 e de 1549 (133 — 79, 132–73), attribui- dos á industria hespanhola, são notavelmente infe- riores, como obras de arte, aos exemplares das col- lecções portuguezas. Não está no mesmo caso o bello porta-paz do meiado do seculo xvi (314 e 64), comparavel, pelo desenho architectonico e pela perfeição do cinzel, a alguns dos que se expozeram nas salas Me N. Isto mesmo direi da placa dourada que parece 16 lambem um porta-paz e que representa na parte inferior o presepe e na parte superior dois anjos. De maior preço ainda é o medalhão (350 — 80) com grotescos em relevo, no estylo de renascença. N’um prato de filigrana de prata (316-64), hes- panhol tambem, vê-se claramente a mesma indus- tria que produziu outros similhantes, expostos na sala F, por sua magestade el-rei o sr. D. Fernando ou pela sr.a condessa d'Edla, industria largamente influenciada pela arte mourisca das provincias me- ridionaes de Hespanha. Expõe finalmente o museu Kensington uma grande e interessantissima collecção de joias fabricadas em Hespanha, nos seculos XVI, XVII e XVIII, entre as quaes avultam, pelo esmero, belleza e antiguidade, aquellas que pertenceram ao thesouro de Nossa Se- nhora do Pilar de Saragoça. N'alguns exemplares vê-se em execução o estylo dos desenhos de um in- teressante codigo da secção hespanhola, que contem esboços, feitos á penna, de muitas joias e obras de ourivesaria do seculo XVI. -80) ença. hes- s na Ando ente II me A sala B ande sem (SECÇÃO HESPANHOLA) ce as Jade. . Se Tares ntem as de Quem passar pela porta da sala C para a sala B, achar-se-ha de repente em Hespanha, como se, com um passo apenas, transpozera a fronteira. A maior parte dos visitantes da exposição, des- lumbrados pelos reflexos metallicos, pelo brilho re- luzente das collecções portuguezas, não apreciam devidamente a secção dos nossos visinhos. Todavia estão alli representadas as differentes civilisações que fazem da arte hespanhola um variegado matiz. Obras wisigothicas, arabes, latino-byzantinas, ogi- vaes, mudejares, da renascença, dos dois ultimos seculos, em oiro, prata, bronze, latão, ferro, bar- ro, marfim, couro, lã, seda, pedra e madeira, obje- ctos do Peru e do Chili... é um verdadeiro cos- mos da arte. A Hespanha, só a Hespanha, poderia formar uma collecção assim, notavel pela variedade e importan- cia de tantos exemplares. Eis aqui os braços de uma cruz wisigothica de oiro, adornada com pedras (1), uma pequena parte 18 do grande thesouro, achado ha uns trinta annos em Guarrazar, perto de Toledo, cujas esplendidas co- rôas e cruzes constituem hoje uma das collecções mais preciosas do museu de Cluny em Paris. Junto d'aquella interessante reliquia da ourivesa- ria wisigothica do seculo vii, admiram-se no mes- mo estojo uma pulseira de oiro rebatido e um bra. celete do mesmo genero, ambos de estylo arabe e do seculo xiv ou xv. Procede a primeira de Mondu- jar da provincia de Granada e o segundo de Alme- ria (10 e 11). A ourivesaria mahometana é ainda representada por um cofre de prata do seculo xi, com inscripção de caracteres cuficos, procedente de Santo Isidoro de Leão, e por outro cofre de prata com ornatos gravados e com inscripções cuficas de esmalte ne- gro, procedente da mesma egreja (8 e 9). São da arte christã, posterior á da época wisigo- thica, mas ainda com alguns vestigios de influencias arabes e byzantinas, um cofre de agatha e prata es- maltado de negro, em cuja ornamentação figuram algumas portas com arcos de volta de ferradura (2), obra do seculo ix ou x, e o baculo do anti-papa D. Pedro de Luna (3), obra do seculo xv, e muito similhante na forma da haste e nos lasangos que adornam o nó, a outros exemplares, contempora- neos, expostos na grande collecção da ourivesaria portugueza. Não menos interessam ao estudo da arte algumas obras de metaes não preciosos. São do seculo xv as mais antigas: uma campa de bronze de Castro Ur- diales (12), e um cofre com ornatos ogivaes (13). A campa tem gravadas uma figura humana, varios ornatos de estylo ogival e a seguinte inscripção em caracteres gothicos: 19 + AQUI YACE MARTIN FERNANDES DE LAS CORTINAS QUE FINÓ EL PRIMER DIA DE MARSCO ERA DE MCCCCIX ANNOS, 4 AQUI YACE CATALINA LOPES SU MUGER QUE FINÓ A OCHO DIAS DE MAYO ERA DE MCCCCXI ANNOS, + AQUI YACE SOS FIJOS LOPE FERNANDES, JOSEPHA FER- NANDES, Diogo FERNANDES, E A QUE DIOS PERDONE. Em tudo se assemelha ás campas de bronze, me- nos antigas, que se conservam n'uma capella da egreja de S. João Evangelista, da casa de Cadaval em Evora, e que cobrem os restos mortaes de Ruy de Sousa e de sua mulher. São ainda do mesmo se- culo um thuribulo de Alcalá de Henares, attribuido ao cardeal Cisneros (15) e um cofre do ferro ex- posto pelo sr. D. Ignacio Daner, de Madrid (14). Excepto este ultimo exemplar, todos os outros de que tenho fallado são expostos pelo museu archeo- logico de Madrid. Egualmente o são dois grandes candelabros de ferro rebatido, do seculo xvi, estylo da Renascença (16 e 17). Era d'este mesmo estylo, porém, muito mais perfeito, um altar ou capella de ferro que ha- via no claustro da sé de Evora, e que, pelos annos de 1860, pouco mais ou menos, foi desmanchado e vendido a peso. Vi ainda algumas columnas com bellos medalhões, tropheus e outros ornatos, al- guns dourados. Entre as obras de ferro da Renascença distingue- se, pela sua bella ornamentação, um cofre, exposto pelo sr. D. Mariano Diaz del Moral, de Madrid (19). De uma época posterior, já do seculo XVII, porém notavel ainda, pela belleza das formas e pela orna- mentação, é uma grande balança romana, exposta pelo museu archeologico de Madrid (22). D'esta clas- se mencionarei entre as obras da arte mahometana a grande lampada de bronze (27), suspensa do cen- 20 tro do tecto da sala, e que por assim dizer, por si só lhe imprime caracter. Foi da mesquita da Alham- bra, d'onde passou para a universidade complutense e d'ahi para a universidade central. É exposta pelo citado museu. A esculptura em marfim está representada por al- guns exemplares notaveis. Bastaria, para honrar a exposição, o crucifixo de Fernando Magno (31), ve- nerando monumento do seculo xi. A ornamentação de animaes e folhagens, caracteristica da época, é, relativamente, delicada e perfeita ; a imagem de Christo, porém, imperfeitissima, bem revela o atrazo da estatuaria, de uma arte que nas cathe- draes se não differençava ainda do mister do can- teiro, ao mesmo tempo apparelhador de pedra e esculptor de estatuas. A imperfeição da estatuaria não podia ficar limitada ás obras de pedra, devia necessariamente abranger as de outras materias. Na face anterior por cima do crucificado lè-se : IHE NAZARENVS REX IVDEORVM; e no reverso; FERDINAN- DVS REX SANCIA REGINE. Consta de uma carta de doação de 1063 haver sido dado nesse anno com outras alfaias á egreja parochial de S. João Baptis- ta, hoje Santo Isidoro de Leão. Egualmente merecem especial menção um cofre attribuido ao seculo ix (30), procedente de Santo Isidoro de Leão, com figuras illustradas de legen- das em caracteres anteriores aos gothicos; um di- ptyco com os passos da vida de Christo (32), orna- dos de arcarias ogivaes do seculo xv; e finalmente, da arte mahometana, um cofre de madeira com em- butidos de marfim e ébano, em cujo desenho Ama- dor de los Rios viu reminiscencias da arte persa. Ha na sala B uma parte muito curiosa e interes- sante, embora pouco agradavel aos olhos do visi- 21 tante, que somente aprecia as coisas bonitas e re- luzentes. São os velhos fragmentos de madeira es- culpida, conservados á força de injecções anti-se- pticas, os grandes e pesados moveis, denegridos pelo tempo, e que, sem os processos chimicos, den- tro em pouco se desfariam em pó, corroidos e des- aggregados pela acção destruidora do caruncho. Na impossibilidade de transportar para uma ex- posição distante as grandes estatuas, os pesados baixo-relevos de pedra, os volumosos fragmentos architectonicos, estes exemplares de madeira, en. viados de Hespanha, mostram-nos os varios gene- ros e phases da esculptura hespanhola, e as suas feições caracteristicas relativamente ás épocas e ás civilisações que os produziram. Os fragmentos mais antigos são do seculo x e procedem da mesquita de Cordova (39). Seguem-se depois os fragmentos de sóccos e de frizos dos es- tylos mudejar e granadino dos seculos XIII, XIV e XV, um pulpito de S. Marcos de Leão (165), com esculpturas ogivaes do seculo xv, as grandes arcas do mesmo estylo e época (166 e 167), tambem de Leão, e finalmente outras duas arcas de menores di- mensões, porém muito mais elegantes, com gran. des relevos do estylo da Renascença, obras do se- culo xvi (168 e 169). Todos estes exemplares são expostos pelo museu archeologico. As armas e armaduras da secção hespanhola, com quanto interessantes, não causarão admiração a quem tiver visto as ricas e numerosas collecções de Madrid. Augmenta-lhes, porém, o interesse a po- breza da nossa exposição n’este genero. Das obras de arte que teem desapparecido de Portugal, ne- nhumas parece terem sido votadas a tão completo exterminio como as armas e armaduras. Bastará di- 22 Pada borda anche a tu zer que os membros da commissão executiva que percorreram Lisboa e as provincias em busca de exemplares para a exposição, apenas obtiveram uma armadura completa, pertencente a sua magestade el-rei D. Luiz. Peças cinzeladas de lavor nota vel tambem somente sua magestade el-rei as expoz. A armaria real de Madrid expõe uma meia armadura com uma rodela (82), que pertenceu a el-rei D. Fi- lippe ili. Outras duas de menor estatura, que fo- ram do mesmo rei emquanto principe, e do prin- cipe D. Carlos (53 e 54), e doze espingardas e arcabuzes, obras do seculo passado, com os nomes dos fabricantes (56 a 67). O museu archeologico expõe duas adargas de coiro, bordadas a prata e seda (48 e 49), duas espadas castelhanas, uma do seculo XVI, outra do seculo XVII (50 e 51), uma espada granadina, com punho de cobre esmaltado (68), do seculo xiv, e, finalmente, um par de estribos cinzelados e doira- dos que pertenceram ao imperador Carlos v (69 e 70). O sr. conde de Valencia de D. Juan expõe um par de estribos arabes, de ferro, adamascados de prata, com adornos rebatidos de prata e alguns es- maltes (74 e 72). A ceramica representa talvez a parte mais cara- cteristica e mais caracterisada de toda a sala B. Logo no centro, por baixo da grande lampada de bronze, ergue-se um grande jarrão esmaltado de azul e com reflexos metalicos (73), attribuido á arte granadina do seculo xiv. Uma inscripção esmaltada confirma a deducção tirada dos caracteres do tra- balho. . Além d'esta curiosa antigualha, o museu archeo- logico nacional expõe trinta e cinco pratos, uns his- pano-arabes, pela maior parte de grande preço, pela finalmente, utenceram ao impera D. Juan expo 23 de Na code Bueno Urbin sua belleza e raridade, outros de fabricas hespanho- las, todos interessantes ao estudo da arte da cera- mica na peninsula. Expõe mais um grande numero de outros objectos de ornato ou de uso domestico, entre os quaes se notam os hispano-arabes, as bel- las majolicas de Urbino e os elegantes grupos da fabrica de Buen-Retiro. Na collecção dos esmaltes figuram dois relicarios de cobre esmaltado de Limoges, do seculo xu (153 e 154), procedentes de S. Marcos de Leão, simi- lhantes aos da Sé de Vizeu, expostos na grande collecção da ourivesaria portugueza, porém mais singelos e de menores dimensões. São expostos pelo museu archeologico, bem como duas bacias do se- culo xili, (155 e 156) quatro esmaltes com assumptos religiosos (157 e 160), que dizem ter sido fabrica- dos em Aragão no seculo xv, á imitação dos de Li- moges, porém menos perfeitos, e finalmente dois quadros com peanhas e molduras de ebano, con- tendo esmaltes em negro de Limoges, do seculo XVI (161 e 162). O sr. Rodrigues Seoane expõe um pequeno es- malte representando a Magdalena, do seculo XVII (163), e em tudo egual a outro do museu portuense, que figura na grande collecção da ourivesaria por- tugueza, na mesa central da sala M. Uma descripção dos tecidos e bordados, conforme à sua importancia, não cabe ncs estreitos limites d'esta carta. Mencionarei um bordado do seculo XIII (171), que representa scenas da vida de Nossa Se- nhora, exposto pelo sr. conde de Valencia de D. Juan, que expoz tambem tres curiosas collecções de passa- inaneria hespanhola (175, 176 e 177); mencionarei tambem as capas bordadas do palacio real e do museu archeologico, a primeira do seculo xvi, a se- 24 gunda do seculo XIV (175 e 174). Das tapeçarias merecem especial menção aquella de que já fallei na minha primeira carta, exposta na sala A, e outras duas similhantes expostas na sala N, que dizem ter sido da casa do conde-duque de Olivares; outras da fabrica de Madrid, que representam D. Quixote (exposta na sala N) e desenhos de D. Luiz Wanloo, D. Ramon Bayeu e D. Francisco Goya, todas nota- veis pela viveza do colorido. Os tres primeiros, do conde-duque de Olivares, são expostos pelo museu archeologico, os outros pelo palacio real. O museu archeologico de Madrid expõe, final- mente, interessantes e copiosas collecções de ar- mas prehistoricas de pedra e de cobre da America : de vasos peruanos e de vasos de bronze chinezes, pertencentes à secção ethnographica do mesmo mu- seu. III A sala F (COLLECÇÃO DE SUA MAGESTADE EL-REI O SENHOR D. FERNANDO E DA EX.ma SENHORA CONDESSA D'EDLA) Entremos agora na sala F, uma das mais ricas da exposição, pelas preciosidades que contém, a mais bella de todas, pelo gosto com que foi ele- gantemente disposta. N'este encantador recinto, onde com razão se de- leitam e extasiam os visitantes, patenteia-se o sen- timento esthetico do apaixonado cultor da arte, o gosto apurado das suas mais bellas manifestações, os conhecimentos artisticos, adquiridos pela obser- vação e pelo estudo no espaço de muitos annos. Não se nota alli um só objecto que pareça de mais ou deslocado, um logar vazio que devesse ser preenchido, uma discordancia de fórmas ou de cô- res. Todas as coisas estão harmonicamente dispos- tas em relação não somente de umas para com ou- tras, mas tambem de todas para com a sala a que servem de ornamento. 26 Das numerosas e interessantissimas obras de ou- rivesaria, expostas por sua magestade, prendem mais em particular a attenção os grandes pratos e gomis de prata dourada, tanto por suas grandes dimensões, como pela profusão, variedade e relevo dos ornatos. As palavras portuguezas, gravadas em alguns, a preferencia de certos assumptos, o estylo que se differença, por feições particulares e proeminentes, dos outros conhecidos da ourivesaria estrangeira, contemporanea, fazem com bom fundamento attri- buir estas e outras obras congeneres a ourives por- tuguezes do seculo Xvi, aquelles ourivezes que o bom do chronista de el-rei D. João i dizia estarem no cume, ao tempo em que escrevia a sua Miscel- lanea. Entre, meu amigo, na sala M, examine os gran- des exemplares da ourivesaria religiosa alli expos- tos, e diga-me se, plausivelmente, se pode contes- tar a existencia de um estylo nacional, proprio do seculo xvi, e gerado e desenvolvido nas mesmas condições que produziram a architectura denominada manuelina. Na ourivesaria, porém, o estylo affirmou- se, individualisou-se mais que na architectura. Pa- rece que o genio dos artistas, menos ligado á ob- servancia das regras estabelecidas e á imitação dos modelos, podia expandir-se mais livremente em criações tão imaginosas como originaes. A profusão de ornatos e de figuras que se entre- laçam e atropellam, que não destacam bem umas das outras, pela falta de vazios intercallares, a fór- ma convencional das arvores, a imaginosa e exage- rada phantasia dos monstros e chymeras caracteri- sam estas obras notaveis da ourivesaria portugueza na primeira metade do seculo xvi. 97 Os tres grandes pratos e um dos dois gomis, expostos por sua magestade el-rei D. Fernando, são os exemplares em que melhor se desenha o estylo portuguez. A primeira impressão, ao contemplar uma d'es- tas obras, é confusa e vaga. Depois à vista começa a distinguir as particularidades do intrincado con- juncto : anjos, patriarchas, guerreiros a pé e a ca- vallo, reis, chymeras, tendas, castellos artilhados e guarnecidos de mosquetes, escadas de assalto, car- ros com provisões de guerra, luctas, caçadas, ar- vores, ramagens, ornatos de toda a especie. As vezes o mar povoado de galeões e monstros marinhos; deuses fabulosos e santos do calendario romano; a par com a mythologia o christianismo; juntamente com os medalhões da renascença os ve- lhos ornatos gothicos. É a historia da época, escri- pta no metal, são as ideas que inspiraram Camões influindo da mesma sorte na imaginação dos artistas. Com effeito, que imaginação fecunda se não pa- tenteia n’um dos gomis ! As figuras do bico e da aza parece excederem os maiores devaneios da phan- tasia humana. Uma mulher, com pernas de abutre e com uma carranca no ventre, agarra sobre o peito as pernas caprinas de um satyro que se esforça por trepar pelo corpo do bico. A ponta, á maneira de gargula, é abraçada na face inferior por uma figura humana e cavalgada na parte superior por outra, que, ao mesmo tempo, agarra os braços da primeira e lhe finca os pés no peito. A aza, do lado opposto, compõe-se de figuras de não menos imaginosa phantasia. As pernas de umas engancham-se com os braços de outras ; duas acos- tam-se em direcções inversas. Um grande basilisco 28 de azas abertas e bocca escancarada está como que defendendo a ascensão da cadeia humana. Para os portuguezes do seculo. xvi viver era lu- ctar, luctar com o oceano, com as tempestades, com os homens, com os animaes. A lucta, portanto, a feição proeminente dos costumes, tornava-se o as- sumpto predilecto dos artistas. A par com o prato e gomil (25 e 26) de que te- nho fallado estão do outro lado, sobre o mesmo fo- gão, outro prato e gomil de estylo italiano (22 e 23). Estas obras, da mesma época ou pouco poste- riores, fazem com as primeiras notavel contraste, e servem muito bem para patentear com toda a cla- reza as differenças caracteristicas do estylo portu- guez. Os ornatos de pura renascença não teem nada da accumulação que se observa nos pratos portu- guezes, antes se destacam graciosamente nos gran- des fundos lisos que os separam. Finalmente a phantasia não ultrapassa os limites marcados pela arte classica. - A comparação d’estas obras differentes vale por si só uma lição de bellas artes. Os grandes pratos e gomis são os exemplares em que mais claramente se desenha o estylo da ourive- saria portugueza na primeira metade do seculo XVI. Todavia offerecem-nos ainda interesse, como repre- sentantes d'este mesmo estylo, outras obras de me- nores dimensões e de menos complexa ornamenta- ção, expostas por sua magestade na sala F. Eis aqui tres fructeiros de prata doirada tendo todos por medalhões centraes o mesmo brazão dos Sousas, encimado pela corôa de marquez. O dese- nho e o relevo assimelham-se aos dos grandes pra- tos. Notam-se n'um d'elles galeões de fórmas ca- prichosas; n'outro sobresaem mais os ornatos da Renascença, modificando já o estylo com a sua fei- ção proeminente e caracteristica. Patenteia-se ainda melhor a similhança com os grandes pratos n'outro fructeiro de prata doirada, maior que os tres mencionados, com a forma quasi da bacia, orla rendilhada e brazão prelaticio no cen- tro. O estylo, porém, modificou-se cada vez mais, transformado pelas influencias irresistiveis da Re- nascença. Differe muito das obras anteriores uma salva com brazão prelaticio no centro, e uns gran- des bustos de homem e de mulher. A data de 1548, gravada n’esta salva explica-nos a differença. Fallando da ourivesaria portugueza da primeira metade do seculo xvi, exposta na sala F, não devo deixar de mencionar uma bella caldeirinha de prata doirada com grandes medalhões e ornatos de phan- tasia. Lembra-se, meu amigo, de que foi pela compa- ração das obras italianas com as portuguezas que melhor cheguei a evidenciar a originalidade do es- tylo nacional. Podemos repetir agora con, egual re- sultado o mesmo processo. Juntamente com os exem- plares a que me tenho hoje referido está um bello medalhão de prata doirada, de puro estylo gothico, obra allemã dos fins do seculo xv. Representa Nossa Senhora com o Menino, S. Paulo, S. Jeronymo e um outro doutor da Egreja, de joelhos, em adora- ção e parece ter servido de fecho a uma capa pre- laticia. A leve e graciosa architectura, a elegancia do de- senho, a delicadeza do cinzelado, mostram-nos dif- ferenças profundas entre este exemplar e os outros da mesma sala, e mais ainda se o compararmos com. 30 as obras congeneres da arte religiosa, expostas na sala M. Sua magestade el-rei D. Fernando expõe ainda outros exemplares interessantes de ourivesaria. Taes são duas pulseiras de oiro celticas; dois calices de prata doirada do seculo xvi; duas grandes coroas, uma de prata branca, outra de prata doirada, e dois fructeiros pequenos, obra portugueza do se- culo xvi, um de prata doirada, outro de prata branca e doirada. São ambos ornados de segmen- tos esphericos, uns simples, outros compostos de segmentos menores, imitando o granuloso da amora. Relacionam-se naturalmente con estes exemplares outros dois, expostos um na sala G pelo Museu Kensington, outro na sala G pelo sr. Manuel Ba- rata de Lima Tovar, e finalmente uma salva do sr. D. Luiz de Carvalho Daun e Lorena. Esta ul- tima não tem segmentos esphericos, mas pequenas pyramides de base quadrangular. Todas estas obras são attribuiveis ao seculo xvi. A sr.a condessa d'Edla expõe tambem na sala F alguns exemplares interessantes de ourivesaria. Taes são um dos fructeiros, a que já me referi, com obrazão dos Sousas no centro, uma imagem de Nossa Senhora e dois anjos em alto relevo, obras portuguezas do seculo xvi, uma sacra de prata, ca- racteristicamente portugueza, e alguns fructeiros de prata branca, do seculo XVII. Entre estes ultimos ci- tarei dois com a forma de bacia, sendo um d'elles adornado com um busto de mulher doirado no me- dalhão central, e com a seguinte legenda em roda: ANNA MAVR ELLA OLDOFREDI D. ISE. ÆT. X. O resto ficou encoberto com o busto. São ambos extrema- mente similhantes a outros dois expostos na sala N, um dos quaes tem por medalhão central a effigie de 31 : Filippe in de Hespanha, pela qual se determinaria a época, se ella não estivesse claramente indicada na ornamentação. Os fructeiros mais elegantes expostos pela sr.a con- dessa estão n'uma das vitrines sextavadas. As alle- gorias das quatro partes do mundo, que adornam em baixo-relevo os centros e as largas cercaduras de ramagem, denunciam a industria franceza do se- culo XVII. Os fructeiros de prata branca e dois pratos de filigrana de prata de Cordova, expostos por sua ma- gestade, fazem realçar no grande armario de car- valho, pelo contraste das cores, os objectos de prata doirada. Os esmaltes de Limoges, em que a exposição é riquissima, estão tambem superiormente represen- tados na sala F. Os mais antigos são uma collecção de doze com outros tantos passos da vida de Christo, formando um triptyco (17). Representa a Flagella- ção, outro, do seculo xvi (33), comparavel, pela bel- leza do colorido, ao grande esmalte da bibliotheca de Evora, exposto na sala M. É obra de João Péni- caud. Finalmente outro pequeno esmalte, com mol- dura, parece representar a princeza Margarida de Saboya (37). Antes de me referir a outras obras de esculptura, direi algumas palavras acerca dos moveis ornados com obra de talha. Como se prova pelos innumeros retabulos das egrejas e conventos, teve esta arte um grande des- envolvimento nos seculos XVII e XVIII, e houve até artistas notaveis que trabalharam com grande per- feição. Todavia os exemplares expostos nas outras salas são poucos para convenientemente represen- tarem este grande ramo de industria nacional. Re- 35 nencia das suas folhagens e fructos de cores verde e amarella. As duas estatuetas, a que já me referi, represen- tando santos em adoração, pertencem ao mesmo genero com a imagem da Virgem que lhes serve de centro, e que não foi exposta. Pertencem á sr.a condessa d'Edla, que os adquiriu na Italia. Dos seculos XVII e xviii estão na sala F alguns pratos e talhas de Talavera e de Alcora, ornados com scenas de costumes e outras pinturas. No bojo de uma talha de Talavera vê-se uma estudantina, tal qual é ainda hoje. . Interessam-nos, porem, mais que tudo, as obras da fabrica do Rato: 0 espelho, as bailarinas, o busto da rainha D. Maria 1, algumas das quaes são expos- tas pela sr.a condessa d'Edla. Ao espirito occorre perguntar, porque se não faz hoje o que em cera- mica se fazia ha mais de um seculo. Alguns quadros gothicos e de épocas posteriores adornam a sala F. A primeira vista contam-se tam- bem como pinturas dois bellos mosaicos romanos do seculo passado, um dos quaes representa o Ecce Homo, e outro Nossa Senhora, ambos com ricas molduras doiradas. Assimelham-se no estylo e na perfeição aquelles que se admiram na capella de S. João Baptista da egreja de S. Roque. Sobre o centro de nogueira, no meio da sala, es- tão joias e objectos de menores dimensões. Perten- cem á sr.a condessa d'Edla uma rica e numerosa collecção de caixas de rapé e algumas joias nota- veis. Levar-me-ia muito tempo descrever todos estes objectos, que tanto attraem os olhos dos visitantes e particularmente das damas que se demoram n'esta sala. 36 Não deixarei, porém, de fazer menção de um grande collar de ambar e de filigrana de oiro, obra indo-portugueza dos fins do seculo xvi e de alguns vidros expostos no mesmo logar por sua magestade el-rei D. Fernando. IV . A sala G (AS VITRINES DE SUA MAGESTADE EL-REI O SENHOR D. LUIZ) Lisboa, 14 de fevereiro de 1882. Ao entrar na sala G deparam-se-nos logo as duas vitrines de sua magestade el-rei o senhor D. Luiz. Não é muito numerosa esta collecção; compre- hende apenas sessenta e nove objectos; mas ha en- tre elles alguns extremamente importantes. Taes são duas torques ou collares de oiro, celti- cos, achados, ha alguns annos, perto de Vizeu. Con- temporaneos, talvez, da denominada cava de Viriato, assimelham-se a outras torques que se teem desco- berto na Galliza; bem como aquelle monumento pa- rece tambem corresponder aos antigos castros gal- legos. Merece particular attenção a cruz de oiro de D. Sancho 1. Faz lembrar, sobretudo pelas finas pedras que a adornam, as joias wisigothicas do thesouro de Guarrazar, não obstante os seis secu- los que as separam. Todavia a forma e o desenho . 38 dos ornatos são do seculo xii, que, dominado ainda pelas influencias byzantinas, se differença profunda- mente da antiga arte wisigothica, byzantina tam- bem, mas de outro modo caracterisada n’aquella época remota. A data da cruz de D. Sancho está na seguinte inscripção, que darei aqui sem as abre- viaturas : DOMINUS SANCIUS REX JUSSIT FIERI HANC CRUCEM ANO INCARNATIONIS MCCXIIII. Adornam a face principal d'esta cruz muitos aljo. fares, saphiras e rubis, finos arabescos gravados sobre o oiro com guarnecimentos de filigrana. Al- gumas das pedras estão marcadas com siglas. A base tem a forma de esphera achatada, tambem co- berta de ornatos de filigrana. Os ornatos da face posterior são todos gravados a buril; no centro o Agnus Dei; nas extremidades da haste e dos braços o anjo e os animaes emble- maticos dos evangelistas, cujo desenho apresenta as fórmas elegantes e phantasiosas da esculptura orna- mental christã do seculo xii: na haste a inscripção já transcripta, cuja data foi gravada n’uma fita que o anjo de S. Mattheus sustenta nas mãos. El-rei D. Sancho i legou em seu testamento ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra o oiro para esta obra notavel. Entre esta cruz e outra de que mais adiante fal- larei está a custodia de Belem, o mais admiravel dos monumentos da ourivesaria portugueza. Em ne- nhuma outra obra d'este genero se reproduziu com tanto primor a phantasia, o arrojo, a esbelta ele- gancia e maravilhosa delicadeza do estylo ogival, pela difficuldade de reduzir no ouro ou na prata as fórmas dos elementos architectonicos das grandes ca- thedraes de pedra. O auctor da custodia de Belem fez este milagre 39 da arte, e deu á sua obra uma apparencia verda- deiramente phantastica e maravilhosa. O genio na- cional, as ideas que exaltavam o caracter portuguez no seculo xvi, as inspirações que os artistas rece- biam do Oriente patenteiam-se na obra de Gil Vi- cente, como em Thomar, em Belem, ou nos Lusia- das. Compõe-se a custodia de quatro partes : base, haste, relicario e cupula. No bordo inferior da base lè-se o seguinte em caracteres de esmalte branco: O MUITO ALTO PRIN- CIPE E PODEROSO SENHOR REI DOM MANOEL I A MAN- DOV FAZER DO OVRO I DAS PARIAS DE QUILOA AQUABOV E CCCCCVI. A superficie da base é distribuida em seis gomos adornados com aves, buzios e flores esmaltadas e em alto relevo. Formam a haste dois corpos hexagonos, fenestra- dos, ligados pelo nó tambem hexagono, muito vo- lumoso e proeminente; em cada uma das seis fa- ces, entre dois columnellos, a esphera armillar. Es- tes columnellos são uma transformação ou derivação das torrinhas que adornam as partes corresponden- tes de algumas alfaias do seculo xv, como se pode vêr nos exemplares expostos na sala M. Sobre a haste ergue-se o grande corpo archite- ctonico que contém o relicario, e cuja base é, na face inferior, adornada de rendilhados e de festões. Doze modilhões de forma pyramidal, com os ver- tices para baixo, guarnecem adiante e atraz a cir- cumferencia da base. Sobre cada um d'elles, n'um plintho hexagono, está de joelhos a estatueta de um apostolo. Querendo evitar a monotonia que offereceriam doze figuras de joelhos, o artista variou por extremo as 40 fórmas, as côres e os pannejamentos das vestes, e tambem as cabeças, fazendo umas calvas, outras com cabellos, doirados todos, mas diversamente an- nellados. Sobre a base do relicario erguem-se duas colum- nas quadrangulares, entre as quaes está fixada a caixa circular com vidros para conter a hostia. Exteriormente reveste cada uma das columnas um corpo de grande altura, formado de peças de- licadissimas. Em baixo nichos com anjos cobertos com baldaquinos, sobre os quaes se levantam altos columnellos, ornados de espiraes e sustendo outros anjos e baldaquinos. Os ornatos cada vez se tornam mais delicados, de baixo para cima, até chegarem a parecer quasi microscopicos. A cupula articula-se com a3 columnas e corpos lateraes, baixando na parte media até ao nivel su- perior do hostiario, ao qual forma uma como coroa, guarnecida de rendilhados e ornada com seis sera- phins n'outros tantos medalhões. A cupula propriamente dita, que se eleva acima d'esta especie de corôa, compõe-se de tres corpos de arcarias, rendilhados, anjos e baldaquinos, liga- dos entre si por columnellos enciinados por coru- cheus. Por baixo do corpo superior está o busto do Padre Eterno, coroado, com a esphera do mundo e a cruz n’uma das mãos, e abençoando com a outra. Uma cruz serve de remate superior a toda a obra. Esta custodia e a cruz de D. Sancho i foram re- colhidas, em 1834, com as alfaias de oiro e prata dos conventos á casa da moeda. D'aqui passaram mais tarde para a casa real em troca de outros ob- jectos, pertencentes á corôa, que n'aquella casa ha- viam sido fundidos. Sua magestade el-rei o senhor D. Luiz expoz tam- 42 os do barco, ao mesmo tempo que uma d'ellas resiste contra um outro demonio que lhe lança as garras. No quadro seguinte estão n'um logar alto, junto das muralhas de uma fortaleza, tres cavalleiros, con- tra os quaes parece virem outros, e entre elles um rei; outro rei, atravessado por uma espada, é pre- cipitado para o terreno mais baixo, por onde os ul- timos avançam. No immediato representa-se uma grande carnifi- cina. Em frente das tendas de um arraial homens armados de espadas degolam ou atravessain outros, alguns dos quaes jazem prostrados em terra. No immediato um rei seguido de outros homens, um dos quaes está de joelhos em terra, assiste ao desmoronamento de uma fortaleza. O seguinte representa tres homens presos, indo adiante dois alabardeiros e atraz um cavalleiro.. Depois um papa, acolytado por dois bispos, ba- ptisa um rei. Na terceira zona, ou exterior, dois galeões com velas latinas, levando as do primeiro a cruz de Christo, seguidos por um barco menor com vela triangular, navegam pelo mar encapellado; deixando atraz a terra coberta de arvoredo, e mais ao longe uma fortaleza. Num outro quadro um rei a cavallo, precedido de dois alabardeiros de pé e seguido de cavalleiros, deixando atraz as tendas de um arraial, approxi- ma-se de umas muralhas ameiadas, de cima das quaes dois homens parece fallarem para baixo. Outro representa uma viagem de cavalleiros. Junto de um bosque alguns homens enchem de agua, que tiram com cantaros do chão, as vasilhas que um ca- vallo transporta. Ao longe seguem uma estrada, na maior altura, alguns camellos. 43 Outro representa um combate. Alguns cavalleiros e cavallos jazem por terra. N'outro dois homens entram n'uma casa, onde, sobre um estrado, algumas mulheres lhe saem ao encontro. A principal é precedida por outra que traz uma creança n'uma bandeja. Algumas outras, atraz, estão sentadas. Mais atraz, junto de uma chaminé, outra mulher assa carne n'um espeto em frente do fogo. No immediato alguns homens, sobre um caes, junto de um bosque, assistem á partida de um ou- tro, que n'um batel, com um rèmador, segue para um galeão pouco distante. Outro representa o encontro de quatro cavallei- ros que se cumprimentam tirando os chapéos, e de uma e de outra parte precedidos por homens de pe e de cavallo. N'outro, finalmente, um rei parece enfermar ou agonisar n'um leito. Ao lado um papa está para lan- çar-lhe em cima um lençol ou coberta. Mulheres e homens de joelhos, um d'elles com um brandão acceso, os outros, de mãos postas, as- sistem a este espectaculo. Taes são as scenas representadas no grande prato de prata doirada de sua magestade el-rei o senhor D. Luiz. É possivel que a ordem natural dos qua- dros seja outra, mas nem por isso deixará de ter interesse a descripção de cada um d'elles, afim de dar idéa d'este estylo singular. No centro houve de certo um brazão, hoje sub- stituido por um medalhão, representando em baixo- relevo um combate de cavalleiros. A par com estas obras de ourivesaria nacional expõe sua magestade outras de estylo mui diffe- rente. Taes são tres grandes pratos de prata doi- 45 gem de Christo resuscitado. Os paineis representam em baixo-relevo, adiante o Enterro, atraz o Calvario, de um lado a Crucifixão, do outro o Descimento da cruz. São do mesmo estylo da Renascença e do mesmo seculo xvi, porém obra italiana, uma gorgeira e um peito de armadura, ornados de bellos baixo-relevos, que representam assumptos guerreiros. Attribuem- se a Francisco I. A sua magestade a rainha a senhora D. Maria Pia pertencem tres joias de grande preço, expostas n'uma das vitrines: uma cruz de oiro esmaltado, ornada de perolas e esmeraldas; um pingente de oiro esmaltado representando uma sereia, ornado de perolas e grenadas; e finalmente um relicario de oiro. A cruz e o pingente são do seculo xvi; o relicario, pelas pinturas que o adornam, parece do seculo XVII. Ao lado da custodia de Belem está uma cruz tam- bem de oiro, já do seculo xvii, mas de elegante e apurado lavor. E toda coberta de rendilhados com rubis, diamantes, esmeraldas, brilhantes, saphiras e perolas. Está vinculada na casa de Bragança e denomina-se cruz de Villa Viçosa. Além das duas vitrines de sua magestade el-rei, contem a sala G outras duas, occupadas por grande variedade de objectos na parte inferior; na parte superior por innumeros leques de varios exposito- res (pela maior parte expositoras) de Lisboa e das provincias. Tanto estes dois grupos de leques como o da sr.a condessa d'Edla, exposto na sala F, fazem bellissimo effeito: semelhantes na forma e nas côres ás azas das borboletas, parecem bandos d'estes insectos a librar-se no espaço interior das vitrines. Não lhe indicarei, meu amigo, os de maior preço, 46 pois francamente confesso a minha ignorancia na materia, mas os mais bellos, ou pelo menos aquelles que assim me parecem. Aqui está logo em frente um leque de inverno, exposto pelo sr. Fernando Palha (122) e que decerto merece o logar em que foi collocado. Notarei tambem disseminados pelos dois grupos, os das sr.as condessa de Prime (125) D. Maria Francisca Saldanha de Oliveira e Daun (136, 341), D. Maria da Gloria Rezende Coutinho (138), viscondessa de Daupias (127, 134, 144), D. Eugenia Vizeu (130), condessa de Rio Maior, D. Izabel (340), D. Camilla Ribeiro de Faria (335), marqueza de Fronteira (329), D. Maria das Dores Ferreira Navarro (338). Espõem, finalmente, exemplares não menos inte- ressantes os srs. Albano Pinto de Mesquita Carva- lho e Gama (133), conde de Mesquitella (128), Au- gusto Moreira (332), Francisco Xavier de Carvalho (342), D. Duarte Manuel de Noronha (330) e c mu- seu municipal do Porto (131). E curiosa a collecção de caixas de rapé, expostas n'uma das vitrines a que me tenho referido. Umas de oiro simples ou esmaltado, outras de prata branca ou doirada, outras com baixo-relevos, outras, final- mente, com miniaturas. Entre muitas, de que pode- ria fazer digna menção, notarei apenas uma de pra- ta doirada com ornatos de applicação de filigrana de prata branca, pertencente ao sr. Manuel Barata de Lima Tovar, outra do sr. Bento de Queiroz, de Vizeu, com um baixo-relevo que representa uma toirada. É tambem d'este ultimo expositor, cujo nome apparece tantas vezes repetido na exposição, uma grande bolsa de rede de prata doirada, que, pelas suas dimensões, destaca entre os relogios e caixas de rapé. Parece do tempo de D. João v e 48 dolorosa. São bellos o colorido e a forma das figu- ras. Ha porém nas posições a exageração e a affe- ctação que se apontam como defeitos caracteristicos das obras que sairam ou procederam da escola de Mafra. Este grupo é exposto pela sr. D. Helena de Aragão. Logo adiante vê-se uma estatua de cera e gesso doirada que representa el rei D. José. Attri- bue-se a Joaquim Machado de Castro, como um primeiro e desprezado modelo para o monumento do Terreiro do Paço. Mencionarei ainda um cofre, só notavel por ser de ambar, e finalmente uma curiosidade, uma prova da paciencia e do lavor delicado de que são capazes um cerebro e mão humanos. É um papel recortado å thesoura, figurando uma paizagem e mettido entre duas laminas de vidro. A maior parte dos olhos passa como uma gravura em vidro ou crystal. É exposto este objecto pela sr. viscondessa de Fonte Arcada. Occupam a parte inferior da vitrine grupos de joias de varios expositores, entre os quaes avulta a copiosa e variada collecção do sr. Julio Cordeiro. Extremamente differentes nas formas, cores e dis- posição das pedras: brincos, anneis, collares, me- dalhas, adereços completos, broches, cruzes, relo- gios, alfinetes de peito, pregos de cabello, fivelas, condecorações, etc., são todos do seculo passado. Deixemos agora as vitrines e demos um rapido giro á roda da sala, começando pela esquerda á en- trada. Eis aqui sobre uma meza de pau santo um grande tinteiro de bronze, memoravel somente por ter pertencido ao primeiro marquez de Pombal, em cuja casa religiosamente se tem conservado. Sobre a mesma meza está um grande vaso de prata lavrada, obra de Guimarães, do seculo xyli, e exposto pelo sr. Manuel Pedro Guedes; e final- bordada a oiro, com anjos e outros ornatos de bronze doirado (71). Tem interesse unicamente como curiosidade historica. É a sedes gestatoria em que, no seculo passado, traziam o patriarcha em procissão, como n'um andor. Recorda-nos, pois, aquelles privilegios que el-rei D. João v comprou por avultadas sommas para ter em Lisboa uma imi- tação das pompas religiosas de Roma e do luxo pon- tificio, menos christão do que asiatico. Cobre em parte a parede do fundo da sala I um biombo de cartão, ornado de medalhões com a serie dos monarchas portuguezes, desde o conde D. Hen- rique até D. Pedro Il e seu filho o principe D. João. Na parte inferior veem-se representadas em seis grandes quadros as batalhas da restauração da in- dependencia nacional (72). A fórma das casas, o colorido e a ornamentação suscitam a idea de que este singular biombo tenha sido pintado na China. Foi exposto pela sr.a vis- condessa de Fonte Arcada; e diz-se que pertencera ao primeiro visconde d'este titulo, Pedro Jacques de Magalhães, um dos cabos das guerras da inde- pendencia. O sr. Custodio Correia da Rocha, de Lamego, ex- põe um leito de pau santo de forma assås elegante e no estylo de Luiz xv. É forrado de coiro estam- pado, como um canapé, e pode servir com colchão ou sem elle (77). No topo da sala 1 estão um espelho e mesa com obra de talha em grande relevo (76 e 76). Como outros similhantes moveis, parece terem sido fei- tos com antigos fragmentos. Foram expostos pelo sr. Francisco d'Aboim. Encontram-se ainda na sala 1 tres medalhões de faiança (80, 82 e 83), genero Della Robbia, simi- neto COO VE Dos morer Dente dois : Cordeiro ( 196) artes (149). O primeiro rada esculpiora, cbras de talla del mais forte razão, a wrpado extremam ca-se, portanto, un quer que appareça. O segundo é um Co que se attribuiria ao ables o producto de uil Heapadba, como ga Ita cteres da arte local OS t gião se fabricaram em Na sala H está um com França, e attribuido a Ca se conbecem, que pelo se a hypothese de que não mente antigos. Na ceramica da sala JI interessantes. Taes são azul Epocas e estylos differentes, Sobresaem pelas dimenso dros de azulejo, que foram cosa (100 e 111). Um repre paizagens vivamente colorid as armas do duque de Bra madas pela coroa e dragã abjos. A ornamentação á r 54 nascença, e representa fitas, fructas, flores, vasos, etc. N’uma das paredes está um grande medalhão de marmore de Carrara (107), representando em mais de meio relevo Nossa Senhora com o Menino, e dois. anjos sustendo uma grinalda. Era da fachada da egreja da Madre de Deus, como se prova pelo conhecido quadro que a representa tal qual era no seculo XVI, encorporado hoje n'um movel de sacristia, e formando a parte posterior de · uma porta do mesmo movel, exposta na sala J, onde somente está à vista o quadro da face anterior, que representa o casamento de D. João III. A moldura primitiva do inedalhão já não existe. Foi substituida pela de um outro medalhão de dia- metro um pouco maior. Todavia é no genero d'a- quella que se perdeu. É tambem do mesmo genero e da mesma época um portico de faiança azul e branca com pilastras ornamentadas no estylo da Renascença, e pertenceu egualmente ao mosteiro da Madre de Deus. Ha n’esta sala dois notaveis baixo-relevos em pe- dra lithographica, ambos do seculo xvi. Um, per- tencente ao sr. duque de Loulé (131), representa o Calvario. O outro (123), do sr. conde de Villa Real, representa o Descimento da Cruz. Mencionarei, finalmente, algumas figuras de barro coloridas (104, 106, 120 e 122), que foram de um presepio d'aquelle convento, e que parecem obras do auctor de outras, expostas na sala G, e das quaes já fallei n'uma das minhas cartas antecedentes. O desenho é correcto, vivo e colorido, mas resente-se d'aquella exaggeração com que costumamos, ainda hoje, representar mais burlescos do que, em ver- dade, são alguns typos populares. Entremos agora na sala K e examinemos primei- ramente a vitrine xxxii, que nos fica logo á entrada da porta. Eis aqui numerosas imagens de santos, a maior parte das quaes são expostas pelo sr. Cor- deiro Feio. Merecem attenção estes exemplares, bem como outros da mesma sala e da immediata. Infe- lizmente, por serem quasi todos da mesma época, não bastam para representar nas suas differentes phases a imaginaria portugueza. Já nos seculos xv e xvi havia muitos imaginarios, cuja arte se desenvolvia principalmente sob a pro- tecção das egrejas e conventos. Todavia, anteriores ao seculo XVIII, poucas obras d'este genero se en- contram na exposição. Ter-se-hia de certo preen- chido esta falta, se não prevalecesse commumente a idea de que só poderiam ser apreciadas as coisas notaveis pelo seu valor intrinseco ou pela sua per- feição artistica. Algumas das estatuetas, expostas pelo sr. Cor- deiro Feio, são de madeira pintada e doirada; ou- tras de marfim e ebano. Estas ultimas diz-se terem sido feitas na Italia e offerecidas por Junot á con- dessa da Ega. É possivel. Mas, comparando esta collecção com outra, exposta na sala L, e que sei com certeza ter vindo de Gôa no principio d'este seculo, entro em duvida sobre a veracidade d'aquella tradição. Antes me parece dever attribuir as esta- tuetas n.ºs 8 a 19 e tambem outras, expostas na vitrine xXXV com os n.os 114 a 119, á industria indo-portugueza dos fins do seculo XVII, ou dos princípios do seculo XVIII. A.collecção da sala L consta de treze peças dif- ferentes, formando uma banqueta de altar de capella. Uma figura de mulher, allegoria da Asia, com um joelho em terra sustem sobre o outro joelho o do seculo svi e attribuidos o primeiro á industria italiana, o segundo á industria bespanhola. A espada, exposta pelo sr. Manuel Thimotheo de Andrade, tem os punhos e os copos de oiro, orna- dos de bustos, tropheus e outros lavores e crave. jados de pedras. Na folha lè se a data de 1660, e n'uma face: VIVA D. JOÃO DE AUSTRIA ; ,e na outra: VIVA D. JOÃO DE BRAGANÇA. A bainha é de velludo carmezim e de oiro no terço inferior e no superior, o qual é tambem adornado de pedras. A coexistencia d'estas duas inscripções antinomi- cas na mesma espada é um facto inexplicavel. Consta apenas que fora dada de presente a Manuel Thimo- theo Valladares, antigo governador na India e no Brazil. A vitrine XXXV contém entre muitos outros obje- ctos as estatuetas de marfim, a que já me referi, expostas pela sr.a D. Laura Rodrigues Blanco; chi- caras e pires de porcelana do Derbi Cornwall, do sr. Fernando Palha; estatuetas de Saxe, do sr. Pes- soa de Amorim; um par de pistolas com ornatos de prata do sr. dr. Caetano de Albuquerque; dois medalhões de Wedgwood, um busto de agatha sobre um lindissimo pedestal ornado de esmaltes e rubis, um serviço de almoço de Saxe e um orgão portatil com ornatos gravados em marfim e com a seguinte inscripção: ARSACYOS GEYER HOC OPVS FECIT 1591. Es- tes ultimos objectos pertencem á Academia Real das Sciencias de Lisboa. · Ha na sala K, alguns moveis notaveis. O maior, e o que mais prende a attenção dos visitantes, é um grande leito italiano do seculo XVII, com ornatos de prata rebatida e cinzelada, e com pinturas re- presentando assumptos mythologicos. Um escudo com as armas da casa de Sabugal serve de remate 58 å cabeceira. Pertence actualmente, bem como a colcha que o cobre, ao sr. Julio Cordeiro. Nas salas Ke L ha grande numero e variedade de cadeiras, algumas do seculo xvii, a maior parte do seculo XVIII. Julgo, porém, que em Lisboa e ainda na provincia se encontrariam algumas mais antigas e mais interessantes, que as que figuram na exposição. Das expostas nas salas Ke L as mais notaveis são duas de guadamecis, uma da Academia Real de Bellas Artes, outra do sr. marquez da Graciosa, ambas muito similhantes e attribuiveis å industria hespanhola do seculo XVII; outras duas com assen- tos de coiro estampado e costas de madeira com um brazão esculpido (159 e 208), ambas do seculo xviii, uma d'ellas exposta pelo sr. Basilio Cabral Teixeira de Queiroz, outra pela Academia de Bellas Artes de Lisboa. Da antiga cadeira de coiro portugueza do seculo XVII e XVIII, da qual se conservam ainda tantos exemplares de formas differentes, poucos vieram á exposição. Além das duas expostas na sala J, pou- cas mais se encontram nas salas Ke L; e ainda al- gumas d'ellas com restaurações evidentes. As cadeiras de coiro com moldura de talha do seculo XVIII, em que os grossos pés revestidos de arabescos e folhagens substituem já os torcidos ou torneados, estão mais bem representadas. Entre ellas merecem attenção duas do extincto mosteiro de Lorvão, e uma do sr. visconde de Daupias (183 e 188). Grande parte dos moveis, enviados á exposição, e collocados não somente nas salas Ke L, mas tam- bem nas anteriores G, H, I e J, são estrangeiros. Sabe-se, todavia, que a industria da mobilia foi uma 59 das que mais produziram em Portugal, e que mais se differenciaram, por caracteres particulares, das industrias correspondentes de outros paizes. Infelizmente, a commissão executiva, occupada com os trabalhos da organisação da exposição, não teve tempo de procurar e de pedir em Lisboa os exemplares d’este genero. Por outra parte, alguns dos expositores deixaram em casa os antigos mo- veis portuguezes, para mandar os estrangeiros, de certo mais bellos e de maior preço, mas que de modo nenhum deveriam obter a preferencia para uma exposição da arte portugueza. . Tres grandes armarios, dois designados com os n.197 e 203 na salà K e outro com o n.º 180 na sala L, representam na exposição um genero, de que se encontram ainda muitos exemplares em Portu- gal. Conhecem-se n'outros paizes moveis similhan- tes, hollandezes ou flamengos, que talvez tenham sido imitados em Portugal. No mais bello dos tres lê-se na parte inferior em grandes letras relevadas : ANNO 1646. Este armario, de madeira de carvalho, pertenceu ao extincto convento de Chellas, o outro da sala K, tambem de carvalho, exposto pelo sr. Paiva de Andrada, torna-se notavel pelas figuras e outros ornatos de talha, se bem que menos perfeita que a do anterior. O da sala L, de pau santo o de forma assás elegante, pertence a Academia de Bellas Ar- tes de Lisboa. Dos grandes armarios de pau santo, ornados de tremidos e com bellas chapas e puxadeiras de latão, que pelo estylo correspondem aos contadores, me- sas, e cadeiras de pés torneados, não temos na ex- posição nenhum exemplar, posto que se encontrem ainda em algumas casas de Lisboa e das provin- cias. Esta industria portugueza do seculo xvii, está re- presentada na sala K somente por um elegante con- tador (161), exposto pelo sr. Teixeira de Aragão. Alguns contadores e outros moveis de embutidos representam nas salas Ke L a industria indiana, da qual se encontram ainda em Portugal tantos exem- plares. Da sala K merecem menção dois moveis, como obras caracteristicamente portuguezas. É uma com- moda de pau santo (180) com embutidos de madeira de espinheiro e puxadores de latão circulares, que servem como de molduras a medalhões de esmalte, que representam bustos de mulheres. Pertence ao sr. D. Miguel Pereira Coutinho. O outro é um touca- dor (187) do mesmo genero, exposto pela sr. D. He- lena de Aragão. Uma parede da sala K está coberta de armas de varias especies e épocas, elegantemente dispostas. São escudos, capacetes, cotas de malha, peitos, cou- raças e outras peças de armaduras, espadas, espa- dins, alabardas, punhaes, esporas, acicates, etc., em numero de mais de cem exemplares. Nos vãos das janellas dois armeiros contéem es- pingardas dos srs. Manuel Bento de Sousa e Tei- xeira de Aragão, umas do seculo passado, outras já d'este seculo, e quasi todas com os nomes ou marcas dos fabricantes portuguezes. Finalmente, de outra parede pende ainda um me- dalhão de faiança do genero Della Robbia. Repre- senta em alto relevo o busto de um imperador ro- mano. A moldura é egual ás dos outros medalhões já mencionados, e o desenho do busto egualmente correcto. Foi exposto pelo sr. visconde de Daupias. A vitrine xxxvi da sala L contém grande numero de objectos de cobre esmaltado. Vinte e dois, collo- cados todos na parte inferior, formam a notavel col- 61 , lecção dos srs. duques de Palmella, outrora per- tencente, segundo consta, á casa de Angeja. D'estes vinte e seis objectos, vinte e tres são de cobre es- maltado de Limoges, do seculo xvi e xvii, notaveis pela belleza, variedade de fórmas, differença do co- lorido e diversidade dos desenhos. · A collecção consta de pratos, fructeiros, častiçaes, saleiros, um tinteiro e um repuxo. Em dois gran- des pratos ellipticos ou travessas estão representa- dos, n'um o banquete dos deuses, no outro o rapto de Europa. Estes bellos quadros fazem lembrar, pelo esmero, nitidez e elegancia das figuras, as obras ca- pitaes da Renascença. . Examinando com attenção estas curiosas peças, n'ellas se reconhecem tres typos differentes.. Ao primeiro pertencem os dois grandes pratos ellipticos e alguns dos fructeiros. Um d'aquelles tem a data de 1558 e as iniciaes P. R. (Pierre Rey- mond). O segundo typo, menos antigo, é o dos fructeiros e de differentes objectos de varias formas, destina- dos para usos diversos. O nome do fabricante Jean Laudin, faz parte da legenda de um pequeno prato. O terceiro, finalmente, differença-se dos outros dois por signaes muito caracteristicos. Os seis pra- tos d'este ultimo genero representam assumptos re- ligiosos, ainda com as minucias das antigas pintu- ras flamengas, e são de todos os da collecção aquel- les que menos differem dos outros esmaltes do se- culo XVI, expostos nas salas F e M. As letras I. C. que se encontram no reverso dos pratos parece se. rem do nome Jehan Courteys. Uma das classes do programma que menos re- presentada está na exposição, é a dos instrumentos musicos, notaveis pelos ornatos. Não faltarão elles 62 de certo em Hespanha e Portugal, onde o povo tanto aprecia as obras de madeira com embutidos de cores. Sendo em verdade para lamentar esta falta, não deixarei de mencionar dois bandolins da vitrine XXXII, expostos pela sr.a D. Maria Julia Botelho Lobo de Santos e Silva. São ambos de madeira marchetada de tartaruga e madre-perola, e um d'elles tem o se- guinte letreiro : DANIEL DE MATOS O FEZ EM LISBOA. NA PRAÇA DA ALEGRIA NO ANNO DE 1781. Na mesma vitrine e na immediata, marcada com o numero XXXVIII, estão as treze peças da banqueta de ebano e marfim a que já me referi, e n’esta ul- tima tambem merece attenção o assento e o espal- dar de uma cadeira de coiro estampado e doirado. O desenho dos ornatos estampados é commum, a douradura, porém, bastante rara, particularmente com a perfeição que conserva n'este exemplar. E do sr. Maximino de Mattos Carvalho. Algumas tapeçarias cobrem as paredes da sala K, que, pela sua estreiteza e pouca luz, não deixa bem aprecial-as. As mais antigas e de mais preço são dois pannos de Arras do seculo xv, analogos pelos desenhos e colorido ás boas pinturas flamengas da mesma época. Infelizmente, não estão tão bem con- servados como aquelle que pertenceu ao convento da Madre de Deus, e foi exposto na sala A. As ou- tras tapeçarias fazem parte da secção hespanhola. Finalmente, para concluir o que tenho a dizer da sala L, mencionarei um azulejo do seculo xvi, que faz lembrar, pelo colorido, e talvez pelo estylo, aquelle que el-rei o senhor D. Fernando expoz na sala F. Procede do convento de S. Bento, de Evora. VI A sala M As salas M, Ne 0, contéem a grande collecção de obras de ourivesaria, por entre as quaes se in- tercallaram algumas de outras classes, afim de evi- tar o aspecto monotono de uma longa serie de ob- jectos metallicos. Na disposição d'esta collecção por todas as tres salas, seguiu-se a ordem chronologica, excepto em. certos casos, em que, por conveniencia da colloca- ção, se alterou excepcionalmente o systema geral. A sala M, a maior de todas, é occupada pelos exemplares da edade media e do seculo XVI. A sala N, por alguns ainda do seculo xvi e pelos do seculo XVII. A sala 0, finalmente, pelos do se- culo xviii, com mui poucas excepções.. A evolução da arte segue-se, pois, como n'um livro de historia, por todas as tres salas, cada uma das quaes, e mais em particular a sala N e a sala 0, teem a sua feição caracteristica dependente do es- tylo do seculo respectivo. Falta, porém, na sala M esta unidade de estylo. A maior parte das obras de arte, que contém, são 64 ogivaes; mas, além d'estas, muitas outras anterio- res: arabes, byzantinas, romanicas; outras tam- bem posteriores, produzidas já pela Renascença; outras, finalmente, em que os dois estylos se com- binam, formando umas vezes bellos contrastes, ou- tras vezes productos hybridos e disformes. Tudo isto faz com que seja extremamente cu- rioso o aspecto da sala M. Os seus exemplares re- presentam-nos as revoluções que, durante a edade média, mudaram as nacionalidades, os systemas po- liticos, os cultos religiosos e os estylos das artes; depois o grande movimento da Renascença, que abriu aos povos europeus os largos horisontes da civilisação grega e romana; finalmente, os esforços dos artistas para accommodar ás exigencias de uma religião monotheista a architectura e a esculptura do polytheismo, esforços que de certo lhes sairiam baldados, se não tivessem os santos e santas do calendario para substituir aos antigos deuses, re- presentando-os na estatuaria, ou agrupando-os nos baixo-relevos. Os exemplares mais antigos da sala M, são al- gumas obras da arte mahometana. Já antecedente- mente me referi ao cofre de marfim hispano-arabe da sé de Braga (181), quando fallei de outras simi- lhantes antigualhas do museu Kensington. Uma d'es- tas ultimas, a mais notavel de todas, tem a maior analogia com o cofre de Braga, nas inscripções, na fórma e na ornamentação. Ambas as inscripções de caracteres cuficos, estão gravadas nas bordas das tampas, quasi hemisphe- ricas. No cofre do museu Kensington, falta, com um grande pedaço da tampa, a primeira parte da in- scripção, a qual diria, segundo a formula commum: EM NOME DE DEUS, etc. A parte restante, anda in- 65 terpretada nos catalogos do museu, pela seguinte forma : PROSPERIDADE E FELICIDADE PARA RIYADH BEN AFLAH, CAPITÃO DA GUARDA SUPERIOR : ISTO FOI FEITO NO ANNO DE 359 (A. D. 969). A inscripção do cofre da sé de Braga, segundo a lição, publicada n’uma carta de A. Soromenho, nas Artes e Letras (3.a serie, pag. 94), diz o se- guinte: EM NOME DE DEUS A BENÇÃO E PROSPERIDADE E A FORTUNA PARA O HADJEB SEIFO'-D-DAULA POR ESTA OBRA QUE MANDOU FAZER POR MĀOS DE... SEU EUNUCO ALAMERITA. O auctor da carta suppoz que na parte que falta da tampa estaria o nome do eunuco, e julgou tam- bem, por considerações historicas acerca do perso- nagem, a quem pertenceu o cognome de Seifo’-d- daula, que o cofre da sé de Braga terá sido feito entre os annos 1004 e 1008. A maior similhança está nas fórmas dos dois co- fres. Ambos teem os corpos cylindricos e as tam- pas quasi hemisphericas, mas o de Braga, de me- nor diametro, é mais elegante. Tanto um como outro são inteiramente cobertos de lavores do mesmo estylo. No de Braga, porém, não se representaram scenas correspondentes ás dos tres quadros que adornam o do museu Kensington. Sobre seis columnas incompletas estribam-se outros tantos arcos de volta de ferradura, encimados por medalhões circulares, cujo espaço é occupado, em cada um d'elles, por uma ave ou um quadrupede. Os espaços interiores e exteriores dos arcos são pre- enchidos com arvores, ramagens, flores, fructas, fi- guras de homens e de animaes, etc. A inscripção do cofre de Pamplona, ao qual tam- bem já me referi, e que, pelas scenas representa- das nos quadros ou medalhões da face anterior, se 66 assimelha por extremo ao cofre do museu Kensin- gton, dará o nome do auctor dos tres cofres e com- pletará a historia d'estas curiosissimas antigualhas : EM NOME DE DEUS, A BENÇÃO DE DEUS, A COMPLETA FELICIDADE, A FORTUNA, A REALISAÇÃO DA ESPERANÇA DAS BOAS OBRAS E O ADIAMENTO DO TERMO FATAL PARA O HAGIB SEIFO DÁULA ABDELMALEK BEN ALMANSUR : ISTO FOI FEITO POR SUA ORDEM, SOB A INSPECÇÃO E DIRECCÃO DO CHEFE DOS SEUS EUNUCOS, NOMAYR BEN MOHAMMAD ALAMERI, SEU ESCRAVO; NO ANNO DE 395, (A. D. 1005) 1. Entre os outros exemplares da arte mahometana merecem particular menção dois fragmentos de gesso com ornamentação de folhas em baixo-relevo (1 e 2) e o capitel de marmore (3) lavrado no mesmo es- tylo, encontrados em Montemor-o-Velho, em exca- vações feitas na parte superior do castello. O que principalmente då importancia a estes fragmentos é a raridade dos vestigios da época arabe em Portugal. São de tempos menos antigos outras obras da arte mahometana, conjuntamente expostas por se- rem da mesma classe. Algumas serão talvez imita- ções modernas. Com quanto não sejam obras da arte peninsular, teem grande interesse, pelo estylo caracteristico e como documentos para a historia dos esmaltes de Limoges, dois relicarios da Sé de Vizeu (14 e 27) de madeira revestida de cobre esmaltado com figuras em meio relevo de cobre doirado. Na secção hes- panhola estão dois relicarios similhantes, proceden- tes de S. Marcos de Leão, porém, menores e mais imperfeitos. Tanto uns como os outros se attribuem ao seculo XII OU XIII. 1 J. P. Riaño - The industrial arts in Spain, pag. 130. 67 Entre as obras d'esta mesma época se hão de classificar dois baculos de cobre doirado, um da Sé de Braga (24), outro da egreja da ermida de Castro Daire (16), uma imagem do bispo S. Nicolau, de prata doirada, da Sé de Coimbra (9) e a grande collecção de calices byzantinos (6, 18, 25, 29, 134 e 136). A Academia de Bellas Artes de Lisboa pertencem tres, dos quaes dois foram da egreja de Alcobaça, como se deprehende das suas inscripções. Aquella que foi gravada na face interior da base do maior (6) diz: IN NOMINE DOMINI NOSTRI JESU CHRISTI HUNC CALICE DEDIT REGINA DVLCIA ALCVBACIE IN HONORE DEI ET GLORIOSE VIRGINIS MARIE AD SERVIENDVM IN MAIORE ALTARE. A inscripção gravada na base de outro (25) é a seguinte: CALIX ISTE AD HONOREM DEI ET SANCTE MARIE DE ALCOBACIA FACTUM EST. N'outro finalmente (29) lê-se: EMCCXXV REX SANCI ET REGINA DVLCIA OFFERVNT CALICEM ISTVM SANCTE MARINE DE COSTA. Ainda hoje pertence a esta mesma egreja de Santa Marinha da Costa, perto de Guimarães. Os outros dois calices teem a mesma forma, po- rém, ha differenças notaveis na ornamentação. O da Sé de Coimbra (134) é muito mais elegante e muito mais perfeito nos lavores. Adornam a base os emblemas dos quatro evan- gelistas, em medalhões circulares. Na borda inferior lê-se: GEDA MENENDIZ ME FECIT IN ONOREM SANCTI MICHAELIS E MCLXXXX. O nó é de filigrana, como o do grande calix de Alcobaça, e a copa quasi toda coberta com as figuras dos apostolos, com os seus respectivos nomes gravados em cima, na borda superior. Na superficie da copa conservam-se ainda 69 servia para guardar as reliquias de S. Vicente. Po- rėm tanto os arabescos lineares como as figuras de S. Vicente, de corvos e de galeões, que adornamo cofre da Sé de Lisboa, são de lavor menos perfeito. A cruz da mitra patriarchal (20) parece obra hespanhola do seculo XII ou xiv. A disposição das linhas correspondentes aos engasles das pedras é muito notavel. A maior parte das figuras resultan- tes do encruzamento d'essas linhas são ogivaes, mas o desenho geral e o intrincado das voltas parece do estylo arabe. Não sei determinar tambem a origem de um co- fre de madeira, da mesma época, pertencente ao cabido de Vizeu (26). E interessante a pintura da face interior da tampa, representando em fundo prateado um cavallo, um cavalleiro e uma dama. Da ourivesaria da segunda metade do século XIV e do seculo xv apparecem já maior numero de mo. numentos. A custodia de Alcobaça (239), despre- zando a parte media, accrescentada no seculo XVII, é um bom exemplar para a determinação do estylo d'esta época. A ornamentação e a forma dos ele- mentos architectonicos tem caracteres salientes. A inscripção com a data é um documento importante: ESTA COPA MANDOU FAZER DON FREI JOAM DORNELAS ABADE DE ALCOBAÇA ERA DE MIL QUATRO CENTO E QUATRO. O exame comparativo da custodia, das cruzes de Alcobaça (241 a), da Sé de Coimbra (58), da Aca- demia de Bellas Artes (61), da freguezia de Gaula (31), da collegiada de Guimarães (33), de Montela- var (36) dá a idéa mais geral dos caracteres da ou- rivesaria dos seculos xiv e xv. Taes são as formas acastelladas, a proeminencia e altura das torres e gi- gantes, os ornatos lineares que se enrolam à ma- n1 dos despojos do rei de Castella na batalha de Alju- barrota. Contra a tradição estão protestando expres- sivamente os escudos das armas reaes portuguezas, sem vestigio nenhum de terem sido accrescentados å fabrica primitiva. Gaspar Estaço, conego da collegiada de Guima- rães, que viveu nos seculos xvi e xvII e publicou o seu livro intitulado Varias antiguidades de Portugal em 1625, não falla de semelhante lenda. Antes, re- ferindo-se a el-rei D. João I, diz que, armado de to- das suas armas, ase mandou pesar a prata, e a deu a nossa Senhora de offerta. Da qual se fez o reta- bulo de prata do presepe de Christo nosso Senhor, que nos dias solemnes se põe no altar maior, em que estão as armas d’este Rei. Não é de modo nenhum crivel que um conego da collegiada, antiquario, deixasse de mencionar a pro- cedencia do oratorio, se estivesse convencido de que em verdade fôra tomado ao rei de Castella na ba- talha de Aljubarrota. As pequenas torres ameiadas predominam, como ornatos, na base da cruz-relicario do convento da Conceição de Beja (51), e melhor ainda no relicario da Sé de Coimbra (19). Esta peça é curiosissima pela fórma e pela inscripção, que transcreverei sem as abreviaturas: HIC CONTINET VNVM VELVM BEATE VIRGINIS MARIE ET VNVM FRYSTICVM LIGNI SANCTE CRVCIS VERE. DECANVS COLIMBRIENSIS JOHANES MEDICVS ILLUSTRISSIMI DOMINI INFANTIS PETRI ME OBTULIT LI- TISSIME VIRGINIS MARIE. Do seculo xv ha tambem na sala M outros objectos não menos dignos de attenção. É um d'elles o co- fresinho de prata doirada da misericordia de Mon- temor-o-Novo (139). A sua fórma, simples e ele- gante é a de um pequenino bahú. Adornam a face dignos dorada da mista. simples e face 73 parte inferior juntáram-lhe uma peanha de prata ligada por meio de um arco á placa de crystal, Tudo isto se fez no seculo xvii. E por ser d'esta época se expoz aquelle ornalo na sala 0, onde tem o n.º 620. Os calices, que attribuirei com mais certeza ao seculo xv, veem a ser os da academia de bellas ar- tes de Lisboa (47), da Vera Cruz, de Aveiro (75) e da mitra patriarchal (93). Differença-se o primeiro, e mais antigo, dos outros, pela sua forma obsoleta e pelo caracter archaico dos caracteres gothicos das suas inscripções. A base tem grandes chanfros, e na sua face superior dois qua- dros de esmalte, como o calix mais antigo da col- legiada de Guimarães (183), e folhagens similhan- tes ás do cofre da mesma collegiada (40). O nó do calix, hexagono, liga-se por meio de botareus a um plano tambem hexagono, que se muito para fóra, á maneira de varanda. É unica esta disposi- ção em todos os calices expostos. A copa, de forma pyramidal, assimelha-se tambem á do calix de Gui- marães mais antigo; é porém menos aberta. O calix da mitra patriarchal relaciona-se melhor, pelas fórmas acastelladas da sua haste, pelas arca- rias do nó e pelos baixo-relevos da copa e da base, com outras obras portuguezas da mesma época. Os arcos das ogivas são polycentricos. O calix da Vera Cruz, de Aveiro (75) approxi- ma-se já dos exemplares do seculo xvi nos ornatos de applicação na copa e de relevo na base; mas o nó volumoso, faceado, e os losangos que o ador- nam são caracteristicos do seculo xv. E tambem de caracter anterior ao seculo xvi o engradado do bordo ou frizo da base e o plano liso, que tem à roda. A fórma caracteristica do nó com os seus losan. gos encontra-se nas hastes das cruzes processionaes 74 da misericordia de Setubal (71 a) e de Santo An- dré de Mafra (80). Da primeira conserva-se ainda a primitiva caixa de coiro com a seguinte inscri- pção gravada a buril em caracteres gothicos do se- culo XV: SENHORA VIRGEM SANTA MARIA LEMBRA TE DO TEV DEVOTO NVNO GONÇALVES. Nos losangos esmal- tados da segunda estão representadas as armas dos Sousas. Outro exemplar curioso d'este mesmo seculo é o porta-paz de prata doirada da sé de Leiria (186). Sob um baldaquino gothico de forma assås caracte- ristica, está a imagem da Senhora da Piedade; na base sobre esmalte azul uma inscripção de caracte- res gothicos arredondados, que diz: PAX DOMINI SIT SEMPER VOBISCUM. Para concluir esta breve noticia dos objectos da ourivesaria do seculo xv, falta-me citar o relicario de Chellas (41), cujo nó tem a forma e os losangos caracteristicos. O tecto, pyramidal, é imbricado; a base ornada de folhagens em relevo, similhantes ás do calix da Vera Cruz, de Aveiro, e de outras peças. Além da caixa de coiro, já mencionada, estão ex- postos na sala M alguns objectos do seculo xv, que não pertencem a classe da ourivesaria. Tal é o baixo- relevo em jaspe (23) do sr. Domingos José de Oli- veira Salvador, de Lamego. Representa a Annun- ciação. As figuras da Virgem e do anjo Gabriel, extremamente curiosas, teem grande expressão. Na parte superior está o Padre Eterno, de cuja bocca sae uma longa fita, terminada em pomba, que se dirige ao rosto da Virgem. Era commum na edade media este costume de representar figuradamente a Conceição. Na egreja de Leça do Balio conserva-se um baixo-relevo com 76 ermida de S. Braz (89), attribuil-os-hei, pois, só com probabilidade e não com certeza, ao seculo xv. O ultimo é o unico em que se observa a seguinte notavel particularidade: alguns dos anjos da copa são barbados. O calix maior da Sé de Coimbra (100) é obra do mesmo ourives, que fez o da mitra patriarchal (93), cujas fórmas acastelladas da base lhe determinam com certeza a edade. Ora estas mesmas fórmas se encontram na parte inferior da haste do calix da Sé de Coimbra, na qual as seis faces que represen- tam as muralhas do castello estão cobertas ainda de arcarias ogivaes. Tambem as devem ter tido as partes correspondentes do calix da mitra patriarchal, de onde as arrancaram, ficando patentes os orifi- cios em que estiveram cravadas. Debalde, porém, se buscarão n'este ultimo ves- tigios do estylo da renascença, bem claros na base e na copa do outro. Com effeito, as duas bases são extremamente similhantes, mas na do calix da mitra patriarchal, as figuras em baixo-relevo estão sepa- radas por pilastras puramente gothicas, formadas de cordões torcidos e com capiteis e bases caracte- risticos do seculo xv. Na base do calix da Sé de Coimbra, em vez das pilastras gothicas, apparecern- nos as da Renascença, com os capiteis corinthios e os fustes cobertos dos ornatos caracteristicos. As copas de ambos os calices são em grande parte envolvidas por ornatos de applicação, que não adherem á superficie - por seis anjos, que rama- gens separam. Mas os anjos e as ramagens do calix da mitra patriarchal são gothicos, os do calix da Sé de Coimbra, sem serem ainda inteiramente da Re- nascença, teem mais d'este estylo que do gothico. Os dois calices representam portanto muito bem as duas maneiras de um mesmo artista, educado no estylo ogival, e influenciado pela Renascença nos fins do seculo xv ou nos principios do seculo XVI. O calix da Sé de Coimbra já ali existia no pri- meiro quartel do seculo xvi, pois por esse tempo o mandou doirar o bispo D. Jorge de Almeida. Ne- nhum d'estes dois calices tem tintinabulos, nem jamais os teve, porque lhes faltam os anneis para se suspenderem. A custodia e o calix da Misericordia de Setubal (32 e 95) parecem tambem obras de um mesmo ourives. Os chanfros das bases, extremamente si- milhantes n'estes dois exemplares, não se encontram assim em nenhum dos outros expostos. A esta si- milhança corresponde a dos nós, não obstante ser quadrangular o da custodia, e hexagono o do calix. A ornamentação é a mesma em ambos, no calix, porém, mais fina e delicada. A caixa circular da custodia foi acrescentada modernamente. É possivel que por este meio transformassem em custodia um relicario. Este curioso exemplar torna-se notavel pe- los extensos esmaltes que cobrem a haste por cima e por baixo do nó. Expõe tambem a Misericordia de Setubal um re- licario, e este sem alterações grandes da sua fabrica primitiva. O estylo, porém, não é exactamente o mesmo das outras duas alfaias e relaciona-se antes com o da custodia de S. Martinho de Cintra e do calix de S. Pedro de Almargem do Bispo, do con- celho de Cintra. Estas tres peças formam outro grupo muito na- tural, que se differença pela extrema singeleza das arcarias ogivaes, cujos grandes espaços intermedios são inteiramente vasios de ornatos. Todavia o reli- cario da Misericordia de Setubal parece mais antigo, VII A sala M (continuação) Não faltou quem estranhasse a accumulação de grande numero de alfaias do culto nas salas da ex- posição, dando-lhes um aspecto menos profano do que alguns desejavam, como se para a historia ar- tistica fosse possivel lançar á margem a arte reli- giosa. Esta carta provará, bem como algumas das ante- riores, que essa accumulação é a unica luz que, á falta de documentos escriptos, pode esclarecer-nos acerca da historia da arte nacional, que até hoje ninguem escreveu. N'este labyrinto, cheio de som- bras e de incertezas, somente o exame comparativo de muitos exemplares nos dará, por inducção, ba- ses certas e positivas para qualquer tentativa histo- rica. As custodias dos seculos xiv, XV e Xvi, sobre- tudo, formam uma serie muito interessante para a determinação dos estylos e das épocas, pelas datas ou indicações equivalentes, que se encontram na maior parte d'ellas. Eis aqui a serie por ordem chronologica : 80 Custodia de Alcobaça (239) — 1366. Dita do Porto (101) – Fins do seculo xv. Dita de Setubal (32) — Fins do seculo xv ou prin- cipios do seculo XVI. Dita de Belem (GI)- 1506. Dita de Evora (92) — 15... Dita de Cintra (37) – 15... Dita de Coimbra (81) - 1527. Dita de Vizeu (63) — 1533. Dita da Academia (68) — 153... Dita de Guimarães (108) — 1534. A custodia de Belem, unica em tudo, não se re- laciona com algum outro dos exemplares da ouri- vesaria expostos, excepto nos caracteres geraes do estylo ogival. X custodia da sé de Evora já não é um exem- plar unico. Tem analogias com outros da sala M. Convirá, porém, advertir que algumas das partes primitivas d’esta custodia foram substituidas por outras de estylo inteiramente discordante. Vê-se cla- ramente a substituição na caixa circular do relicario com os seraphins que lateralmente a adornam. Fo- ram egualmente substituidos o nó e as partes mais proximas da haste, tanto por cima, como por baixo d'elle. Subsiste ainda assim a maior parte da fabrica primitiva, de estylo muito similhante ao da cruz do convento do Paraizo de Evora (85), cruz de Bel- las (102), base da cruz da Terrugem (74) e thuri- bulo de Pombeiro (76). Os caracteres principaes d'este estylo veem a ser: columnas quadrangulares simples, com faces empe- nadas, arestas mais ou menos tortas, corucheus vo- lumosos com a forma de apagador: corpos qua- drangulares com as faces fenestradas, e ornadas na parte superior com voltas formadas pelos arcos das 81 ogivas, prolongados á maneira de 8 de conta, e, al- gumas vezes, de volutas, como em varios exempla. res do seculo xv. A custodia da sé do Porto, obra dos fins d'este mesmo seculo, parece marcar a origem de um ou- tro estylo, que é o das custodias das sés de Coim- bra e de Vizeu, da Academia e da collegiada de Guimarães, do porta-paz da Academia (52), da cruz do Funchal (229) e do calix de Pombeiro (202). Os caracteres d'este estylo são os seguintes : 00- lumnas delgadas compostas de columnelos juxta- postos, faces perfeitamente desempenadas e arestas rectilineas, corucheus esguios e elegantes : arcadas ogivaes articuladas com as columnas, estatuetas bem cinzeladas e elegantes, ornamentação fina e delicada. A obra mais antiga d'este estylo é a custodia da sé do Porto. Mas, com quanto nos offereça os cara- cteres differenciaes já mencionados, excede em de- licadeza e perfeição os outros exemplares. A sua grande, similhança com a custodia da collecção Des- mottes, que figurou na ultima exposição nacional da Belgica, faz suppor que não terá sido fabricada em Portugal. Demais as outras obras da ourivesaria na- cional da mesina época differem consideravelmente pelo seu estylo mais pesado e menos perfeito. A cruz da sé do Funchal parece ter sido antes feita em Portugal. Assimelha-se mais aos outros exemplares do mesmo grupo nos elementos archi- tectonicos da base. Por outra parte os baixo-rele- vos dos braços e da haste teem a maior analogia com os de alguns dos antigos pratos portuguezes. Finalmente, os rendilhados e ornatos de applicação com a forma de ramagens relacionam assim natu- ralmente este exemplar com o calix de Pombeiro. Ha tambem grandes similhanças entre as custo- 82 dias da sé de Coimbra e da collegiada de Guima- rães, não obstante as grandes differenças de fórma. Basta a situação inversa dos relicarios, que são in- ferior na primeira e superior na segunda, para dar logar a fabricas essencialmente differentes. Com- tudo quem examinar e comparar com attenção es- tes dois exemplares, convencer-se-ha sem difficul- dade da sua mesma origem. Em ambas as custodias as cupulas terminam em ornatos com a forma de jarras. As columnas são similhantes em tudo; os rendilhados, os mesmos; as arcadas ogivaes do mesmo estylo articulam-se do mesmo modo com as columnas; as bases apoiam-se em animaes; em gryphos e centauros na de Guima- rães, em leões na de Coimbra. Mas a escolha d’es- tes ultimos animaes foi sem duvida determinada pelo brazão do bispo D. Jorge de Almeida. Finalmente, as estatuetas são ainda analogas, tanto pela per- feição do desenho, como pela delicadeza do cinzel. Estes mesmos caracteres apparecem tambem no bello porta-paz da Academia (109 a). As relações de similhança entre os exemplares mencionados são evidentes. Se foi um artista só ou uma escola, que os produziu desde 1500 até 1540, não o sei eu dizer. Seriam necessarios elementos de outra ordem para resolver esta duvida. A cruz da collegiada de Guimarães é outro pro- blema. Na fórma e ornamentação geral da cruz propriamente dita assimelha-se aos exemplares do grupo a que pertence a custodia da sé de Evora. A peanha, pelo contrario, tem maior analogia com os exemplares do segundo grupo, que parece deri- var da custodia da sé do Porto. Todavia, os ele- mentos architectonicos são mais pesados e o traba- lho de cinzel mais imperfeito. 83 Os baixo-relevos, os medalhões e outros ornatos são do estylo da Renascença. As columnas, coru- cheus e arcarias pertencem ainda ao estylo gothico. Em nenhum outro dos exemplares expostos se en- contra de tão extraordinario modo a mistura dos dois estylos. É talvez n’este genero o maior con- traste conhecido. As custodias e as cruzes processionaes, com serem de fórmas essencialmente differentes, participam to- davia de certos caracteres communs de estructura e de ornamentação, que permittem classifical-as nos mesmos grupos, á maneira de varios generos de plantas que, não obstante suas formas diversas, se reunem nas mesmas familias. Debalde, porém, se tentará distribuir os calices pelos grupos formados por aquelles exemplares. As differenças na ornamentação e na fórma, são de tal ordem, que o exame comparativo, só por si, parece insufficiente para servir de base a qualquer plausi- vel tentativa de classificação racional. Assim é, que de tantos calices da mesma época . e do mesmo estylo das cruzes e custodias, apenas um, o de Pombeiro (202), offerece alguns caracte- res importantes, para se incluir n'um mesmo grupo com a cruz do Funchal (239). O calix menor da sè de Coimbra (99) poderá ainda relacionar-se com a custodia da Academia (68) pela similhança das fitas entrelaçados que adornam as bases das d’estes dois exemplares. O calix me- nor de Arouca (193) faz lembrar tambem, por al- gumas particularidades da ornamentação, o grupo a que pertence a custodia de Evora (92). Todos os outros se tornam, por assim dizer, refractarios ao agrupamento. O maior dos calices que foram de Arouca (106) como callacionar-das i 85 expostos, deveria dar ao de Arouca um aspecto sin- gularissimo, augmentando ainda a exuberancia da sua grande e complexa ornamentação. É para la- mentar que hoje não possamos fazer a menor idéa dos ornatos que se fixavam na copa, alternando-se com os tintinabulos. Ao passo que este calix, pelas razões indicadas, sobreleva a todos os que se conhecem do mesmo es- tylo, o outro, do mesmo mosteiro, da mesma época, da mesma abbadessa D. Melicia de Mello, com uma patena muito similhante, é uma obra que se não differença por nenhuma particularidade notavel, dos outros calices dos principios do seculo xvi. Os ornatos esmaltados da base assimelham-se aos dos calices de Braga e de Guimarães. Os dois cor- pos acastellados da haste, um, adornando a sua parte inferior, o outro, servindo de nó, caracteri- sam tambem os calices da mitra patriarchal e da sé de Coimbra. Mas isto, parece-me, não basta para collocar decisivamente todos estes exemplares no mesmo grupo em que foram classificadas a custo- dia de Evora e algumas cruzes processionaes. O que tenho como admissivel é, tomando por base as fórmas acastelladas da haste e a existencia de dois ou tres corpos com essas formas, sendo um ou dois separados do nó, constituir, não um grupo natural, mas uma serie chronologica : Calix da mitra patriarchal (93), dito da sé de Coimbra (100), dito de Arouca (menor) (193), cus- todia-calix de Cintra (39), calix de Thomar (G-5), dito de Arouca (maior) (106) Se á custodia-calix da sé de Evora não fallasse o nó e outras partes da haste, é possivel que, pela comparação, se chegasse a classificar no grupo a que ella pertence aquella serie de calices, excepto aturais da mitra de Arouca de Thomar 86 talvez o maior de Arouca (106). O mais que pode- rei avançar com probabilidade é que a serie dos ca- lices gothicos se relaciona melhor com o grupo da custodia de Evora do que com o outro em que en- tram as custodias da sé de Coimbra e da collegiada de Guimarães. Na serie indicada segue-se passo a passo a trans- formação do elemento architectonico, que n'alguns exemplares do seculo XV, como o relicario da sé de Coimbra (19) e a cruz da sé do Porto (53) é uma verdadeira torre, guarnecida de ameias ou coberta de cupula. Este elemento, pois, começa a adelga- çar-se separando-se da muralha nos calices da mi- tra patriarchal e da sé de Coimbra, até se tornar filiforme no calix maior de Arouca. De sorte que, não se observando a degeneração progressiva, se- ria difficil, se não impossivel, reconhecer n'este ul- timo calix, como torres, os ornatos que mal as re- presentam. Termina aqui o estudo dos calices gothicos. Os outros, ainda em grande parte do seculo svi, como obras do estylo da Renascença, embora n'alguns se encontre um ou outro vestigio gothico, serão exami- nados mais tarde com os outros exemplares d'este mesmo estylo. Tenho-me alongado demasiadamente na critica dos exemplares expostos na sala M. Pareceu-me, porém, não dever perder a occasião, talvez unica, de ajun. tar alguns materiaes para a historia da antiga ou- rivesaria portugueza tão interessante, como desco- nhecida. A falta de documentos escriptos, não ha senão o methodo da inducção, tal como o tenho empregado, que possa dar-nos resultados positivos, comparaveis aquelles que os naturalistas obteem nas suas clas- 87 sificações ou na historia e explicação dos phenome- nos naturaes. 0 methodo, pois, está exigindo que os pratos e salvas da sala M se estudem conjunctamente com os das outras salas da exposição. A maior parte d'estes exemplares teem os cara- cteres geraes do estylo portuguez. Do primeiro exame não resulta mais que esta idea de uma dif- ferença fundamental entre o seu estylo e o das obras de ourivesaria das outras nações. Depois uma obser- vação mais demorada fará descobrir caracteres dif- ferenciaes que denotam typos, escolas, cinzeis di- versos. Os que por mais antigos parece formarem um primeiro grupo são os dois grandes pratos (83 e 104) expostos por sua magestade el-rei o sr. D. Fernando no armario da sala F e a reproducção electrotypica do museu de Kensington (72–84). N’estes exemplares não apparecem ainda claramente as influencias da Renascença. As figuras são grandes, desproporcionadas, quasi disformes. E egualmente incorrecto o desenho dos outros ornatos. Nos dois primeiros pratos aburidam as palavras portuguezas de letra gothica, e grandes cordões torcidos entre- laçam-se e formam com as suas voltas as molduras dos baixo-relevos. · A fórma, as dimensões, o genero da ornamenta- ção, a distribuição dos ornatos em zonas, o grande numero e adherencia das figuras de homens e de animaes levar-me-hia a classificar no mesmo grupo o grande prato (51) da collecção de sua mages- tade el-rei o sr. D. Luiz, o dos Lobos da Silveira em reproducção galvanoplastica na sala M (94-A) e o de sua magestade el-rei o sr. D. Fernando, sobre o fogão da sala F (25), se differenças fun- o granceito sr. D. canonlastica no 89 imaginoso na arte da esculptura ou nas suas appli- cações. O artista possuia em alto grau a faculdade da invenção, e, tanto o estylo da Renascença como o gothico ou ogival, indifferentemente se lhe presta- vam aos seus devaneios. Não quiz cingir-se á obser- vancia rigorosa das regras fundamentaes, nem aos limites que lhe imporia a servil imitação de mo- dêlos. As suas faculdades inteiramente livres e es- pontaneas imprimiam n’estas composições um cara- cter original. Affirmei que o prato, o gomil e o calix são attri- buiveis ao mesmo artista. A exuberante e origina- lissima phantasia da ornamentação é já um indicio importante, confirmado pela identidade de certos lavores do bojo do gomil e da copa do calix. ! N'este ultimo o artista não podia deixar de seguir o estylo gothico na forma e estructura do nó e do resto da haste. Deu, porém, á ornamentação ogival um caracter novo pela grande phantasia e profusão das arcarias, baldaquinos, corucheus e outros ele- mentos. Fez com estes elementos da ornamentação ogival o mesmo que fizera com os da ornamenta- ção da Renascença, no gomil d'este mesmo grupo. O prato da Sé de Coimbra (113), de estylo muito differente, tem por caracteres principaes os seguintes: Nas ondas do mar golphinhos, alguns montados por figuras humanas com azas ou sem ellas. Estas e as outras figuras de homens, en grande numero, luctando muitas vezes com animaes phantasticos, armadas de arcos ou de massas, ou tocando instrumentos, são de desenho incorrecto. As chimeras e ramagens, de melhor desenho, en- trelaçam-se miudamente quasi sem deixarem espa- ços intercalares. Todos estes caracteres denunciam 90 a industria indiana, e será facil mostrar a analogia da ornamentação d'este prato com a de algumas obras de madeira, cuja proveniencia é conhecida. Por estes ou por outros caracteres parecem tam- bem do estylo oriental muitos outros exemplares: os fructeiros (189 e 194) da sala M, as pequenas salvas da mesma sala (182, 230, 232, 234, 236) e a outra analoga de sua magestade el-rei o sr. D. Luiz (60); Os fructeiros da mesma collecção (6,9 e 61), os de sua magestade el-rei o sr. D. Fernando (85, 108, 110, 113 e 122); o da sala G (352); e finalmente a da sala H (50-87). As formas das fi-, guras de animaes e das ramagens poderão ainda levar a subdividir n'outros este grande grupo. Uma salva e um fructeiro da collecção de sua magestade el-rei o sr. D. Fernando (116 e 125) for- mam outro grupo caracterisado pela disposição das figuras de ornato, separadas por grandes espaços lisos. A salva tem a data de 1548. Finalmente os fructeiros da sala F (80 e 103), o da sala H (173-9), da sala M (86) e a salva da mes- ma sala (133-b) constituem outro grupo natural, caracterisado pelos segmentos esphericos lisos ou granulosos, como os da superficie da amora, ou com a forma de pyramides quadrangulares. O do museu Kensington foi classificado como obra hespanhola, mas o numero de exemplares ex- postos fazem antes suppor que se deverão attribuir á industria portugueza. N'este grupo sobresae pela belleza e originalidade a salva do sr. D. Luiz de Carvalho e Lorena. Restam-nos finalmente na sala M tres pratos (99, 410 e 129 que nem teem similhanças entre si nem com os outros exemplares expostos. Sómente o do sr. Christiano Vanzeller faz lembrar muito de longe 91 o grande e bello prato exposto por sua magestade el-rei o sr. D. Luiz, ornado no centro com o brazão do marquez de Abrantes. Este ultimo, porém, ė obra muito mais perfeita. Convirá notar, que tanto aquelle brazão como os outros da mesma familia foram accrescentados no seculo passado. O prato é do seculo xvi. O prato do sr. Martinho Montenegro (129) não se assimelha a nenhum dos outros pratos, porém ao gomil da sé de Coimbra (114). O lavor do primeiro é, em verdade, mais fino e delicado, mas a ornamentação da zona exterior tem a maior analogia com a da base do segundo. Os me- dalhões e sobretudo as mascaras e cabeças de ho- mens e de animaes, que o artista profusamente em- pregou como elemento decorativo, ein nenhum outro dos exemplares expostos apparecem com o mesmo caracter. A caldeirinha da sé de Coimbra, notavel pelas grandes dimensões e pela sua larga facha, decorada com o brazão do bispo D. Jorge de Almeida e com elegantes arabescos da Renascença, parece antece- der um grupo, com o qual só muito de longe se relaciona pela fórma e ornatos da parte inferior do bojo. Esta relação, porém, é tão vaga que ficaria desconhecida se não fosse o thuribulo da sé de Coim- bra (121), cujo reservatorio e base têm, posto que em menor ponto, a mesma forma e ornatos. São mais evidentes as relações d'este exemplar com a lampada da universidade (241 b) e com a cruz de Figueira de Lorvão, e por conseguinte com as de Pombeiro (103) e de S. Miguel de Poia- res (115). Parecerá talvez infundado approximar a lampada a estes objectos. A sua fórma, as suas grandes co- 92 lumnas e alterosa cupula fazem, com razão, lembrar a architectura manuelina, e portanto uma época e um estylo muito differente d'aquelle que se nos de- pára nos exemplares indicados. Todavia, quem pozer de parte a forma e atten- der somente á ornamentação, formará de certo um juizo muito differente. O desenho dos ornatos, não obstante a profusão caracteristica das obras ante- riores, é muito menos fino; em alguns bustos até grosseiro, incorrectissimo. Por outra parte, os nichos que adornam a parte superior da cupula, os rendilhados e pyramides são extremamente similhantes aos ornatos correspon- dentes do thuribulo da sé de Coimbra e da cruz de Figueira de Lorvão. A esphera armillar alterna-se, como ornato, com as armas reaes na guarnição superior da base da lampada. Esta particularidade faria tambem com que se attribuisse ao reinado de D. Manuel, se a mesma esphera se não encontrasse na cupula do thuribulo, sem que n'este caso se lhe possa dar aquella significação. Antes parece mais um motivo para attribuir ao mesmo artista os dois exemplares. A cruz de S. Miguel de Poiares tem a data de 1588. A de Figueira de Lorvão, e por consequen- cia o thuribulo da sé de Coimbra, pela similhança da primeira com a segunda, não poderão ser ante- riores a 1550. Nas egrejas proximas de Coimbra en- contrar-se-hão, talvez, outros exemplares da mesma época e do mesmo estylo. O numero de taes objectos faz provavel a exis- tencia de um ou mais ourives em Coimbra no se. culo xvi, que, ainda conservando a tradição de uma época anterior, seriam, todavia, incapazes de impe- dir a progressiva degeneração da arte, egualmente 93 manifestada na esculptura em pedra, cujas obras se tornáram cada vez mais imperfeitas em relação àquellas que produziu a primeira metade do sé. culo xvi nas egrejas de S. Marcos, Santa Cruz e Sé Velha. Estão expostas na sala M seis navetas de prata brancà, todas com a forma de galeão, armado de esporão e com uma ou duas ordens de postigos para a artilheria. Do periodo comprehendido entre os fins do se- culo xy e os fins do seculo xvi não se colligiu senão uma outra naveta com forma differente. E uma con- cha de nautilo com guarnições e outras partes de prata doirada. O todo representa uma chimera com cabeça e peito de mulher, azas, corpo e pés de ave. Pertence á sé de Faro (120). Entre as outras seis ha duas muito notaveis, a de Pombeiro (62) e de Condeixa a Velha (104), pelo signal repetidas vezes gravado n'algumas das faces. E o arani ou swastica, symbolo do fogo, tão fre- quente em monumentos da India e em antigualhas pre-historicas da Europa. . O numero dos thuribulos do seculo xvi não cor- responde ao das navetas, de certo por se arruina- rem mais depressa com o fogo. Ha ainda na sala M cinco exemplares que se agru- pam pela similhança dos ornatos das cercaduras gra- vados a buril, não obstante a diversidade das épo- cas e origens. É o relicario de Lorvão (34), a pedra d'ara do mesmo mosteiro (50), o pequeno retabulo de prata da sé de Braga (227), e os cofres da mise- ricordia de Montemor-o-Novo (139) e da Academia de Bellas Artes (122). O relicario contém um humero attribuido a um dos Martyres de Marrocos, é de um é de outro lado 94 miniaturas que representam o martyrio d'estes san- tos, e no reverso o brazão da abbadessa D. Catha- rina d'Eca. A pedra d'ara, de serpentina verde, é guarnecida na face inferior e nos quatro lados por chapa de prata doirada. N'aquella face tem gravado um bra- zão similhante ao do relicario : nos lados a seguinte inscripção em caracteres gothicos quadrados : ESTA ARA COM TODAS AS PECAS DE INFRA CONTEUDAS MANDO FAZER NESTE DEVOTO MOESTEYRO DE LORVĀAO A MUY ILLUSTRE SENHORA HA SENHORA DONA CATHERINA DECA ABBADESSA DO DICTO MOESTEYRO. S. HA CRUZ QUE TEN HO LENHO DA VRA CRUZ E HO BAGO E HUA PORTAPAZ COM PEDRERIA E DOIS CASTISAES E HU THURIBULO COM SUA NAVETA E CULHER E DUAS GALHETAS E HU BACIO E DUAS CALDEYRINHAS COM SEUS YSOPOS TODO ESTO DE PRATA E HA MOOR PARTE DAS PECAS DOVRADAS E MAYS OVTO PONTIFICAES. S. HOS TRES DE BROQUADO E HOS OUTROS DE SEDA E DOS DELLES COM BETAS DE BRO- QUADO E MAIS HUA VESTIMENTA DE BROQUADO E OU- TRAS TRES DE BROQUADO E VELLUDO ANO D MIL DXIIII. Os castiçaes a que se refere a inscripção podem ser os de crystal e latão (57) e uma das caldeiri- nhas a de crystal e prata, adornada de camafeus (197). o quadro de prata da sé de Braga representa o Calvario, no estylo das gravuras de Alberto Durer. Na parte inferior estão gravados o brazão e o nome do arcebispo D. Diogo de Sousa e a data de 1527. O cofre da misericordia de Montemor-o-Novo, an- tecedentemente descripto, é do anno de 1454. O da Academia parece mais dos fins do seculo xv. A chapa gravada da sé de Braga não é de certo obra portugueza. Uma das obras mais preciosas da sala M, e de 96 toda a exposição é o relicario que foi do convento da Madre de Deus, perto de Lisboa (153). É este relicario de ouro, decorado de finissimos esmaltes, de ornatos de applicação de filigrana e de pedras preciosas. Tem de altura Om, 28 e de largura 0m,14. Representa um oratorio com a base rectan- gular sobre a qual se erguem quatro columnas qua- drangulares que sustentam a parte superior com a fórma de concha. Em cada uma das paredes late- raes vê-se um arco de volta redonda e sobre elle um oculo circular. Na parede do fundo está um nicho em que se repete, reduzida, a fórma geral de relicario, e de cada lado uma fresta de volta redonda; dentro do nicho um altar adornado com uma esmeralda, sobre o qual se ergue um tubo de crystal com a reliquia, um espinho, que, segundo a tradição, teria feito parte da coroa de Christo, e pertencera a el- Feito p. Duarternidades na pieanha de em Nas extremidades do arco do nicho estão engas- tados dois rubis, e na parte superior da volta um diamante que serve de peanha a uma cruz. No friso do entablamento lè-se 'em caracteres ro- manos a inscripção seguinte: MISERICORDIE TVE MOR- TIS GRAVISIME DVLCISIME DOMINE IESV XPE RESPLENDOR PATRIS CONCEDE NOBIS FAMVLIS TVIS. Na parte anterior, superior e central do arco tem as armas reaes de D. João II e de D. Leonor com a corôa e encimadas por uma urna. A volta do arco, representando um meio cylindro, é coberta exte- riormente de escamas esmaltadas: na sua parte superior eleva-se uma urna coberta com uma pe- rola. Uma esmeralda e um rubi adornam a primeira a face anterior da base, o segundo o centro parą 96 onde convergem as nervuras da abobada que tem a forma de concha. Na frente, na parte inferior de cada columna, está fixo um escudo esmaltado com o camaroeiro, divisa da rainha D. Leonor. Falta porém já a di- visa do lado esquerdo. Atraz na face posterior do arco está representado o Calvario em baiso-relevo. Na parte inferior, no centro da faxa ornada com esmaltes e ramagens de applicação vê-se um pequeno medalhão esmaltado, representando uma cabeça de mulher, talvez a rainha D. Leonor, e em roda uma fila com a ins- cripção seguinte: CASA M D. (Casa da Madre de Deus ?). Não se sabe do testamento da rainha D. Leonor, mas por uns extractos d'este documento, publicados na Chronica Seraphica, consta que o relicario que fizera mestre João fôra legado pela rainha ao mos- teiro da Madre de Deus. Quem era este mestre João ? Nos reinados de D. Manuel e D. João hi trabalharam em Portugal ar- tistas estrangeiros. Alguns eram assim designados pelo seu nome de baptismo, ao qual se antepunha a palavra mestre. É provavel que se refira ao auctor do relicario o seguinte documento que se conserva na Torre do Tombo: «Nos el-Rey mandamos a vos Joham de Saa Recebedor da especearia da nusa casa da India e aos sprivães della que des a mestre Joham orivez cento e trinta e hum mill quatro centos e trinta réis que lhe mandamos dar em comprimento dos CLJIIIXXI que lhe sam devidos de feitio da costodia que lhe mandamos fazer pera o mosteiro da comceição de beja porque dos vinte mill reis que falecem pera comprimento leva outro desembargo pera eitor nunes dos quaes tinha outro desembargo 97 para Joham de figueiredo que foy roto ao asignar deste. E vos faze-lhe delles bom pagamento em pimenta a Rezam de vinte e dous cruzados o quin- tall. E por este com seu conhecimento mandamos que vos sejam leuados em conta. Feyto em lixboa a xxB dias do mes de junho affonso figueira o fez anno de mill bxJ annos. Rey... O recibo está assignado por Johan van der Staygolstsyt. O nome, que difficilmente se decifra, indica-nos pois um artista flamengo. Mestre João era um compatriota de Mestre Olivel de Gand e de tantos artistas cujo trabalho a grande riqueza da nação pagava bem, e cuja vinda para o reino as re- lações com Flandres favoreciam. O documento não é uma prova, mas apenas um indicio. Infelizmente a custodia de Beja que, pelo estylo, se conheceria ser do mesmo ou de outro ourives, já se não conserva n’aquelle convento. O estylo do relicario, quasi pura Renascença, no pri- meiro quartel do seculo xvi, levaria antes a attri- buir esta obra a algum artista italiano. Todavia não é impossivel que um flamengo, educado na Italia, antecedesse por esta forma os seus compatriotas. Na exposição não se encontra nenhum outro exem- plar attribuivel ao auctor do relicario. O relicario da Madre de Deus, com quanto fabri- cado em Portugal, é obra de um estrangeiro e ne- nhuma influencia parece ter tido na arte portugueza. Isto mesmo direi de alguns outros exemplares da sala M, cuja procedencia é de certo estrangeira. A pyxide que foi da egreja de Nossa Senhora da Penha de França e hoje pertence à Academia de Bellas Artes (130) torna-se extremamente notavel pela ornamentação de ramagens, arabescos, cheru- bins e cabeças de anjos e de satyros. Entre as obras 98 de prata levantada e cinzelada esta é unica no de- senho e na perfeição da execução dos lavores. Entre os exemplares da ourivesaria estrangeira merece incontestavelmente o primeiro logar o bello calix de ouro esmaltado da Sé de Evora. O genio de um artista superior manifesta-se claramente na perfeição das pequenas figuras dos baixo-relevos dos medalhões da copa e dos anjos que os sustem, dos seis paineis de nó e finalmente dos gomos da base. A viveza, colorido e variedade dos esmaltes fazem sobresahir ainda mais a perfeição dos baixo- relevos. Na parte interna e inferior da base ha um escudo de armas esmaltado e em roda esta inscripção: Doct. Paulus Alphonsus Reg. Consiliarius in ecctia Eboren. Archid. et Canonicus donavit. Anno Dñi 1587. A cruz da Sé de Lisboa (115), para onde dizem ter vindo do convento de Christo de Thomar, tam- bem de ouro esmaltado, no estylo muito differente do calix de Evora, é todavia uma obra de grande preço. A cruz, que tem com effeito a forma das de Christo, firma-se sobre uma peanha á maneira de urna, em cuja base se lè: PHILIPPVS. REX. MDLXXXIII. Por baixo ha mais um grande pedestal, em cujas faces anterior e posterior estão dois escudos com as armas de Hespanha unida a Portugal, encimadas por corôas fechadas. A sala M contém numerosos exemplares interes- santes ao estudo dos esmaltes. Primeiramente os mais antigos dos seculos XII ou XIII, os relicarios da Sé de Vizeu (14 e 27) e as placas da bibliotheca de Evora (135 e 184); depois os esmaltes empre- gados na ornamentação de algumas alfaias do seculo XIV e xv, finalmente os quadros do seculo xvi, e as 99 obras esmaltadas d'este mesmo seculo como o calix de Evora e a cruz de que ultimamente fallei. O grande triptyco da bibliotheca de Evora (201) é a obra capital d'este grupo. Tem de altura Om,41 e de largura 0m,52. O estylo do desenho e colorido indica ter sido feito na primeira metade do seculo xvi. Nenhum signal dá a conhecer o auctor, talvez um dos Penicaud de Limoges. Parecem da mesma época e procedencia os vinte e seis esmaltes (185) que representam passagens da vida de Jesus Christo. Pertenceram ao sanctuario do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, d'onde passaram em 1834 para a Academia de Bellas Artes do Porto. São tambem da mesma época os cinco esmaltes do sr. visconde de Daupias (205, 231, 233, 235 e 237). Foram attribuidos á industria de Limoges, mas, segundo a opinião de pessoas entendidas, de- verão antes considerar-se como hespanhoes. Pela sua perfeição parece facil confundil-os com os de Limoges. São incomparavelmente superiores aos aragonezes expostos na secção hespanhola. Em todos estes exemplares o esmalte constitue a parte essencial. Ha porém muitos outros em que se empregou accessoriamente, como ornato. Além d'aquelles, já atraz mencionados, citarei ainda uma bella patena de ouro (198), que pertenceu a um calix de Alcobaça, roubado ha muitos annos da bi- bliotheca nacional. Uma lindissima miniatura esmal- tada representa a Cêa n'uma das faces da patena; na outra Christo despregado da cruz, junto d'ella, entre Nossa Senhora e S. João. A parte superior da vitrine central da sala M contém joias, algumas de grande valor pela anti- guidade, belleza ou pedras que as adornam. A 100 máis antiga é o fragmento de um collar de ouro (137), pertencente ao convento de Santa Clara de Coimbra, onde o attribuem á rainha Santa Isabel. Com effeito á fórma do collar e sua ornamentação correspondem muito bem aq seculo xiv e é prova- vel que n'este caso a tradição ande confórme com a verdade. A grande devoção para com a Rainha Santa, mais de certo que a cubiça do ouro e das pedras ou pe- rolas, tem feito com que do collar não reste mais que esta pequena parte, muito mutilada ainda nas peças de que é feita e que se articulam entre si. Logo em seguida está um grande annel abbacial de latão dourado com restos de esmalte verde. No centro tem uma cornalina com mitra e baculo gra- vados, e a seguinte legenda tambem gravada : PE- TRVS ABBAS. Outro annel notavel entre alguns que estão aqui expostos é um de prata dourada (150) com uma cornalina, onde está gravada a figura de um rei coroado, com o sol na mão direita e uma palma na esquerda. No arco foram gravados a buril aos lados da pedra, dois YY, cada um d'elles coroado, como usava el-rei D. João i nas suas moedas. Parece pois ter periencido a este monarcha. É exposto pela sr. D. Helena de Aragão, e dizem ter sido encontrado perto de Alvor. A corôa fechada de oiro (155 a), adornada com pedras finas e esmaltes, faz bello effeito pelo con- traste do oiro, diamantes, perolas e cores branca azul e vermelha das rosaceas esmaltadas. Foi dada pela infanta D. Maria, filha d'el-rei D. Manuel, ao convento da Luz, d'onde passou para a Academia de Bellas Artes. Os brincos (144) de oiro esmaltado e perolas da 101 sr.& condessa de Prime são notaveis pelo tamanho e belleza. Dois grandes ganchos, consistindo apenas n'um arame de oiro aguçado na ponta, serviam para Os segurar nas orelhas de modo bem pouco deli- cado. A corôa e os brincos são obras do seculo xvi. AO mesmo genero e época pertencem uns cãesinhos de oiro, com esmalte, diamantes e rubis (167), outro par de brincos de oiro esmaltado com diamantes e perolas (168), e um alfinete rematado por uma flor de oiro esmaltado com aljofares e uma esmeralda, tudo da sr.a D. Maria Manuela de Brito e Castro. Parece que todos estes objectos serviram antiga- mente de pregos do cabello, sendo depois adapta- dos aos fins para que hoje servem. São tambem da mesma classe as joias do con- vento de Santa Maria de Almoster: um pingente de oiro que representa uma aguia coroada e adornada com diamantes (175); um prego do cabello com a forma de lagartixa, adornado com um rubi e tres esmeraldas (76); outro prego do cabello com a forma de borboleta (178 a), adornado com uma esmeralda e diamantes rosas, e finalmente dois pingentes de oiro esmaltado representando um seraphim e um S. Joãosinho (163 e 165). Algumas d’estas joias teem certa similhança com as hespanholas da collecção do museu Kensington. Seriam importadas de Hespanha, ou representa- rão os vestigios de uma arte portugueza que, a par com a ourivesaria, deve ter tido grande desen- volvimento no seculo xvi? Eis uma pergunta inte- ressante que em face da exposição se formúla, mas a que se não pode responder. Em l'ortugal ha de certo ainda muitas joias d'aquella época que não vieram á exposição, e que, reunidas com as outras 102 expostas, de certo nos dariam alguma luz sobre este ponto tão obscuro como interessante. Eis aqui uma joia que tem todo o caracter, todo o espirito do seculo xvi. É um pingente de oiro es- maltado. Um cavalleiro, de maça em punho, cavalga um golphinho agigantado, seis ou oito vezes maior do que elle. Com a maça levantada e todo inclinado para traz, a sua attitude é de querer vibrar rijas pancadas contra o collosso. Duas cadeias suspen- dem o golphinho pela cabeça e pela cauda. É do mesmo genero um pingente de prata esmal- tada do sr. Almeida Santos (154). A parte central representa em alto relevo um cysne montado por Cupido, sobre fundo azul com estrellas de oiro. Adornam a moldura, muito relevada, perolas, rubis e diamantes. A dureza do cinzel e a pouca transpa- rencia das cores suscitam algumas duvidas acerca d'este exemplar. Será genuino ou uma imitação? Merecem tambem attenção tres relicarios: um da sr.a marqueza de Alvito (174), outro da sr. vis- condessa de Daupias (155 b), outro, finalmente, da sr.a D. Marianna Fischer Berquó (140). O primeiro é uma cruz de crystal com engastes e ornatos de oiro esmaltado, n'uma das faces tem a imagem de Christo, na outra a de Nossa Senhora, que dois an- jos corôam. O segundo é uma capsula oval acha- tada, que tem dentro a imagem de S. José, com guarnição de filigrana de oiro e perolas à roda, e por fóra outra guarnição mais larga de filigrana. O terceiro, emfim, é de oiro. N’uma das faces tem a Trindade, na outra Nossa Senhora; faz lembrar, pelo estylo, o relicario exposto por sua magestade el-rei o senhor D. Fernando e assignado por David. O da sala M tem gravadas interiormente estas pa- lavras RIO JANR. 103 Com estas joias está exposto um pequeno relogio de crystal e latão doirado do museu portuense e duas bellas miniaturas, retratos de duas damas, com o seu estojo de ferro com um brazão cercado de bandeiras dispostas de tal forma que fazem lem- brar a ornamentação gothica. Estas miniaturas fo- ram do arcebispo D. Manuel de Cenaculo, que as deixou em Evora com a sua bibliotheca. Nos vãos inferiores das vitrines estão alguns ob- jectos de ferro antigos e doze pratos de latão com baixo-relevos nos centros e alguns com inscripções gothicas em flamengo. Estes pratos bem como a ba- cia de latão e gomil com a forma de leão, expostos por sua magestade el-rei o senhor D. Fernando, parece terem sido fabricados, como outros muitos objectos congeneres, em Dinant, nos fins do se- culo xv ou nos principios do seculo xvi. Estes pra- tos são muito communs nas egrejas antigas de Por- tugal. Teem talvez a mesma procedencia as campai- nhas de bronze, tambem numerosas, das quaes ha quatro exemplares na vitrine central da sala M. VIII A sala N Entre os exemplares da sala M e os da sala N não ha uma completa separação. Faz-se insensivel- mente a transição de uns para outros, e para con- stituir certos grupos naturaes hão de reunir-se os seus membros dispersos pelas duas salas. Aqui estão na mesma vitrine da sala M dois cali- ces (123 e 124) de alturas differentes, porém tão extremamente similhantes em tudo o mais, que nin- guem deixará de attribuil-os ao mesmo ourives. En- tram naturalmente no mesmo grupo os calices de Nossa Senhora da Esperança de Lamego (295), e de Santo André de Poiares (301), ambos da sala N. Outro grupo, tambem do estylo da Renascença, mas com grandes differenças da forma e da orna. mentação, comprehende o calix de Santa Justa (64), cujo nó é ainda gothico, os da Academia de Bellas Artes de Lisboa (213 e 221), todos da sala M, e Os calices da mitra patriarchal (225), e da sé de Elvas (289) da sala Ñ. Dois d'estes calices teem datas, O da Academia (213) deve ter pertencido á sé de Coimbra, como 106 se prova pelos brazões do bispo. D. Jorge de Al- meida, que adornam a base; pelos rotulos, com a sua conhecida divisa : NEQUID NIMIS; e, finalmente, pela seguinte inscripção : ESTE CALES DEIXOV O BISPO DON IORIE DALMEIDA AO SANTO SACRAMENTO DA SÉE ERA DE 1551. No da mitra patriarchal (255) leem-se as datas de 1546 e 1547. Differem muito d'estes dois grupos, pelos caracte- res da forma e da ornamentação dois calices (G — 19 e G--62) expostos por sua magestade el-rei o se- nhor D. Luiz, e os da egreja de Belem (259) e de Santa Cruz do Funchal (319), ambos da sala N. O calix de oiro da sé de Coimbra (127) assime- lha-se na ornamentação da base aos do segundo grupo; mas o nó tem a fórma caracteristica do ter- ceiro: um corpo hexagono, formado de paineis com os seus nichos, e separados uns dos outros por co- lumnelos. O calix da sé de Coimbra (127) tem na parte inferior e interna da base o brazão do bispo D. João Soares, que governou a diocese conimbri- cense de 1545 a 1572. A custodia de Trevões (126) assimelha-se muito aos calices da mitra de Lamego e da capella da uni- versidade de Coimbra na ornamentação da base. · Porém a sua fórma, e particularmente da cupula que lhe serve de remate, é tão differente de todas as outras, que não sei se poderá attribuir-se à ou- rivesaria portugueza. As custodias de Santa Clara de Coimbra (253) e do convento de S. Domingos de Odivellas (261) da sala N, das Francezinhas (27) da sala D, e o reli- cario da sé. de Coimbra (112) da sala M, parecem obras do mesmo ourives, e dos fins do seculo XVI. As das maltezas de Estremoz (283), dos conven- tos do Paraizo (308) e de Santa Catharina de Evora 107 (332), e da egreja de S. Francisco de Guimarães (358). assimelham-se aos calices do terceiro grupo na fór- ma e ornamentação do nó. Poderão attribuir-se estes exemplares aos fins do seculo XVI, ou aos princi- pios do seculo xvii. A um periodo mais adiantado d'este seculo pertencem a custodia de Santos o Ve- lho (393), da misericordia de Cascaes (367), da egreja das Mercès de Lisboa (322), todas da sala N, e outra da egreja de Entre as Vinhas de Mertola, exposta na sala K. A pyxide de Santos o Velho (363), do mesmo es- tylo da custodia da mesma egreja (393), determina a época do ultimo grupo. Lê-se, com effeito, na base da pyxide : ESMOLA DE DOM LVIZ DALENCASTRE CONDE DE VILA NOVA COM.DOR MÓR DA ORDEM DE AVIS. Ora este conde de Villa Nova de Portimão nasceu em 1644 e morreu em 1701. Havemos, portanto, de attribuir esta custodia e outras similhantes å se- gunda metade do seculo XVII. A cruz da Academia de Bellas Artes (250) é uma das obras mais notaveis da ourivesaria do seculo xvi. A base, de forma rectangular, assenta sobre um plintho similhantemente rectangular com as super- ficies todas cobertas de baixo-relevos, e com os quatro angulos apoiados sobre cabeças de toiros. N’uma das quatro faces do plintho representa-se a foz de um rio entre duas margens com fortalezas; na face opposta um naufragio; n'outra o rapto de Europa; n'outra, finalmente, um centauro arreba- tando uma mulher, e um homem disparando fre- chas contra elle. Ornam os angulos figuras de phan- tasia. Os baixo-relevos das quatro faces verticaes da peanha ou base representam a Prisão de Christo, a Oração no Horto, a Via Dolorosa e o Ecce Homo. A cada um dos quatro angulos encosta-se uma chi- 108 mera com cabeça e peito de mulher e azas. Nas quatro faces superiores outros baixo-relevos repre- sentam outros passos da vida de Christo. Rama- gens, flores e fructos decoram as faces da cruz, da anterior das quaes pende a imagem de Christo. Tudo n'esta obra notavel está indicando um artista supe- rior da primeira metade do seculo xvi. Nem ha na exposição outro exemplar com o qual tenha affini- dade. Apenas os porta-paz (200) da sala M e (254 e 270) da sala N teem com ella alguma longinqua similhança, principalmente o ultimo, em cujo re- verso está gravada a data de 1534. Os ornatos gra- vados a buril no reverso d'este e de outro porta- paz são caracteristicos da época e, pelo phantasioso do desenho, approximam ainda mais estes exem- plares da cruz da Academia. Entre os cofres da sala N merece o primeiro logar o da Academia de Bellas Artes (384). É de bronze doirado com ornatos de prata branca. Adornam as quatro faces do cofre dez paineis em baixo-relevo, representando passos da vida de Christo, separados uns dos outros por pilastras decoradas com esta- tuetas. É de forma rectangular, muito elegante, e apoia-se sobre quatro leões. Talvez não seja impossivel encontrar algumas ana- logias entre este cofre e aquelle que sua magestade el-rei o senhor D. Luiz expoz na sala G, e que per- tenceu a el-rei D. Sebastião. A similhança, porém, é mais evidente entre este ultimo cofre e o de Odi- vellas (391), cujos baixo-relevos teem maior analo- gia com os do cofre da sala G, sendo-lhe, comtudo, inferior nas dimensões, no desenho geral e no par- ticular das figuras e ornatos. O cofre da mitra patriarchal (268), com fórma similhante, porém com ornamentação muito diffe-. 109 rente, tem a data de 1631. Se aos cofres mencio- nados accrescentarmos os de prata, gelatina, tarta- ruga, madre-perola, ebano, etc., expostos nas varias salas da exposição, e em maior numero nas salas M, Ne 0, convencer-nos-hemos da impossibilidade de qualquer classificação natural. A razão está em que estes objectos vieram, pela maior parte, de fóra do reino com reliquias, faltando-lhes para isso o nexo que teriam se fossem obras da industria portugueza. As pyx.des do seculo xyli teem caracteres proe- minentes pelos quaes facilmente se differençam: na sala N as de Santos o Velho (367) e da sé do Fun- chal (359 — b); na sala F outras duas (76 e 81); na sala G, finalmente, outra (33). Os fructeiros de prata levantada são as obras mais numerosas e mais caracteristicas da ourivesa- ria portugueza durante o seculo xvii. Com effeito, a este seculo pertencem os que em grande numero foram expostos na sala N. Apenas de poucos será licito duvidar se não serão antes dos fins do se- culo xvi. Estão n'este caso os dos srs. marquezes de Monfalim (262, 264 e 371); e talvez tambem as terrinas e pratos do sr. Bento de Queiroz (372 e 373), e do sr. D. Luiz de Carvalho e Lorena (381 e 382). Os seis fructeiros do sr. Francisco Manuel Fra- goso (353 e 415 a 419), e o do sr. João de Castro Sampaio (356) formam outro grupo, que, pela or- namentação das ramagens e fitas entrelaçadas e pelos baixo-relevos dos medalhões centraes, se dif- ferençam bem do primeiro grupo. Assimelham-se antes aos fructeiros francezes do tempo de Luiz xiv. As bandejas da sr.a condessa de Rezende ainda mais se distanciam dos fructeiros portuguezes. As duas mais bellas (342 e 343) e de mais perfeito ?e 343 Tos portrende ainda - 110 desenho são obra estrangeira, como attesta a ins- cripção gravada n'uma d'ellas: J. A. THELOT. 1687. Este Thelot, auctor de outras obras de prata, colli- gidas na exposição, será o André Thelot, ourives de Augsburgo, que viveu de 1654 a 1734 e fabricou algumas das mais notaveis peças do thesouro de Dresde? A ornamentação das outras duas bandejas de prata levantada (292 e 294) é mais grossa e incor- recta e, por algumas pequenas analogias que tem com a dos fructeiros, poderá ser talvez obra da industria peninsular, mais provavelmente da hespa- nhola que da portugueza. A época d’estas ultimas parece corresponder aos fins do seculo xvII. Finalmente outro grupo de fructeiros compre. hende exemplares de lavor menos perfeito, como é o da sé de Lisboa, cujo medalhão central representa um galeão. Muitos dos fructeiros expostos na sala F pela sr.a condessa d'Edla entram naturalmente n'este grupo. Cinco jarros de prata branca ou doirada, de va- rias dimensões e ornatos, mas todos com fórma si- milhante, parecem caracteristicos do seculo XVII. O mais bello, pela profusão e delicadeza dos ornatos, é o do sr. Fernando Palha (334). O do sr. Antonio Teixeira de Sousa (361 — a) tem gravado na aza o seguinte: 1605 A. M. Parecem productos de uma in- dustria estrangeira, hollandeza talvez. Um outro jarro, o da mitra de Lamego (348), po- derá menos duvidosamente attribuir-se à industria nacional. A fórma da aza d’este jarro é como a das azas de outros expostos na sala 0. Muitos exemplares da sala N tem uma ornamen- tação commum que parece carecteristica do seculo XVII. Os arabescos, as fitas entrelaçadas, os pon- teados substituem sem vantagem nenhuma, excepto a da simplificação do trabalho, os ornatos em relevo. Na cruz do Sebal Grande (252), com a data de 1604, apparece já este genero de ornamentação. Encontra-se egualmente nas lampadas do convento do Paraizo de Evora e do sr. Bento de Queiroz (425); na cruz da egreja da Ameixoeira (329); na estante de prata do convento das Chagas de Lamego (395); no relicario da Sé de Coimbra (399); no prato do sr. Bento de Queiroz (401) na caldeirinha do convento da Castanheira de Villa Franca (403; e finalmente nas bacias ou fructeiros do sr. Macario de Castro (400) e da sr.a D. Umbellina Julia da Costa (394). Este ultimo tem por medalhão central a effigie de Filippe ii com a seguinte legenda : PHI- LIPVS III. HISPANIAR. REX. Estes dois fructeiros e ou- tros dois da sr:a condessa d'Edla, expostos na sala F, parecem obras do mesmo ourives, portuguez ou hespanhol, não obstante o nome allemão da seguinte legenda que circumda n'um dos ultimos a effigie do medalhão central : ANNA MAVR ELLAOLDOFREDI D ISE AET X... A ourivesaria conimbricense, que no seculo xvi parece ter produzido alguns dos exemplares da sala M, poderão attribuir-se os objectos de prata das egrejas de S. Bartholomeu e de S. Christovão. A lanterna da primeira (405) tem a seguinte inscri- pção : ESTAS ALINTERNAS DERÃO OS IRMÃOS QUE PRIN- CIPIARÃO A IRMANDADE NO ANNO DE 1689. A lanterna, (406 a), vara de mesario (406 b), cruz processional (407), cereaes (408), thuribulo (337), naveta (338), capa de campainha (339) de S. Chris- tovão de Coimbra e a corôa (336) do convento de Semide, a corôa (256) de Santa Clara representam provavelmente aquella industria local. 112 A lanterna de S. Bartholomeu tem a data de 1689. As outras obras parecem approximar-se mais dos principios do seculo xvii e são mais perfeitas. A degeneração da arte, começando na segunda me- tade do seculo svi foi proseguindo, arrastando por fim a sua completa extincção. O caracter local dos objectos attribuiveis á indus- tria coninbricense tornar-se-ha mais apparente, se os compararmos com outros de egrejas distantes de Coimbra, por exemplo as lanternas de S. Christovão e de S. Bartholomeu com a da egreja de S. Pedro de Almargem do Bispo do concelho de Cintra (323). Onde muito bem se desenha o estylo da ourivesa- ria portugueza do seculo xvii é na sacra da egreja de Santa Maria de Belem (365), na pia de agua benta do sr. Flamiano Lopes Ferreira dos Anjos (357) e no baixo-relevo do sr. João Alegro (397), que representa um milagre de Santo Antonio. A sacra de Belem assimelha-se por extremo aquella que foi exposta na sala F pela sr.a condessa d'Edla. Outras duas obras do mesmo genero, posto que de maiores dimensões e de mais larga ornamenta- ção, adornam as paredes da sala N. É o frontal da confraria de S. José do Funchal (422) e a porta do sacrario da egreja de Santa Maria de Belem (421). Esta porta de sacrario é de madeira coberta de folha de prata levantada, representando em baixo- relevo a Adoração dos Reis. Na parte inferior en- tre grandes folhagens tem as armas reaes de Por- tugal e por baixo o seguinte letreiro: 0 PRINCIPE D. PEDRO QVE DEOS GVARDE DEV ESTE SACRARIO A ESTE REAL MOSTEIRO DE BELEM NO ANNO DE 1675. Segundo um documento publicado pelo sr. R. V. d'Almeida, o sacrario de Belem foi feito pelo ouri- ves João de Sousa, em cumprimento de um voto das Chagas é muito elegante e muito bem ornamen- tada. Contém a sala N, alguns exemplares da industria indiana. Em todos se conhece claramente o caracter oriental. O crucifixo de Santa Clara de Coimbra (281), de pau santo, cobre dourado e marfim, ainda hoje é conhecido n’aquelle convento sob a denomi- nação de Senhor da India. As columnas da peanha são perfeitamente orientaes. Conserva-se outro com uma peanha similhante na capella da quinta do sr. marquez de Vallada em Cintra. Parecem obras dos fins do seculo xvi ou principios do seculo xvII. O oratorio ou triptyco da Academia de Bellas Artes, outr'ora do convento do Carmo da Vidigueira, é outro exemplar interessante (309). Forrado de velludo verde com peanha e remate de prata, é exteriormente adornado de guarnições e fechos de prata e de medalhões pintados em molduras do mesmo metal. No fundo está um crucifixo com a imagem de ouro e com peanha de prata. Aos lados tem as imagens da Virgem e de S. João, de prata; nas paredes lateraes dois santos da ordem de S. Francisco; nos reversos das portas S. Pedro e S. Paulo. Trouxe-o da India para o convento o padre André, Coutinho, que falleceu em 1597. Representam tambem a industria indiana uma estante de missal (311) e um porta-paz (312) da Academia de Bellas Artes e que egualmente perten- ceram ao convento do Carmo da Vidigueira; uma cruz d'azeviche da Sé de Coimbra (324) e duas imagens de Nossa Senhora, feitas de dente de ca- vallo marinho, uma dos srs. marquezes de Monfa- lim (325), outra da egreja de Trevões (387). Esta ultima é notavel pela sua grande belleza e pela per- feição da esculptura. 115 O thuribulo da Sé de Coimbra (98) da sala M parece tambem obra da industria indiana. Ha outro similhante n'aquella Sé. São ambos de forma es- pherica, suspensos em trempes com pés de cabra. A ornamentação consiste em grandes carrancas cir- culares em que parece se pretendeu representar o sol. Não se conhece nenhum outro exemplar d'este genero. IX A sala o A transição da sala M para a sala N é quasi in- sensivel. Além de que, por falta de espaço, passa- ram para esta ultima muitos exemplares do seculo XVI, a maior parte dos da segunda metade d’este seculo não se differençam por caracteres proeminen- tes dos da primeira metade do seculo seguinte. O estylo da Renascença, generalisa-se n'aquelle pri- meiro periodo e continua durante o segundo sem alterações profundas. Uma barreira porém parece separar a sala N da sala 0. Os objectos aqui expostos são com raras excepções do seculo xyili, e em quasi todas as clas- ses da ourivesaria o estylo se modificou profunda- mente nos principios d'esse seculo ou nos fins do anterior. Esta modificação affecta não somente a fórma geral dos objectos, mas tambem o desenho e o genero da ornamentação. Ao passo que algumas obras se differençam das anteriores por uma elevação notavel do estylo, ou- tras, pelo contrario, patenteiam uma inferioridade grande na forma e na ornamentação, preferindo-se 119 (342 e 343) da sala N, os baixo-relevos do sr. marquez de Pombal (456 e 462) da sala 0, e outro similhante com a mesına data de 1717 na sala 1, pertencente á Academia Real das Sciencias (69). Os pratos de Germain tem a sua assignatura e as datas de 1744 e 1764. Entre os exemplares da ourivesaria estrangeira da sala 0, merece tambem mencionar-se a urna da sr.condessa de Geraz de Lima (431). A cafeteira do sr. Carlos Munro (449) e a chaleira do sr. João de Castro Sampaio (531) tomar-se-hiam como obras estrangeiras, se não houvesse na sala o outros exemplares que parecem obras do mesmo ourives (521, 463, 594 e 486). Com estes exemplares não podem competir os da ourivesaria nacional, cuja decadencia, começando no seculo xvii, continuou progressivamente até hoje. Citarei, como termos de comparação, a lampada do sr. Manuel Barata de Lima Tovar (433), os jarros e bacias, urnas, bules, salvas e outros objectos ex- postos na sala 0. As peças de um apparelho de chá, do sr. José Maria de Alpoim (561 a 563) tem certa originalidade. São de prata dourada cobertos de ornatos de appli- cação de prata branca, representando parras e ervas, mas executadas sem grande delicadeza. Não tenho até agora fallado das marcas da ouri- vesaria, porque são extremamente raras nos exem- plares das salas Me N. Encontram-se n'alguns, poucos, da sala 0. O L coroado, marca de Lisboa, apparece no castiçal da Sé d'esta cidade (342), na cafeteira dos srs. duques de Palmella (504), nos objectos de um serviço de toucador da sr. D. Maria Manuela de Brito e Castro (582, 585, 586 etc.). O P, marca do Porto, no jarro dos srs. Rosas (479) Não te porque se me coroados a cidade 50 meter 120 na cafeteira e leiteira do sr. Abilio Augusto Martins (482 a e 540), na cafeteira do sr. Bento de Queiroz (492), na urna ou cofre da Sé do Porto. É possivel que alguns d'estes exemplares tenham já sido fabri- cados no seculo xix. As peças com a marca de Lisboa são em geral mais elegantes e com ornatos de melhor desenho e execução. Convém sobre tudo notar os objectos ci- tados da sr.a D. Maria Manuela de Brito e Castro, os quaes, sem a marca, se tomariam facilmente como obras estrangeiras. É instructiva e curiosa a comparação dos objectos da mesma classe chronologicamente dispostos nas salas M, N e 0. As custodias ogivaes ou de colum- nas ornadas de estatuetas, da primeira e da se- gunda metade do seculo xvi, modificam-se no seculo xvii, adquirindo em geral fórmas mais grossas e pesadas. Os relicarios conservam ainda a forma rectangular, mas as columnas retorcem-se ás vezes na forma denominada salomonica; e aos lados appa- recem as quartellas á maneira de SS. A custodia da Annunciada de Setubal (488), com a data de 1717, conserva ainda esta forma. Porém nas ontras da sala 0, o relicario perde a forma re- ctangular, para tomar a circular ou de resplandor, caracteristica dos seculos XVIII e xix, e tão pouco elegante que vulgarmente lhe chamam de palmatoria. O resplandor com a haste faz com effeito lembrar este instrumento. Algumas custodias do seculo xviii são adornadas com pedras preciosas, ás vezes de mistura com ou- tras falsas. Estão na sala 0 as da Bemposta (hoje da Academia de Bellas Artes) (600) e da Estrella (609). Ha outras porém, como a da Sé de Lisboa, que não figuram na exposição. O luxo que el-rei D. 122 tremamente elegantes na forma e com bellos e de- licados ornatos, são obra do mesmo ourives que fabricou as da sr.a condessa d'Edla, (77 e 78) ex- postas na sala F. Deveriam ter sido antes collocadas na sala Mou N, por corresponderem pelo estylo aos fins do seculo xvi ou principios do seculo XVII. São menos antigas mas tambem de grande belleza as do extincto mosteiro de Jesus de Aveiro (587) e as da Mitra episcopal de Coimbra (542). No relicario de Mafra (435), de ebano e prata, nota-se o defeito commum da esculptura contempo- ranea; tem grande exageração as estatuetas em posições muito affectadas. De uma grande banqueta de prata da Sé de Coimbra, constando de cruz, castiçaes, apostolos e jarras, figuram na sala 0 duas d’estas ultimas (531), de forma e ornamentação simples e elegante. As outras peças, de grande peso e dimensões, são obras muito menos perfeitas, pelo que não vieram para a exposição. Nas salas Me N, e na primeira mais ainda que na segunda, predominam as obras da ourivesaria religiosa. Na sala o desapparece já este predomi- nio, e os exemplares da ourivesaria civil não são inferiores em numero ás alfaias do culto. Duas causas explicam esta differença. Nos seculos XVI e xvii a arte religiosa produzia mais do que a arte civil. Por outra parte as obras d'esta ultima não estavam nas condições que favoreciam a conserva- ção das alfaias ecclesiasticas. No seculo xviii aug. mentou a producção das primeiras, além de não haver ainda decorrido o tempo sufficiente para a sua desapparição. Os objectos de uso domestico participam dos de- feitos notados nos outros. Parece ter diminuido a 123 faculdade inventiva dos artistas que produziu as obras magnificas da Renascença. Não ha variedade de fórma nem de ornamentação, que se reduz, na maior parte dos exemplares, a alguns singelos lavo- res à roda de grandes superficies lisas. A singeleza dos jarros e bacias, tão numerosos na sala 0, con- trasta com a esplendida ornamentação dos gomis e pratos do seculo xyi, e com as grandes e profusas ramagens dos fructeiros do seculo XVII. Duas bellas miniaturas, uma do sr. Francisco Xa- vier de Carvalho (450), outra do convento do Co- ração de Jesus, Estrella, Lisboa (454), são acom- panhadas de notas manuscriptas, que attribuem a primeira a Tibaldi 1738; a segunda a José Alyres, Roma, 1789, Pertencem ao sr. visconde de Daupias tres baixo- relevos em marfim (441, 607 e 608). Um repre- senta Christo crucificado, S. José, S. Francisco, Santo Antonio e outros santos. E obra do seculo xviii. Os outros representam assumptos biblicos, sendo um a matança dos philisteus. Estes ultimos são de bellis- sima esculptura dos fins do seculo xvi, ou dos prin- cipios do seculo xvii. A sr. viscondessa dos Olivaes expõe dois peque- nos baixo-relevos, em dente de cavallo marinho, re- presentando scenas da vida de Moysés (751 e 752). O sr. José do Canto, um triptyco de marfim, que representa em baixo-relevo a familia sagrada, e dos lados, nas portas, S. Miguel e um anjo conduzindo uma creança (636). Outro baixo-relevo de marfim, da mitra archi- episcopal de Braga, representa sete passos da vida de Christo, e parece obra indiana (518). * Finalmente, a sr.& D. Maria Amalia Cabral expõe uma Annunciação, em marfim e madreperola, deli- 124 cada esculptura do seculo xvm (606 —b),'e a sr.a D. Clara Maria de Mesquita, um baixo-relevo em marfim com a inagem de Nossa Senhora, obra da mesma época. Uma collecção de joias dos seculos XVII e XVIII, pela maior parte d'este ultimo seculo, serve de com- plemento ás collecções de ourivesaria das salas N e 0. Estas joias, em geral, productos de uma arte enervada, não teem já a graça, a elegancia, a vida dos objectos analogos do seculo xvi, particularmente d'aquelles que represeatam lutas ou outras scenas de homens e de animaes. O altar do sr. Francisco Ribeiro da Cunha (634), e uma camara de Sant'- Anna e de S. Joaquim, do sr. Henrique de Araujo Tavares (618), não obstante as pedras preciosas que os adornam e a perfeição das miniaturas do pri- meiro, mostram claramente a differença entre a arte do seculo xvi e' a do seculo XVIII. Pertence a primeira, mais do que á segunda, e deveria por isso ter sido collocada na sala M, uma cruz de prata doirada toda revestida de filigrana de prata branca. A saia que o Christo veste e as ini- ciaes da parte superior da cruz, que algum tanto conservam ainda das fórmas gothicas, dão a este exemplar maior antiguidade do que a primeira vista pareceu. Eis aqui tres rosarios, genero que a industria dos seculos XVII e XVIII deixou numerosamente re- presentado. O mais notavel é o do extincto con- vento de Jesus de Aveiro (631), de filigrana de oiro. Pertenceu a esse mesmo convento um adereço de prata com amethistas e diamantes (643) e um bello collar de diamantes (681). Da Caixa Geral dos De- positos procede outro collar d'este mesmo genero (665). D'ahi mesmo vieram grande numero de brin- 125 cos de oiro esmaltados de verde e ornados de pe- rolas (645, 661, 662, 663, 664, 670, 735), produ- ctos da mesma industria no seculo XVII, ou no se- culo XVIII. A sr.D. Marianna Guilhermina Fisher Berquó expõe um pente de oiro, feito da folha d'este me- tal, levantada á maneira da folha da prata nos fru- cteiros e n'outras obras do seculo xvii. É dos srs. condes de Prime uma bella miniatura em cobre esmaltado, retrato do cardeal Mazarin. No reverso tem esta nota manuscripta : LE CARD. MA- ZARA IN ZME PEINTURE DE DALILA LABARCHEDE ELÈVE DE MR. SOIRON PÈRE. PARIS 1811. As medalhas de prata ornadas de perolas e pe- draria para retratos, foram muito communs no se- culo passado. Muitas ha expostas tanto na sala 0, como na sala G. A mais bella de todas é a do sr. Bento de Queiroz (679), exposta na sala 0. Tem uma elegante firma de brilhantes na parte superior, Entre as joias mais interessantes ou curiosas d’esta collecção mencionarei o peitoril de diamantes, da Academia de Bellas Artes (596), e o collar de fili- grana de oiro e de antennas de insecto, do mosteiro de Lorvão (736). Dois pequenos instrumentos de prata dos srs. Mi- guel Osorio Cabral de Castro e Francisco de Abreu Castello Branco, parece terem servido de borrifado- res, da mesma sorte que os que actualmente usam os barbeiros, excepto em ser substituida pela insu- flação boccal a da borracha que impelle o ar. Com effeito estes singulares objectos teem a forma de um vaso ou de um coração ôco. No gargalo en- tra um tubo que desce até ao fundo e que tem na parte superior um crivo. Exteriormente ha outro tubo recurvado que sảe da parte inferior do vaso. 126 Contendo este uma porção de liquido, e assoprando pelo tubo exterior, o liquido, impellido pela pres- são do ar, deve sair, com mais ou menos força, em gotas pequenissimas, pelo crivo. Finalmente resta-me citar uma linda cruz peito- ral de crystal e oiro, da mitra de Aveiro. Esta e uma grande parte das joias expostas na sala 0 são attribuiveis à industria estrangeira. A sala E Desejando dar uma noticia exacta da collecção de ceramica da sala E, pedi ao sr. Fernando Palha, or- ganisador d'esta collecção, que a descrevesse. Sa- tisfez de tal modo o meu amigo e collega ao pedido que lhe dirigi, que só receio que a sua extensa, mi- nuciosa e interessante carta, a par com as minhas, não demonstre a insufficiencia d'ellas pela brevidade com que tratei de algumas das collecções da expo- sição. Eis a carta : 1 Q... Sr. dr. Augusto Filippe Simões. — Orde- na-me v. que escreva uma abreviada noticia da collecção de ceramica exposta na sala E, para v. me fazer a honra de a publicar juntamente com os seus ultimos trabalhos sobre a Exposição de Arte Ornamental. A tarefa que v. me impõe é superior ás minhas forças e de todo me julgo insufficiente para ella, mas sendo a ordem sua não posso des- obedecer. Supprirei com boa vontade os conheci- mentos que me faltam, como já o fiz quando se tra- tou de organisar a collecção. 128 Nas resperas da abertura da exposição, quando vi como n'ella a ceramica estava pobremente repre- sentada, fiz sentir esta falta ao sr. presidente da commissão executiva, e insinuei-lhe que, mesmo n'aquella occasião, seria facil obter dos principaes colleccionadores de Lisboa um numero sufficiente de objectos que, expostos na sala E, inutilisada até ali para a ceremonia da abertura, viriam preencher uma lacuna que eu não era o unico a notar. S. ex.a abraçou a idéa com enthusiasmo, me pareceu en- tão, e perguntou-me se eu estava disposto a consul. tar os amadores de que fallava, meus amigos pela maior parte; acceitei immediatamente a incumben- cia, e tendo começado logo a minha peregrinação, tive a satisfação de achar em toda a parte as por- tas abertas de par em par. Julgava eu que a minha missão terminaria no mo- mento em que viesse dizer á commissão que os srs. Fuão e Fuão punham as suas collecções ás or- dens d'ella, pois nunca tive a ousadia de pensar que vv. ex.as delegariam em mim, tão sem titulos, o pe- sado mas honroso encargo de collaborar na sua obra. Foi, pois, com espanto que, tendo sido chamado å presença da commissão, ouvi dizer que eu propu- ‘zera organisar na sala E uma collecção de ceramica, promptificando-me a assumir todas as responsabili- dades, e a desempenhar todos os trabalhos que dis- sessem respeito a esta amplificação da exposição. Como já disse nunca tal föra a minha idéa, porque não me achava habilitado para tanto, mas receiando, se o contestasse, que a minha recusa fosse interpre- tada como desejo de demittir de mim responsabili. dades, ou de me furtar ao trabalho, querendo por esta forma lançal-o sobre homens que, como v., ha- 129 via tantos mezes, e ainda então, o tinham tão grande, calei-me e acceitei a missão com que vv. ex.as me honravam. Achando-me desarmado para a bem desempenhar, sem tempo para preencher com o estudo as defi- ciencias dos meus conhecimentos, estudo que, como V. bem sabe, em materias d'esta natureza de nada vale sem a experiencia, recorrí ao unico expediente que o bom senso aconselhava: consultar aquelles que eu considerava mestres e que tinham o que me fal- tava, a pratica. Assim fiz; em todos achei boa von- tade, mas muito especialmente no distincto amador e meu amigo o sr. Osborne Sampaio, que não só me franqueou a sua preciosa collecção, mas em tudo me ajudou, encaminhou e aconselhou. Se alguma coisa ha que louvar na exposição de ceramica, sobretudo na sua disposição, é a elle que os louvores devem ir buscar e não a mim, porque em tudo lhe obedeci. Da mesma forma se mais de mil objectos pode- ram ser colleccionados, dispostos e catalogados em pouco mais de um mez, devo-o a v. e aos seus collegas, vogaes da commissão executiva, que por- fiáram em aplanar os obstaculos que se me levan- táram no desempenhar a minha tarefa; devo-lhes por isso reconhecimento; bem vê pois que um de- sejo seu não pode deixar de ser ordem para mim. Se no obedecer esta segunda vez commetter er- ros palmares como o fiz na primeira (e alguns for- nece-me v. agora occasião de rectificar), queixe-se da sua obcecada confiança e reconheça ao menos a minha boa vontade. Merecem pela sua antiguidade occupar o primeiro logar n'este trabalho, como o occupáram, no cata- logo, os sete vasos etruscos da collecção dos du- 130 - ques de Palmella. Hoje as imitações perfeitissimas que en Italia se fazem tornam mui difficil para to. dos o determinar a authenticidade d'estes vasos, muito mais para quem, como eu, estranho até hoje á estes trabalhos, não teve occasião de educar o olho nos museus a differençar o verdadeiro do falso. Comtudo a collecção dos duques de Palmella julgo-a isenta mesmo da mais leve suspeita ; basta conhe- cer-lhe a origem. Foi adquirida em Roma por D. Ale- xandre de Sousa Holstein, pae do primeiro duque de Palmella e nosso ministro n'aquella côrte, onde morreu em 1803, e n'esse tempo ainda a industria dos falsificadores não tinha chegado á perfeição que lamentamos. Julgo, pois, que os vasos da casa Val- mella devem pelo menos ter vinte a vinte e um se- culos, pois, segundo os auctores que tratam o as- sumpto, a fabricação d’este genero terminou 186 annos antes de Christo. · Se não receiasse ser taxado de atrevido, diria mesmo que ainda são mais antigos, pois creio que não se podem classificar como do periodo da deca- dencia, e que pertencem a classe que Jacquemart designa pelo caracteristico das pinturas vermelhas, datando a sua fabricação do quarto seculo antes da nossa éra. O processo porque estão ornamentados é tal e qual o que o sabio historiador da ceramica descreve : desenho das figuras com um ponteiro no barro, intervallos preenchidos com fundo de esmalte preto, e traços pretos a pincel completando o de- senho; em alguns o emprego da cor vermelha e do branco não altera a classificação. Juntando a isto a elegancia das formas, que a arte moderna póde egualar nunca exceder, e a sobriedade dos orna- tos, julgo poder affirmar estarmos em presença de specimens distinctos d'esta remotissima fabricação. - - - - --. - 131 O espirito humano pasma diante d’estas reliquias, quando .considera que, feitas da materia a mais fra- gil, poderam escapar incolumes aos cataclysmos que destruiram ou arruináram o Forum e o Colyseu. A par dos vasos gregos da casa Palmella, e se- guindo-se-lhe tambem no catalogo um grande prato de faiança de Urbino abre brilhantemente esta sec- ção, e temos n'elle a joia mais preciosa da collecção exposta na sala E. É tambem dos duques de Pal- mella. Obriga-nos a dar um salto de muitos seculos e a deixar as épocas remotas anteriores á nossa éra, e em que tudo é escuridão e incerteza, em que as mais trabalhadas classificações não passam de hy- potheses, que só inspíram confiança aos que teem sciencia bastante para acceitar como verdadeiros os dados em que se baseiam. Achamos-nos com o prato dos duques em plena Renascença italiana e mesmo muito proximos da se- gunda metade do seculo xvi. Em ceramica, como em tudo mais, a Italia acordou mais cedo do que o resto da Europa do lethargo em que as artes jaze- ram por tantos seculos, mas ao passo que a pin- tura, a esculptura, a architectura attingiam ainda no seculo xv o seu maior esplendor, só no xvi vi- veram e trabalharam os grandes mestres da cera- mica, os Xantos e os Fontanas, pois os Robbias, Lucca e Andréa, mais eram esculptores do que olei- ros. Viu-se n'aquella época a mesma rivalidade de que o seculo passado nos deu o espectaculo, quando os principes da Europa, em pacifica contenda, fize- ram consistir a sua gloria em fabricar nos seus es- tados as mais delicadas porcelanas, então os papas, os duques, as republicas, os simples condottieri, as- sim como porfiavam em roubar uns aos outros os 132 Raphaeis e os Miguel Angelos, assim protegiam os artistas mais modestos que nas suas côrtes, vinham fabricar as esplendidas majolicas que a industria moderna, apezar dos poderosos recursos de que dispõe, em vão tenta imitar. Chaffagiolo, Sienna, Florença, Asciano, Monte Lupo, Faenza, Forli, Ri- mini, Ravenna, Bologna, Pesaro, Castel Durante, Urbino, Gubbio, Deruta, Ferrara, Genova, Veneza, Napoles, e omitto os nomes de outras tantas, segui- ram o impulso. Um dos primeiros logares, senão o primeiro, pertence a Urbino, onde se illustraram Francesco Xanto e Orazio Fontana. Em Portugal são rarissimos os exemplares d'estes productos, e pou- cos conheço. De todos o mais notavel é este prato dos duques de Palmella, que contribuiria para illus- trar as mais afamadas collecções. São raras, mesmo nos museus, as obras assigna- das de Oragio Fontana. () monogramma que n'esta se encontra, composto de um 0 e um F entrelaçados precedendo um V (Oragio Fontana, Urbino) é dado por Chaffers como do mestre, comquanto Jacquemart o omitta. Se um esmiuçador tão paciente como o escriptor inglez não tivesse classificado a marca como sendo de Fontana, bastava este prato para se lhe dever attribuir, pois reune todos os caracteristicos dos seus artefactos: a largueza e correcção de de- senho, o vigor do colorido e o brilho imcomparavel do esmalte. Na anatomia dos personagens que figu- ram n'elle está-se a reconhecer o pincel que dese- nhou o pastor da taça do museu do Louvre, que representa o roubo de Europa e que Jacquemart reproduz na sua obra. Não me atreveria a escrever com tanta certeza se não tivesse visto o meu juizo confirmado por mestres illustres que não me atrevo a citar, e ainda por um testemunho não pedido nem 133 procurado e que por isso mais auctoridade tem. Quando eu estava trabalhando no catalogo entrou um dia na exposição um illustre amador inglez, o sr. Maniac, que possue uma collecção afamada, e que depois de estar em Lisboa, onde vinha procurar um clima ameno, soube por acaso que a exposição estava aberta; tal foi a publicidade que teve este para nós importantissimo acontecimento que um amador apaixonado, vindo para Portugal nos principios de março, ignorava antes de cá chegar que vinha encon- trar reunidas tantas preciosidades. Mal este illustre viajante entrou na sala E e teve tempo de abraçar com um golpe de vista as cantoeiras e vitrines, veiu sem hesitar direito ao prato de Urbino, attrahido por elle como o ferro pelo iman. Vendo-me a escre- ver os bilhetes do catalogo perguntou-me quem era o dono, e como eu lh’o dissesse e accrescentasse que tinha a assignatura de Fontana, respondeu-me: — Não a precisava. Qual é o assumpto que o artista quiz representar na sua obra ? E para mim bastante obscuro. No ca- talogo apresentei a hypothese de que o gigante que tantos estão subjugando figurasse a Italia vencida e dominada pela Austria. Hoje, depois de mais madura reflexão, parece-me mais razoavel vêr n'aquelle monstro a discordia, a quem arrancáram seus attri- butos, o feixe de serpentes, e que os soldados do imperador, armados de raios, tratam de aniquilar; nos mortos e fugitivos do primeiro plano o partido vencido, os francezes talvez, caracterisados pela ven- toinha, emblema da versatilidade e ligeireza, de que em geral os accusam; finalmente no personagem a quem offerecem duas chaves, symbolo da submissão, Carlos v, porque a bandeira da sua casa triumphante, não me consente deixar de ver na obra de Fontana 134 uma homenagem ao poderoso vencedor de Francisco I. Além d'isto conhece-se que o prato é dedicado ao mesmo personagem a quem se offerecem as chaves, pois o mesmo individuo que lh’as apresenta, esten- de-lhe tambem a outra mão em que se lê a assigna- tura do artista. Coincidem com o começo da fama de Fontana em 1538 as tregoas de Nice assignadas por Carlos y e Francisco I e que vinham dar novas esperanças de paz e prosperidade á estafada Italia. Não quereria o artista celebrar o acontecimento? Sabemos de mais que não foi só Fontana que celebrou com seus tra- balhos as victorias do imperador; Jacquemart cita uma peça importante representando a tomada de Goletta feita em Urbino em 1541 por Francesco Silvano; é mais um facto a favor da minha hypo. these. Como hypothese a apresento e, attendendo á im- portancia do specimen e a estas incertezas, pedi ao meu amigo o sr. Luiz de Aragão que pela gravura o reproduzisse, para que outros que não lograssem vel-o possam estudar o assumpto e rectificar o meu parecer. Longe, bem longe d'este specimen unico e precioso estão todos os mais exemplares que na collecção representam as faianças italianas. Nem por isso dei- xam de ter interesse, mas como me falta o espaço e tempo não me deterei n'elles e só por lembrança os menciono. Genova, Savona, Napoles estão repre- sentadas com exemplares de épocas relativamente modernas, pois não são de certo anteriores ao seculo XVII, se d'elle datam, e todos de fundo branco e pintura azul, especialidade das fabricas de Genova que as outras imitaram. O catalogo, ao deixarmos a Italia, leva-nos para sentiernas, polle datam idade das 136 rentes generos dos seus artefactos, pela maior parte influenciados pelas porcelanas orientaes, que o com- mercio dos Portuguezes e sobre tudo dos Hollande- zes viera espalhar na Europa. Se os artistas de Rouen tiveram a primeira idéa d'estas imitações, como Jacquemart parece insinuar, sendo seguidos n’este caminho pelos outros centros de producção da França e pelos proprios hollandezes, ou se a es- tes, que em primeira mão, em todo o seculo XVII, recebiam as louças da China e do Japão, pertenco a iniciativa, é ponto que não me atrevo a decidir, apezar das probabilidades serem todas a favor da segunda hypothese. O caso é que os artistas normandos souberam, apezar de imitadores, crear typos proprios, e uma ornamentação sui generis que, recordando o gosto oriental, não se pode confundir com elle. Tal é o ge- nero chamado de lambrequins de que é um bom specimen o jarro em forma de capacete que o sr. Osborne Sampaio expoz e que o catalogo descreve com o n.º 18. O n.º immediato pertence ao genero caracterisado pela cornucopia de flores, motivo prin- cipal da sua ornamentação; o exemplar, de forma original e curiosa tem todas as qualidades e os de- feitos d'este genero; qualidades no colorido, bri- lhante e bem matisado, defeitos na massa e sobre tudo no esmalte d’um branco azulado pouco agra- davel. Querem os que tratam o assumpto vêr n'este typo dos productos de Rouen uma tentativa bem succedida de emancipação da imitação servil dos productos orientaes. No n.° 21, assucareiro branco com paisagens chinezas a cores, temos ainda outro specimen de faiança normanda, d'um genero em que a imitação das louças orientaes ainda foi mais servilmente procurada. 137 Conheço pouco as faianças francezas, sou n'estes assumptos um mero principiante, por isso não é de estranhar que desconfie das minhas impressões, e que a medo as consigne aqui, mas como quero so- breludo sêr sincero direi que, do que tenho visto d'estes productos, julgo que como imitações da por- celana oriental ficaram muito abaixo das hollande- zas. Jacquemart diz que a escola de Rouen desde Os seus começos soube imitar a porcelana chineza com uma fidelidade e um talento ao menos igual ao que se admira nos oleiros hollandezes. É possivel que se eu conhecesse as grandes collecções de faiança de Rouen partilhasse a opinião do illustre traladista, até hoje nunca me succedeu tomar uma peça de Rouen por China, ao passo que por vezes me tem sido necessario approximar-me e examinar bem vasos de faiança azul de Delft para lhe conhe- cer a origem. O que digo do fabrico de Rouen muito melhor se pode dizer dos artefactos de Nevers, e não serão as duas garrafas de forma persa, descriptas com o n.º 22 e espostas tambem pelo sr. Sampaio, que, apezar da distincção das formas, modificarão o meu juizo. O esmalte embaciado e excessivamente azulado e a côr azul sem vigor empregada na ornamentação, fazem com que não haja illusão possivel. Tambem creio que a primeira fabricação de gar- rafas d'esta forma, que tão frequentemente se en- contra em faiança de Dellt, se deve aos hollandezes, e que d'elles a imitáram os fabricantes de Nevers. Como se sabe houve desde tempos remotos na Hollanda o gosto pelo cultivo das tulipas, gosto que chegou a tocar na monomania, pois os amadores do genero não duvidavam pagar por preços loucus uma nova variedade d'aquellas cebolas, creio mesmo 138 que houve mais de um exemplo de se terem com- mettido crimes para obter o exemplar desejado, quando não se podia adquirir por sacrificios pecu- niarios. Ora a forma das garrafas de que fallamos é a mais apropriada para fazer germinar aquellas tão cobiçadas plantas; logo que foram conhecidas foram assim utilisadas, e eis a razão porque tão frequentemente se encontram em faiança de Delft. Ainda os vasos de pharmacia, tambem do sr. Os- borne Sampaio, descriptos com os n.os 23 e 24, e a floreira dos duques de Palmella, que tem o n.° 26, mais se podem dizer inspirados pela porcelana orien- tal do que imitados d'ella, não deixando por isso de serum specimens notaveis sobretudo pelas suas for- mas elegantes. Não me espanta o encontrar em França esta in- capacidade para a imitação. Em todos os tempos a indole dos seus artistas mal se amoldou a copiar ar- tefactos estranhos, e, se alguma poderosa corrente vinha de fóra influenciar as predilecções do mo- mento, se os artistas não podiam resistir-lhe, sabiam mesmo n'esses artefactos, devidos a alheias inspira- ções, imprimir o gosto tão distincto e tão inimitavel da arte franceza; assim aconteceu quando da Italia a Renascença veiu revolucionar o mundo artistico, assim aconteceu quando a ampliação do commercio do Oriente veiu introduzir uma nova influencia na industria europea. Estava reservado para o nosso seculo ver em França uma pleiade numerosa de artistas e indus- triaes applicar o seu talento na imitação servil dos · artefactos de outras épocas e de outros paizes, e conseguirem-n'o, para tormento dos colleccionado , res e para fortuna de negociantes menos escrupu- losos. 139 As fabricas do sul da l'rança não seguiram os exemplos das do norte, os seus productos longe de imitarem modelos estrangeiros teem em tudo o cu- nho nacional, tanto na forma como na ornamenta- ção; quando não tinham artistas especiaes copiayam as composições dos mestres nacionaes que se pres- tavam a ser reproduzidas em objectos de pequenas dimensões, como são as do originalissimo Calot, ou as de Berain e de Boulle. São specimens d'este ge- nero os n.ºs 32 e 33 tambem da collecção do sr. Sam- paio. A terrina descripta com o n.° 32 tem uma or- namentaçãe grotesca no genero de Calot, e se é de Joseph Olery pertence à segunda época da sua fa- bricação, quando de volta de Hespanha, para onde tinha ido por instigações do duque de Aranda, co- meçou a ornamentar as suas faianças com as côres que vira usar nas fabricas hespanholas. Se é de Joseph Olery, disse eu, porque, segundo a opinião de Jacquemart, o monogramma formado pelas letras L 0, que se lê na bandeira que segura um macaco, não é prova sufficiente para se attri- buir a este artista as peças em que se encontra. Comtudo um dos factos que aponta para motivar a sua duvida não se dá n'este caso, que é o encore trar-se o monogramma acompanhado sempre por ou- tras e mui variadas letras; aqui encontra-se des- acompanhado, e o sitio em que está pintado mais parece indicar a assignatura de um artista do que a marca de uma fabrica. A travessa que tem o n.° 33 ostenta desenhos graciosos no genero Bérain, se não copiados do pro- prio artista. As suas composições, frequentissima- mente reproduzidas em Moustiers, servem para ca- racterisar numerosos productos d'esta procedencia, . e este exemplar, com quanto não seja de summa 140 importancia, é bem proprio para os que quizerem conhecer o genero fixarem os seus caracteristicos. Terminarei o que tenho a dizer sobre as faianças francezas mencionando as tres terrinas descriptas com os n.ºs 28, 29 e 30. São todas tres specimens notaveis do genero que em Marselha teve tanta voga, da pintura de flores sobre fundo branco, e repro- ducção de animaes em relevo nasazas e tampas. A ultima tem uma marca desconhecida e que po- derá de hoje em diante augmentar o elenco das mar- cas d'esta proveniencia. Tambem de Marselha, ou de um dos centros de fabricação que imitáram seus productos, é o ser- viço que o sr. Macedo Braga expoz, e tem o n.º 31. A facilidade com que estão desenhadas as paisa- gens e figuras que entram na sua ornamentação, o brilho das côres com que estão pintadas, tornam-n'o um exemplar distincto de um genero que pode com- petir em elegancia com a porcelana mais finamente pintada. Antes de fallar das faianças hollandezas direi duas palavras do unico exemplar que na sala E repre- senta as fabricas belgas. É o n.º 35 que me per- tence e que até ha pouco tive em casa sem o poder classificar. É uma cabeça de javardo perfeitamente modelada e pintada com uma só côr, cinzento azu- lado; a parte superior forma tampa, e devia servir de terrina ou simplesmente de ornato. Desconhecendo completamente este genero de faiança, ainda hoje não saberia a proveniencia do meu javardo, se ha pouco, folheando o livro publicado depois da expo- sição retrospectiva belga, e que se intitula — L'art ancien à l'exposition nationale belge — não deparasse com um exemplar perfeitamente egual reproduzido pela gravura. Bom seria que a nossa exposição ins- 141 pirasse um trabalho similhante onde se reproduzis- sem sobretudo aquelles objectos que ainda não fo- ram descriptos em outras publicações, o que serviria para de futuro auxiliar os estudiosos e sobretudo os que tomam interesse pela arte portugueza. Já tive occasião de me referir á influencia que julgo dever attribuir as faianças hollandezas sobre as do norte da França, dando-lhes o exemplo da imi- tação das porcelanas orientaes e servindo-lhes de modelo n’este genero de fabricação. Que á Hollanda pertence n'ella a precedencia parece-me difficil de contestar. Depois dos portuguezes, e d'estes falla- rei a seu tempo, nenhum povo da Europa deve ter tido mais cedo o conhecimento das porcelanas orien- taes. Não é pouco provavel que, nos tempos em que os reis de Portugal tinham em Flandres um feitor permanente, consignatario obrigado das mercado- rias da Casa da India, para as quaes Anvers era quasi o mercado exclusivo e ao mesmo tempo ne- gociador de quanto emprestimo a corôa portugueza se via obrigada a contrair, e eram frequentes nos tempos chamados da nossa prosperidade, alguma loiça da India lá devia ter ido parar, não como ob- jecto de commercio mas como presente ou luvas para os poderosos argentarios que durante tantos annos dispozeram do mercado monetario. Não foi, de certo, esta a unica origem da introducção na Hol- landa de porcelana da China e do Japão; ainda no tempo da feitoria, e sobretudo depois d'elle, as re- lações commerciaes de Portugal com os seus por- tos eram frequentes, conservadas, principalmente, pelos judeus portuguezes, que a politica fanatica e cubiçosa dos nossos soberanos tinham obrigado a refugiar-se em terra de mais liberdades, e que tão fundas raizes tinham lançado em Portugal que ainda 142 hoje conservam vestigios da sua origem, e que n'es- ses tempos tendo deixado entre nós parentes e ami- gos provavelmente alimenta vam estas relações com presentes de parte a parte. Os que de cá fossem póde-se affirmar à priori que continham jarras da China ou do Japão. Mais tarde, quando os aconteci- mentos de 1580 auctorisáram as naus hollandezas a equiparar as quinas aos leões de Castella, bem depressa, supplantando-nos no commercio oriental, começaram a importar directamente as desejadas mercadorias. Logo em 1602 já era tão manifesta a vantagem do commercio do Oriente que os Estados julgáram dever fundar a Companhia das Indias, des- tinada a tão prolongada prosperidade, e em 1614, só doze annos depois, os mesmos Estados conce- diam a Claes Janssen Wytmans o primeiro privi- legio conhecido para o fabríco de porcelanas pouco mais ou menos como as que vinham de paizes re- motos. Este facto o que indica? Que os primeiros pro- ductos importados, tendo tido geral acceitação e não podendo pelo seu preço e limitado numero satisfa- zer a todos os pedidos, a industria nacional come- çou a procurar nos proprios recursos o meio de sa- tisfazer o gosto do mercado. A porcelana tornou-se ainda no seculo xvii um dos principaes artigos que compunham os carregamentos da Companhia, basta lembrar que só em 1654, em duas remessas, intro- duziu nos seus depositos 61:523 peças, e n'outro anno um só negociante, Wagenaar, recebia 21:567 de porcelana branca, mas é provavel que nos seus começos a abundancia não fosse esta, e como então sobretudo a procura devia ser immensa, como o é sempre para novidades, o estabelecimento da nova industria fez-se em condições verdadeiramente ex- 143 143 que fuecida, pelo aspo os mo cepcionaes. Eis a origem das faianças de Delft imi- tando porcelana oriental. N'estas imitações foram os hollandezes eximios e, repito-o, julgando pelo que conheço, ninguem os egualou. A faiança pintada de azul, e não é o genero mais estimado dos seus productos, pelo brilho do esmalte que quasi lhe chega a dar o aspecto da porcelana translucida, pela côr que em nada differe da dos modelos, e pelo aspecto geral da ornamentação chega a illudir mesmo os mais praticos. D'este ge- nero tenho na sala E quatro exemplares que julgo se devem classificar como bons specimens e que seriam de primeira ordem se infelizmente não tives- sem alguns defeitos, filhos do tempo e do pouco cuidado, com que em geral entre nós estas cousas eram tratadas. São as garrafas de forma persa des- criptas com o n.° 37 e os dois potes que tem os n.os 38 e 39. Se não fosse o detalhe do desenho, que não resiste a uma ligeira analyse, pois nunca um artista europeu foi capaz de pintar um chinez como os chinezes se pintam a si proprios, assim como es- tes apezar da proverbial exactidão na copia nunca foram capazes de retratar um europeu que não pa- reça um chinez, se não fosse, digo, esta circum- stancia, a pequena distancia, a illusão seria completa, para os maiores entendedores, como o é, mesmo com os defeitos que tem, para os que o são menos. Para o provar basta contar o que succedeu com as peças a que me refiro. Pertenciam a uma antiga casa de Vianna do Cas- tello, onde de ha muito se lhe tinha perdido a lem- brança da origem, e eram considerados de louça da India. Quando, por morte da ultima representante da familia, um dos co-herdeiros mostrou desejos 144 de as obter para o seu quinhão, e lhes deu o ver. dadeiro nome, para todos foi surpreza ouvirem que as louças que desde crianças chamayam da India não passavam de faianças hollandezas, e era tudo gente acostumada a porcelana oriental. As fabricas de Delft não se contentaram com imi- tar a porcelana azul da China, mais ambiciosas bem depressa tentaram ornar os seus productos com o verde, o encarnado e o oiro dos modelos que tinham debaixo dos olhos, e, se como imitação ficaram muito áquem dos resultados obtidos com o primeiro ge- nero, comtudo conseguiram crear uma decoração de côres brilhantissimas, harmonicamente matisa- das; se o esmalte excessivamente opaco, e o tom falso dos fundos não viessem contrabalançar estes resultados a illusão seria pelo menos igual a pro- duzida pela faiança azul. O pote n.° 46 e a fructeira do sr. Francisco Ribeiro da Cunha que tem o n.o 45 são exemplares distinctos do genero, e tem a marca que o dr. Mandi, um dos mais distinctos col- leccionadores de faianças hollandezas restituiu a Cornelis Keyser, Jacob e Adrião Pynaker, que tra- balharam nos fins do seculo xvii a datar de 1680 e que a todos excederam pelo brilhante colorido de seus artefactos. . D'elles tambem e unico specimen d'um genero ainda mais estimado, que os amadores designam pelo nome de Delft doirado, por isso que n'elle o oiro veiu juntar-se as cores verde, azul e vermelha, na decoração das faianças são os dois pequenos ca- nudos que o sr. Osborne Sampaio expoz com o n.º 44. Pertencem ao typo caracterisado pelo desenho chamado da codorniz, porque n'elle figura esta ave. Terminarei dizendo que as faianças de Delft, es- timadas desde os seus principios, merecem ainda 146 orientaes, enquanto não conseguiram destruir em Granada a ultima capital do seu longo dominio, a raça dos vencidos, que fora tão cultivada, que fizera da Hespanha a mimosa patria de todas as industrias, de todas as artes, apezar de decadente, não deixou de exercer a sua influencia sobre os rudes vence- dores, modificando-lhes os costumes, a industria, os proprios ritos do culto aborrecido, e n'esse tempo a louça era arabe como tudo mais. Mas logo que as ambições de Carlos v, a sua elevação ao throno im- perial, as pretensões que herdara do pae vieram desviar as forças da Hespanha para a Italia, onde em amiudadas pelejas se discutia não só a posse do Milanez mas o dominio do mundo, quando os gene- raes do imperador tanto se chamavam Hernando de Avallos como Prospero Colonna, quando era o Titiano que tinha a honra de legar á posteridade o sem- blante carregado do carcereiro de Francisco I, então os modestos artistas que em Talavera começaram a exercer a sua industria tentaram imitar os artefactos que de Urbino, de Faenza e d'outros centros da Italia chegavam até à côrte do seu soberano, home- nagem às suas façanhas que celebravam. Mais tarde, depois de vencida nos campos de Enghien a velha infanteria hèspanhola, quando com Luiz xiv a casa de Bourbon conseguiu substituir se nos destinos da Europa á da Austria em plena decadencia, quando sobre tudo entrou em Hespanha com Filippe v, O engodo pelas modas, pela elegancia, pelas artes francezas vemos que Alcora nasceu d'essa nova cor- rente de ideas. As faianças de Talavera estão bem representadas na sala E. Dois dos exemplares os n.os 57 e 65 jul- guei podel-os attribuir ao seculo XVI e devem re- montar á época em que os artistas, ainda hesitantes, 147 comquanto não podessem resistir ás influencias es- tranbas, não tinham perdido de todo o gosto pela or- namentação arabe que até então fora o nacional. No n.° 57, do sr. Osborne Sampaio, as côres são as empregadas pelos grandes ceramistas italianos, o azul, o verde, o amarello, ou por outra são d’ellas o pallido reflexo porque lhes falta o vigor e o brilho incomparavel dos esmaltes italianos; os anjos que figuram na ornamentação são italianos tambem, fa- zem lembrar os que esculpia Donatello com as per- nas defendidas com armaduras; o resto é arabe; são os passaros, as corças, as plantas mil vezes variadas, mil vezes reproduzidas na mesquita de Cordova ou no alcazar da Alhambra. No prato des- cripto com o n.º 65, tambem do sr. Sampaio, ainda é mais evidente a influencia arabe, pois se não fosse uma pequena egreja pintada n’um dos lados ninguem poderia affirmar que o artista que o decorou fosse um artista christão. Demais, os productos de Tala- vera, apezar de inspirados pelas faianças italianas, tiveram sempre um cunho proprio e originalidade nos ornatos e sobre tudo nas formas, nacionaes com raras excepções. Além d'isto a indole das duas fa- bricações era bem diversa; os Fontanas, os Xantos; verdadeiros artistas, só empregavam seus pinceis em peças de apparato, pratos, taças ou gomis, destina- dos a ornamentar os palacios dos poderosos Mecenas, os oleiros de Talavera trabalhavam para o povo, os seus artefactos eram destinados para as necessida- des domesticas e é certo que as quartas e cangirões, que hoje se conservam em museus, muitas vezes foram á fonte ou serviram em roda para encher as canecas dos freguezes d'algum taberneiro das Cas- tellas. A maior parte das formas são as que já an- teriormente tinham sido adoptadas para uso diario 148 e que ainda hoje se empregam; outras menos sim- ples têem um aspecto original e um cunho proprio; taes são as do candelabro exposto pelos duques de Palmella com o n.° 71, provavelmente destinado a alumiar algum altar, e a caneca dos mesmos srs. que tem o n.° 72. Os assumptos reproduzidos na ornamentação va- riam. Uns representam costumes populares, toscas paisagens, caçadas um tanto phantasticas : taes são o n.° 69 dos duques de Palmella, em que dois sol- dados com os trajos á Luiz xili, da época, fraterni- sam, os n.° 58, 61, 62 dos mesmos srs., os 59, 74 do sr. Sampaio e o 73 da Academia de Bellas Artes em que se podem vèr caçadas á lança e com galgos, combates de animaes e paizagens. Outros, mais eruditos, se assim se pode dizer, vestem os seus personagens á romana, como no n.º 60 em que dois cavalleiros fazem lembrar a estatua equestre de Luiz xiv, ou vão buscar á mythologia os modelos dos seus, como se vê no n.º 67 do sr. Sampaio; e accrescentarei que este prato se distingue entre os outros exemplares da exposição, pois além do vigor extraordinario do colorido, a correcção com que está desenhado parece indicar sêr devido a um verdadeiro artista. Nos productos de Alcora o cunho nacional mui difficilmente se percebe. Vê-se que a industria que alli floresceu foi transplantada do estrangeiro e que os artistas que o duque de Aranda soube attrahir para a aperfeiçoar lhe imprimiram um typo estranho que nunca mais abandonou. Se os seus artefactos co- meçaram ainda no seculo xvii não sei; os que d'elles tenho visto teem todos o cunho do seculo passado. Mesmo nos exemplares evidentemente destinados ás necessidades das classes populares como é o can- 149 girão descripto com o n.º 77, e os pratos que tem os n.os 78 e 79 todos do sr. Sampaio, a influencia dos modelos, das modas e predilecções francezas são evidentes; no n.º 78 que pertence a um typo vul- garissimo tres personagens turcos fazem lembrar os que Moreau le Jeune desenhou para illustrar as tragedias de Voltaire; são turcos de convenção não são turcos da Turquia. Os artefactos mais perfeitos chegam a confundir-se com os das fabricas do sul da França a ponto de ser difficil muitas vezes dif- ferençar uns dos outros, e de existirem nas collec- ções com a designação de Moustiers ou Marselha quando são de Alcora ou vice-versa. Como não teem marca a maior parte das vezes, a classificação é difficilima. Está n’este caso a terrina que expuz com o n.° 82 que, apezar da sua forma purissima do estylo Luiz xv, os tropheos correctamente desenha- dos no mesmo estylo e gosto francez, a natureza do esmalte, mais brilhante do que o de Marselha, me fez classificar como de Alcora. Ainda notarei a fonte do sr. Osborne Sampaio descripta com o n.º 83 que, de forma completamente franceza, está or- nada com ramos de flores devidos de certo ao pin- cel de um artista de merito. Para terminar este rapido passeio pelas faianças expostas na sala E resta-me fallar dos productos attribuidos á fabrica real do Rato. Se nos pertence como vulgarisadores um capitulɔ na historia da ceramica, em compensação a cera- mica portugueza não tem historia. Estou bem longe de seguir o exemplo, hoje tão frequente, dos que se desvanecem com o mais insi- gnificante objecto logo que julgam poder-lhe altri- buir origem nacional, e que, desprezando como indi- gnos de louvor os mais finos productos das industrias que julgam poder mais ins gnos origem nacional, 150 estranhas, enchem a bocca com 0:- E portuguez, muito interessante —, servindo assim de pretexto para os desapaixonados nos attribuirem vaidades e ignorancia, que felizmente nem de todos é apana- gio. Conheço que lhes vou excitar as iras, mas é mal a que já estou acostumado. Apezar de escrever com a exposição de arte ornamental aberta julgo não faltar á verdade dizendo que não somos nem nunca fomos um povo de artistas. Ha factos que vão de encontro a esta opinião, fa- ctos que se chamam a Batalha, Thomar, Belem, a custodia dos Jeronymos, a cruz do Funchal, etc.; são excepções que, como sempre, não destroem a regra. A excepção na ceramica portugueza chama-se a fabrica do Rato. É verdadeiramente uma excepção? Quasi que nem isso é. Uma industria exercida por artistas estran- geiros, copiando modelos estrangeiros, que viveu o que vivem geralmente as tentativas d’este genero dos soberanos e dos ministros, quando não vem acu- dir a uma necessidade real, só porque foi exercida sobre o solo portuguez, com a vil materia prima portugueza, e braços inconscientes portuguezes tam- bem, pertence à historia do trabalho portuguez? Custa-me a responder affirmativamente. Em todo o caso, tal qual foi ou como se quizer con- siderar, enxerto mal succedido, ou acclimação pros- pera ainda que ephemera, a fabrica do Rato é o unico estabelecimento ceramico portuguez cujos productos merecem ser notados. A sua historia está por es- crever. Se não fosse o gosto da nossa época pelo bric-à-brac, que tem salvo do esquecimento tantas reliquias do passado, provavelmente a sua existen- cia não seria conhecida senão por algum curioso que desejasse saber a razão porque a rua da Fa- 152 faiança. É o que nos conta Ratton, e quando a enu- mera juntamente com os outros estabelecimentos que com ella nasceram, diz: - Fabrica de loiça á imitação da que vinha de França, cuja fabrica deu algum lucro, mas por estar mal collocada e se ha- verem estabelecido muitas outras no reino, e parti- cularmente pela opposição que lhe fez a loiça in- gleza se veiu a fechar. Comtudo d’esta fabrica, de que foi mestre um italiano, saíram officiaes que ainda se empregam com bastante utilidade publica. É curto o paragrapho, mas precioso. Diz-nos qual foi a idea que presidiu ao estabelecimento da in- dustria e a quem se encarregou a execução, e co- nhecidos estes dois pontos estão explicadas as duas influencias, tão diversas, que predominam nos arte- factos. De facto abundam nas loiças attribuidas á Fabrica Real objectos que á primeira vista parecem ter saído dos fornos de Rouen; pertencem ao ge- nero chamado de lambrequins, e se não fosse uma incorrecção no desenho e uma deficiencia no esmalte, aos mais praticos seria difficil classifical-os, faltando, de mais a mais, a marca da fabrica em quasi todos, senão em todos, os productos d’este genero, talvez de proposito para illudir o consumidor acostumado a fornecer-se de loiça franceza. Na collecção da sala E um só objecto, o n.º 99, terrina que per- tence ao sr. Osborne Sampaio, serve para exempli- ficar o genero, mas está exposto na sala K, entre outros objectos, um taboleiro pertencente á Acade- mia Real das Sciencias, que faz hesitar os mais co- nhecedores. A par d'este genero, que provavelmente foi aquelle a que de principio se dedicou a fabrica, como o in- dicam as palavras de Ratton, encontramos um sem numero de objectos em que a influencia do mestre 153 italiano é manifesta; taes são todos os de loiça branca, sem pintura alguma, em que se attendeu sobretudo á fórma. A fabrica devia ter á sua dis- posição um modelador de primeira ordem, porque em quasi todos os productos d'este genero nada ha que criticar. Taes são as estatuetas expostas por sua magestade el-rei o senhor D. Fernando na sala F com o n.º 43, e que não deshonrariam os artistas de Capo di Monte, taes os bustos expostos na sala E com o n.° 88, copiados, julgo eu, de modelos de Machado, expostos pelo sr. Antonio Maria Fidié, o do n.º 89, a bacia e jarro que o sr. Osborne Sam- paio expoz, e que teem o n.° 96, e outros que omitto. Ainda a par d'este genero apparecem productos do Rato que não podem facilmente dizer-se copia- dos de modelos estrangeiros, e que constituem uma especialidade da fabrica; taes são a gallinha que ex- puz com o n.º 95, o pato, que tem o n.° 101, e as celhas, dos duques de Palmella, expostas como n.° 103. O mais distincto artefacto attribuido á fabrica real, exposto na sala E, é com certeza a terrina perten- cente á Academia Real das Sciencias e que tem o n.° 91. Copiada evidentemente de alguma peça de baixella de prata, não me espantaria se viesse a saber que na casa real existe o modelo, pois assim como constitue uma excepção entre os productos da mesma origem, assim posso suppor que o modelo deveria ter a marca de um dos mestres francezes da escola de Germain, pois o estylo é purissimo; no mesmo caso está o espelho que a sr. condessa d'Edla expoz na sala F com o n.° 52 e em que se está a vêr um d'esses que acompanhavam as caixas e bandejas dos toucadores das elegantes do tempo. 154 Factos isolados, objectos, d’esta ordem só depun- ciam o capricho, quer do artista que os modelou para offerecer a algum poderoso patrono, quer do principe que se lembrou de fazer executar em ma- teria tão fragil o modelo que possuia, nunca podem servir para d'elles se induzir que a officina donde sairam se dedicou seguidamente á fabricação d’um genero em que a perfeição da mão d’obra não está d'accordo com a vileza da materia prima. Tambem considero excepcional e devida talvez ao pincel de algum dos artistas da época, a travessa que o sr. Osborne Sampaio expoz com o n.º 90 e que artisti- camente decorada se afasta muito da incorrecção com que são pintadas quasi todas as peças da mesma origem, e por isso julgo que na sua execução en- traram elementos que não eram os ordinarios da fabrica. Ratton escreveu em 1810 e diz-nos que n'essa época já a fabrica real tinha fechado, não podendo resistir á concorrencia ingleza e á das outras muitas que no reino se estabeleceram. D'essas muitas poucos vestigios restam, a não ser que se lhes deva attribuir a maior parte dos obje- ctos que até hoje se classificavam como do Rato. De facto poucos são os que tem a marca e, se não acon- tecesse achar-se em objectos perfeitamente eguaes, difficil seria determinar-lhes com certeza a origem. Comtudo não estou longe de suppôr que alguns pertencem as fabricas que faziam concorrencia á do Rato ou se devem aos officiaes que de la saíram quando fechou. Conheço na Vidigueira um grande serviço de jantar, com numerosas peças quasi todas de formas elegantes, que alli existe desde vinte ou trinta annos antes do fim do seculo passado, e que pintado de azul no genero Rouen, reproduzindo as 155 fórmas d'aquella procedencia, é de uma execução tão tosca que não se lhe pólle assignar esta origem, nem tão pouco se pode dizer ser do Rato, pois tem numerosas marcas não conhecidas, comquanto se possa affirmar que é portuguez, attendendo á na- tureza do barro e esmalte. A fabrica real do Rato não tinha razão de ser, não era viavel. Como industria destinada a prover as classes populares, não era com mestres e opera- rios estrangeiros que poderia produzir tão barato que lhe não faltassem os consumidores; nas classes medias tinha a lutar com as importações inglezas e sobre tudo chinezas, mais baratas e mais perfeitas, pois, como é sabido, ainda ha poucos annos a por- celana ordinaria de Cantão era a que se via em quasi todas as mesas portuguezas; como fabricação de luxo vinha tarde, quando a Europa inteira 'estava a fabricar as mais preciosas porcelanas e diante d'ellas tinham já abaixado bandeiras os fabricantes de faiança. Consolem-se pois os que lamentam a sua ruina lembrando-se de que só á custa de conti- nuados sacrificios se poderia ter evitado. Os resul- tados não os compensavam A porcelana oriental e europea está profusamente representada na sala E. Esta profusão tem a sua razão de ser. N’uma exposição retrospectiva de arte ornamental, destinada a fazer conhecer a historia da arte d’um povo ou d’uma raça, o intelligente orga- nisador deve, quanto possivel, procurar que se achem representados todos os objectos, que, desti- nados ás necessidades multiplas do homem, servi- rão ao mesmo tempo de pretexto ao habil cinzel do ourives, ou ao delicado pincel do decorador. Só as- sim poderá o estudioso reconstruir o viver dos pas- sados, no templo, na rua, e na casa. Se a arte na- 157 Nos tempos em que na Europa os banquetes dos opulentos eram servidos em artisticas majolicas ou em baixellas cinzeladas por alguns dos mestres da Renascença, em Portugal estas alfaias eram devidas å industria dos orientaes, e esta preferencia ainda hoje dura. Póde-se pois dizer, ainda que a asserção tenha o seu sabor paradoxal, que a louça portu- gueza é a louça da China. Bem nossa é ella, e se o patriotismo póde des- culpar a exagerada estima de objectos de pouca importancia e nenhum valor artistico, justificadissi- ma estava a numerosa collecção da sala E, se eu podesse concordar em que o merecimento dos ob- jectos n’ella reunidos, não basta para o fazer. Se é justificado o orgulho do povo que se honra por con- tar entre os seus filhos um Raphael ou um Cellini, não o é menos o d'aquelle que conta entre os seus maiores um Gama ou um Albuquerque. Os frescos do Vaticano, as taças ou os punhaes que restam do grande cinzelador recordam ao italiano o seculo de Leão x, recordam-lhe que o talento dos artistas da sua patria os habilitou a tratar como de egual para egual com as testas coroadas, e fez da Italia a pa- tria das artes; as colchas e os contadores da India, a louça da China e do Japão lembram em quasi to- das as casas portuguezas, que a audacia, o talento, á tenacidade dos nossos navegadores patentearam å Europa mais de meio mundo; pois ainda que a maior parte dos objectos que hoje se conservam em Portugal estejam longe de datar da época gloriosa em que os galeões das quinas davam a lei d'aqui até as mais remotas ilhas do extremo oriente, e se. jam devidos a importações recentes, a ignorancia dos seus possuidores consente-lhes poder attribuil-os ao quinhão que pertenceu a algum capitão illustre nos 159 ramente assassinados e perdendo casas e haveres no incendio que destruiu a poroação, foram em 1549 fundar novo estabelecimento en Chin-Chéo, estabelecimento que teve a sorte do primeiro. Não descorçoando, em 1557 tomavamos pé em Macáo, que lá está ha mais de tres seculos resistindo por todos os meios ás repetidas tentativas que contra ella se tem dirigido. D’alli, d'aquelle ilhéo arido e isolado, veiu para à Europa a porcelana chineza, e mal foi conhe- cida mereceu a preferencia sobre todos os produ- ctos similhantes, predilecção que ainda hoje dura. Imital-a foi desde logo a constante preoccupação de industriaes, artistas e sabios, e já vimos o que os fabricantes de faiança conseguirão n'este genero, mas só perto de duzentos annos depois é que a des- coberta de jazigos de kaolin, materia prima indis- pensavel, veiu habilitar a Europa a iniciar um fa- brico, que se por alguns lados é superior ao da China, por outros nunca se lhe equiparou. Merecem as porcelanas orientaes a procura que teem, ou, pelo contrario, são dignas do desprezo que alguns (poucos) censores mal humorados lhe tri- butam? A constancia dos amadores já de ha muito respondeu a esta pergunta. Accusam a arte chineza de ser uma arte de con- venção, indigna de tal nome, alheia completamente ao estudo da natureza, para que a arte europea se dirige cada vez mais, accusam-n'a de uma rotina inveterada que lhe faz reproduzir hoje os modelos que reproduzia ha tres seculos. De certo que quem quizer achar nos artefactos chinezes os primores da arte europea facil lhe serà affirmar que está bem longe de ter conseguido resultados eguaes, mas quem de boa fé procurar n'elles o unico resultado em - 160 qne puzeram a mira, o effeito decorativo, ha de dizer que ninguem ainda os egualou. O que ha nos mais estimados productos da industria europea capaz de alegrar e ornar uma casa como as talhas da China dos srs. condes de Porto Covo, que estão expostas com os n.ºs 107, 108 e 109, ou como os tanques dos duques de Palmella e do sr. visconde de Daupias, que teem os n.os 110, e 111, ou ainda como os enormes pratos que os mesmos duques expozèram com os n.ºs 112, 113, 114 e 118? Que brilho nos esmaltes, que vigor no colorido, que opulencia na ornamentação. São estas qualidades para desprezar só porque outras lhes faltam? Os preços por que os mercados de Paris e Londres pagam similhantes ob- jectos são a resposta á pergunta. Se taes objectos não tinham logar n'uma exposição de arte ornamen- tal, e por os ter admittido merece censura a com- missão, porque será que em todas as exposições retrospectivas, que ultimamente se teem realisado em França, talhas eguaes, que pertenceram a uma casa fidalga de Portugal e hoje são de M. André, teem sempre figurado ? Emquanto á accusação de faltar o realismo aos artefactos chinezes parece-me injusta. Em primeiro logar não é com os nossos olhos europeus que po- demos decretar que as figuras que a nós nos pare- cem convencionaes, que as paizagens que se nos figuram de phantasia, não são, pelo contrario, ver- dadeiros retratos, verdadeiras vistas, quando vemos que elles sabem reproduzir flores (essas conhece- mol-as nós) que parecem colhidas de fresco nos nos- sos jardins, quando, sobretudo, em alguns objectos excepcionaes a imitação da natureza é servil, e vê-se que foi procurada. Hesitaria por acaso o esculptor Mène em pôr a sua assignatura nos grous ou nas 162 umas certas regras empiricas, transmittidas de paes para filhos, chamavamos Japão a um certo numero de typos determinados. Eu partilho da ignorancia geral e, não tendo nunca pensado em estudar o as- sumpto, quando comecei o catalogo tudo me servia de embaraço. Lancei mão do livro de Jacquemart e sem hesitar adoptei a sua classificação e terminologia visto que entre nós a não havia. A classificação do illustrado tratadista está longe de satisfazer a ignorantes, como eu, que querem sempre tocar com o dedo para se convencerem, As bases em que se funda nem sempre são verdadeiras, os caracteristicos ado- ptados nem sempre pertencem exclusivamente ao genero a que elle os attribue. Por exemplo: a fa- milia chrysanthemo peoniana é determinada sobre tudo por predominar na sua ornamentação a peonia e a chrysanthema, ora ha porcelana, que por forma alguma se pode classificar n’este genero mas em que estas flores constituem às vezes o unico orna- mento. Como ha de o inexperiente evitar erros gros- seiros ? Mais: ao ler o que elle escreve sobre a porcelana japoneza a impressão que fica no espirito é que tudo ou quasi tudo o que nós até hoje considerava- mos da China, as jarras pintadas com personagens, a louça chamada da India, de flores varias, as imi. tações de porcelanas européas, etc., tudo é japonez. Contra similhante asserção protestam os factos e protestam os proprios livros chinezes. Para a acre- ditar seria necessario admittir que tendo os portu- guezes relações seguidas e directas com a China por via de Macáo, tendo à sua disposição para lhes acceitarem as encommendas as numerosas fabricas da provincia de Cantão, não tendo, pelo contrario, I 163 com o Japão senão relações eventuaes em que pre- dominava o interesse religioso, relações que os abusos da Companhia de Jesus fizeram em breve cessar, preferiram desprezar a porcelana chineza para ir fornecer-se ao Japão. É inadmissivel. De mais na época em que veio para Portugal a maior parte da porcelana que hoje cá existe, e de que tanta pertence aos typos por elle classificados como do Japão, já de ha muito o nosso commercio com aquelle imperio tinha cessado completamente, e de Macáo provinha toda a porcelana importada. Da his- toria da porcelana chineza de Tching-Thing-Kouer, traduzida por Stanislas Julien, se vê que as imita- ções de porcelanas europeas e, o que é mais, a re- producção na porcelana de desenhos europeus de longe datam, e até parece um ponto assente que os cobres esmaltados foram na China inspiradus por esmaltes francezes. O erro de Jacquemart provém de certo de ter elle visto unicamente uma das faces da medalha; tinha debaixo das vistas o grande numero de por- celana importada pelos hollandezes, sabia que estes, ao contrario dos portuguezes, no Japão tinham tido as principaes feitorias, e tinham sabido, abstendo-se de propaganda, conservar por muito tempo as boas graças dos poderosos da terra, concluiu que ao Japão pertencia aquelle genero de fabricação; se em vez d'isto tivesse escripto em Portugal cahia de certo no erro contrario. A verdade é que se torna summamente difficil descriminar os productos japonezes dos chinezes e vice-versa, exceptuando alguns typos bem conheci- dos que pela côr e pelas formas se não podem con- fundir. Quando eu era ainda mais ignorante do que sou hoje decidia de cadeira o que era do Japão e o 164 que era da China; comecei a abrir os olhos e logo a perplexidade do meu espirito foi grande; não me atrevia a classificar o mais insignificante objecto. O general japonez, que ha pouco visitou Lisboa, foi quem veiu socegar os meus escrupulos. Soube pelo interprete que s. ex. era grande ama- dor e entendedor; não me fiando só na informação, mostrei-lhe varios objectos que eu sabia bem o que eram, e em todos achei a sua opinião conforme com a dos que eu considero verdadeiros entendedores e com a dos livros; contei-lhe então as minhas du- vidas : « Não me admira, me respondeu elle, os maiores entendedores do Japão não podem affirmar que um objecto é japonez ou chinez por maiores que sejam as probabilidades, porque os chinezes imitáram as porcelanas japonezas e os japonezes as d'elles, e as imitações são perfeitas.» Desde esse momento soceguei, porque tinha encontrado uma regra para me guiar; é a seguinte: - Em Portugal toda a loiça é chineza emquanto não estiver pro- vado até á evidencia que é do Japão. Os hollande- zes que sigam a inversa, e é provavel que ninguem se engane. Apezar d'isto são tão fortes os preconceitos adqui- ridos na infancia, tem para nós tanta força uma ra- zão que o não é, o: sempre ouvi, tão portuguez, que apezar de prevenido estou desconfiado de que fiz no catalogo confusões deploraveis. De algumas já te- nho a certeza. Por exemplo: classifiquei como do Japão os barros descriptos com os n.° 324, 335 e 336; classifiquei-os assim apezar dos carimbos chi- nezes que lhe via no fundo, porque desde creança ouvira sempre que barros d'aquelle genero eram ja- ponezes; descrevi-os n'essa fé e mandei o catalogo para a imprensa. 166 114, d'aque já menelém dos pratos do sr. D. Fernando de Sousa, que tem o n.° 165. De porcelana azul antiquissima, com seus, per- sonagens tão differentes dos que os chinezes hoje piotam, é a cabaça do sr. Sampaio, que tem o n.º 170 e a data de 1522 a 1566. Da familia verde além dos pratos dos duques de Palmella que já mencionei e que tem os n.os 113 e 414, é um bom specimen o par de vasos do sr. Sampaio, que tem o n.º 171. De mandarins a jarra do sr. visconde de Dau- pias n.° 140, e a que tem o n.° 144, do sr. Eduardo Van Zeller, d'um typo differente e que mal se pode classificar n’esta familia; ainda as jarras do sr. An- tonio Maria Fidé que tem o n.° 242, e sobretudo as chavenas do sr. Francisco Ribeiro da Cunha que tem o n.° 272 e que recommendo aos amadores como joias preciosas, pois a delicadeza com que es- tão pintadas não se excede. Da familia chamada rosa a talha dos duques de Palmella n.° 293 e o prato do sr. Macedo Braga que tem o n.° 217. Dos differentes typos de porcelana chamado da India tão variados, além das talhas dos condes de Porto Covo, que já mencionei, dos tanques dos du- ques de Palmella e das talhas dos mesmos senhores que tem o n.° 106, é um verdadeiro objecto de mu- seu a talha do sr. visconde de Daupias que tem o n.° 146. Ainda difficil de classificar, talvez chrysanthemo peoniana, a jarra do sr. Eduardo Van Zeller que tem o n.° 147 e que é digna de menção. Como producto de influencia da arte europea na industria chineza nada na sala E se pode comparar ás terrinas da sr.a condessa de Ficalho, descriptas com o n.° 196; a elegancia de fórmas que os ou- 167 rives francezes sabiam dar aos seus trabalhos, junta ao esplendor e brilho incomparavel dos esmaltes chinezes. Páro aqui; proseguir seria repetir o catalogo; pois o que procurei na escolha dos objectos foi que na collecção se encontrassem todos os typos das porcelanas chinezas, evitando as repetições; julgo tel-o conseguido. Do Japão só mencionarei quatro objectos. As ta- lhas dos duques de Palmella, que teem o n.° 303, pois não tenho noticia da existencia de outras, e não são menos bellas do que raras; as que teem o n.° 304, de forma pouco vulgar e antiguidade incon- testavel; as jarras do sr. Osborne Sampaio, speci- mens raros, eguaes a uma pertencente ao barão Gus- tavo Rotschild, que mereceu ser reproduzida por Jacquemart na sua historia da ceramica; finalmente o milhafre do sr. D. Duarte Manuel, exposto com o n.° 319, e que bem prova que os artistas japonezes quando querem sabem tão bem como outros quaes- quer copiar a natureza. Alongado de mais vae este trabalho, e para ser completo ainda me falta lançar uma rapida vista de olhos pelos numerosos specimens de porcelanas eu- ropeas. Abbreviarei o mais que poder. No seculo passado Portugal, apezar do amor que tinha ás suas porcelanas orientaes, não pôde esca- par ao gosto que em toda a Europa se desenvolveu pelas graciosas porcelanas de fabricação recente. Para cá vieram numerosos productos de Vincennes e Sèvres, e da pleiade de fabricas que em França se fundáram em torno d'esta, e sobretudo de Saxe e dos mais pontos da Allemanha. Os serviços de Meissen ou de Sèvres, os surtouts de figurinhas, de biscuit faziam no seculo xyili parte obrigada da mo- deros de fabre sobres servichas de 168 bilia das casas fidalgas, e por isso tinham direito a um logar nas salas da Exposição; dava-lh’o tambem o seu valor artistico, só contestado pelos mais ob- cecados. Confesso que me encantam muito mais a graça e delicadeza com que os artistas de Meissen modela- ram as suas figurinhas, a riqueza das cores com que sonhavam decoral-as, qualidades que as tornam o mais elegante ornato de um toucador ou de uma sala de senhora, unica ambição que teem, do que a ingenuidade dos toscos oleiros que no seculo xv ou XVI pintavam burros que não são burros mas que o queriam ser porque teem orelhas de burro; para admirar artistas tanto ou mais ingenuos escuso de remontar a épocas tão remotas, tenho-os ahi a cada passo illustrando os muros da cidade e assi- gnando com — Cecilio — as suas obras, ou vou aprecial-os á feira de Belem nos bonecos em que os olhos são pontos e os narizes são traços. Procurei que na sala E todos os paizes, todas as fabricas estivessem representadas, e d'algumas con- segui obter specimens verdadeiramente notaveis. Rapidamente mencionarei o que de todas me parece melhor. De Vincennes, origem da fabrica de Sèvres, o estabelecimento ceramico mais notavel do mundo, os, dois potes de pasta molle que o sr. Osborne Sampaio expoz com o n.° 337. De Sèvres os cheiradores (pots-pourris) do mesmo senhor que tem o n.° 342, notaveis pela cor e oiro, e ainda os n.ºs 344 e 345 da mesma collecção. Gra- ciosas quanto possivel as estatuetas do sr. Francisco Ribeiro da Cunha que tem o n.º 356. De Niederviller, da época em que o conde de Custine adquiriu a fabrica, o grupo de biscuit re- 170 De Vienna d'Austria a collecção de chavenas dos mesmos duques que tem os n.os 476 a 483. Das fabricas inglezas o prato de Wedgwood que tem o n.° 491 é o mais notavel specimen que tenho visto d’um genero que nunca ninguem excedeu. A collecção de biscuits do sr. Antonio Maria Fidié des- cripta com os n.°8 507 a 512, e que julguei poder classificar como de origem ingleza, attendendo ao typo dos personagens, é no seu genero das mais notaveis. De Capo di Monti são dignos de nota a preciosa tigella branca do sr. Antonio Maria Fidié (n.° 519) e sobre tudo o grupo do sr. Ribeiro da Cunha (n.° 517). Finalmente da fabrica hespanhola do Buen Retiro egualam as mais apreciadas figurinhas de Saxe os n.os 527 a 530 e são d’uma graça e elegancia inex- cedivel as figuras do grupo exposto pela sr. con- dessa de Ficalho com o n.° 535. Cumpri as ordens de v. Ahi estão consignadas as minhas impressões pessoaes sobre a collecção da sala E. Nada valem porque me falta sciencia e auctoridade. Resta-me a consolação de poder di- zer que a publicação d'ellas não é devida a pre- sumpção minha, mas á bondade de v. que me quer collocar em logar que não mereço, XI A sala E (continuação) Cinco vitrines da sala E contêm a maior parte dos codices que concorreram á exposição, tanto de Hespanha como de Portugal. A superioridade da collecção hespanhola está no valor archeologico de alguns exemplares; a da col- lecção portugueza na perfeição artistica de muitos. Com effeito, em quanto o mais antigo dos nossos codices não passa além dos fins do seculo xii, um dos hespanhoes é ainda anterior ao seculo x, outros d'este seculo e do immediato. O que se reputa anterior ao seculo x é um cu- riosissimo Breviario mosarabe (193). O uso do offi- cio gothico ou mosarabe, cujá instituição se attribue a santo Isidoro, arcebispo de Sevilha, durou 'em Hespanha até ao tempo de Affonso vi. O rito mosa- rabe era muito mais simples que o gregoriano, não continha as ceremonias que de seculo a seculo se foram introduzindo nos officios divinos, e que este ultimo rito auctorisava e regulava. A missa mosarabe, similhante pois à dos primitivos chris- tãos, conservou-se, durante seculos, sem os succes- 172 sivos accrescentamentos que pouco a pouco se in- troduziram no ritual romano. O Breviario exposto, monumento interessante para a historia ecclesiastica da Peninsula, contem psal. mos, hymnos e canticos. A traducção dos psalmos, attribuida a Santo Isidoro, differe das versões co- nhecidas. A letra wisigothica mosarabe tem um ca- racter particular. A alteração do romano é muito maior que n'outros codices contemporaneos; pre- dominam as formas curvas, o que tudo faz mais difficil aqui a leitura que n'outros manuscriptos da mesma epoca. As letras que se lêem melhor são as versaes das epigraphes, porque não são tão profun- damente alteradas como o cursivo. As letras capitaes, coloridas, de caracter disforme e phantastico, representam ás vezes cabeças huma- nas, aves ou peixes; outras vezes ornatos com fór. mas menos definidas. Muitas d’estas illuminuras fa- zem lembrar os ensaios de pintura das creanças. Os psalmos ou hymnos começam por neumas de musica. Este codice, em pergaminho in-fol. está muito deteriorado pelo grande uso que teve. Eis aqui outro monumento da antiga paleographia hespanhola. É a obra de S. Gregorio Magno, Mo- ralia in Job, em pergaminho, in-fol. maximo. Cal. ligraphicamente considerado, este codice já não differe, tanto como o anterior, dos outros contem- poraneos. A letra, com ser wisigothica, é muito mais regular, e por tanto muito mais legivel; as versaes das epigraphes mais correctas e perfeitas. A seguinte nota, lançada n'uma das ultimas fo- lhas dá a epoca e o nome do auctor d'esta copia: Explicit liber moralium Gregori romensis pape. Era DCCCCLXIII in idus aprilis. Vita pasce hora prima deo gratias. Regnanti rege raneniro et comite fre- 173 denando, nec non et basilio episcopo. Uma nota fi- nal declara o nome do scriba Florencio. No archivo da egreja de Santo Isidoro de Leão, conserva-se uma Biblia da mesma epoca, muito si- milhante na letra e na ornamentação, porém de outro copista, como se lè n'uma de suas paginas : Conscriptus est hic codex à notario Sanctione pres- bytero xiii Kal. julias. Era DCCCCLXVIII obtinente glo. rioso ac serenissimo regni consulque ejus Fredinando Gundisalvis egregium comes in Castella comitatum gerenti. Uma pagina d'este codice de Santo Isidoro de Leão é illuminada. Consiste a ornamentação n'um grande arco, e n'elle outros quatro inclusos, todos de volta de ferradura, fustes e capiteis das colum- nas tambem arabes, e os quatro evangelistas com as formas dos animaes emblematicos.' Ha em Hespanha, na bibliotheca do Escurial ou- tro codice, tambem do seculo x, porém mais orna- mentado e em maior perfeição. Representa uma das suas estampas nove figuras em tres series: as tres primeiras são de Chindasvinto, Kecesvinto e Egica; as tres segundas de Urraca, Sancho e Ra- miro; as tres ultimas, finalmente, de Sarracenus Socius, Vigila Scriba e Garsea Discipulus. Taes fo- ram os tres que illuminaram e copiaram o codice aheldense, e que, do alto da realeza da arte, não hesitaram em emparelhar-se na mesma estampa com os proprios monarchas. ? O seculo xi está representado na collecção pelo Liber Evangeliorum (195), ms. em pergaminho, in- fol. menor, com illuminuras douradas e coloridas. : Museu español de antiguedades, tom. 9, pag. 521. 2 Idem, tom. III, pag. 509. 174 Na maior parte d'estas illuminuras predomina a côr verde. As figuras, muitas das quaes são coroadas ou mitradas, estão assentadas em cadeiras gothi- cas de varias formas. O desenho é muito incorre- cto. A Biblia, que fazia parte da livraria da egreja d'Avila (196), com ser já do seculo xii, assemelha-se ainda muito, na letra, na ornamentação e até nas dimensões aos codices do seculo X. A illuminura da primeira folha representa a arca de Noé com um desenho incorrectissimo. Em cada face da arca ha tres series de janellas, que não deixam quasi es- paços entre si, occupadas por figuras humanas ou de animaes. Por baixo da arca um medalhão repre- senta Noé e seus tres filhos; ao lado o mesmo pa- triarcha sacrificando n'um altar. As tarjas coloridas são ornadas ao modo arabe, estylo predominante nas illuminuras de todos os codices citados dos se- culos X, XI e XII. Bem como no codice de Santo Isidoro de Leão, os evangelistas foram representados na Biblia de Avila a fol. 327 com as formas dos animaes emble- maticos. As illuminuras d'este codice conservam as côres tão vivas que parece terem sido ha poucos dias applicadas sobre o pergaminho. O Ordenamiento de Alcalá, collecção de leis pro- mulgadas em Alcalá de Henares por D. Affonso IX, tem a primeira folha illuminada com o sello d'el-rei D. Pedro. É este um d'aquelles bellos sellos roda- dos, em cuja execução tanto se esmeravam alguns dos illuminadores de Castella, e que se encontram em muitos codices e documentos antigos d'este paiz. No centro estão pintadas as armas reaes; à roda em bellos caracteres gothicos floridos : SEGNO DEL- REY DON PEDRO. Mais fóra em gothico redondo, mas 175 liso; + DON NUNO SENHOR DE VISCAYA ALFEREZ MAYOR DEL-REY CONFIRMA. DON FERNANDO DE CASTRO MAYORDOMO MAYOR DEL-REY CONFIRMA. O codice con- clue com a seguinte nota em caracteres similhantes aos ultimos : YO NICOLAS GONCALEZ ESCRIVANO DEL- REY LO ESCRIVI Y ILLUMINE. - Este codice fazia parte da bibliotheca particular do prelado D. Pedro Te- norio, por elle doada á egreja de Toledo pelos an- nos de 1380. Parece d'este mesmo seculo a Biblia casielnana, exposta com os livros portuguezes, por pertencer å bibliotheca publica de Evora (26). A letra é mais imperfeita que a do Ordenamiento d’Alcalá; as il- luminuras que representam figuras humanas deno- tam egualmente um atrazo maior da arte ou antes do artista. Os desenhos lineares de estylo arabe das letras capitaes é que mais se assemelham aos d'aquelle codice. Muitas das illuminuras não chega- ram a ser feitas ou concluidas. Para umas ficaram os espaços em branco por varios logares; para ou- tras o illuminador fez apenas os esboços. Os dese- nhos são tão incorrectos e tão grosso o colorido que, se não fora a forma de letra, facilmente se attribuiria este codice ao seculo xii OU XIII. É o segundo tomo de La grande y general histo- ria do rei de Castella D. Affonso, o Sabio. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivára, sendo bibliothecario da bibliotheca publica de Evora, deu-se ao trabalho de cotejar minuciosamente este codice com as descri- pções que os bibliographos hespanhoes fazem do tomo segundo da General Historia, e achou muitas e notaveis variantes que fazem do codice eborense 1 Este codice deve ter sido escripto e illuminado de 1350 a 1359. Póde ver-se outro similbante de 1360 no Mus. es. pan. de antiguedades, tom. v, pag. 217. os Generia fazem 177 imento de monjina immedia: serve à larga tarja de ramagens, aves e outros ornatos, illuminados a cores e ouro, serve de moldura ao quadro. Na pagina immediata, no meio de um fra- gmento de moldura similhante, está pintado o escudo da casa Estuñiga. O Missal antigo de Toledo (205) é ainda em le- tra gothica; as tarjas e letras capitaes decoradas no estylo arabe, e a capa ornada n’este mesmo estylo. As illuminuras, que representam o Presepio e a Céa, são de estylo hespanhol com reminiscencias arabes e flamengas. Não é menos curiosa que as illuminu- ras a encadernação mosarabe toledana, da mesma época. Diz-se que pelo cardeal Lorenzana fôra adqui- rido este missal em Roma, em 1798, e depois doado å egreja de Toledo. Todavia ninguem pode duvidar de que foi escripto, illuminado e encadernado em Hespanha. De outro missal de Toledo, denominado o Missal rico, veiu á exposição o volume 6.° É tambem de letra gothica, porém nas grandes tarjas e nas letras capitaes illuminadas apparecem já claras influencias da Renascença. Algumas das tarjas são ornadas de bustos, um dos quaes é o do papa Leão .. N'este volume, e diz-se que tambem no setimo, vêem-se em todas as portadas e n'algumas das tar- jas as armas dos Cisneros. Começou a escrever o missal rico de Toledo Gon- çalo de Cordova em 1503. Illuminaram-no o clerigo Affonso Ximenes, Bernardino Carderroa e Fr. Filippe, segundo consta dos livros da contadoria que se con- servam na obra e fabrica da egreja de Toledo. N'algumas das tarjas do sexto volume lêem-se as datas de 1516 e 1517. Foi dedicada esta obra ao Cardeal Ximenes de Cisneros, arcebispo de Toledo. Figuram na secção hespaphola dois livros de Ho. jas começourdova epernarding a contadoria de 12 178 ras, ambos do seculo xvi. O mais antigo e de mais preço contém vinte e tres illuminuras de pagina inteira, letras capitaes e tarjas a cores e ouro. Al- gumas das letras capitaes são ornadas com miniatu- ras delicadissimas perfeitamente coloridas. As mi- niaturas e as tarjas e letras illuminadas são do mesmo estylo que as de alguns livros congeneres da collecção portugueza (36, 11 e 14). O catalogo manuscripto dos codices da secção hespanhola diz ter pertencido «à illustre senhora D. Leonor de la Vegan e que fora dado em Roma ao embaixador Garcia Laso, enviado de Bruxellas como capellão da archiduqueza Joanna d'Austria. A deputação provincial de Barcelona enviou á ex- posição uma collecção interessantissima de sete co- dices com os desenhos originaes das joias e obras de ourivesaria fabricadas pelos artistas da Catalu- nha no periodo de tres seculos e meio. Com os exemplares da Bibliotheca Nacional de Madrid está exposto um d'estes codices. A maior parte dos de- senhos teem os nomes dos ourives, e alguns as na- turalidades. Seria extremamente interessante a his- toria authentica e illustrada da ourivesaria catalã, extraida d'esta collecção de documentos. Não me consta que em nenhuma outra cidade da peninsula se conserve outra similhante collecção. Esta mina foi explorada pelo sr. barão Ch. Davil- lier para as suas Recherches sur l'orfèvrerie en Es- pagne, livro em que se encontram não somente a noticia dos codices de Barcelona, mas tambem mui- tos nomes de ourives e fac-similes dos seus dese- nhos. O outro livro de Horas (223) não pertence á Bi- bliotheca Nacional, mas ao sr. D. Marcial Lorves de Aragon, de Sadava, Saragoça. A maior parte 180 da época. Os trajos reduzem-se a compridas vestes cingidas ao corpo. Um leito curioso, não obstante faltar-lhe toda a perspectiva, uma scena campestre representando a vindima, a ceifa e um lagar; eis o que se pode colher das sessenta e tantas illuminuras do codice. Ainda assim, em attenção aos poucos monumentos que restam de tão remota época, a observação de A. Herculano é inteiramente exacta. O codice * 48 da sala A é um Novo Testamento em pergaminho in fol., escripto no seculo xil OU XIII, e de pequeno interesse artistico, pelo que respeita ás illuminuras. Todo o seu merito, que é grande, está na encadernação de prata com douraduras, feita no seculo siv. Uma das faces é adornada com a imagem de Christo crucificado entre as de Nossa Senhora e de S. João. Na parte superior dois anjos incensam com thuribulos. A inscripção seguinte, em allemão mi- nusculo do seculo XIV, cobre a moldura: YHVS AVTEM TRASIENS PER MEDEO YLOROM IBAT AVE MARIA GRATIA PLENA DOMINUS TECON. Na outra face vê-se tambem a imagem de Christo, porém aqui sentado n'uma cadeira com a forma de dois leões, abençoando com a mão direita e segu- rando um livro na esquerda. Uma cercadura de ra- magens adorna a moldura d'esta face. Quatro broxas ou cabuchões, pregados nos quatro angulos de cada face, defendem dos choques e attritos as partes re- levadas. Pertence este codice á sé de Vizeu. Merece particular attenção uma Biblia hebraica exposta pela Bibliotheca Nacional de Lisboa. E das collecções hespanhola e portugueza o unico exem- plar illuminado no estylo arabe, propriamente dito, isto é, no seu estado de pureza e de maior perfeição. Em muitas folhas, no principio e no fim do livro, 181 o texto, distribuido por uma, duas, ou quatro co- lumnas é contido em portadas coloridas de formas e côres variadissimas. Alguns dos arcos tem a forma da ogiva pouco elegante, anterior a 1300, outros são de volta re- donda, outros de volta de ferradura, outros quin- quilobados, outros finalmente á maneira de mitra. Algumas vezes a forma de portico é substituida pela de moldura, exteriormente quadrangular, e in- teriormente curvilinea, sendo a curva formada por seis segmentos de circulo. As cores, a ornamenta- ção dos arcos e columnas, sobre tudo os ornatos geometricos, perfeitamente arabes, dão a este exem- plar um interesse grande, pela raridade dos livros assim illuminados. Collado a uma folha está um pa- pel com a traducção ein latim do texto em frente, da qual consta que um certo Samuel escrevera os vinte e quatro livros do codice nos annos de 1299 e 1300. São numerosos os codices do seculo xv attribui- veis pela maior parte ás industrias francezas e ita- lianas. Eis aqui na sala A um dos mais notaveis. É a historia das antiguidades judaicas de Flavio Josepho, escripta em francez em pergaminho in-fol. (* 59). Comprehende vinte e sete livros, sendo a columna em que cada um começa, guarnecida por uma grande e bella tarja a côres e ouro, represen- tando ramagens, flores, aves, etc. Por cima da epi- graphe de cada capitulo uma estampa representa algum dos seus assumptos, geralmente uma batalha. Muitas letras capitaes e iniciaes são tambem illumi- nadas. Todas as grandes illuminuras que precedem os capitulos são muito finas e muito bem coloridas. A architectura das cidades, edificios e fortalezas do es- 182 tylo ogival : os costumes da mesma época. A illu- minura do cap. xxvi representa a cidade de Jeru- salem cercada pelos soldados de Tito, vestidos e armados como os do seculo xv. Um d'elles dispára contra a cidade uma bombarda cercada de anneis de ferro, como eram as primeiras que se empregá- ram, nos seculos xiv e xv, nos campos de batalha. Pertence actualmente este bello codice ao sr. mar- quez de Ficalho. Não ha n'elle, porém, nenhuma carta ou signal que nos indique o nome do auctor e a sua procedencia. 0 codice 22 da sala G, exposto por sua mages- tade el-rei o senhor D. Luiz, é da mesma época, escripto egualmente em francez, e ornado com uma portada do mesmo estylo. É um tratado de hygiene e de medicina de Allebrand, escripto em pergami- nho, in-fol. pequeno. Na ultima folha foi lançada a nota seguinte em letra da mesma época, porém, se- gundo parece, de mão differente : CEST LA LIURE QUE FU FAIT ET COMPILE PAR MAISTRE ALLEBRAND DE FLO- RENCE A LA REQUESTE DE LA COMTESSE DE PROVENCE QUI ESTOIT MERE DE LA ROYNE DE FFRANCE DE LA ROYNE DALMAYN DE LA ROYNE DANGLETERRE DE LA CONTESSE DANJOU ET FUST COMPILE EN LÃN MIL CCCLBJ. Esta data deve referir-se ao livro original e não á copia, feita de certo alguns cem annos depois. A portada do livro contém uma illuminura re- presentando a Creação do Mundo; em baixo, no meio da tarja, um escudo esquartellado. O desenho e colorido d’esta estampa são no mesmo estylo que os do codice de que anteriormente fallei. Porém n'esta copia de Allebrand o que ha sobretudo e excepcionalmente notavel são as innumeraveis il- luminuras, feitas a côres e oiro, das letras ca- pitaes. Cada uma, de grandes dimensões, repre- 183 senta o assumpto do capitulo a que dá principio. O cap. i trata do ar. Começa, pois, por uma le- tra illuminada representando este elemento; isto é, uma planicie, e por cima o céo azulado, onde se movem algumas aves e nuvens; exactamente como nos nossos modernos livros de meteorologia, onde se representam os meteoros atmosphericos. As CÔ- res são vivas e os desenhos finissimos. O segundo trata Du mengier (Du manger). A letra capital representa um homeni sentado a uma mesa, comendo. A do terceiro, que trata das bebidas, re- presenta uma mulher dando de beber a um homem; a do quarto um lagar de vinho; a do quinto uma mulher recostada, dormindo; a do sexto um banho; o setimo, que fem por epigraphe De aller á femme, um homem abraçando uma mulher, junto de um leito. As outras representam a sangria, a applica- ção de ventosas, a applicação de sanguesugas, o ef- feito de um emetico, o medico aconselhando o modo de preservar da peste; o sol e o zodiaco, a propo- sito da insolação; uma cidade, a proposito da esco- lha de logar para habitação; um navio e um vian- dante, a proposito das jornadas por mar e por terra; homem cortando uma peça de panno, a proposito da hygiene das edades; duas figuras com grandes barretes, a proposito da hygiene do cabello; um me- dico dando instrucções a outra pessoa sobre a hy- giene dos olhos. Seguem-se mais umas cento e trinta illuminuras do mesmo genero, representando assum- ptos da vida domestica, da vida rural, animaes, plan- tas, etc. Para o seculo xv era uma obra illustrada immensamente superior aquellas que a gravura em madeira e a chromolithographia modernamente en- riquecem com as suas maravilhas. A maior parte 184 das illuminuras são do mesmo pincel; algumas, pou- cas, muito mais imperfeitas denunciam mão menos habil. Pertenceu este codice å bibliotheca da Con- gregação do Oratorio de casa de Nossa Senhora das Necessidades. O livro de Horas d'el-rei D. Duarte, com estam- pas, grandes tarjas, letras capitaes e versaes a cô- res e oiro, é profusamente illuminado no estylo dos codices d'esta mesma época. As illuminuras, porem, não são tão finas e perfeitas. Na pagina em que principia o officio da Virgem foi lançada a seguinte nota de letra gothica : ILLUS- TRISSIMI PRINCIPIS EDUARDI JOHANIS PORTUGALIE ET ALGARBIS REGIS SERENISSIMI CEPTEQUE DOMINI FILII PRIMOGENITI. A letra capital d'esta mesma pagina contém o escudo das armas reaes portuguezas, com o banco de pinchar pintado de cor branca e as flo- res de liz. No fim foram accrescentadas algumas ora- ções tambem de letra gothica, mas differentes, or- nadas com illuminuras de outro pincel. A primeira estampa representa Santa Catharina com a corôa real, e com a palma e a roda do martyrio. Tem illuminuras e letras do mesmo genero as Horas do Seminario Episcopal de Faro (4). Na capa conserva-se a seguinte nota de letra cursiva moderna de impressão: Do Bispo Inquisidor Geral D. José Maria de Mello. Da bibliotheca do mosteiro de Mafra veiu uma collecção de nove livros de Horas, psalmos, officios e outras orações, uns in-8.', outros in-4.° pequeno, todos em pergaminho, e na sua maior parte de le- tra similhante à dos codices anteriores, e com illu. minuras do mesmo genero, em geral mais imper- feitas. Somente dois foram expostos (29 e 32). N’um d'elles, no verso da primeira folha, lê-se : 186 suas differentes gradações. A ornamentação é de- licadissima, as figuras em posições phantasticas ou exaggeradas são sempre muito graciosas e elegan- tes. Muitas lutam entre si ou com animaes, n'aquelle genero tão querido dos artistas da Renascença. O que mais admiração causa n’esta obra notavel é a sobriedade das cores e a profusão e variedade das miniaturas, algumas das quaes para se verem nitidamente exigem o auxilio da lente. Foi provavel- mente pintado por Antonio de Hollanda, pois d'elle escreveu seu filho, Francisco de Hollanda, que fora quem primeiro fizera conhecida en Portugal uma maneira suave de pintar em negro e branco, supe- rior a todos os processos conhecidos nos outros pai- zes do mundo. Encontram-se n'um codice da Bibliotheca Nacio- nal de Lisboa, que contém parte das chronicas de Eusebio, escriptas em lingua hespanhola, tarjas illu- minadas no mesmo estylo; fundo branco, ramagens de côr negra, nas varias gradações d'esta côr, e de oiro. Este codice é do seculo xv, mas os ornatos são menos delicados, e as figuras de anjos n'um estylo que no seculo xvi, em geral, caira já em desuso. As tarjas representando flores e borboletas, em fundos doirados ou coloridos, caracterisam outro grupo de livros de Horas, em que se encontram conjuntamente outros signaes que denunciam já me- lhor o seculo xvi. Eis aqui entre os representantes d'este grupo um livrinho de Horas da bibliotheca de Evora (15), notavel por outras particularidades que não se encontram n'outros exemplares. Cada pagina do calendario está marcada com o signo respectivo na forma de uma pequena moeda doirada. Estas miniaturas, bem como as das letras capitaes, são delicadissimas. N’estas ultimas o pintor tambem não · 187 empregou mais que as cores branca e negra nas suas varias gradações. As tarjas ora são de flores, fructos e borboletas coloridas sobre fundos doira- dos, ora, mais raras vezes, representando aquelles objectos doirados sobre fundos coloridos. No officio dos mortos os fundos das tarjas são negros, e cra- neos e ossos accrescem aos outros ornatos. Duas notas da mesma letra em que foram escriptas as orações latinas, explicam em lingua franceza a ori- gem miraculosa de duas d'aquellas orações. As Horas da Bibliotheca Nacional (16) tem a maior similhança com as antecedentes nas estampas, tarjas, letras capitaes e versaes illuminadas. Parecem por- tanto attribuiveis tambem á industria franceza. As Horas do sr. conde de Mesquitella (17) tem algumas tarjas no genero d'aquellas que adornam os dois codices antecedentes. São porém muito mais ricas pelo numero, variedade e belleza das illumi- nuras. · Muitas estampas preenchem as paginas inteiras no reverso em frente do texto ficando o anverso em branco. A primeira representa n'uma portada do estylo da Renascença com ornatos ogivaes o brazão dos Costas. Depois segue-se o calendario. Cada mez tem uma estampa de pagina inteira representando um assumpto analogo. A do mez de janeiro repre- senta uma familia, parte da qual se aquece em frente de um fogão e outra parte prepara a cea sobre uma mesa. São lindissimos os effeitos da luz e o colorido d'este quadro todo flamengo. Em frente a tarja do calendario, de aguada de ouro, represen- ta ornatos architectonicos do estylo ogival, e da parte inferior contém tres miniaturas, representando o signo e assumptos respectivos ao mez. O calen- dario dos outros mezes é ornado com illuminuras 188 similhantes. Os assumptos das estampas de pagina inteira são tirados da vida rural; a ultima, de des zembro, representa a matança de um porco. São todos curiosissimos. Seguem-se os officios com muitas estampas de pagina inteira analogas ao assumpto de cada um d'elles. A primeira, que representa a prisão de Christo á luz de um grande facho, faz lembrar pelos magnificos effeitos de luz alguns dos quadros de Rembrandt. Outras paginas são adornadas com tarjas e miniaturas perfeitissimas a aguada de ouro. Em quatro estampas encontra-se em letra gothica a legenda : Ave Maria grative plena dominus tecum. Mas esta ultima palavra apparece sempre com a fórma tecom, bem como na encadernação do codice da Sé de Vizeu e n'outras obras francezas e fla- mengas. As casas e fortalezas das paizagens são do estylo flamengo. As pequenas Horas do sr. D. Duarte Manuel de Noronha (45) são illuminadas no mesmo estylo, po- rém com maior predominio dos ornatos da Renas. cença, misturados ainda com outros ogivaes. Sua magestade el-rei o sr. D. Fernando possue umas Horas illuminadas no estylo das que expoz o sr. conde de Mesquitella e attribuiveis á mesma época. Mas parece obra feita em Portugal, pois uma das estampas representa o enterro d'el-rei D. Manuel. Ao passo que n'estes codices illuminados na França e nas Flandres, ou por artistas francezes e flamengos, o estylo gothico se conserva ainda nos principios do seculo XVI, nas obras illuminadas na Italia, ainda no seculo XV, esse estylo desapparece inteiramente, substituido pelo da Renascença. A col- lecção portugueza contém dois exemplares magni- 189 ficos da arte italiana, ambos pertencentes ao Archivo da Torre do Tombo. É o primeiro uma copia das obras de Pedro Lom- bardo, arcebispo de Paris, denominado Magister Sententiarum, feita por um certo Jacob carmelita, por incumbencia d'el-rei D. João II, como se de- prehende da subscripção: Finit liber sententiarum feliciter. Anno incarnationis dominice Millesimo qua. dringētesimo nonagesimo quarto: idus decembris. Et Reliqua sua tota vita Se tibi portugallo regi Jacobus uere Carmelita Scriptor hujus comictit regi Et tua taniù stipe peroptat. Todo o verso da primeira folha, depois do prologo, é preenchido com uma bella portada a cores e ouro com medalhões representando os evangelistas e ou- tros santos. No quadro interior da tarja um portico de ordem corinthia, sustido por figuras de vulto in- teiro, com o indice dos livros contidos no volume. Em baixo as armas reaes de Portugal, encimadas pela cruz de Christo. Na pagina seguinte começa o primeiro livro, a cujas linhas de letras douradas serve de moldura uma grande tarja similhantemente illuminada. Na parte superior está representada a Trindade, e na inferior repete-se o escudo real. As primeiras paginas dos outros tres livros são illu- minadas no mesmo estylo, e n'ellas se repetem, tanto as armas reaes de Portugal, como a cruz de Christo. Da Biblia dos Jeronymos, em sete volumes, está esposto o segundo. A subscripção prova-nos que este volume foi escripto em 1495 por Alexandre Verzano. Tão pequenas são as differenças entre as 196 Pertence tambem á sr.a marqueza de Fronteira um broche de brilhantes, rubis e esmeraldas (22), imitando um portico de éstylo ogival. Era da infanta a sr.a D. Isabel Maria que o deu em presente de nupcias á sr. condessa da Torre, hoje marqueza de Fronteira. A medalha de ouro (40) mandou-a cunhar a Aca- demia Real das Sciencias de Lisboa para galardoar o serviço prestado por D. Maria Wanzeller no Porto, inoculando por suas proprias mãos a vaccina, antes que os medicos o fizessem por duvidarem da sua efficacia. Finalmente são dignos de attenção quatro baixo. relevos em marfim (6, 44, 05 e 69), pertencentes aos srs. duques de Palmella. Representam a Ascens são, a Assumpção, a Epiphania e o Presepio. . As salas P, Q e R são forradas de pannos de Arras dos seculos XVI, XyII e xviii. Procedem das Sés de Coimbra e de Lisboa, do Ministerio da Ma- rinha, da mitra episcopal de Lamego, do palacio real de Mafra, do convento de Jesus á Estrella, da mitra episcopal de Leiria e da casa do sr. marquez da Graciosa. Alguns estão marcados com os nomes de Dau- busson e de Leynier. Os de Mafra são attribuidos a Pedro Tavares que dizem ter vindo de Tavira para aquella villa. Um d'elles tem a palavra TAVIRA na parte inferior; e um tapete, as letras P TMR (Pedro Tavares, Mafra Real) 1816. Na pôpa de uma galera de um dos pannos do Ministerio da Marinha lê-se FORTUNA 1600. O es- tylo d'esta collecção assimelha-se ao de Daubus- son. · Dois modelos em madeira (1 e 19), ambos da Academia de Bellas Artes, ambos expostos na sala 197 . P, representam um o edificio do erario regio, de que se não fizeram mais que os alicerces, no sitio da Patriarchal Queimada, o outro a capella de S. João Baptista de S. Roque. Pertence tambem á Academia de Bellas Artes uma liteira com pinturas e douraduras, ornada de talha e interiormente forrada de damasco carmezim (23). É obra do seculo passado. Nas cocheiras da casa real em Belem, e nas de algumas mitras e ca. sas particulares das provincias conservam-se vehi- culos d'este mesmo estylo, que provam ter sido muito usados em Portugal. Eram de varias especies : coches, liteiras, cadeirinhas, etc. Está exposta na sala P uma obra notavel de es- ' tatuaria. É uma imagem de S. Jeronymo em barro. Ignora-se d'onde veiu para Belem, a cuja egreja pertence. Parece obra italiana, porém de época pos- terior á de Lucca della Robbia, a quem tem sido at- tribuida. Quem conhecer as obras d'este artista de- balde procurará no S. Jeronymo de Belem a uncção religiosa que elle dava ás figuras dos Santos. O S. Jeronymo é um velho, um mendigo, que parece modelado sobre o natural. Se não fosse a pedra que tem na mão em frente do peito, e o chapéo de cardeal, desprezado a um lado, ninguem se lembraria de lhe chamar S. Jeronymo, ou de lhe dar qualquer outro nome de calendario romano. E toda- via n’este exagerado realismo está o grande mere- cimento da estatua. É um velho de carne e osso transformado em barro. Aqui temos mais um exemplar de um genero tão numerosamente representado na exposição: uma cruz de pau santo com a imagem de Christo de marfim. Pertence aos srs. marquezes de Mon- falim e de Terena. 198 Tres estatuetas de pedra, procedentes da Batalha, representam a estatuaria do seculo xv que profu- samente povoou de outras similhantes os porticos d'aquelle edificio. Está exposta na sala P uma curiosa collecção de medidas de bronze dos reinados de D. Manuel, D. João e D. Sebastião, pertencentes a Acade- mia Real das Sciencias de Lisboa e á camara mu- nicipal de Coimbra. Perlence á sr.a condessa da Cunha um busto de marmore branco representando D. Luiz da Cunha, embaixador d'el-rei D. João V em varias côrtes. Dizem ter sido offerecido ao embaixador portuguez pela academia franceza. Parece-me, porém, duvi- doso o facto, não somente por se não saber a que titulo faria a academia franceza tamanha honra a um estrangeiro, mas tambem porque o busto tem a data de J. B. Xavery, 1737, esculptor, natural de Antuerpia, que trabalhou na Hollanda. Um baixo-relevo em marmore branco, da época romana, procede do mosteiro de Chellas, onde es- tava embutido n'uma parede do claustro. E obra infinitamente inferior ao sarcophago de marmore, achado em Reguengos, no Alemtejo, e que hoje se conserva no museu municipal do Porto. O sr. Casimiro Candido da Cunha expõe seis baixo-relevos em marmore branco, representando a Annunciação, a Visitação, a Epiphania, a Adora- ção dos pastores, a Circumcisão e a Fugida para o Egypto, procedentes de algum convento de Lisboa ou das proximidades. Todos estes baixo-relevos são da mesma época, segunda metade do seculo xv, e provavelmente do mesmo artista. O da Adoração dos pastores poderá, á primeira vista, parecer mais antigo, mas, reparando com attenção, desde logo 199 cessará toda a duvida. A extrema similhança das cabeças, e particularmente dos cabellos e barbas, n'uns e n'outros, o desenho das arvores n'este qua- dro e no da Visitação estão indicando uma mesma época, um mesmo estylo, se não um mesmo ar- tista. O estylo é já influenciado pela Renascença, n'uma época em que o gothico dominava ainda com absoluto imperio na arte portugueza. As legendas que illustram cada um dos quadros são dos fins do seculo xvir ou dos principios do se- culo passado, e notavelmente gongoricas. É este mesmo caracter que determina a época em que fo- ram gravadas e pintadas no marmore. Entre as obras de marmore expostas na sala P, mencionarei, finalmente, um bello frontal de mo- saico com grandes ramagens. Foi da egreja de S. Bento. Hoje pertence a Academia de Bellas Artes. No seculo xvii esteve muito em uso ornar as egre- jas com frontaes, retabulos e outras peças n'este genero. Encontram-se frequentemente nos templos de Evora, por exemplo no que os jesuitas edificá- ram, e hoje faz parte da casa pia, e no Espinheiro, na distancia de tres kilometros d'aquella cidade. A proximidade das pedreiras de Estremoz favoreceria de certo esta industria no sul do reino. A sala P contém numerosos objectos de bronze ou de latão com ou sem doirados, procedentes, pela maior parte, de Mafra. Entre elles ha uma estante de côro, que alli, dizem, servia a el-rei D. João vi nos seus exercicios de cantochão. É curiosa a col- lecção de candieiros de varias formas e dimensões, procedentes d'aquelle convento, da Academia de Bellas Artes e de Coimbra. Na sala e estão expostos alguns moveis interes- santes, productos da industria nacional. O mais an- 200 rrada de cafestas ferrheria d'este tigo é uma arca forrada de coiro com grandes fer- ragens estanhadas. O estylo d'estas ferragens é do seculo xv; porém nas obras de serralheria d'este genero, feitas em Vizeu e na Guarda, o estylo mui- tas vezes não corresponde á época, por ter conti- nuado em uso por muito tempo, depois de haver desapparecido em Lisboa e n'outras cidades. Ora o mencionado cofre procede do convento de Santa Clara da Guarda. Os outros moveis são cadeiras de sola, um con- tador de ébano do sr. João Tamagnini da Motta Bar- bosa, um armario do museu Kensington, um orato- rio de pau santo do sr. Teixeira de Aragão, duas cadeiras de talha da India do sr. João Jorge Cecilia Koll, e um canapé e cadeiras eguaes a outras ex- postas na sala P, no estylo de Luiz xv, estofadas de tapeçaria de Gobelins, pertencentes á mitra de Leiria. No oratorio do sr. Teixeira de Aragão está uma cruz de madeira com imagem de marfim e a haste e braços forrados anteriormente de prata lavrada, pertencente ao sr. Augusto Pinto Moreira da Costa. É obra indiana, similhante a outra de Santos-o-Ve- lho, que não foi exposta. N'este e n'outros pontos prova a exposição como, nos seculos XVII e xvili, eram importados da India numerosos artefactos, des- tinados ao culto ou ao uso domestico. São tão raras em Portugal as obras de esculptura em madeira, anteriores ao seculo XVII, que, bem como já tive occasião de observar, quaesquer exem- plares d'esta classe, só por isso, e independente- mente de qualquer outra circumstancia, teem um grande interesse. Vem esta reflexão a proposito das duas estatuas de madeira, pintadas e doiradas, pro- cedentes do convento de Thomar, e expostas pela 201 Bibliotheca Nacional de Lisboa, onde se conservam outras similhantes. Teem estas estatuas dois metros de altura, e por isso parecem mais disformes e mais grosseiramente esculpidas do que em verdade são. Julgo que muito ganhariam em ser vistas na distan- cia para a qual, nos seculos sy ou xvi, foram com effeito destinadas. Na mesma sala está exposta uma reproducção em gesso de um dos baixo-relevos do claustro de Santa Cruz de Coimbra. Brevemente se exporá outra na mesma sala. Ha mais um terceiro baixo-relevo que pelo seu estado de deterioração não convém já re- produzir. Estes baixo-relevos do claustro de Santa Cruz, outro similhante que resta no antigo claustro da Sé Velha, hoje incorporado no edificio da imprensa da universidade, o pulpito de Santa Cruz, a porta la- teral da egreja da Sé Velha, o retabulo da capella mór da egreja do convento de S. Marcos, outros retabulos das egrejas antiga e moderna de Santa Clara, da egreja incompleta de S. Domingos, etc., demonstram a existencia de uma escola de escul- ptura, que fundada alli no seculo xvi por algum ou alguns artistas estrangeiros, cujas producções mais notaveis são o pulpito de Santa Cruz e o retabulo de S. Marcos, se desenvolveria depois a ponto de deixar grande numero de productos não somente em Coimbra, mas tambem em diversas egrejas da Beira. O grande retabulo da capella mór da sé da Guarda, extremamente similhante ao da capella do Sacramento da Sé Velha, é, como este ultimo, uma obra da escola de Coimbra, porém dos fins do seculo XVII, quando se apagára já, em degeneração crescente, o explendor da escola conimbricense em tempo de D. Manuel ou D. João III. 203 tanto no feitio como no genero de ornamentação. Teem muito mais comprimento e largura que estes ultimos, sem que tão desmesuradas proporções lhes façam perder a elegancia. A obra de talha doirada, que nos segundos constitue a sua principal decora- ção, vendo-se distribuida por toda a caixa, tejadi- Tho, jogo e rodas, está accumulada nos primeiros, e com muito mais profusão no jogo principalmente, e depois nas rodas. A caixa e tejadilho são forra- dos interna e externamente de ricos estofos, com guarnição de obra de passamaneria de oiro ou pra- ta. «O coche triumphal (40) tem o tejadilho e toda a caixa vestidos, por fora e por dentro, de velludo carmezim, recamado de ornamentos de oiro em lin- das cercaduras e outras diversidades de desenhos. A parte superior do tejadilho é ornada nos angu- los, em vez de maçanetas doiradas, com uns enfei- tes do mesmo velludo, a modo de plumagem. As cortinas que, em logar de vidros, os vedam pelos quatro lados, são egualmente de velludo carmezim, com a mesma guarnição de oiro. Os assentos e al- mofadas, bem como o persevão 4, são forrados de velludo carmezim guarnecido de galões de oiro. Sobre o jogo, ao lado da almofada do cocheiro, er- guem-se duas estatuas allegoricas doiradas. Na tra- zeira vêem-se lindos grupos allegoricos de figuras de vulto inteiro, tudo de obra de talha doirada, re- presentando a Lusitania entre as estatuas da Fama, que a está coroando, e da abundancia, que entorna seus dons liberalmente; e por baixo um dragão e as figuras de um preto e de um musulmano, am- 1 Dá-se este nome á parte interior do coche, onde as- senta os pés quem vae dentro. 208 Como, porém, na portada e nas tarjas figuram as armas reaes de Portugal com o banco de pinchar, os escudos da rainha D. Leonor e a cruz de Christo, e como eu atten. desse a estas circumstancias somente, pareceu-me que a D. Manuel, e não a D. João II, se devia attribuir o ter mandado escrever e illuminar o livro em Italia. Com effei- to, sendo D. Manuel irmão da rainha D. Leonor, poderia, como ella, ter tomado o brazão de infante, de seu pae, D. Fernando, duque de Vizeu, filho d'el-rei D. Duarte e de sua mulher a rainha D. Leonor, da qual, por ser filha de D. Fernando I de Aragão, provinham os escudos d'este reino para as armas dos infantes, seus filhos. A rainha D. Leonor, mulher d'el-rei D. João 11, e seu irmão D. Ma- nuel usariam pois o brazão do infante seu pae, e D. Ma- nuel, como mestre da ordem de Christo, podia encimal.o com a cruz d'esta ordem. A mim pois não me pareceu duvidoso que as armas, tantas vezes pintadas no livro fossem as de D. Manuel, antes de subir ao throno. E, com esta idea, na errata do catalogo emendei, em vez de D. João u, D. Manuel. Re- clamou o sr. Basto, dizendo-me que, tendo o livro a data de 1494, era então rei de Portugal D. João 11. E' justa a reclamação, e esta divergencia entre a data e o brazão e mais em particular quando encimado pela cruz de Chris- to, poderia talvez explicar-se, suppondo que el-rei D. João i mandára fazer o livro em Italia para seu primo D. Manuel Nota a pag. 189 A Biblia dos Jeronymos, em sete volumes illumipados. Nos primeiros tomos d'esta obra encontra-se tambem o escudo real com o banco de pinchar, porém já sem os dois pequenos escudos de Aragão. Estas, bem como no codice FA749.10 A exposicao retrospectiva de arte o Fine Arts Library BAX 1469 3 2044 034 582 379 This book should be returned to the Library on or before the last date stamped below. A fine of five cents a day is incurred by retaining it beyond the specified time. Please return promptly. JOH . 1940