200 Ano VII, n. 12 - jan-jun/2014 - ISSN 1983-5930 Resenha Understanding digital humanities (BERRY, David M. (Org.). Basingstoke: Palgrave McMillan, 2012) André Carlos MORAES 1 A expressão “humanidades digitais” (“digital humanities”) tem sido usada para designar um campo emergente de pesquisa que busca investigar as temáticas das humanidades e ciências sociais com auxílio extensivo de recursos eletrônicos, principalmente computa- cionais. Não se trata apenas de adotar o uso de ferramentas digitais, mas, em alguns casos, de rediscutir metodologias e mesmo epistemologias. Envolvendo reflexões sobre o fazer científico tanto quanto novas estratégias de aproximação aos objetos de pesqui- sa, as humanidades digitais ainda lutam por conquistar reconhecimento e, principalmen- te, por se fazer compreender pelo público acadêmico, mesmo aquele que seja simpático às novas tecnologias. É neste esforço de se aproximar da comunidade de pesquisadores que se encaixa Understanding digital humanities, coletânea de artigos que reúne alguns dos principais autores que têm se dedicado à área. Os primeiros ensaios trazem tentativas de sistematização do campo e relatos históricos sobre sua origem, inclusive mapeando a gênese do termo, inicialmente adota- do por um grupo de pesquisadores da Universidade de Virginia, EUA, no final do sécu- lo passado (BERRY, 2012, p.43). Também há artigos dedicados à discussão epistemo- lógica, propondo compreender as diferenças entre as pesquisas convencionais e os mé- todos eletrônicos, inclusive aprofundando os motivos da resistência de alguns dos cien- tistas sociais e autores de humanidades. De interesse específico para a área de Comunicação são os relatos de pesquisas implementadas. Há trabalhos, por exemplo, dedicados à análise de textos, que procuram usar algoritmos computacionais para extrair indicadores de um grande corpus (às vezes 1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: andrecmoraes@uol.com.br 201 Ano VII, n. 12 - jan-jun/2014 - ISSN 1983-5930 composto por milhares de documentos). Um dos estudos apresentados no livro executou este tipo de procedimento em amostras de jornais, fazendo comparativo com o trabalho executado por um pesquisador por métodos analógicos (idem, p.295). Embora sujeitos a questionamentos em diversos níveis, estes tipos de pesquisa têm consequências episte- mológicas relevantes, já que questionam diferenças normalmente assumidas como da- das, tais como aquelas entre os métodos qualitativo e quantitativo. Outros estudos fazem propostas de trabalho para a área de investigação ligada à cultura visual, que concentra, também, especial interesse para o campo de Comunica- ção. O austríaco Adelheid Heftberger (idem, p.210) faz um apanhado de pesquisas de humanidades digitais na área de cinema, incluindo tentativas de digitalizar acervo de cineastas clássicos e automatizar categorizações. O livro inclui um artigo de um dos maiores pesquisadores das digital humanities ligadas à cultura visual, Lev Manovich, da Universidade da Califórnia (idem, p.249), que liderou uma pesquisa que comparou um milhão de páginas de histórias em quadrinhos japonesas (mangás), colhendo automati- camente indicadores sobre estilo, técnica e contraste. Algumas das experiências apresentadas discutem abertamente questões de pes- quisa que se abrem especificamente em vista dos métodos computacionais, como a questão do “black boxing”, a opacidade técnica de alguns dos procedimentos. Envol- vendo colaboração entre equipes de programadores e de cientistas sociais, alguns dos projetos de humanidades digitais relatam problemas como a falta de compreensão mú- tua das necessidades e tradições epistemológicas, o que acaba produzindo resistência e desestímulos. É o caso do projeto relatado pela britânica Yu-wei Lin (idem, p295). A discussão sobre limitações técnicas e configurações epistemológicas se torna importante na medida em que o livro também relata a pressão, em centros de pesquisa internacionais, para que profissionais das humanidades se conformem a exigências vin- das dos campos das hard sciences. Alguns dos autores relatam, por exemplo, que certas fontes de financiamento europeias passaram a adotar como requisito que fossem adota- das equipes e métodos amplos, numa espécie de transposição para as humanidades da chamada “big science” (como visto nos grandes projetos da Física ou da Saúde). Neste sentido, o emprego de técnicas de pesquisa para estender a uma dimensão quantitativa a investigação em humanidades seria uma forma de ajudar a atrair maiores recursos e mesmo assegurar a continuidade dos projetos na área. 202 Ano VII, n. 12 - jan-jun/2014 - ISSN 1983-5930 Entre os artigos úteis para o cotidiano de pesquisa está um de Morgan Currie, da Universidade de Amsterdam (idem, p.224), que realizou uma extensiva análise sobre os padrões e polêmicas entre editores da enciclopédia aberta Wikipedia em torno de um tópico em especial (o feminismo). O ensaio também traz uma discussão sobre ferramen- tas de análise automatizadas disponíveis em código aberto, suas limitações e estratégias de uso e exposição. Como outros capítulos do livro, é um bom ponto de partida para quem esteja contemplando trabalhos com metodologias on-line. Reunindo vários artigos e, portanto, uma diversidade de revisões bibliográficas, Understanding digital humanities ainda oferece uma oportunidade de mapear algumas vertentes teóricas representativas dos estudos recentes sobre novas tecnologias. Neste sentido, é também um bom guia para sistematizar trabalhos acadêmicos na área, inde- pendente de considerações metodológicas ou epistemológicas. Entre os teóricos cujos trabalhos merecem análises críticas estão referências como Friedrich Kittler, Wolfgang Ernst e Henry Jenkins, entre outros. Como decorrência da pluralidade geográfica dos autores, também é uma oportunidade para localizar fontes alternativas aos eixos francês e anglo-saxônico, costumeiramente referenciados em muitas pesquisas brasileiras. Outro ponto interessante é que entre as discussões presentes no livro está a questão da aplicabilidade do conhecimento científico. O britânico Dan Dixon, da Uni- versidade de Bristol, propõe pensar as humanidades digitais em termos da proposição epistemológica do action design, lembrando que esta é a dimensão em que se trabalha quando se busca algum grau de intervenção, diferente das proposições positivista, com sua meta descritiva e universalizante, e da crítica, com seu objetivo de análise, engajada ou não. Levar em consideração a dimensão aplicada das digital humanities é útil tanto para os interessados em estabelecer relações com setores produtivos da sociedade quan- to para os que buscam a pesquisa pura, já que funciona como lembrete de que se trata de um campo no qual o pragmatismo tem peso às vezes determinante. Understanding digital humanities seria uma leitura recomendável para estudan- tes e pesquisadores que estejam contemplando se dedicar a métodos computacionais ou investigar fenômenos on-line. Em anos recentes, o panorama das pesquisas de Comuni- cação no Brasil tem apontado um crescente interesse pelas pesquisas ligadas a redes sociais, jornalismo on-line e tecnologias de comunicação eletrônica, como o e-book. Também são frequentes os trabalhos que empregam algoritmos ou recursos telemáticos 203 Ano VII, n. 12 - jan-jun/2014 - ISSN 1983-5930 tanto na análise quanto na coleta do corpus. Em vista deste interesse, é mais do que útil aprofundar referências, tanto para acompanhamento de técnicas e métodos já em avalia- ção quanto para a igualmente indispensável discussão epistemológica e mesmo filosófi- ca sobre o conhecimento originado a partir daí. Anote no caderno da pesquisa. Ou, para ficar no espírito, faça uma tag: #útil.