REVISTA DO GEL Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo REVISTA DO GEL ISSN 1984-591X Revista do GEL São Paulo v.6 n.2 p. 251 2009 Diretoria do GEL / 2009-2011 Revista do GEL Universidade Federal de São Carlos revistadogel@gel.org.br Presidente: Gladis Maria de Barcellos Almeida http://www.gel.org.br/revistadogel Vice-Presidente: Roberto Leiser Baronas Tesoureira: Flávia Bezerra de Menezes Hirata-Vale Secretária: Mônica Baltazar Diniz Signori Comissão Editorial Executiva Alessandra Del Ré Cristina Carneiro Rodrigues Flávia B. M. Hirata-Vale Gisele Cristina de Sousa Luciana Gimenes Olga Ferreira Coelho Ruth Lopes Editora Responsável Olga Ferreira Coelho Revisão e Normatização Rosane de Sá Amado Adélia Maria Mariano da S. Ferreira Diagramação Editora Paulistana Conselho Editorial Antônio Alcir Bernárdez Pécora (Unicamp), Carlos Subirats Rüggeberg (Universidade de Barcelona), Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran (Unesp-Assis), Danilo Marcondes Souza Filho (PUC-RJ), Evani de Carvalho Viotti (USP), Helena Nagamine Brandão (USP), Ieda Maria Alves (USP), Jacques Fontanille (Universidade de Limoges), José Borges Neto (UFRJ), Kanavilil Rajagopalan (Unicamp), Lourenço Chacon (Unesp-Marília), Marco Antônio de Oliveira (UFMG), Maria Célia de Moraes Leonel (Unesp-Araraquara), Maria Filomena Gonçalves (Universidade de Évora), Maria Irma Hadler Coudry (Unicamp), Marta Luján (Universidade do Texas-Austin), Mirta Groppi A. de Varella (USP), Otto Zwartjes (Universidade de Amsterdã), Pierre Swiggers (Universidade Católica Louvain), Raquel Santana dos Santos (USP), Renata Maria Faccuri Coelho Marquezan (Unesp-Araraquara), Roberto Gomes Camacho (Unesp-SJRP), Wilmar da Rocha D’Angelis (Unicamp). Publicação semestral Solicita-se permuta/Exchange desired Revista do GEL / Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo. Vol. 1 (2004). São Paulo: Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo, 2004- Semestral ISSN 1984-591X Sumário/Contents EDITORIAL ......................................................................................................................... 7 ARTIGOS/ARTICLES A VOGAL EPENTÉTICA EM ENCONTROS CONSONANTAIS HETEROSSILÁBICOS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UM ESTUDO EXPERIMENTAL The epentectic vowel between the consonants in different syllables (heterosyllabic): an experimental study Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA ..................................................................... 9 TRANSITIVIDADE DOS VERBOS ALTERNANTES: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA Transitivity of alternating verbs: a semantic approach Larissa CIRÍACO ................................................................................................................. 36 A RELATIVA RESUMPTIVA EM DOIS MOMENTOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO Relative acquisition and linguistic change in brazilian portuguese Adriana Stella C. Lessa de OLIVEIRA ................................................................................ 61 MODELAÇÃO DE DADOS E PRODUÇÃO DE “REALIDADES” NA ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA data modelling and the production of “realities” in sociolinguistic analysis Gredson dos SANTOS ......................................................................................................... 85 LINGUAGEM E EMOÇÕES language and emotions Marinalva Vieira BARBOSA ............................................................................................. 104 A KOINIZAÇÃO DE UMA AUTOTRADUÇÃO DE MANUEL PUIG: O VOSEO The koinization of a selftranslation of manuel puig: the voseo Andreia do Santos MENEZES ........................................................................................... 125 “POÉTICA”, DE MANUEL BANDEIRA: ANÁLISE SEMIÓTICA “Poética”, by manuel bandeira: a semiotic analysis Dayane Celestino de ALMEIDA ........................................................................................ 140 PRODUÇÃO ESCRITA EM FRANCÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA: UMA EXPERIÊNCIA BASEADA EM GÊNEROS TEXTUAIS Written production in french as a second language: an experience based on textual genres Eliane Gouvêa LOUSADA ................................................................................................ 160 O DESAFIO DE ENSINAR INGLÊS: EXPERIÊNCIAS DE CONFLITOS, FRUSTRAÇÕES E INDISCIPLINA The challenge of teaching english: experiences of conflict, frustration and indiscipline Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI .................... 175 REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA DO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NO BRASIL Considerations regarding the course of foreign language teaching in brasil Vera Lucia Harabagi HANNA ............................................................................................ 207 ACORDO ORTOGRÁFICO E A UNIDADE IMAGINÁRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA Spelling agreement and the imaginary unity of portuguese language José Simão da SILVA SOBRINHO .................................................................................... 232 RESENHA/REVIEW ELOS DE MELODIA E LETRA Alexandre Marcelo BUENO .............................................................................................. 243 ÍNDICE DE ASSUNTOS ................................................................................................. 249 SUBJECT INDEX ............................................................................................................ 250 ÍNDICE DE AUTORES / AUTHORS INDEX ............................................................... 251 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 7-8, 2009 7 Editorial Este volume da Revista do GEL reúne descrições do português do Brasil, ensaios sobre o ensino de língua estrangeira, análises de diferentes gêneros discursivos e reflexões historiográficas e epistemológicas acerca de campos específicos dos estudos da linguagem. O artigo de Silveira e Seara acrescenta dados ao conjunto de pesquisas dedicadas à vogal epentética no PB. As autoras verificam que, o mais das ve- zes, esse segmento apresenta as características acústicas da vogal alta, embora também possa caracterizar-se como vogal média-alta. Ciríaco, em abordagem que coordena sintaxe e semântica lexical, traz uma proposta de classificação dos verbos alternantes quanto a sua transitividade. O estudo de Oliveira, por sua vez, focaliza a mudança no sistema de relativização no português do Bra- sil em sua correlação com mudanças no sistema pronominal. Depois desse conjunto de artigos caráter descritivo, Santos, focando-se especificamente nas “realidades” apresentadas em análises sociolinguística, lida com os modos de instaurar o ‘real’ em ciência da linguagem. Voltados para os contextos do ensino-aprendizado de línguas, há qua- tro trabalhos: o artigo de Barbosa analisa de discursos de professores e alunos do ensino fundamental e médio, buscando mapear certas relações entre lin- guagem e emoções. Lousada discute resultados de experiência, fundamentada em estudos de gêneros textuais, sobre o ensino de produção de escrita para estudantes de francês. A contribuição de Zolnier e Miccoli corresponde a um relato de resultados de pesquisa desenvolvida junto a professores de inglês. O texto de Hanna apresenta uma revisão histórica do ensino de línguas estran- geiras modernas no Brasil, do século XVI ao XIX. Buscando confirmar a aplicabilidade de certo aparato teórico, os ar- tigos de Menezes e Almeida tratam de operações meta-literárias em Puig e Bandeira no que se refere, respectivamente, à captação do fenômeno linguís- 8 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 7-8, 2009 tico do voseo numa autotradução e a um poema acerca do fazer poesia. Na mesma direção, o texto de Silva Sobrinho, valendo-se de achados teóricos da História das Ideias Linguísticas, da Semântica da Enunciação e da Análise do Discurso, avalia filiações de sentidos do documento que recentemente apro- vou o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A resenha produzida por Bueno avalia Elos de melodia e letra, livro que reúne análises de canções sob a perspectiva da semiótica greimasiana. Parece estar, mais uma vez, bem representada aqui a diversidade de intereses dos estudos da linguagem no Brasil. Olga Ferreira Coelho Editora responsável Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 9 A VOGAL EPENTÉTICA EM ENCONTROS CONSONANTAIS HETEROSSILÁBICOS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UM ESTUDO EXPERIMENTAL Francine SILVEIRA 1 Izabel Christine SEARA2 RESUMO: A vogal epentética tem sido tema de estudo de inúmeras pesquisas no português brasileiro. Com o intuito de acrescentar dados a esses estudos, esta pesquisa traz a caracterização acústica de segmentos vocálicos presentes entre as consoantes dos encontros consonantais hete- rossilábicos. Os parâmetros analisados são: duração relativa e os dois primeiros formantes orais (F1 e F2, referentes à altura e à anterioridade vocálicas, respectivamente). Foram informantes desta pesquisa 4 falantes nativos de Florianópolis (2 femininos e 2 masculinos) com idades entre 24 e 30 anos e com Nível Superior completo. Observamos, em nossos dados, um percentual de aproximadamente 73% de ocorrência de um segmento vocálico entre as consoantes dos encontros consonantais heterossilábicos. Tal segmento apresenta, na maior parte das vezes, características acústicas da vogal alta [i], podendo ainda se caracterizar como uma vogal média alta ou um schwa. PALAVRAS-CHAVE: Encontros consonantais heterossilábicos. Vogal epentética. Análise acústica. Fonética experimental. Português brasileiro. Introdução O fenômeno linguístico de interesse do presente artigo é a vogal epen- tética no português brasileiro (doravante PB). O termo vogal epentética é 1 P r o g r a m a d e P ó s - G r a d u a ç ã o e m L i n g u í s t i c a , U F S C , F l o r i a n ó p o l i s , S C , B r a s i l . f r a n c i n e 1 4 1 0 @ h o t m a i l . c o m 2 Departamento de Língua e Literatura Vernáculas, Laboratório de Fonética Aplicada (FONAPLI), UFSC, Florianópolis, SC, Brasil. izabels@linse.ufsc.br 10 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA usado para indicar a vogal inserida em encontros consonantais heterossilábi- cos (consoantes em sílabas diferentes) do tipo advogado e amnésia. A epên- tese vocálica possibilita, assim, se ter uma nova sílaba ou uma simplificação da sílaba (ALBER; PLAG, 2001; CAGLIARI, 1981). Com o objetivo de possibilitar uma discussão mais acurada acerca da epêntese vocálica, muitas vezes perceptível, mas não registrada pela ortogra- fia padrão, coletamos dados de fala de nativos de Florianópolis, com idades entre 24 e 30 anos, de ambos os sexos. Esses dados continham os contextos em que tais vogais ocorreriam. Nossa hipótese é a de que a vogal epentética nem sempre é a mesma no PB. A fim de verificarmos tal hipótese, observaremos como esse segmento se caracteriza acusticamente e o seu percentual de ocorrência, respondendo ainda a alguns questionamentos suscitados pelas pesquisas sobre o tema. Para isso, dividiremos o restante deste texto em 4 seções. Na primeira, será apresentada uma revisão da literatura concernente ao objeto de estudo. Na segunda, será mostrada a metodologia de coleta e análise dos dados. Na terceira, serão descritos e discutidos os resultados obtidos. E, finalmente, na quarta seção, as conclusões serão apresentadas. Status da vogal epentética Nos encontros heterossilábicos, as consoantes ocorrem em sílabas di- ferentes e, devido às possibilidades de combinações entre as consoantes, esses encontros são subdivididos em dois grupos. No primeiro grupo, ocorre em final de sílaba uma consoante pós-vocálica considerada como coda no PB, como /N/, /R/, /S/, /l/, sendo seguida por outra consoante que ocupa o onset da sílaba seguinte, como em: gancho, carta, festa e salto, respectivamente. No segundo grupo, uma consoante diferente das consoantes pós-vocálicas encontradas no PB ocorre em final de sílaba, sendo ainda seguida por outra consoante na sílaba seguinte, como aparece nas palavras afta, dogma, advogado. A diferença entre esses dois grupos de encontros heterossilábicos está na possibilidade de, no segundo grupo, poder haver a inserção de vogais epentéticas. O acréscimo de um segmento à forma básica de um morfema é o que Cagliari (2002) chama de epêntese ou inserção, um dos processos fonológi- cos que pode ocorrer na língua portuguesa. Cagliari (1981) observou ainda a ocorrência de epêntese entre sequências de oclusivas, de nasais e de fricativas Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 11 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental com outras consoantes, tais como: obter, submarino, abnegado, advogado, compacto, pigmeu, amnésia, afta, dentre outras. Afirma ainda que a vogal pode ser realizada como [ι] , mas também pode apresentar uma qualidade mais baixa e mais central como [ə] sempre que for precedida por oclusiva velar e seguida por oclusiva alveodental surda ou nasal alveodental como em factual [fakətuaw] e acne [akəni]. Silveira (1988) também verifica, em encontros consonantais que de- nomina de impróprios — ou seja — em sílabas diferentes, um som vocálico entre as consoantes como em [apitu] – apto, [afita] – afta. A explicação dada pela autora para esse evento é a dificuldade de pronúncia das sequências de consoantes desses encontros. Com o objetivo de elaborar um atlas linguístico da região sul, em 1980, foi constituído o projeto ALERS.3 Em Santa Catarina, foram entrevistados 80 informantes das zonas rural e urbana, do sexo masculino, com idades entre 28 e 58 anos e escolaridade variando de não alfabetizado à 4ª série do Ensino Funda- mental.4 Dentre os dados pesquisados, foram analisadas (submetidos à análise de outiva) as variantes fônicas de palavras como advogado, mais especificamente a sequência de sons de fala [dv]. Para esse fenômeno, foram registradas as seguin- tes realizações: [dev] 78,75%; [dv] 11,25%; [div] 5%; [tev] 2,50%; [dif] 1,25%, sendo 1,25% das respostas definidas como “prejudicadas”. Percebe-se então que, em 87,5% das realizações, atesta-se a presença da vogal epentética. Collischonn (2000), para testar algumas de suas conclusões sobre a epêntese, utilizou dados do Projeto VARSUL.5 Seu objetivo era constatar a presença ou não de um elemento epentético vocálico, não estando, porém, em análise a qualidade da vogal produzida. O estudo foi realizado em três capi- tais — Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba — totalizando 72 informantes. 3 Projeto ALERS - Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul - formado por uma equipe interinsti- tucional, constituída de três grupos estaduais, sediados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Federal do Paraná (UFPR). O objetivo do projeto era registrar e organizar, sob forma de um atlas linguístico-etnográfico, as variantes geolinguísticas - fônicas, morfossintáticas e semântico-lexicais - da língua portuguesa falada na área rural da Região Sul, presentes em localidades representativas. Disponível em: . Acesso em: 15 de março de 2006. 4 Equivalente hoje ao 5o. ano do Ensino Fundamental. 5 O Projeto VARSUL (Variação Linguística Urbana na Região Sul) foi constituído oficialmente em 1990 e visa à instalação de um Banco de Dados linguísticos a partir da documentação do português falado nas áreas urbanas linguisticamente representativas dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em:15 de março de 2006. 12 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA A faixa etária foi dividida em dois grupos: com mais de 50 e com menos de 50 anos. Para a escolaridade, também foram considerados os níveis Fundamental I e II e Ensino Médio. Como resultado, o estudo da epêntese mostrou-se vari- ável e dependente de fatores linguísticos. Apareceram como fatores mais favoráveis à aplicação da epêntese: (a) posição pretônica; (b) contexto seguinte nasal ou fricativo não-sibilante; (c) consoante precedente alveolar. Como fatores menos favoráveis à aplicação da epêntese, apareceram: (a) posição postônica; (b) contexto seguinte sibilante; (c) consoante precedente velar. Com base nos dados levantados, Collischonn (2000) observou que a predição feita por Itô (1986),6 de que a epêntese vocálica não possui nenhu- ma relação direta com o acento, não se confirmou nessa pesquisa. A explica- ção da pesquisadora para o comportamento da epêntese em relação ao acento baseou-se nas restrições de acento em português, que claramente favorecem a colocação do acento na penúltima sílaba da palavra, sendo evitada qualquer inserção de sílaba à direita, para impedir o deslocamento do acento. Silveira (2005), em um estudo experimental, analisou acusticamente a ocorrência da vogal epentética entre várias sequências de segmentos de fala (conforme Tabela 1) como também a sua duração. Nesse estudo, foram pes- quisadas as produções de 2 informantes, um do sexo masculino, com Nível Superior incompleto; e outro do sexo feminino, com Nível Superior comple- to, com idades entre 20 e 30 anos. As palavras foram elocucionadas de forma isolada e inseridas em frases veículo. Os resultados de Silveira (2005) mostraram que o informante do sexo masculino realizou mais vezes a vogal epentética quando comparado com as realizações do informante do sexo feminino, tanto na análise das palavras isoladas quanto nas palavras inseridas em frases-veículo. Considerando que o contexto de palavra isolada se aproxima mais de um contexto dito formal, uma vez que, nesse contexto, o falante exerce maior controle sobre sua fala, nos dados analisados em Silveira (2005), não foram observadas diferenças que levassem a ratificar a afirmação de Câmara Jr. (1986a), segundo a qual o falante reduz a vogal epentética em situações formais do uso da língua culta. 6 Itô (1986) conclui que a epêntese vocálica não possui nenhuma relação direta com o acento, pois, como a epêntese e a silabação ocorrem simultaneamente, ambos os processos são pré-requisitos para a acentuação das palavras . Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 13 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Tabela 1: Palavras analisadas quanto à vogal epentética em Silveira (2005) b+p, t, d, k, m, n, s, z, x, , v, l subproduto, obter, subconsciente, submarino, abnegado, absoluto, obséquio, sub-reptício, objeto, óbvio, sublocação p+t, s captou, psicose d+m, v,  admirar, advogado, adjetivo t+m ritmo k+t, s, n compacto, fixe, técnica g+m, n pigmeu m+n amnésia f+t afta Houve uma maior frequência de ocorrência de vogal epentética quando o contexto seguinte era preenchido pelos segmentos de fala nasais [m] ou n. Quando o ambiente precedente era a consoante d, a ocorrên- cia da vogal epentética só se deu em contexto de frase. Quando precedido por g, a vogal epentética foi realizada tanto em palavras isoladas quanto em frases-veículo. Outro resultado de relevância foi a realização categó- rica da vogal epentética tanto em palavras isoladas quanto nas frases-veí- culo, quando o contexto precedente e o seguinte eram nasais (m e n), como na palavra amnésia. Diante dos sons de fala p, t, k e f, não foi observada a ocorrência da vogal epentética em nenhum dos contextos analisados. Os valores obtidos pelos formantes (F1 e F2) da vogal epen- tética foram comparados aos valores apresentados em Sousa (1984) para as vogais do PB, separadamente para homens e mulheres. Silvei- ra (2005) chegou então à conclusão de que a vogal pronunciada era um , como já previam Cagliari (1981) e Câmara Jr. (1986a), em análises auditivas. A epêntese não é um fenômeno exclusivo do PB, podendo ser vista, por exemplo, no irlandês, conforme atesta Carnie (1994), dizendo que, nessa língua, há dois tipos de processos epentéticos: o primário e 14 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA o secundário. No primário, a vogal epentética é inserida entre as duas consoantes, sendo a primeira uma consoante sonora. No secundário, a epêntese é inserida na posição de onset do encontro consonantal. Ou, ainda, pode ser observada em línguas crioulas, conforme descrevem Al- ber e Plag (2001), quando se referem à epêntese usada na simplificação da estrutura silábica. Relatam também que a epêntese geralmente ocorre como uma vogal. Cristófaro-Silva e Almeida (2006) realizaram um estudo e, base- ados em seus resultados, afirmam que, de fato, a vogal epentética varia de uma língua para outra. Dessa forma, apresentam a vogal [] como a vogal epentética usada no Japonês; a vogal [] como a usada no Inglês e no Hebraico; a vogal [] usada no Espanhol; e a vogal  como a usada no PB. Para a realização desse estudo, foram feitos dois experimentos: um que avaliava os valores da vogal regular e outro que avaliava os valores da vogal epentética no dialeto de Belo Horizonte (MG). Foram selecionados três encontros consonantais heterossilábicos nos quais a vogal epentética poderia ocorrer: kt, pt e [t. Os encontros pt e [t foram esco- lhidos para avaliar se a consoante surda ou sonora poderia influenciar na ocorrência da vogal epentética. Dois critérios deram base à pesquisa: o primeiro era referente ao modo de articulação. Assim, todas as consoantes do encontro eram oclu- sivas. O segundo era referente à ocorrência da vogal epentética nos dife- rentes ambientes (Tabela 2). O Experimento 1 foi composto por 16 informantes (8 homens e 8 mulheres), distribuídos em duas faixas etárias diferentes (menos de 25 anos de idade e mais de 35 anos de idade). Todos tinham Nível Superior incompleto e eram nascidos e residentes em Belo Horizonte. As sequên- cias consonantais avaliadas foram: kt, pt, [t e kt, pt, [t; e as palavras gravadas foram inseridas em textos e em sentenças isoladas. O objetivo do Experimento 1 foi caracterizar a ocorrência de cada vogal epentética, contrastar essas ocorrências em cada contexto similar, con- siderar se qualquer sequência de segmento pode favorecer a epêntese e avaliar a duração da vogal epentética. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 15 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Tabela 2: Ocorrência da vogal epentética conforme o contexto (a partir de CRISTÓFARO-SILVA; ALMEIDA, 2006) C2 C1 p  t d k g f v s z  m n p 404 1 1 1 319 41  23 1 89 75 41 3 13 42 225 2 84 70 20 t 3 2 3 94 19 2 1 50 46 d 1 35 2 13 1 6 148 27 k 530 1 3 652 5 1 101 g 1 3 10 1 2 116 424 f 23 5 1 1 Os resultados do Experimento 1 mostraram que a vogal epentética ocorreu um grande número de vezes, sendo favorecida quando uma das con- soantes do encontro era vozeada. Concluíram ainda que a vogal regular é mais longa do que a vogal epentética. Esses dados ratificam os de Silveira (2005), uma vez que essa autora observou uma maior ocorrência da vogal epentética nos contextos de oclusivas sonoras e de nasais. O Experimento 2 foi composto também por 16 informantes (8 ho- mens e 8 mulheres), distribuídos nas mesmas faixas etárias e escolaridade do Experimento 1. Todos eram nascidos e residentes em Belo Horizonte. As sequências avaliadas [kt], [pt], [t] foram inseridas em 20 palavras com a vogal epentética em posição átona e em 16 palavras com a vogal epentéti- ca em posição tônica. Essas palavras foram inseridas em sentenças isoladas. O objetivo do Experimento 2, corpus com o maior número de palavras em que a vogal epentética poderia ocorrer, foi caracterizar a ocorrência da vogal epentética, considerar se qualquer ambiente a favorece, avaliar a sua duração e verificar se o acento tem influência sobre a duração da vogal epentética. Os resultados corroboraram os apresentados no Experimento 1, considerando a taxa de ocorrência da vogal epentética e os valores de duração. A vogal epen- tética ocorreu mais em posição átona, na qual era também mais longa, do que em posição tônica. A partir desse levantamento de estudos sobre a vogal epentéti- ca, surgiram questões a serem respondidas por este estudo experimen- 16 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA tal. São elas: (a) a vogal epentética tem sua emissão reduzida no regis- tro formal da língua culta (CÂMARA Jr., 1986b)? (b) a vogal epentética é condicionada pela tonicidade da sílaba? Ou melhor, esse fenômeno é mais recorrente em posição pretônica, como em objeto, opção, do que em posição postônica, como em ritmo (COLLISCHONN, 2000; CRISTÓ- FARO-SILVA; ALMEIDA, 2006)? (c) a presença de consoante vozeada na posição da primeira consoante favorece o aparecimento da epêntese (CRISTÓFARO-SILVA; ALMEIDA, 2006)? Corpus, coleta e análise Nesta seção, apresentaremos o corpus montado, a metodologia de coleta dos dados, assim como a maneira de analisar o fenômeno em estudo. Montagem do corpus Para a obtenção de dados que possibilitassem a análise da vogal epentética e que levassem em conta fatores condicionantes das variações observadas, foi elaborado um corpus com base nas palavras que consti- tuíram os estudos elaborados por Cagliari (1981) e Collischonn (2000). Esses autores pesquisaram as seguintes palavras: técnica, fixe, objeto, ritmo, obter, amnésia, absoluto, óbvio, advogado, submarino, compac- to, afta, admirar, adjetivo, subconsciente, obséquio, psicose, abnegado, subproduto, captou, pigmeu, sub-reptício, sublocação. Delas, escolhe- mos as que representassem o maior número de encontros consonantais, considerando o modo de articulação das consoantes envolvidas (C1 e C2), e que ocorressem em maior frequência no CETENFolha7 (ver Tabe- la 3). Em seguida, dividimos as palavras em grupos, conforme o ambien- te consonantal (Tabela 4). Posteriormente, as palavras foram produzidas isoladamente e inseridas em contextos frasais na tentativa de obter uma maior naturalidade. Se compararmos os resultados apresentados na Tabela 3 (número de ocorrências das palavras investigadas na pesquisa) com aqueles exibidos pela 7 “Corpus de Extractos de Textos Electrónicos NILC/Folha de S. Paulo” é um corpus de cerca de 24 milhões de palavras em português brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 20 de março de 2006. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 17 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Tabela 4 (classificação das palavras da Tabela 3, conforme as consoantes que compõem os grupos heterossilábicos) e com os da Tabela 5 (percentu- al de ocorrência dos grupos heterossilábicos, classificados a partir de suas segundas consoantes), verificamos que os encontros consonantais que pertencem a palavras que apresentaram maior ocorrência no corpus do CETENFolha são os que exibiram o maior número de epênteses vocálicas. Vejamos: os grupos cujas segundas consoantes são v (advogado) e n (técnica) mostraram, respectivamente, 100% e 90% de epênteses. Esses dados parecem nos dar indícios de que a frequência de uso dessas palavras na língua pode propiciar o aparecimento da epêntese vocálica. Tal questão será investigada em um próximo estudo, uma vez que a distribuição dos dados aqui apresentada não permite um estudo aprofundado a partir desse novo condicionamento. Tabela 3: Número de ocorrências das palavras consideradas para o corpus de encontros consonantais heterossilábicos, segundo o banco do CETENFolha Palavra Número de Ocorrências Percentual advogado 6050 32,14% técnica 4599 24,43% ritmo 2694 14,31% objeto 2620 13,92% obter 2222 11,80% afta 275 1,46% compacto 219 1,16% amnésia 45 0,24% fixe 43 0,23% psicose 36 0,19% abnegado 21 0,11% 18824 100% 18 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA Tabela 4: Palavras consideradas para a presente pesquisa segundo o grupo consonantal Primeira Consoante Segunda Consoante Palavras Nasais m Nasais n amnésia Fricativas f Plosivas t afta Plosivas k Plosivas obter, compacto k Fricativas s fixe p psicose d v advogado   objeto k  Nasais n técnica; abnegado t m ritmo Coleta de dados A pesquisa teve como informantes quatro indivíduos previamente se- lecionados. Dois informantes do sexo masculino e dois do sexo feminino com idades entre 24 e 30 anos e Nível Superior completo. Todos os informantes eram nascidos na cidade de Florianópolis (SC) e não apresentavam proble- mas auditivos ou discursivos aparentes que invalidassem os resultados obti- dos. Foi solicitado a eles que lessem cinco vezes as frases formuladas com as palavras alvo e sete vezes as palavras isoladas. Dessas sete palavras isoladas, apenas cinco foram consideradas para análise. A primeira e a última repetição foram descartadas com a finalidade de eliminar a entoação característica de início e de final de elocução. Os dados dos dois primeiros informantes foram gravados em ambiente silencioso, mas sem tratamento acústico. Foi utilizado um microfone (shure modelo SM48) unidirecional e os dados foram gravados diretamente em um software de análise de fala (Cool Edit 2000, criado por David Johnston), com taxa de amostragem do sinal de 22.050 Hz, suficiente para visualização das Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 19 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental fricativas presentes nos dados a analisar. Já os dois últimos informantes foram gravados em um estúdio com tratamento acústico. Ao final das gravações, obtivemos um total de 440 dados (4 informan- tes x 11 palavras x 10 repetições), referentes à vogal epentética. Desses, 220 estavam em palavras isoladas, 110 em frases do cotidiano do tipo: (1) Samba é um ritmo alegre. (2) Contrate um advogado responsável. E outros 110 em frases-veículo do tipo: (3) Digo ritmo baixinho. (4) Digo advogado baixinho. Parâmetros analisados Como nosso objetivo foi caracterizar a vogal em encontros consonan- tais heterossilábicos, analisamos as frequências dos dois primeiros formantes orais, suficientes para a caracterização acústica de segmentos vocálicos. O primeiro formante oral (F1) traz informações relativas à altura da língua, sen- do seus valores inversamente proporcionais à altura desse articulador móvel. Assim, vogais altas (posição alta da língua) possuem F1 baixo e vogais baixas (posição baixa da língua), F1 alto. As vogais médias apresentam valores in- termediários de F1 entre vogais altas e baixas. O segundo formante oral (F2) é referente ao movimento horizontal do articulador móvel (anterioridade/pos- terioridade da língua). As vogais anteriores apresentam valores de F2 em altas frequências, as posteriores apresentam valores em baixas frequências. Já as vogais centrais exibem valores intermediários em relação aos valores de F2 das vogais anteriores e posteriores. Etiquetagem dos dados Os dados gravados tiveram os segmentos-alvo marcados e etiquetados cuidadosamente (manualmente através do software Praat). Depois de checadas todas as marcações realizadas, por intermédio de um script gerado também para uso nesse mesmo programa, os valores das frequências dos formantes e 20 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA da duração dos segmentos-alvo foram obtidos automaticamente. Um exemplo da marcação e etiquetagem utilizada nesta pesquisa pode ser visto na Figura 1. Figura 1: Tela com: (a) forma de onda; (b) espectrograma com história formântica; (c) modelo de marcação e etiquetagem da vogal epen- tética na palavra amnésia, produzida como mnz (parte vi- sualizada mn). Discussão dos resultados Nesta seção, verificaremos a hipótese levantada e responderemos às questões suscitadas a partir dos dados apresentados por autores que pesquisa- ram sobre o tema. A primeira delas é a de observar se a vogal epentética tem sua emissão reduzida no registro formal da língua culta (CÂMARA Jr., 1986b). Se a expressão “emissão reduzida” significar redução da frequência de ocorrência, podemos responder a essa questão olhando os dados mostrados na Tabela 5. Nela, observamos o número total de encontros heterossilábicos e o percentual de ocorrência de epêntese nesses dados em dois contextos que se diferenciam pela formalidade. Espera-se que, em frases, haja uma maior ocor- rência dessa vogal, uma vez que o falante tem menos controle da sua produção se comparado aos dados presentes nas palavras isoladas, mesmo sabendo que Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 21 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental tal característica não representa uma diferença entre formalidade e informali- dade. Os resultados desse fenômeno apresentam-se de maneira diversa entre os dois sexos. Ou seja, podemos dizer que, para os informantes femininos, há uma redução na ocorrência de vogais epentéticas quando o sujeito produz as frases (75%) em relação à ocorrência de epênteses em palavras isoladas (84%). Já para os do sexo masculino, ocorre exatamente o inverso: em frases ocorrem mais epênteses (71%) do que em palavras isoladas (65%), parecendo que, nesse caso, a inserção em palavras isoladas leve a um “maior controle”, corroborando a colocação de Câmara Jr. (1986b). No entanto, pela falta de sistematicidade desses resultados, não parece que esse fator leve a uma diminuição na frequ- ência de ocorrência de vogais epentéticas em situações de maior controle (nas palavras isoladas), pelo menos para falantes femininos. Tabela 5: Percentual de ocorrência de vogais epentéticas em contextos frasais e em palavras isoladas FRASE FEMININO MASCULINO 2ª consoante No total encontros heterossilábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência No total encontros heterossilábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência M 10 4 40% 10 9 90% N 30 27 90% 30 27 90% V 10 10 100% 10 7 70% J 10 7 70% 10 10 100% S 20 13 65% 20 9 45% T 30 21 70% 30 16 53% Total 110 82 75% 110 78 71% PALAVRA FEMININO MASCULINO 2ª consoante No total encontros heterossilábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência No total encontros heterossilábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência M 10 10 100% 10 8 80% N 30 28 93% 30 29 97% V 10 10 100% 10 10 100% J 10 8 80% 10 8 80% S 20 14 70% 20 6 30% T 30 22 73% 30 11 37% Total 110 92 84% 110 72 65% 22 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA Agora, se a expressão “emissão reduzida” significar redução de duração dos segmentos, ao analisarmos tal parâmetro nos dados inseridos em contextos que possam traduzir um maior controle ou maior formalidade da elocução (em palavras isoladas) em relação aos contextos menos controlados (em frases), ob- servamos diferenças estatisticamente significativas8 entre as médias das dura- ções relativas apenas para os informantes do sexo feminino. Nesse caso, as vo- gais epentéticas são mais longas quando inseridas em contextos de frases. Desse modo, os informantes femininos ratificam o que atesta Câmara Jr. (1986b), isto é, situações mais controladas parecem levar a uma redução significativa da duração de tais segmentos (para mais detalhes, ver Tabela 14 ao final desta seção). A segunda questão a ser respondida é se a vogal epentética é con- dicionada pela tonicidade da sílaba. Ou melhor, se esse fenômeno é mais recorrente em posição pretônica, como em objeto, opção, do que em posição postônica como em ritmo (COLLISCHONN, 2000; CRISTÓFARO-SILVA; ALMEIDA, 2006). Pela Tabela 6, observa-se que os dados desta pesquisa corroboram as afirmações feitas por Collischonn (2000) e Cristófaro-Silva e Almeida (2006) em relação à maior ocorrência da vogal epentética quando em posição pretônica, fato mais evidente nas produções masculinas (84% em pretônico para 49% em postônico). Tabela 6: Percentual de ocorrência de vogais epentéticas em contextos átono (pretônico) e tônico (postônico) Vogal epentética Feminino Masculino No total encontros heterossi- lábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência No total encontros heterossi- lábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência Pretônico 120 97 81% 120 101 84% Postônico 100 77 77% 100 49 49% O terceiro questionamento concerne à presença de consoante vozeada na posição da primeira consoante como favorecedora do aparecimento da epêntese (CRISTÓFARO-SILVA; ALMEIDA, 2006; SILVEIRA, 2005). Podemos dizer 8 Submetemos os valores da duração relativa ao teste t com grau de significância de 0,05 e as diferenças mostraram-se estatisticamente relevantes. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 23 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental que o vozeamento da primeira consoante do encontro parece, de fato, favorecer o aparecimento do elemento vocálico. No entanto, novamente se vê uma diferença nos resultados apresentados por ambos os sexos, pois, enquanto, para os homens, a presença de uma consoante vozeada quase dobra o percentual de ocorrência da vogal epentética (49% diante de não vozeadas e 91% diante de vozeadas); para as mulheres, o percentual é ligeiramente maior na presença de consoantes vozeadas (87% contra 73%), conforme pode ser constatado na Tabela 7. Tabela 7: Percentual de ocorrência de vogais epentéticas cuja primeira consoante do encontro seja vozeada ou não-vozeada Vogal epentética Feminino Masculino No total encontros heterossi- lábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência No total encontros heterossi- lábicos Ocorrência epêntese Percentual ocorrência Não- vozeada 120 87 73% 120 59 49% Vozeada 100 87 87% 100 91 91% Passemos agora às questões levantadas nesta pesquisa. Primeiramente veremos, pela Tabela 8, que há uma grande ocorrência da vogal epentética nos dados analisados, todos referentes ao dialeto florianopolitano (73%). Tabela 8: Percentual total de ocorrência de vogais epentéticas nos dados analisados Número total de encontros heterossilábicos Ocorrência de epêntese Percentual de ocorrência Feminino 220 173 79% Masculino 220 150 68% TOTAL 440 323 73% A partir da constatação de que a vogal epentética é largamente produzida nos dados, vamos analisar as características acústicas de tal segmento, a partir de seus dois primeiros formantes e de sua duração relativa. As pesquisas aqui citadas apresentam 24 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA as vogais epentéticas como altas e/ou médias altas ou ainda como um schwa (Projeto ALERS; CAGLIARI, 1981; CRISTÓFARO-SILVA; ALMEIDA, 2006). Formantes Nas Tabelas 9, 10, 11 e 12, são exibidas as médias dos formantes e da duração relativa dos segmentos em estudo, juntamente com o desvio padrão (DP) e o coeficiente de variação (CV),9 este último refletindo um pouco me- lhor a dispersão em torno da média. Como partimos da hipótese de que as vogais epentéticas apresentam-se como vogais altas, médias altas ou schwa, separamos tais dados nas tabelas a seguir. Apresentamos também os dados correspondentes a cada contexto estudado e ao sexo em separado. Tabela 9: Média da duração relativa e da frequência dos formantes da vogal epentética produzida por falantes do sexo masculino em encontros consonantais heterossilábicos em contexto de frases Masculino Vogal [i] [e] Parâmetro Dur. Rel. F1 F2 Dur. Rel. F1 F2 MÉDIA 3,48 310 2019 2,83 445 2127 DP 0,55 35,50 303,83 0,56 65,16 285,56 CV 15,84% 11,45% 15,05% 19,63% 14,65% 13,43% Tabela 10: Média da duração relativa e da frequência dos formantes da vogal epentética produzida pelos informantes do sexo masculino em encon- tros consonantais heterossilábicos em contexto de palavras isoladas Masculino Vogal [i] [e] Parâmetro Dur. Rel. F1 F2 Dur. Rel. F1 F2 MÉDIA 2,69 296 1976 2,50 448 2075 DP 0,73 38,81 234,21 0,55 80 213 CV 27,19% 13,11% 11,85% 21,91% 17,86% 10,26% 9 Coeficiente de variação é expresso como um percentual e descreve o desvio padrão relativo à média, sendo dado pela seguinte equação: CV=(s/x)* 100%; onde s é o desvio padrão amostral e x é a média amostral. (TRIOLA, 2005). Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 25 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Tabela 11: Média da duração relativa e da frequência dos formantes da vogal epentética produzida por falantes do sexo feminino em encontros consonantais heterossilábicos em contexto de frases Feminino Vogal [i] [e] schwa Parâ- metro Dur. Rel. F1 F2 Dur. Rel. F1 F2 Dur. Rel. F1 F2 MÉDIA 2,73 298 1991 2,51 552 2295 2,04 601 1689 DP 0,59 53,49 365,94 0,51 127,78 252,97 0,13 132,53 182,13 CV 21,48% 17,97% 18,38% 20,29% 23,13% 11,03% 6,58% 22,05% 10,78% Tabela 12: Média da duração relativa e da frequência dos formantes da vogal epentética produzida pelos informantes do sexo feminino em encon- tros consonantais heterossilábicos em contexto de palavras isoladas Feminino Vogal [i] [e] schwa Parâ- metro Dur. Rel. F1 F2 Dur. Rel. F1 F2 Dur. Rel. F1 F2 MÉDIA 2,78 307 2296 2,12 575,99 2297,07 2,15 670 1689 DP 0,57 53,31 378,98 0,34 115,45 369,51 0,32 142,35 212,22 CV 20,45% 17,36% 16,51% 16,01% 20,04% 16,09% 14,76% 21,24% 12,56% Os dados apresentados nas Figuras 2 a 7 distribuem-se conforme o modo de articulação da segunda consoante do grupo consonantal, inseridos em contextos de frases ou palavras isoladas. Nessas figuras, os segmentos que apresentam menor dispersão, aos quais sobrepomos um círculo, consi- deramos que caracterizam a posição da vogal epentética no espaço acústico vocálico. Pode-se notar ainda que, enquanto, para as mulheres, é possível se verificar a produção dos três segmentos, para os homens, apenas as vogais alta e média alta são observadas. Em contexto de frase, os dados nos quais se observou a presença da vogal epentética exibem um comportamento variável dependente do modo de articulação das consoantes que seguem esse elemento vocálico. Nos ambien- tes nasais, percebem-se, a partir das Figuras 2 e 3, nas produções femininas, parâmetros referentes às vogais anteriores, tanto média alta quanto alta, mas também referentes à vogal neutra. Veja também as Tabelas 11 e 12. 26 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA Figura 2: Espaço acústico vocálico em Hertz das vogais epentéticas em encontros consonantais heterossilábicos em ambiente nasal nas produções femininas Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 27 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Figura 3: Espaço acústico vocálico em Hertz das vogais epentéticas em encontros consonantais heterossilábicos em ambiente nasal nas produções masculinas Em ambientes fricativos (Figuras 4 e 5), vê-se uma tendência à pre- sença da vogal alta, para os dois sexos. No entanto, dados relativos às vogais média alta e neutra aparecem somente nas produções femininas, conforme se observa na Figura 4. Em contexto de palavras isoladas, os dados se comportam de maneira idêntica ao contexto frasal para as vogais que são seguidas por consoantes nasais e fricativas. No entanto, em ambiente plosivo, a diferença observada entre os sexos em contexto frasal não se mantém quando em contexto de pa- lavras isoladas. Pelas Figuras 6 e 7, vê-se que as vogais epentéticas revelam características acústicas próprias tanto de vogais anteriores altas quanto de médias altas. 28 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA Figura 4: Espaço acústico vocálico em Hertz das vogais epentéticas em encontros consonantais heterossilábicos em ambiente fricativo nas produções femininas. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 29 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Figura 5: Espaço acústico vocálico em Hertz das vogais epentéticas em encontros consonantais heterossilábicos em ambiente fricativo nas produções masculinas Encontramos ainda, entre os dados analisados, frequências que carac- terizam a vogal neutra []. O Schwa, para os falantes femininos, apresenta os seguintes valores frequenciais médios de F1= 583Hz e F2= 1750 Hz (trato L=15 cm).10 10 As frequências de ressonância aqui modeladas correspondem à vogal neutra []. Gannar Fant, em seu livro intitulado “Teoria Acústica da Fala” (1960), apresenta, para o cálculo das frequências de ressonância em um tubo uniforme, a seguinte fórmula: Fn=(2n-1) C/4L, onde C é a velocidade do som no ar (C=35cm/s); L é o comprimento do tubo e n é um número inteiro (n=0, 1, 2, 3, ...) (FANT, 1960, apud LIEBERMAN; BLUMSTEIN, 1988). 30 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA Figura 6: Espaço acústico vocálico em Hertz das vogais epentéticas em encontros consonantais heterossilábicos em ambiente plosivo nas produções femininas A partir das caracterizações acústicas apresentadas anteriormente, pode- mos afirmar que a vogal inserida em encontros consonantais heterossilábicos ma- nifesta-se, no dialeto florianopolitano, tanto como uma vogal anterior alta quanto uma anterior média alta, ou seja, como um contínuo que se estende de uma posi- ção média à alta. Nesse caso, podemos dizer que nossos dados corroboram as co- locações de Cristófaro-Silva e Almeida (2006) para o dialeto de Belo Horizonte, como também as colocações de Cagliari (1981) e do Projeto ALERS, já que, em Florianópolis, são produzidas tanto a vogal alta, quanto a média alta. No entanto, também verificamos a ocorrência de uma vogal mais baixa e centralizada, já cita- da em Cagliari (1981). Esse comportamento variável confirma nossa hipótese de que, no PB, a vogal epentética nem sempre é a mesma. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 31 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental Figura 7: Espaço acústico vocálico em Hertz das vogais epentéticas em encontros consonantais heterossilábicos em ambiente plosivo nas produções masculinas Pelas figuras anteriormente apresentadas, vemos que há dados que poderiam caracterizar outros segmentos vocálicos, porém a quantidade des- ses dados nos impossibilita apresentarmos conclusões mais seguras acerca da presença desses outros elementos vocálicos como característicos da vogal epentética. Duração Com relação à duração das vogais epentéticas nos ambientes anali- sados (frases e palavras), optamos por considerar o valor relativo a fim de neutralizar diferenças na velocidade de fala dos informantes (Tabelas 9 a 12). 32 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA Assim, obtivemos o valor relativo dividindo a duração da vogal epentética pela duração da palavra em que tais vogais se inseriam. Em encontros consonantais heterossilábicos em que a primeira con- soante ocupava a posição de coda de uma sílaba tônica, com a epêntese ela passa a ocupar a posição de onset de uma outra sílaba cujo núcleo é a própria vogal epentética. Essa sílaba é vista agora como postônica (exemplo: ritmo xtm). No entanto, a consoante que pertencia a uma sílaba pretônica, ao se juntar à vogal epentética, forma uma nova sílaba que continua em posição pretônica (exemplo: obter tx). Dessa maneira, consideraremos essa nova posição de tonicidade nos dados relativos à duração de sílabas pré- e postônicas. Tabela 13: Média da duração absoluta da vogal e da palavra em que a vogal epentética se insere; média da duração relativa dessa vogal epen- tética diante de diferentes modos de articulação consonantais — informantes de ambos os sexos Masculino Feminino Duração Duração Diante de: Vogal (D1) Palavra (D2) D1/D2 Vogal (D1) Palavra (D2) D1/D2 Nasais 25,27 597,57 4,23% 14,57 677,86 2,15% Fricativas 26,71 669,82 3,99% 13,78 681,91 2,02% Plosivas 26,4 395,29 6,68% 16,02 556,45 2,88% MÉDIA 26,13 554,23 4,97% 14,79 638,74 2,35% DP 0,76 142,30 1,49 1,14 71,29 0,46 CV 2,90% 25,68% 29,99% 7,68% 11,16% 19,70% De maneira geral, pela Tabela 13, podemos dizer que os falantes mas- culinos apresentam em média o dobro da duração relativa de suas vogais epentéticas em relação à média apresentada nas produções dos falantes femi- ninos diante de todos os contextos consonantais investigados. Podemos dizer ainda, pela Tabela 14, que a vogal epentética no dialeto florianopolitano apresentou, em média, maior duração relativa quando em po- sição postônica do que pretônica nas produções femininas, e o inverso ocorre nas produções masculinas, sendo as realizações em posição pretônica ligeira- Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 33 A vogal epentética em encontros consonantais heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental mente maiores nas produções masculinas. Podemos dizer ainda que a duração relativa média das produções femininas em posição pretônica corresponde a quase metade das produções masculinas. Tabela 14: Média da duração da vogal epentética produzidas em ambiente pré- e postônico para falantes femininos e masculinos Feminino Frase Palavra Duração Frase Duração Palavra Duração Relativa Frase Duração Relativa Palavra Postônica 20,75 20,16 491,65 651,44 4,22% 3,09% Pretônica 19,68 20,99 503,10 739,67 3,91% 2,84% Masculino Frase Palavra Duração Frase Duração Palavra Duração Relativa Frase Duração Relativa Palavra Postônica 19,52 18,02 378,14 481,11 5,16% 3,75% Pretônica 31,32 27,78 509,87 667,08 6,14% 4,16% Conclusões Tentamos, ao longo do texto, responder às várias perguntas coloca- das por diferentes estudos sobre o tema aqui pesquisado, como também as colocadas pela presente análise. Concluímos, assim, que os dados descritos se mostraram consistentes e, com base neles, podemos dizer que existe uma grande ocorrência de um segmento vocálico epentético entre as consoantes dos encontros consonantais heterossilábicos no falar florianopolitano. A maior parte desses segmentos apresenta características semelhantes às da vogal [], podendo, no entanto, ocorrer também como [] ou um schwa [] (este último segmento presente apenas nas produções femininas). Dessa forma, confirma- se nossa hipótese de que a vogal epentética nem sempre é a mesma no PB. 34 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009 Francine SILVEIRA e Izabel Christine SEARA SILVEIRA, Francine; SEARA, Izabel Christine. The epentectic vowel between the consonants in different syllables (heterosyllabic): an experimental study. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 9-35, 2009. ABSTRACT: The epenthetic vowel has been the subject of several researches on Brazilian Portuguese. In order to add data to such studies, this essay aims at presenting acoustic characteristics of vocalic segments that are between consonant clusters. The parameters analyzed are: the relative duration and the first two oral formants (F1 and F2, the former refers to vocalic height and the latter refers to anteriority, respectively). The informants of this research were 4 native speakers from Florianópolis (SC) (2 male and 2 female) aged 24 to 30 years and college graduated. We observe in our data the existence of a vocalic seg- ment between the hetero- syllabic consonant cluster. The segment presents most of the times acoustic characteristics of the high front vowel , which can be characterized as a mid-high vowel or a schwa. KEYWORDS: Hetero-syllabic consonant clusters. Epenthetic vowel. Acoustical analysis. Experimental phonetics. Brazilian Portuguese. Referências ALBER, Birgit; PLAG, Ingo. Epenthesis, deletion and the emergence of the optimal syllable in Creole. Língua, Amsterdam, Elsevier, v. 111, n. 11, p. 811-840, 2001. CAGLIARI, Luiz Carlos. Elementos de Fonética do português brasileiro. 1981. 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Rio de Janeiro: LTC, 2005. 36 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 TRANSITIVIDADE DOS VERBOS ALTERNANTES: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA Larissa CIRÍACO1 RESUMO: Este artigo traz uma proposta semântica para se classificar os verbos alternantes quanto a sua transitividade. Parte-se de uma análise das propriedades semântico-lexicais acarretadas pelos verbos causativos do Português Brasileiro, assumindo-se ser a transitivi- dade um fenômeno de interface entre a sintaxe e a semântica lexical. A proposta mostra não só a propriedade semântica relevante para a transitividade, mas também os processos gerais responsáveis pelas alternâncias verbais. PALAVRAS-CHAVE: Transitividade. Propriedades semânticas. Verbos alternantes. Introdução Sintaticamente, os verbos podem ser classificados quanto ao número de argumentos que tomam numa sentença. Se tomarem dois ou mais argu- mentos, são chamados verbos transitivos; mas se tomarem apenas um argu- mento, são chamados verbos intransitivos. O verbo matar, por exemplo, é classificado como transitivo, pois aparece com dois argumentos: um sujeito e um complemento. O verbo morrer, por outro lado, é classificado como intran- sitivo, pois toma apenas um argumento: (1) Paulo matou a mosca. (2) Paulo morreu. 1 Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da Universidade Fede- ral de Minas Gerais; Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. laciriaco@gmail.com Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 37 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica Entretanto, para verbos que apresentam dois padrões de realização ar- gumental, esse critério não é suficiente para estabelecer sua transitividade: (3) a. João quebrou o vaso. b. O vaso quebrou. Quebrar participa de uma alternância de transitividade: pode aparecer em uma sentença com dois argumentos, como em (a), ou em uma sentença com apenas um argumento, como em (b). Depara-se, pois, com o problema de como determinar a transitividade desse tipo de verbo. Seria ele transitivo ou intransitivo? Que informações possibilitam ao falante saber que matar é um verbo transitivo e que morrer é intransitivo? Considerando-se esse conheci- mento, como seriam classificados então os verbos alternantes? Assumindo, em relação à aquisição e ao conhecimento que o falante tem de sua língua, que seria mais custoso postular, para uma teoria gramati- cal, a existência de duas entradas lexicais diferentes para os verbos alternan- tes, adota-se a hipótese de que existe uma ‘forma básica’ para a transitividade. Parte-se também do pressuposto de que existem componentes de significado importantes para se determinar a transitividade verbal. Em outras palavras, a transitividade é vista como uma categoria gramatical de interface entre a sintaxe e a semântica lexical, ou seja, apresenta não apenas uma face sintática (como a forma sentencial na qual aparece o verbo); mas também uma face semântica, relativa às informações semântico-lexicais dos verbos. Adotando-se a proposta de Cançado (2005, 2003) para os papéis temá- ticos, assumem-se propriedades semântico-lexicais acarretadas pelos verbos como parte do conhecimento gramatical dos falantes. Desse modo, busca-se, neste artigo, um modo de estabelecer a transitividade básica dos verbos no português brasileiro, utilizando-se essas propriedades semântico-lexicais. O trabalho está assim organizado: a primeira seção é dedicada às ques- tões levantadas neste artigo, com algumas considerações sobre seu tratamento na literatura linguística. Na segunda seção, esclarece-se o suporte teórico utili- zado: a noção de acarretamento lexical proposta por Dowty (1989) e a proposta obre as propriedades semânticas relevantes na composição de papéis temáticos de Cançado. A terceira seção se dedica à apresentação da proposta deste artigo: 38 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO a análise da propriedade semântica relevante para a transitividade dos verbos alternantes; uma extensão das considerações para os verbos inergativos e inacu- sativos; os prováveis processos gerais envolvidos na mudança de transitividade dos verbos, e, ainda, uma visão panorâmica sobre a semântica dos verbos em geral decorrente da análise feita neste artigo. Por fim, a quarta seção conclui o trabalho, retomando resumidamente a proposta apresentada. O problema da transitividade A questão de se definir a transitividade de um verbo parece crucial quando lidamos com algumas alternâncias verbais. Para problematizarmos essa questão, tomemos como exemplo a alternância causativo-ergativa: (4) a. Maria entornou o leite. b. O leite entornou. Observando as sentenças acima, aparentemente, a sentença em (b) seria derivada da sentença em (a) por um processo de alçamento do com- plemento para a posição de sujeito e apagamento do argumento externo. A evidência para se pensar nesse processo advém do fato de que o complemento da sentença em (a) possui a mesma interpretação do sujeito da sentença em (b). Ainda, a formação da sentença em (b) parece obedecer a outras restrições, visto que o verbo entornar não aparece como intransitivo se seu sujeito não puder ser interpretado como paciente: (5) * João entornou.2 Por outro lado, o raciocínio contrário também poderia ser feito: aparen- temente, a sentença (a) poderia ser derivada da sentença (b) por um processo de inclusão de um argumento na estrutura argumental do verbo. Nessa perspecti- va, emerge, pois, a questão de qual forma seria básica e qual seria a resultante. 2 Uma sentença como essa é possível apenas dentro de um contexto discursivo, em que o complemento do verbo é retomado. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 39 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica A transitividade é um tema recorrente na literatura linguística. Encon- tram-se abordagens semânticas, sintáticas e discursivas sobre esse fenômeno (cf. HOPPER e THOMPSON, 1980; BOWERS, 2002, BASSANI, 2008 e outros). Levin (1993) assume que dadas duas ocorrências de um mesmo ver- bo, uma transitiva e outra intransitiva, a intransitiva deveria ser considerada a fundamental, pois, semanticamente, ela estaria contida na forma transitiva do verbo. Porém, no trabalho de Levin e Rappaport-Hovav (1995), há uma refor- mulação dessa proposta. Segundo as autoras, se um verbo possui as ocorrên- cias transitiva e intransitiva, sua forma mais básica deve ser a transitiva, pois, do contrário, não seria possível derivar a forma transitiva da intransitiva, pelo simples fato, rejeitado por elas, de que um argumento teria de ser incluído na estrutura argumental do verbo. Entretanto, as autoras não explicam como ve- rificar que a forma básica é a transitiva. Whitaker-Franchi (1989, p. 121), em- bora sem discutir o tema, cita casos que considera serem ilustrativos de uma “causativização ou transitivização”, ou seja, “verbos mais tipicamente usados como intransitivos que apresentam um emprego transitivo mais excepcional”: (6) Essa escova dói a cabeça.3 (7) A bicicleta sua você. (verbo suar) Tais processos se contrapõem ao que a autora chama de “decausati- vização ou ergativização”, ou seja, “o emprego intransitivo de verbos tipica- mente transitivos”: (8) a. Elisa abriu a gaveta. b. A gaveta abriu. Porém, a autora também não mostra quais são os verbos “tipicamente tran- sitivos” e quais são os verbos “tipicamente intransitivos”, nem como podemos ve- rificar a forma típica de transitividade dos verbos. Talvez, dentro dessa perspectiva, fosse necessária uma análise baseada na frequência de uso para verificar quais ver- bos são “tipicamente transitivos” e quais são “tipicamente intransitivos”, o que não se encaixaria numa pesquisa com os pres-supostos teóricos aqui adotados. 3 Exemplos de Whitaker-Franchi (1989, p.121). 40 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO Há também autores que não fazem distinção entre formas inacusativas (ou ergativas) de verbos como quebrar e sumir e de verbos como aparecer e cair (BURZIO, 1986; ELISEU, 1984). No entanto, considera-se a alternância uma forte motivação sintática para tratar esses verbos de forma distinta. O verbo quebrar pode manifestar duas transitividades, ao passo que o verbo aparecer não: (9) a. João quebrou o vaso. b. O vaso quebrou. (10) a. João apareceu. b. *Alguém apareceu João. Com a observação dos dados da língua e das direções apontadas na li- teratura, parece razoável assumir que existem verbos basicamente transitivos que se tornam intransitivos e vice-versa. Acarretamentos lexicais e propriedades semântico-lexicais Cançado (2005, 2003) entende que o conteúdo semântico dos papéis temáticos é relevante para uma teoria gramatical, visto que fenômenos sintá- ticos são sensíveis a propriedades semântico-lexicais. A partir disso, a autora reformula o conceito de papel temático, tratando de maneira mais fina seu conteúdo e visando a uma definição mais formal. A autora entende o papel temático de um argumento como um grupo de propriedades semânticas. Segundo ela, os itens lexicais carregam proprie- dades lexicais de sentido, além de informações sobre sua compatibilidade com outras propriedades. São essas propriedades que compõem o papel te- mático de um dado argumento. Assume-se, então, assim como Jackendoff (1983, 1990); Foley e Van Valin (1984) e Dowty (1989, 1991), um conceito de papel temático derivado, ou seja, os primitivos em sua proposta são essas propriedades e não as noções de “agente”, “paciente”, “tema”, etc. Para se chegar às propriedades que compõem os papéis temáticos, Cançado utiliza-se da ideia de acarretamento lexical, proposta por Dowty (1989) a partir da noção de acarretamento lógico. O acarretamento, uma re- Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 41 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica lação estritamente semântica entre sentenças, é aquilo que se pode inferir ne- cessariamente sobre uma sentença S somente por saber que ela é verdadeira. Dowty estende essa noção aos itens lexicais, mais especificamente, aos ver- bos. Aplicando a definição, numa sentença do tipo [x V y], os acarretamentos lexicais de x são aquilo que se pode inferir necessariamente sobre esse argu- mento somente por sabermos que [x V y] é verdade. Portanto, o papel temáti- co do argumento x será o conjunto de propriedades acarretadas lexicalmente a x, pelo verbo: (11) Maria quebrou o vaso com um martelo. O papel temático de Maria é o conjunto de propriedades que se pode inferir necessariamente sobre Maria na sentença acima: ser animado, ser o desencadeador do processo de quebrar, ter intenção, usar um instrumento, etc. Observe que o papel temático de um argumento é composto por proprie- dades acarretadas lexicalmente pelo verbo quebrar a Maria, mas também por propriedades acarretadas de forma composicional. A ideia de composiciona- lidade é outra noção importante nessa proposta. Na proposta de Cançado, é assumido que na atribuição de papel temático aos argumentos de um predica- dor devem-se considerar não apenas as propriedades acarretadas lexicalmente pelo verbo, mas também as propriedades inferidas pela composição dos itens lexicais na sentença. Para os propósitos deste artigo, é importante, em primeiro lugar, dei- xar clara a diferença entre propriedades acarretadas lexicalmente e proprie- dades acarretadas composicionalmente. As propriedades acarretadas lexical- mente numa sentença [x V y] são aquelas acarretadas a x ou y pelo verbo V, ou seja, são as propriedades que poderão ser inferidas necessariamente a x ou y em qualquer composição sentencial. Em outras palavras, os acarretamentos lexicais de um verbo consistem em tudo o que se pode concluir sobre seus argumentos somente por conhecer seu sentido lexical, independentemente da composição da sentença em que esse verbo aparece. Já as propriedades acarretadas composicionalmente são aquelas que podem variar conforme as sentenças em que o verbo e seus argumentos aparecem, pois dependem da composição dos sentidos dos itens lexicais. Em segundo lugar, é importante frisar que o papel temático não está marcado no léxico, a priori. Os primitivos 42 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO lexicais são as propriedades semânticas que compõem o papel temático que será atribuído ao argumento. Com isso, o objetivo deste artigo será investigar de maneira mais fina as propriedades relevantes para se definir a transitivida- de básica de um verbo, investigando principalmente as propriedades acarre- tadas lexicalmente pelos verbos a seus argumentos. Outro ponto importante é usar a noção de acarretamento lexical como instrumento formal de análise. Esse procedimento leva a uma atribuição de papel temático mais sistemática, eliminando alguns problemas decorrentes das definições descritivas comu- mente utilizadas. Cançado destaca apenas quatro propriedades como relevantes grama- ticalmente.4 As propriedades semânticas destacadas são: ser o desencadeador de um processo, ser afetado por esse processo, estar em determinado estado e ter controle sobre o desencadeamento, processo ou estado. A propriedade de ser o desencadeador é definida como ter algum papel no iniciar do evento. Se, por exemplo, numa sentença da forma [x V y], é acarretada ao argumento x, no conjunto de propriedades acarretadas a x, ou seja, Pn(x), a propriedade de ter um papel no iniciar do evento, dizemos que x tem a propriedade de de- sencadeador como uma das propriedades componentes de seu papel temático. Veja o exemplo: (12) João quebrou a porta. Na sentença acima, do tipo [x V y], podemos inferir para x, no conjun- to Pn(x), a propriedade de ser o desencadeador do evento de quebrar a porta como uma das propriedades de seu papel temático. A propriedade de ser afetado por um processo é definida como a mu- dança de um estado A para um estado B. Será adotada uma noção bem ampla de mudança de estado, abrangendo a mudança de um lugar para outro, ou seja, o deslocamento; a mudança de posses; a mudança de estado físico, ou seja, mudança de constituição física de pessoas e objetos; a mudança de esta- do de existência, ou seja, mudança do estado de não existir para o estado de passar a existir; a mudança de estado psicológico ou mental; etc. No exemplo 4 Em (11) acima, por exemplo, dentre os acarretamentos listados como parte do papel temático atribuído a Maria está a propriedade de ‘ter mãos’. Essa não é uma propriedade relevante para qual- quer fenômeno sintático na língua e, portanto, não possui estatuto teórico. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 43 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica acima, temos que o argumento a porta possui, dentre o conjunto de proprieda- des acarretadas lexicalmente a ele na sentença, a propriedade de ser o afetado no evento descrito. A propriedade de estar em determinado estado, ou, abreviadamente, de estativo, ocorre quando uma proposição acarreta a seu argumento que suas características não se alterem em um intervalo de tempo t. Essa propriedade pode estar associada a outras propriedades, como ser o possuidor, estar em uma experiência psicológica, ser o valor, a qualidade, o lugar, etc.: (13) João leu um livro. As proposições semânticas acarretam ao argumento um livro, no con- junto de propriedades acarretadas a ele, a propriedade de estar em determina- do estado, ou seja, ter suas características preservadas em todos os intervalos de tempo do evento descrito por ler. Diferentemente de outras propostas da literatura, Cançado não entende a noção de controle como associada apenas à noção de agente. Essa proprieda- de é assumida de forma mais ampla, e definida como a capacidade de se inter- romper uma ação, um processo ou um estado, estando intimamente relacionada à animacidade. Portanto, essa propriedade ocorre apenas em composição com alguma das outras propriedades explicadas acima, mas nunca isoladamente.5 Definindo a transitividade dos verbos alternantes Para dar início à análise, vamos retomar um exemplo da alternância causativo-ergativa: (14) a. João quebrou o vaso. b. O vaso quebrou. Em (a) tem-se uma sentença transitiva, que ilustra a perspectiva causa- tiva de um evento no mundo (algo/alguém causou uma mudança de estado em 5 Para maiores explicações da composição de controle com as outras propriedades, consulte-se Cançado (2003, 2005). 44 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO um objeto/pessoa) e, em (b), tem-se, com o mesmo verbo, uma sentença in- transitiva, que ilustra a perspectiva ergativa (algo/alguém mudou de estado).6 Primeiramente, vamos chamar as sentenças acima de ‘construções’, ou seja, um verbo V pode figurar em uma construção transitiva, com dois ou mais argumentos e também em uma construção intransitiva, com apenas um argumento. Cada uma dessas sentenças seria uma construção sintática dife- rente com o mesmo verbo. Portanto, dizer que o verbo V encontra-se em uma construção transitiva ou intransitiva é diferente de dizer que ele ‘é’ um verbo transitivo ou intransitivo. E, neste artigo, ‘ser’ um verbo transitivo ou intransi- tivo refere-se à forma básica desse verbo. Entende-se por ‘forma básica’ nada mais que a simples projeção de todos os argumentos semânticos acarretados de seu sentido, ou seja, a atribuição de todas as propriedades acarretadas le- xicalmente pelo verbo a seus argumentos. Assim, a forma básica seria em última instância um conceito semântico, e não sintático. Além disso, propõe- se que a partir dessa forma semântica básica, direta, seja ela bi-argumental ou monoargumental, propriedades semântico-lexicais permitem ou não a cons- trução da outra forma de transitividade na sintaxe. Nesses termos, tanto a for- ma de transitividade básica de um verbo quanto a possibilidade de mudança de sua transitividade estão marcadas na estrutura argumental do verbo, como propriedades semântico-lexicais mais gerais. Em outras palavras, essas carac- terísticas sintáticas são derivadas de propriedades semânticas primitivas dos itens lexicais, ou seja, se traduzem quando propriedades semântico-lexicais específicas são “lidas” pela sintaxe.7 Para estabelecer quais verbos são basicamente intransitivos e quais verbos são basicamente transitivos, serão usados, como instrumento formal de análise, os acarretamentos lexicais dos verbos. Retomando a definição, pode-se dizer que se [x V y] acarreta propriedades para x, ou seja, Pn(x), então, pode-se inferir Pn(x) em qualquer contexto em que esse verbo ocorra. Para analisar o exemplo acima, vamos utilizar, num primeiro momento, as formas [x V y] e [w V]8 para designar respectivamente as sentenças transitiva e in- 6 Estudos sobre a alternância causativo-ergativa podem ser encontrados em Whitaker-Franchi (1989), Souza (1999), Naves (2005) e Ciríaco (2007), para algumas referências em português. 7 Note que a palavra ‘derivada’ não está sendo utilizada aqui no sentido da gramática gerativa, ou seja, não como sinônimo de transformação. É importante frisar que não se assume, neste trabalho, nenhu- ma precedência de uma forma sintática sobre outra, cada uma é projetada diretamente na sintaxe a partir de sua estrutura argumental. 8 As variáveis em itálico serão utilizadas com mais rigor adiante. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 45 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica transitiva em que aparece o verbo quebrar, sem preocupação ainda de dizer qual dessas formas é a mais básica para a transitividade. Observe que em (a), tem-se a forma transitiva [x QUEBRAR y], e no conjunto Pn(x), tem-se a propriedade de ser o desencadeador do processo, que pode ser chamada de P1(x). Entretanto, se mudarmos o contexto sentencial para a forma intransitiva em (b) acima, ou seja, [w QUEBRAR], ainda assim podemos inferir P1(x), ou seja, podemos inferir que existe um desencadeador para o processo. Isso mostra que, independentemente da composição senten- cial, mesmo não estando x explícito na sintaxe, pode-se inferir essa proprieda- de. Isso porque a propriedade de desencadeador9 é um acarretamento lexical do verbo quebrar, ou seja, uma propriedade inferida necessariamente. Em outras palavras, os acarretamentos lexicais fazem parte do próprio sentido do verbo. Informalmente, pode-se inferir necessariamente do verbo quebrar que ‘algo quebra algo ou faz algo quebrar’. Por outro lado, observe este outro exemplo de alternância: (15) a. João sumiu a chave. b. A chave sumiu. Em (15a), tem-se a forma transitiva [x SUMIR y], e, dentre as proprieda- des acarretadas a x, no conjunto Pn(x), tem-se a propriedade de ser o desencadea- dor do processo, P1(x). Entretanto, em (15b), em que se tem a forma [w SUMIR], não se pode inferir a propriedade de desencadeador. Portanto, a propriedade de desencadeador não é um acarretamento lexical do verbo sumir, ou seja, não pode ser inferida necessariamente do sentido do verbo. Informalmente, o sentido do verbo não diz necessariamente que ‘algo some algo ou faz algo sumir’. A partir dessa análise, estabelece-se, do ponto de vista semântico, que verbos alternantes basicamente transitivos são aqueles que têm como um de seus acarretamentos lexicais a propriedade de desencadeador do processo. Assume-se, então, a presença dessa propriedade como um diagnóstico se- mântico da transitividade de um verbo. O verbo que apresentar essa proprie- dade como acarretamento de seu sentido aparecerá invariavelmente na sin- 9 A fim de agilizar a leitura deste artigo, informalmente, se fará referência às propriedades apenas pelos nomes de ‘desencadeador’, ‘afetado’, etc., mas lembramos que essas são propriedades que compõem um papel temático e não o papel em si. 46 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO taxe como transitivo. O verbo causativo quebrar é um verbo basicamente transitivo, pois tem como acarretamento lexical um desencadeador. O ver- bo sumir, por outro lado, é um verbo basicamente intransitivo, pois não tem como acarretamento lexical a propriedade de desencadeador. Observe que apenas a noção estritamente semântico-lexical do acarre- tamento, que diz respeito apenas ao conteúdo semântico-lexical dos verbos da língua, foi utilizada. Pragmaticamente, todo evento no mundo pode ter uma causa, motivo ou explicação para ocorrer, que não pode ser confundido com a propriedade acarretada lexicalmente de desencadeador, que compõe um papel temático. Para uma sentença como: (16) A Joana caiu. aplicando a noção de acarretamento, em (16), tem-se [x CAIR] e não se pode inferir um desencadeador do processo dentre o conjunto de pro- priedades acarretadas pelo verbo cair. O verbo cair não acarreta, necessa- riamente, que ‘algo fez a Joana cair’. Assim, cair não acarreta lexicalmente um desencadeador, mas somente um afetado no processo. Entretanto, isso não impede a formação de uma estrutura sintática complexa, com o verbo cair, em que haja um desencadeador expresso; isto é, é perfeitamente pos- sível dizer algo como: (17) A chuva fez a Joana cair. A variável x será fixada nesta análise como o sujeito das formas transi- tiva e intransitiva básicas, ou seja, [x V y] e [x V]; e a variável y como o com- plemento da forma transitiva básica, ou seja, [x V y]. A partir dessas formas mais básicas de transitividade, podem ser aplicados processos de intransitivi- zação ou transitivização de um verbo, que obedecem a restrições específicas. Sendo assim, a forma [y V] expressará a forma derivada do processo de ‘erga- tivização’, em que y, que possui propriedades semânticas específicas para tal, é mapeado na posição de sujeito. A forma [z V x] também denotará a forma derivada do processo de ‘causativização’, na qual o argumento x é mapeado na posição de complemento e um outro argumento, z, pode ser inserido em sua estrutura como sujeito. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 47 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica Outro ponto a ser esclarecido é sobre a diferença entre causatividade, uma noção semântica, e transitividade, uma noção sintático-semântica. Um verbo causativo é aquele que possui pelo menos dois argumentos, acarretando a um deles a propriedade de desencadeador e ao outro a propriedade de afeta- do. Um verbo transitivo é aquele que, semanticamente, possui como acarreta- mento lexical a propriedade de desencadeador e, sintaticamente, manifesta-se na forma [x V y]. Estendendo a proposta à hipótese inacusativa Na tradição dos estudos formalistas, os verbos intransitivos dividem- se em duas sub-classes, conforme a hipótese inacusativa: inacusativos e iner- gativos, sendo cada classe associada a propriedades semânticas e sintáticas específicas. Semanticamente, conforme Ciríaco e Cançado (2006), os verbos inacusativos selecionam um argumento com a propriedade de afetado; já os inergativos selecionam um argumento com as propriedades de desencadea- dor e de afetado. Sintaticamente, numa análise gerativa, os inergativos são aqueles que possuem um sujeito em estrutura profunda e os inacusativos são aqueles que possuem um sujeito derivado (BURZIO, 1986; PERLMUTTER, 1978). Essa característica sintática levou os verbos inergativos à condição de verdadeiros intransitivos, pois, ao contrário dos inacusativos, eles possuem um sujeito em estrutura profunda: (18) João correu. (19) João apareceu. Em (18) temos um verbo inergativo, correr, sendo seu sujeito gerado como argumento externo. Em (19), temos um verbo inacusativo, aparecer, que possui um sujeito derivado, gerado como argumento interno, e posterior- mente movido para a posição de sujeito. Entretanto, na proposta deste artigo, não se assumem níveis sintáti- cos, nem movimentos entre esses níveis. Assume-se que existe, para os ver- bos alternantes, uma forma semântica básica de transitividade e que a outra forma de transitividade é licenciada por propriedades semântico-lexicais dos verbos. Ambas as formas são projetadas diretamente na sintaxe. Analisemos, 48 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO então, dentro desta proposta, os verbos correr e aparecer quanto a sua transi- tividade. Em (18), tem-se a forma [x CORRER], em que se podem inferir para x as propriedades de ser o desencadeador e de ser afetado no processo. Em (19), tem-se a forma [x APARECER] e não se pode inferir um desencadeador para o processo, apenas um afetado. O desencadeador é um acarretamento lexical somente para o verbo correr, mas não para o verbo aparecer. Na se- ção anterior, estabeleceu-se que a presença da propriedade de desencadeador como acarretamento lexical de um verbo indica que esse verbo é basicamen- te transitivo. Porém, além dessa propriedade, vimos também que os verbos basicamente transitivos apresentam a forma [x V y]. O verbo correr possui a propriedade de desencadeador como acarretamento lexical, no entanto, apre- senta a forma [x V]. Entretanto, observe que o verbo correr, e também outros verbos inergativos, podem recuperar a forma transitiva [x V y] através de um complemento cognato especificado: (20) a. João correu a corrida de São Silvestre. b. João cantou uma canção triste. c. A bailarina dançou uma dança esquisita. d. O atleta nadou um nado eclético. As construções acima mostram que os verbos inergativos podem acei- tar dois argumentos em sua estrutura sintática, o que, juntamente com o fato de que esses verbos acarretam a x a propriedade de desencadeador do pro- cesso, os levaria à condição de verbos basicamente transitivos, pelo menos, implicitamente. Seguindo esse raciocínio, os verbos inacusativos devem ser considerados os únicos verbos realmente intransitivos, porque além de não acarretarem um desencadeador do processo, a forma transitiva [x V y], proto- tipicamente, não pode ser recuperada: (21) a. * João caiu uma caída feia. b. * João chegou uma chegada esquisita. c. * Maria apareceu uma aparecida de repente. d. * O nenê nasceu uma nascida difícil. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 49 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica Sintaticamente, verbos inacusativos são os únicos verbos que não aceitam dois argumentos em sua estrutura sintática, e, semanticamente, não possuem o acarretamento lexical de desencadeador; em realidade, eles acar- retam a x apenas a propriedade de ser o afetado no processo.10 Vale, aqui, uma outra observação sobre mais alguns verbos comumente uti- lizados como intransitivos. Observe que os verbos levantar, sentar, mover, mexer, etc. numa construção como a expressa em (22), acarretam a x não apenas a pro- priedade de desencadeador, mas também a propriedade de afetado no processo: (22) O menino levantou/ sentou/ moveu/ mexeu. Essa característica os faz semelhantes aos tradicionais verbos inerga- tivos, vistos mais acima. Entretanto, note também que existe a possibilidade de essas construções ocorrerem com a partícula se: (23) O menino se levantou/ sentou/ moveu/ mexeu. Em hipótese, a presença do clítico se estaria associada a uma mu- dança na diátese do verbo, de acordo com a tradição dos estudos lexica- listas (GRIMSHAW, 1990; DOBROVIE-SORIN, 2006; entre outros), po- dendo ser essa uma forma derivada de alternância. Sendo assim, o indício de que essa seria uma construção resultante de uma mudança de diátese associado ao fato de que tais verbos possuem como acarretamento lexical a propriedade de desencadeador, os levaria à condição de verbos basica- mente transitivos. Em tese, as sentenças abaixo formariam então um tipo de alternância, em que em (a) tem-se uma construção causativa e, em (b), uma construção inergativa, ou seja, com características típicas das cons- truções com verbos inergativos: (24) a. João levantou o menino. b. O menino (se) levantou.11 10 As propostas sintáticas de Hale e Keyser (1993) e de Radford (1998) também apontam nessa direção. 11 Essa construção tem sido chamada de ‘média’, conforme Creissels (2006) e outros autores. Dife- rente da construção medial, que possui um sujeito com a propriedade de afetado, a média possui um sujeito com as propriedades de desencadeador e afetado, assemelhando-se às construções com verbos inergativos. 50 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO Tal alternância estaria associada a restrições específicas, visto que ela não é possível em determinados contextos: (25) a. João levantou o livro. b. * O livro levantou. Os processos de causativização e ergativização O processo de ergativização, de natureza semântico-lexical e operan- do sobre a estrutura argumental do verbo, ocorre quando o argumento de um verbo que recebe a propriedade de afetado é mapeado na posição de sujeito. Esse processo ocorre sempre com verbos causativos, basicamente transitivos, que podem aparecer em uma construção de perspectiva causativa (como em (a)) ou em uma de perspectiva processual (como (b)): (26) a. João / o vento quebrou o vaso. b. O vaso quebrou (com o vento). Pode-se perceber, então, que o verbo causativo quebrar, basicamente tran- sitivo, passa pelo processo de ergativização quando aparece em uma construção intransitiva. Temos, então, as seguintes estruturas para esse verbo: [x V y] ou [y V]. A causativização, também de natureza semântico-lexical, consiste em inserir um argumento desencadeador à estrutura argumental de um verbo basi- camente intransitivo, dando origem à forma causativa sintética [z V x], que cor- responde semanticamente à forma causativa analítica [z CAUSA x V]. Nesse processo, o verbo tipicamente processual incorpora uma causação: (27) a. A chave sumiu. b. João fez a chave sumir. c. João sumiu (com) a chave.12 12 Observe que a preposição com é possível em alguns contextos de causativização. Essa ocorrência reforça a nossa proposta sobre esse processo, pois, conforme hipótese de Cançado (2005), preposições encabeçando argumentos nesses casos, assim como a partícula se, seriam marcas morfológicas de uma alternância de diátese. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 51 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica O verbo processual sumir, basicamente intransitivo, aceita o processo de causativização e aparece em uma construção transitiva. Temos, então, as seguintes estruturas para esse verbo: [x V] ou [z V x]. Recapitulando, considera-se que o verbo quebrar é um verbo basi- camente transitivo e que o verbo sumir é basicamente intransitivo. O pri- meiro aceita o processo de ergativização, como em (26b). O segundo aceita o processo de causativização, como mostra a sentença em (27c). Vejam-se alguns exemplos de verbos basicamente transitivos que aceitam o processo de ergativização: (28) a. Eduardo entortou a maçaneta. b. A maçaneta entortou. (29) a. Maria abriu a porta. b. A porta abriu. (30) a. A tempestade afundou o barquinho. b. O barquinho afundou. (31) a. Joana encheu o tanque. b. O tanque encheu. (32) a. A costureira rasgou o vestido. b. O vestido rasgou. (33) a. O garçom entornou o vinho. b. O vinho entornou. Para todos os verbos acima, das sentenças causativo-transitivas em (a), do tipo [x V y], pode-se inferir a propriedade de desencadeador do processo. Do mesmo modo, também numa sentença com a estrutura [y V], em (b), po- de-se inferir um desencadeador para o processo. Portanto, o desencadeador é um acarretamento lexical dos verbos entortar, abrir, afundar, encher, rasgar e entornar, pois, independentemente do contexto sentencial em que ocorrem, pode-se inferir essa propriedade. É possível perceber para os exemplos em (b) acima, que se a maçaneta entortou, então, necessariamente, algo a fez entor- tar; se a porta abriu, então, necessariamente, algo a fez abrir; se o barquinho afundou, então, necessariamente, algo o fez afundar; e assim sucessivamente 52 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO com os outros verbos. Portanto, conclui-se que os verbos acima são verbos causativos basicamente transitivos, que aceitam o processo de ergativização, tendo como resultado as construções ergativas em (b). Vejam-se também alguns exemplos de verbos basicamente intransiti- vos que aceitam o processo de causativização: (34) a. O nenê acordou. b. O barulho acordou o nenê. (35) a. A criança adormeceu. b. A música adormeceu a criança. (36) a. A festa começou. b. A banda começou a festa. (37) a. O vinho acabou. b. O padre acabou (com) o vinho (38) a. As flores desabrocharam. b. O sol desabrochou as flores. Para os exemplos em (a) acima, tem-se a forma intransitiva [x V], em que não se pode inferir, no conjunto Pn(x), a propriedade de desencade- ador; embora, nas sentenças em (b), com a forma [z V x], essa propriedade possa ser inferida para z. A propriedade de desencadeador, então, não é um acarretamento lexical dos verbos acordar, adormecer, começar, acabar e desabrochar. Não se pode inferir necessariamente do sentido desses verbos um desencadeador: se é verdade que o nenê acordou, não se pode inferir necessariamente que algo acordou o nenê; se é verdade que a criança ador- meceu, não se pode inferir necessariamente que algo adormeceu a criança; se é verdade que a festa começou, não se pode inferir necessariamente que algo/alguém começou a festa; se é verdade que o vinho acabou, não se pode inferir necessariamente que algo/alguém acabou o vinho; e se é verdade que as flores desabrocharam, não se pode inferir necessariamente que algo/ alguém desabrochou as flores. Portanto, conclui-se que os verbos acima são verbos basicamente intransitivos, que aceitam a causativização, como mostram os exemplos em (b). Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 53 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica Para os verbos inergativos, tem-se um processo de causativização di- ferente do visto até aqui. É um processo semelhante, porque também se trata da inserção de um argumento desencadeador à estrutura argumental do verbo, mas diferente porque origina construções que serão chamadas de ‘duplas- causações’: (39) a. O garoto correu. b. A professora correu o garoto atrevido para fora da sala. (40) a. Os filhos estudam.13 b. O pai estudou os filhos até a faculdade.14 (41) a. Os meninos almoçaram. b. Eu já almocei os meninos. As sentenças em (b), da forma [z V x], podem ser chamadas du- plas-causações porque a propriedade de ser o desencadeador do proces- so compõe o papel temático de seus dois argumentos, z e x. Em (40b), por exemplo, a professora possui, dentre as propriedades que compõem seu papel temático, as propriedades de ser o desencadeador e de ter con- trole, notadas como D/C; enquanto o garoto possui, dentre as proprie- dades que compõem seu papel temático, as propriedades de ser o desen- cadeador do processo e de ser afetado nesse processo, ou seja, D/A. O processo que origina uma dupla-causação pode ser considerado um tipo de causativização. Entretanto, nem todo verbo basicamente transitivo passa pelo pro- cesso de ergativização, assim como nem todo verbo basicamente intransi- tivo passa pelo processo de causativização. Parece que existem restrições semântico-lexicais que licenciam esses processos. Primeiramente, têm-se alguns exemplos de verbos basicamente intransitivos que não aceitam a formação de construções causativas: 13 Toma-se o verbo estudar na acepção de atividade. Sabe-se ser possível uma outra construção, como João estuda matemática, que é um accomplishment. Entretanto, ela não invalida o exemplo. Sobre aspecto lexical ou aktionsart, consulte-se Vendler (1967), Verkuyl (1989) e ainda Wachowicz e Foltran (2007). 14 Exemplo de Cançado (2005). 54 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO (42) a. O nenê nasceu ontem. b. * João nasceu o nenê. (43) a. O copo caiu. b. * João caiu o copo. Do mesmo modo, construções de dupla-causação não ocorrem para todos os verbos inergativos: (44) * João nadou o menino na piscina. (45) * Maria voou o passarinho pela sala. Portanto, devem existir restrições semântico-lexicais específicas que governam a aplicação do processo de causativização. Têm-se, também, alguns exemplos de verbos basicamente transitivos que não aceitam aparecerem em construções ergativas, por não atenderem às restrições semântico-lexicais necessárias (CIRÍACO, 2007; WHITAKER- FRANCHI, 1989): (46) a. Joana empurrou o carrinho. b. * O carrinho empurrou. (47) a. O jogador chutou a bola. b. * A bola chutou. Para concluir, uma última observação sobre os processos refere-se aos tipos de construções que deles resultam. Foi visto, até aqui, que o processo mais geral de causativização se relaciona a construções causativas e a constru- ções de dupla-causação, com cada uma obedecendo a suas próprias restrições. Do mesmo modo, a ergativização, de modo geral, consiste no mapeamento do complemento do verbo na posição de sujeito. Em tese, esse processo mais geral estaria relacionado também a outros tipos de construções além das er- gativas, como a medial (mostrada em (49)) (CIRÍACO, em preparação) e a ergativa cindida (mostrada em (50)) (CANÇADO, 2006): Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 55 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica (48) Vasos quebram facilmente. (49) João quebrou a perna. Para uma classificação semântica dos verbos em termos acionais Também como extensão desta proposta, em termos preliminares, ter- se-ia uma relação entre as propriedades semânticas acarretadas pelos verbos e seus tipos acionais. Relacionam-se accomplishments aos verbos de causação, achievements aos verbos processuais e atividades aos verbos que chamaremos de causação/processo, ou médios. Essa distinção segue um critério temático-lexical: os verbos de causação, que normalmente denotam accomplishments aspectu- almente, são aqui definidos como aqueles que acarretam a x a propriedade de desencadeador do processo e a y a propriedade de afetado no processo. Por pos- suírem a propriedade de desencadeador como acarretamento lexical de x e por to- marem um segundo argumento, podendo ter a forma [x V y], conclui-se também que verbos causativos são verbos basicamente transitivos. Eles podem alternar ou não: aqueles que alternam formam ergativas através do processo de ergativização e passam a descrever um achievement. Há também aqueles que não alternam: (50) a. João quebrou o vaso. / O vaso quebrou. b. João escreveu a carta. / * A carta escreveu. Os verbos de processo são aqueles que acarretam a x a propriedade de afetado, e, podendo estar na forma [x V y], acarretam a y a propriedade de estativo. Um exemplo seria: (51) Maria recebeu uma carta. Vale lembrar mais uma vez que a definição semântica de transitividade encontrada nesta pesquisa se limita aos verbos alternantes, não possuindo es- copo sobre verbos como receber, mesmo porque não é necessário um critério para além do critério de número de argumentos para definir sua transitivida- de. Dentre os verbos processuais, que, normalmente, denotam achievements, 56 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO estão os inacusativos, que possuem a forma [x V]. Esses constituem a única classe de verbos realmente intransitivos nesta proposta, pois não acarretam lexicamente a x a propriedade de desencadeador, nem possuem um comple- mento. Existem aqueles que alternam, através do processo de causativização, e aqueles que não alternam: (52) a. A fruta amadureceu. / O calor amadureceu a fruta. b. O açúcar caiu. / * O menino caiu (com) o açúcar.15 Parece que, se se assumisse um contínuo entre os verbos causativos e os processuais, entre eles estariam verbos que denotam atividades. Esses verbos ou aparecem usualmente na forma [x V y] ou podem ter essa forma recuperada, como os verbos inergativos, transformando-se em accomplish- ments. Eles acarretam a x, no conjunto Pn(x), a propriedade de ser o desenca- deador do processo, ser o afetado por esse processo e também de ter controle. Dada essa característica, esses verbos serão chamados de verbos de causação/ processo ou verbos médios, pois existe uma causação sendo desencadeada e sofrida pelo mesmo participante do evento: (53) a. João desceu a escada. b. João correu (a corrida de São Silvestre). Tais verbos, principalmente aqueles do tipo de descer, não podem ser considerados causativos, pois não acarretam a y a propriedade de ser afeta- do, mas sim de estar em determinado estado. Observe que a escada em (a) é apenas um objeto de referência. Semanticamente, eles são considerados basi- camente transitivos, pois possuem o acarretamento lexical de desencadeador. Já sintaticamente, eles podem ou não vir acompanhados de um complemento. Para finalizar essa seção, vale lembrar que essas considerações têm caráter meramente especulativo, devendo ser desenvolvidas em um traba- lho a parte. 15 Como bem lembrado pelo parecerista anônimo que avaliou este artigo, o léxico do português dispõe do verbo derrubar para expressar a perspectiva causativa deste evento no mundo. A não ocorrência da alternância em (52b) pode ser vista como um caso de bloqueio lexical (ARONOFF, 1976). Ainda assim, a argumentação acima não fica comprometida, como pode ser comprovado por outros verbos inacusativos: Maria apareceu. / * João apareceu Maria. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 57 Transitividade dos verbos alternantes: uma proposta semântica Considerações finais Em síntese, esta é uma proposta que relaciona a questão da transi- tividade dos verbos alternantes às propriedades semânticas acarretadas le- xicalmente por eles. Em primeiro lugar, assumiu-se ser a transitividade um fenômeno que se encontra na interface entre a sintaxe e a semântica-lexical e que propriedades semântico-lexicais são importantes para defini-la. Em se- gundo lugar, adotou-se a proposta de uma forma básica para a transitivida- de dos verbos alternantes, sendo essa forma básica de natureza semântica. Nessa perspectiva, as propriedades semânticas acarretadas pelo sentido de um verbo, marcadas em sua estrutura argumental, definem sua transitividade sintática básica quando da projeção de todas as propriedades acarretadas le- xicalmente em argumentos. Em terceiro lugar, assumiu-se que as alternâncias verbais, que envolvem mudança na transitividade, são também projetadas na sintaxe se licenciadas por propriedades semântico-lexicais. Assim, os proces- sos gerais de causativização e ergativização, descritos neste artigo, obedecem a restrições semânticas dessa natureza e são responsáveis por vários tipos de alternâncias verbais, como a causativo-ergativa, a medial, etc. Nessa proposta, definiu-se como verbo basicamente transitivo aquele que possui a forma [x V y] e acarreta a x, no conjunto Pn(x), a propriedade de desencadeador do processo. Desse modo, a transitividade de um verbo alternante está relacionada à presença ou à ausência do acarretamento lexical da propriedade de desencadeador, para além da forma sintática. Relacionou- se também essa proposta à tradicional hipótese inacusativa, verificando que verbos inacusativos são os únicos a que se pode chamar de verdadeiramen- te intransitivos. Por fim, forneceu-se uma caracterização geral dos verbos, relacionando-se propriedades semanticamente acarretadas e o aspecto lexical. Embora esse paralelo entre propriedades semânticas e propriedades acionais não tenha sido discutido em maiores detalhes, ele aponta algumas direções para uma nova pesquisa, mais extensa, a ser desenvolvida futuramente. Conclui-se, portanto, esse trabalho, realçando que além de fornecer um meio formal para verificar a transitividade de um verbo e de descrever os processos envolvidos nas alternâncias verbais de forma mais geral, mostrou- se a relevância de certas propriedades semânticas para a explicação de fenô- menos sintáticos. 58 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009 Larissa CIRÍACO Agradecimentos: Aos pareceristas anônimos que avaliaram este texto para publicação, pelos comentários que em muito beneficiaram este artigo e ao apoio financeiro do CNPq (bolsa de doutorado). CIRÍACO, Larissa. Transitivity of alternating verbs: a semantic approach. Revista do Gel, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 36-60, 2009. ABSTRACT: This paper presents a proposal for classifying alternating verbs in relation to its ‘basic form’ of transitivity. Based on the analysis of lexical-semantics properties entailed by Brazilian Portuguese causative verbs, it is assumed that transitivity can be described not only in syntactic terms but also through semantic properties. The relevant semantic property for transitivity and the general processes responsible for transitivity alternations are also shown. KEYWORDS: Transitivity. Semantic properties. Alternating verbs. Referências ARONOFF, Mark H. Word structure. 1974. 243f. Tese (Doutorado). Massachusetts Institute of Technology, MA, 1974. BASSANI, Indaiá de Santana. Sintaxe da transitividade: Verificação de uma proposta para as sentenças de alternância ergativa do Português do Brasil. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, v. 6, n. 10, 2008. BOWERS, J. Transitivity. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 33, n. 2, p. 183-224, 2002. BURZIO, L. 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Em favor dessa hipótese os corpora analisados mostram que: a) embora a estratégia resumptiva mantenha uma frequência marginal do século XVIII ao século XX, houve um aumento da frequência dessa estratégia no último século; e b) mu- danças no sistema pronominal, em PB, apresentam relação com mudanças encontradas na estratégia resumptiva. PALAVRAS-CHAVE: Aquisição da Linguagem. Mudança Linguística. Português Brasileiro. Relativa Resumptiva. Relativa Cortadora. Teoria Gerativa. Considerações iniciais De acordo com Tarallo (1983), além da relativa padrão, definida como estratégia do pronome relativo, exemplo (1), e da estratégia do pronome re- sumptivo, exemplo (2), verificadas em outras línguas românicas, surgiu em PB, no século XIX, um terceiro tipo de relativa que o autor denominou cor- tadora, exemplo (3). (1) O rapaz com quem simpatizo é este. 1 Professora Adjunta do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da UESB, Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. adriana.lessa.de@uol.com.br, alessa@uesb.br Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 62 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 (2) O rapaz que eu simpatizo com ele é este. (3) O rapaz que eu simpatizo é este. Segundo o autor, esse processo de mudança do sistema de relativiza- ção do PB culminou com a substituição da estratégia padrão pela estratégia cortadora, a qual, na segunda metade do século XIX, já apresentava uma fre- quência de 59,5%. Tarallo (1983) analisa que a origem dessa nova estratégia tem relação direta com o surgimento de categorias vazias em posição de ob- jeto em PB, constatado no mesmo período. Interessa a este estudo saber se esse processo de mudança que fez surgir a relativa cortadora em PB atingiu a estratégia não-padrão mais antiga – a relativa resumptiva. Assim, com base em análises de dados dos sécu- los XVIII, XIX e XX estudados por Tarallo (1983) e de dados de cartas de mercadores do século XVIII, discuto esse fenômeno de mudança a partir de duas hipóteses aqui suscitadas: 1) a mudança no sistema de relativização em PB inclui a estratégia resumptiva, que altera sua estrutura subjacente; e 2) a mudança da relativa resumptiva partiu da associação dessa estratégia com a estratégia emergente – a relativa cortadora. A estrutura das relativas em PB Hipótese do movimento-wh vs. apagamento Para Tarallo (1983), as estratégias de relativização padrão e não-padrão consistem em dois processos: a) de movimento, no caso da relativa padrão; e b) de apagamento, no caso das não-padrão. O autor explica que a estratégia padrão requer um movimento do NP-wh para COMP, deixando uma catego- ria vazia na cláusula encaixada (figura 1). Para o segundo processo, Tarallo (1983) apresenta três tipos de estruturas: a) a estratégia resumptiva, que não requer movimento-wh, apresentando um complementizador que em COMP e um pronome resumptivo, em vez da categoria vazia (figura 2a); b) a estraté- gia gap-leaving, específica das relativas de sujeito e objeto direto, na qual o COMP é [-wh] e a categoria vazia não deriva de movimento-wh (figura 2b); e c) a estratégia cortadora (PP-chopping), que também apresenta um que complementizador, não apresenta pronome resumptivo e tem a preposição apagada na cláusula encaixada (figura 2c). A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 63 Figura 1: The Standard Variant S 1 NPi S’ 1 Comp S +whi 1 ...NPi... gap Figura 2a: The Resumptive Pronoun Variant S 1 NPi S’ 1 Comp S que 1 -wh ...NPi... pronoun Figura 2b: The Gap-Leaving Variant S 1 NPi S’ 1 Comp S que 1 -wh ...NPi gap Figura 2c: The PP-Chopping Variant S 1 NPi S’ 1 Comp S que 1 -wh ... PP... 1 P NPi ø gap (TARALLO, 1983, p. 45-48) Hipótese do movimento-wh vs. apagamento baseada no modelo raising A proposta de Kenedy (2002) para a estrutura das relativas não-pa- drão em PB está diretamente ligada à restrição a prepositional-stranding, que existe em português e demais línguas românicas. Estabelecendo uma relação entre esse fenômeno e um suposto corte da preposição nas relativas cortadoras, o autor toma por base a hipótese do núcleo [P+D] (formulada por SALLES, 1997, 1999) para explicar a estrutura das resumptivas e corta- doras em PB. De acordo com essa hipótese, em línguas de pied-piping obri- gatório (como o português, que faz comumente contração entre preposição e determinante), a preposição e o DP são movidos juntos. Nessas línguas ocorreria um complexo [P+D] (conjunto de traços φ para KENEDY, 2002), que se comporta como uma unidade sintática formada pela incorporação em P dos traços φ marcados em D. Segundo o autor, na relativização em línguas como o português, a ope- ração de movimento reconhece em [P+D] um constituinte único que deverá ser deslocado integralmente, resultando no pied-piping da preposição. Então, assumindo a hipótese de relativização por alçamento de Kayne (1994),2 2 Com Kayne (1994) é retomado um tipo de análise em que se concebe que o sintagma alvo da relati- vização é um constituinte alçado do CP relativo. De acordo com o modelo proposto por ele, conheci- do como raising analysis (análise por alçamento), os DPs podem selecionar como seu complemento Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 64 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 Kenedy (2002) propõe que a estrutura da relativa pied-piping em PB é o que se apresenta em (4) abaixo. (4) [a [CP [pessoa [P+D com quem]]i [IP você falou ti]]] (KENEDY, 2002, p. 15) Para o caso das relativas não-padrão em PB, o autor assume a estrutu- ra das relativas-that, nos termos de Kayne (1994), e propõe que a estratégia resumptiva teria uma estrutura como em (5a) e a estratégia cortadora uma estrutura com em (5b). No caso da cortadora, o autor argumenta que, dada a unidade de traços do núcleo [P+D], o apagamento da cópia do DP torna obri- gatório o apagamento também da preposição em PF. (5) a. [DP a [CP [DP moça]i [C’ que [IP eu falei [PP com [DP ela]i]]]]] b. [DP a [CP [DP moça]i [C’ que [IP eu falei [PP com [DP [DP moça]i]]]]]] (adaptado de KENEDY, 2002, p 131-132) A hipótese do movimento-wh para as três estratégias Diferentemente do que propõem Tarallo (1983) e Kenedy (2002), para Kato (1993), o processo que subjaz aos três tipos de estratégias de relativiza- ção em PB é sintaticamente o mesmo. Para a autora, há nos três casos a ligação do operador relativo-wh a uma posição vazia v – variável – na sentença. um CP. Para o autor, a estrutura da relativa seria [DP D 0 CP], a única compatível com o LCA (Axioma de Correspondência Linear). Assim, de acordo com essa proposta, os três tipos de relativas do inglês são derivados a partir do alçamento para o domínio de checagem de C de: a) um NP nas relativas- that; b) um DP nas relativas-wh; ou c) um PP nas relativas pied-piping (cf. estruturas em (ib), (iib) e (iiib), respectivamente). No caso das relativas-wh e das relativas com pied-piping, há previsão de mais alçamento: o NP incluído no DP movido é alçado para o SpecDP, na caso das relativas-wh; e, no caso das relativas com pied-piping, esse NP é alçado para o SpecPP, via Spec do DP-wh, prova- velmente, segundo o autor. (i) Relativas-that: a. The picture that Bill saw. b. [DP the [CP picturei [C’ that [IP Bill saw ti]]]] (ii) Relativas-wh: a. The picture which Bill saw. b. [DP the [CP [DP picturej [D’ which tj]]i [ C 0 [IP Bill saw ti ]]] (iii) Relativas pied-piping: a. The hammer with which Bill broke it. b. [DP the [CP [PP hammerj [P’ whith [DP (tj) which tj]]] [C 0 [IP he broke it ei]]]] (adaptado de KAYNE 1994, p. 87-89) A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 65 Assim, a autora defende que a diferença entre as estratégias resumptiva e cortadora de um lado e a padrão, de outro, não tem a ver com a natureza categorial do COMP, mas com a posição da variável, que está fora do IP, no caso das primeiras, e dentro, no caso da última. Estas duas posições são universalmente disponíveis, pois a GU (Gramática Universal) permite que o operador relativo-wh esteja ligado a elementos que se encontram no interior de IP e fora dele, em deslocamento à esquerda (comumente referido como tópico). Assim, a autora postula que: a) nas três estratégias, o item lexical que é um pronome relativo, extraído de uma posição não-canônica; b) a posição da variável presa a este pronome é de deslocamento à esquerda (Left Dislocation = LD), gerado na base; e c) o pronome resumptivo é co-referente à variável em LD. (6) a. A moça (CP com quemi (IP eu falei (PP ti) ontem). b. A moça (CP quei ( (LD ti ) (eu falei com elai ) ontem). (KATO, 1993, p.227) Segundo Kato, em (6a) a relativização opera diretamente sobre o obje- to do verbo, enquanto que em (6b) o que é relativizado é o NP na posição de LD. O pronome relativo que (de acordo com a classificação da autora) é liga- do ao vestígio em LD, que é co-referente ao pronome pessoal ela dentro do IP. As relativas de LD do PB em uma proposta de Raising analysis A proposta de Kato (1993) é revista por Kato e Nunes (2009), que propõem uma análise por alçamento para as relativas não-padrão em PB, as- sociando essa hipótese à estrutura [D0 CP] proposta por Kayne (1994) para as relativas. Os autores assumem que todas as relativas restritivas em português brasileiro apresentam um determinante que relativo (homófono ao comple- mentizador declarativo) em lugar de um complementizador, conforme o sis- tema de Kayne (1994) para as relativas-wh. Assim, de acordo com Kato e Nunes (2009), um DP encabeçado pelo determinante relativo pode ser gerado na posição LD. Depois de concatenado na posição de LD, esse DP é alçado e adjungido a CP e seu complemento al- çado e adjungido a DP. Sob esta análise, as derivações de relativas padrão e não-padrão são como se exemplificam em (7), (8) e (9): Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 66 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 (7) Relativas padrão: a. [aquela [CP [DP pessoai[DP que ti]]k [CP C [IP tk comprou o livro]]]] b. [o [CP [DP livroi[DP que ti]]k [CP C [IP aquela pessoa comprou tk]]]] c. [o [CP [PP livroi [PP de [DP ti [DP que ti]]]]k [CP C [IP você precisa tk ]]]] (8) Relativas não-padrão com resumptivo foneticamente realizado: a. Eu tenho [uma [CP [DP amigai [DP que ti]]k [CP C [LD tk [IP elai é muito en- graçada]]]]] b. Este é [o [CP [DP livroi [DP que ti]]k [CP C [LD tk [IP o João sempre cita elek]]]]] c. Este é [o [CP [DP livroi [DP que ti]]k [CP C [LD tk [IP você vai precisar delek amanhã]]]] (9) Relativas não-padrão com resumptivo nulo: a. Este é [o [CP [DP livroi [DP que ti]]k [CP C [LD tk [IP eu entrevistei a pessoa que escreveu prok ]]]]] b. Este é [o [CP [DP livroi [DP que ti]]k [CP C [LD tk [IP você estava precisando prok]]]] (KATO; NUNES, 2009, p.114) Mudança da relativa resumptiva em PB Indícios gerais da mudança O gráfico a seguir traz dados do século XX, além dos dados dos dois séculos anteriores. Os dados do século XX comparados aos dados da segunda metade do século XIX mostram que o processo de mudança do sistema de relativização em PB continuou avançado nesse período. 3 3 O gráfico 1 é uma adaptação de gráfico apresentado por Tarallo (1983, p. 207). Como não se tinha acesso a dados da primeira metade do século XX, foram considerados apenas os dados da segunda metade desse século, o que não inviabiliza a análise proposta. Planilha do gráfico 1 séc.XVIII 1ª metade séc. XVIII 2ª metade séc. XIX 1ª metade séc. XIX 2ª metade séc. XX 2ª metade padrão 99 89,2% 89 88,1% 73 91,3% 63 35,4% 21 6,5% não-padrão resumptiva 11 9,9% 8 7,9% 1 1,3% 9 5,1% 49 15,1% não-padrão cortadora 1 0,9% 4 4% 6 7,5% 106 59,5% 254 78,4% total 111 100% 101 100% 80 100% 178 100% 324 100% A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 67 Gráfico 1. Frequência das estratégias de relativização em PB nas funções de OI, Obl e G, do século XVIII ao século XX Como se pode observar no gráfico 1, a substituição, em PB, da relativa padrão pela relativa cortadora (ou com resumptivo nulo), que ocorreu marca- damente a partir do século XIX é intensificada no século XX, enquanto que a relativa resumptiva (ou com resumptivo realizado) permanece como uma estrutura marginal ao longo dos três séculos. Essa frequência marginal da re- lativa resumptiva durante um período considerável pode indicar que essa es- tratégia teve e continua tendo um papel específico. Tarallo (1983) propõe que não haveria diferença entre as línguas, de modo geral, em relação à existência ou não dessa estratégia, mas apenas em relação à quantidade e produtividade; e que, em muitas línguas, como o inglês, por exemplo, essa estratégia seria utilizada apenas como último recurso. É interessante observar, nesse gráfico, que a estratégia resumptiva, que tinha uma frequência próxima aos 10% no século XVIII, caiu para 1,3% na pri- meira metade do século XIX, para depois voltar a aumentar. Nesse período, a estratégia cortadora supera a estratégia resumptiva, enquanto a padrão se mantém absoluta, chegando até a apresentar um aumento de três pontos percentuais, ul- trapassando os 91%. Somente na segunda metade de século XIX é que a relativa cortadora assume a competição com a padrão, superando-a. Ou seja, a estratégia resumptiva parece ter passado por uma crise na primeira metade do século XIX. Talvez, esse tenha sido o período em que uma mudança tenha ocorrido também com essa estratégia. A hipótese suscitada neste estudo é que a relativa resumptiva passou da estratégia sem LD para a estratégia com LD, a partir desse período. 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% séc.XVIII 1ª metade séc. XVIII 2ª metade séc. XIX 1ª metade séc. XIX 2ª metade S éc.XX 2ªmetade padrão resumptiva cortadora Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 68 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 Evidências da mudança da relativa resumptiva e as relações deste fenômeno com mudanças no sistema pronominal Os dados investigados por Tarallo (1983) são comparados, neste estudo, a dados extraídos de cartas de mercadores do século XVIII. Este corpus reúne 93 cartas, sendo 23 delas cópias das demais. O período de produção das cartas de mercadores corresponde ao segundo período (segunda metade do século XVIII) dos dados de Tarallo (1983), com uma diferença de, mais ou menos, uma década. A escolha desse corpus neste estudo se fundamentou, principalmente, no fato de se tratar de um tipo de escrita que se aproxima muito do que prova- velmente era a oralidade na época, pois marcas grafo-fonéticas como a oscila- ção entre e , por exemplo, em travalho por trabalho e save por sabe, ou entre e em tenho e tanho, generos e genaros etc. revelam um redator que deixa transparecer, na escrita, variações fonéticas. Além disso, os textos assemelham-se a um fluxo de fala contínuo, em que os limites dos períodos são tênues e, muitas vezes, quase impossíveis de serem estabelecidos, como ocorre com a oralidade. Sabemos que o ensino não era de amplo acesso no século XVIII, o que indica que as características orais nesses textos escritos podem estar relacionadas a um baixo nível de escolaridade de seus redatores. Recolhi nessas cartas 519 cláusulas relativas, das quais 12 (2,3 %) são resumptivas. Esse percentual de resumptivas é ligeiramente menor do que o percentual encontrado por Tarallo (3,0%) nos corpora que investigou. Quanto às cortadoras, nenhuma foi encontrada entre as relativas recolhidas. Construo abaixo um gráfico que representa a frequência de relativas resumptivas em cada uma das funções sintáticas do termo relativizado (S - sujeito, OD - ob- jeto direto, OI - objeto indireto, Obl - objeto oblíquo, G - genitivo) nos três corpora analisados: corpus de cartas de mercadores do século XVIII, investi- gado neste estudo; corpora dos séculos XVIII e XIX, investigados por Tarallo (1983); e corpus do século XX, também investigados por Tarallo (1983).4 4 Os corpora dos séculos XVIII e XIX constituem-se de cartas e peças teatrais, originárias de diversas regiões do Brasil, escritas entre 1725 e 1880, nas quais foram encontradas 1.579 cláusulas relativas. Já o corpus do século XX se constitui de 45h de entrevistas, com 40 informantes da cidade de São Paulo, nos quais foram encontradas 1.700 cláusulas relativas, sendo 162 (9,4 %) delas relativas re- sumptivas. A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 69 Gráfico 2. Frequência das relativas resumptivas por posição sintática Deixando de lado certo risco de imprecisão pelo fato de os dados dos séculos XVIII e XIX não serem exatamente dados orais, como os do século XX5, podemos fazer as seguintes observações por meio do gráfico6 2: a) a po- sição de G é a que apresenta os maiores percentuais de pronome resumptivo realizado em relativas tanto nos dados dos séculos XVIII e XIX quanto nos dados do século XX; b) nos dados do século XX, a posição de OI se desta- ca como a segunda que apresenta maior percentual de pronome resumptivo realizado em relativas e a posição de OD como a que apresenta o menor per- centual; c) há um aumento da ocorrência de relativas resumptivas nos dados do século XX em todas as posições, com exceção da posição de OD, que apresenta um índice inferior ao dos dados dos dois séculos anteriores; e d) o 5 Vale ressaltar que Tarallo (1983) objetivou construir os corpora dos séculos XVIII e XIX o mais próximo possível da produção oral, daí a escolha de cartas e peças teatrais. 6 Os valores apresentados nesse gráfico correspondem à frequência das resumptivas em cada posição sintática, pois o que está sendo considerado é a possibilidade de ocorrência ou não de uma resumptiva nessas posições. Na planilha abaixo as letras (RR) representam as relativas resumptivas. Planilha do gráfico 2 sujeito obj. direto obj. indireto obj. oblíquo genitivo RR g e - ral R F % RR g e - ral R F % RR g e - ral R F % RR g e - ral R F % RR ge- ral R F % Dados do século XVIII (car- tas de mercadores) 2 106 2 6 157 4 0 25 0 0 51 0 4 23 17 Dados dos séculos XVIII e XIX (TARALLO, 1983, p. 201) 10 693 1,4 17 416 4,1 3 79 4 10 330 3 16 61 26,2 Dados do século XX (TARALLO, 1983, p. 90) 103 992 10,4 10 384 2,6 16 76 21,1 24 231 10,4 9 17 52,9 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% S OD OI Obl G Dados do século XVIII (cartas de mercadores) Dados dos séculos XVIII e XIX (Tarallo, 1983: 201) Dados do século XX (Tarallo, 1983:90) Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 70 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 maior aumento de frequência de pronome resumptivo realizado em relativas ocorreu nas posições de OI e G. Em outras palavras, de modo geral, a frequência das relativas resump- tivas aumentou nos dados do século XX em relação a todas as posições, com exceção da posição de OD, que, pelo contrário, diminuiu (reduziu de 4,1% para 2,6%). Temos aqui certamente um indício de que houve uma alteração no comportamento da relativa resumptiva, do século XIX para o XX. O gráfico logarítmico a seguir ajuda a refinar a análise acima. Através deste gráfico, podemos observar, em cada corpus, se as relativas resumptivas (de S, OD, OI, Obl e G) foram, proporcionalmente, mais ou menos frequentes que as relativas em geral. Considerando o posicionamento dos símbolos – tri- ângulo, círculo e asterisco – localizados acima ou abaixo do eixo de valor 1 (no gráfico 3 abaixo), podemos ler que a realização da relativa resumptiva é favorecida ou desfavorecida, respectivamente, na posição sintática em ques- tão. E, pela distância que esses símbolos apresentam em relação a esse eixo, podemos verificar a intensidade do (des)favorecimento desse tipo de relativa, em relação a cada posição sintática. Quanto mais os referidos símbolos se afastam do eixo 1, a intensidade do (des)favorecimento aumenta.7 7 Os dados da planilha abaixo correspondem à razão entre a frequência das relativas resumptivas em cada posição sintática e a frequência geral das relativas em cada uma dessas posições. Na planilha abaixo, as letras (RR) representam as relativas resumptivas. Planilha do gráfico 3 sujeito obj. direto obj. indireto obj. oblíquo genitivo RR % ge- ral % ra- zão RR % ge- ral % ra- zão RR % ge- ral % ra- zão RR % ge- ral % ra- zão RR % ge- ral % ra- zão Dados do século XVIII (cartas de mercadores) 16,7 29,3 0,6 50 43,3 1,2 0 6,9 0 0 14,1 0 33,3 6,4 5,3 Dados dos séculos XVIII e XIX (TARALLO, 1983, p. 201) 17,8 43,9 0,4 30,4 26,3 1,2 5,4 5 1,1 17,8 20,9 0,8 28,6 3,9 7,3 Dados do século XX (TARALLO, 1983, p. 90) 63,6 58,3 1,1 6,2 22,6 0,3 9,9 4,5 2,2 14,8 13,6 1,1 5,5 1 5,5 A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 71 Gráfico 3. Frequência proporcional de relativas resumptivas de acordo com a função sintática do termo relativizado Esse gráfico mostra que, dentre as posições sintáticas do termo re- lativizado, a que mais favoreceu o aparecimento do pronome resumptivo, tanto nos dados dos séculos XVIII e XIX quanto nos dados do século XX, foi a posição de G. Porém, a semelhança entre os dados do século XX e os dados dos dois séculos anteriores para por aí. Nos dados do século XX, as posições preposicionais, de modo geral, favorecem a ocorrência da relativa resumptiva, enquanto que nos dados dos séculos XVIII e XIX as posições de OI e Obl ou favorecem pouco, como é o caso da primeira, ou não favorecem, como é o caso da segunda. Nas cartas de mercadores, relativas resumptivas nessas duas funções sequer aparecem. E as funções de G e de OI são as mais favorecedoras a ocorrências de relativas resump- tivas nos dados do século XX. Entre as posições não-preposicionais a situação se inverte. A posição de OD aparece como a segunda que mais favorece relativas resumptivas nos dados dos séculos XVIII e XIX, tanto nas cartas de mercadores quanto no corpus coletado por Tarallo (1983). Nos dados do século XX, a frequência de relativas resumptivas diminuiu drastica- mente nessa posição, passando a posição de OD a ser, inclusive, a única posição sintática que não favorece a ocorrência de relativas resumptivas 0,1 1 10 sujeito obj. direto obj. indireto obj. oblíquo genitivo Dados do século XVIII (Cartas de mercadores) Dados dos séculos XVIII e XIX (Tarallo, 1983, p. 201) Dados do século XX (Tarallo, 1983, p. 90) Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 72 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 em PB contemporâneo. Já a posição de S apresentou-se como favorece- dora à ocorrência de relativas resumptivas nos dados do século XX, em contraste com os dados dos dois séculos anteriores, nos quais a relativa resumptiva apresenta-se como desfavorecida nessa posição. Abaixo es- tão exemplos de relativas resumptivas de S encontradas nas cartas de mercadores. (10) a. Ahi vay oVendedori, Antonio Rodriguiz [que elei lhedira o meu modo deviver]... (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/82) b. Ahi lhe Remeti eses Conhicimentos e Facturasi [que elasi Rezão [para Vossa Mercê fazer [oque bem quizer do Algodão e das 3 Caixas de Asucar]]] ... (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/69 ) Tarallo (1983) não aponta a posição de sujeito como favorecedora da relativa resumptiva em PB contemporâneo. Entretanto, de acordo com os dados de Mollica (2003) (que utiliza método de coleta e análise de dados diferente do método desse autor), a partir do ensino médio, os falantes só empregam resumptivos com função de sujeito. E a única relativa resumptiva que aparece em corpora (em narrativas orais e escritas de informantes não escolarizados e com diversos níveis de escolaridade) investigados por Corrêa (1998, p. 74,79) é uma relativa de sujeito. Esses dois gráficos demonstram em resumo que: a) houve uma in- versão entre as posições de OD e S em relação ao favorecimento da relativa resumptiva; e b) as posições de G e OI foram as que apresentaram maiores índices de aumento de frequência de relativas resumptivas, assumindo essas duas posições o posto de as mais favorecedoras da estratégia de relativização resumptiva em PB contemporâneo. Podemos estabelecer um paralelo entre esses fatos e determinadas mudanças no sistema pronominal do PB, ampla- mente debatidas na literatura. Kato (2002) propõe que a mudança no sistema pronominal do PB teria provocado três grandes alterações: a) criou-se em PB um paradigma de pronomes fracos quase homófonos ao de pronomes fortes; b) para a 3ª pessoa o PB perdeu o clítico (forma fraca acusativa); e c) também para a 3ª pessoa o PB vem perdendo a flexão de concordância (forma fraca nominativa). Podemos dizer que essas mu- A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 73 danças gerais reúnem os diversos aspectos de alteração do sistema pronominal do PB que vêm sendo pontuados, há certo tempo, por vários autores. Segundo Galves (1986, p.74), o objeto nulo é extremamente fre- quente, não apenas na língua oral, mas também na língua escrita. Por outro lado, em PB contemporâneo, o pronome ele sujeito, sem valor particular, é utilizado de preferência ao sujeito nulo (ver Galves, 1989, p. 52). Assim, uma explicação possível para a inversão entre as funções de OD e S no favorecimento da relativa resumptiva seria, não coincidentemente, a mo- dificação no sistema pronominal do PB que teria resultado num crescente preenchimento fonético do sujeito (reflexo da perda da flexão de concordân- cia) e um crescente não preenchimento fonético do objeto (aparecimento do objeto nulo referencial), desembocando num quadro inverso ao que ocorria no PB dos séculos XVIII e XIX. Ou seja, assim como o aparecimento da relativa cortadora pode estar associado ao fenômeno de surgimento de ob- jetos nulos em PB, conforme propõe Tarallo (1983), avalio que o aumento do favorecimento da relativa resumptiva de sujeito pode estar associado ao crescente preenchimento do sujeito. Além disso, podemos observar que, nas relativas resumptivas reco- lhidas nas cartas de mercadores do século XVIII, o pronome resumptivo que aparece na posição de OD é o clítico –o (cf. exemplos de (11) a (16) abaixo). Em PB contemporâneo, o pronome que aparece como resumptivo é, como atesta Galves (1989, p. 55) e outros autores, o pronome tônico ele. O uso do clítico –o como resumptivo está completamente fora de cogitação em PB contemporâneo, inclusive na escrita. (11) ...nacharua Aguia Vão 28 Sacas eObrigado deArrosi [que osileva o contra mestre no seu rancho - com amarca “2]. (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/155 ) (12) Pella Factura enCluza Vera Vossa mercê eu ter Carregado abordo daCharua Nova Cappitam Joze da Trindade Caruon e 40 Sacas Com 198 arrobas 11 {M} de Arros emSacadoi Emportando em 129 $ 552 réis [que Vossa Mercê oi Vendera pello milhor preço] (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/157 ) (13) Esta vai no Paquete dasCartasi [que [sedis] oifazem sahir dous dias atrás denossa sahida] (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/412) Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 74 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 (14) Terá abondade dizer oSenhor Alexandre Jorge Garreiro que oseu dinheiro foi impregado emassucari [que oimeti emCaixas defixadura emO Navio Santo Estevão;] (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/412) (15) ...odito deClarara no seu testamentoi [qual 8 não tive aCruzidade de Oi Ver,]...minúscula (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/441 e 442) (16) esó mefalta para o inteiro complemento, e3 pipas deVinhoi [quepela muita abondancia não oiquerem comprar; ]... (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/295) Também verificamos uma diferença em relação à relativa resump- tiva de G. Nas cartas de mercadores, a relativa resumptiva de G é constru- ída com o pronome possessivo seu (cf. exemplos de (17) a (20) abaixo), enquanto que a relativa resumptiva de G em PB contemporâneo, como sabemos, é construída com preposição + pronome resumptivo, formando o PP dele. De acordo com Cerqueira (1993, p.152), o uso quase categórico da forma dele em lugar de seu na indicação de posse reflete uma mudança no sistema flexional do PB. (17) ...O Meu Mano e Senhor as Minhas ultimasi avossa merce forão em 30 de Dezembro do Anno pasado [que os seusi Contheudo lhe Confirmo,] ... (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/236) (18) Mano eSenhor As minhas ultimasi AVossa Merce forão em O 1º do Corrente [Que osSeusi Contheudos lhe Confirmo]... (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/240 ) (19) ...em virtude dellas Receby Conhecimento eFactura do Carregadoi deSua Conta naGallera Tentativa Cappitam João Xavier Antunes no vallor de 631:990 [que fico delijenciando asuai venda,]... (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/130) (20) Aminha ultimai aVossa merce foy em 30 de Dezembro [que oSeui Contheudo lhe Confirmo] (Biblioteca Nacional de Lisboa - mss. 224/249) 8 Neste caso, qual está sendo analisado como que. A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 75 No PB do século XX, também não encontramos mais o clítico –lhe nas resumptivas de OI. De acordo com Galves (1997, p. 155), o clítico de 3ª pessoa é muito raro, e o lhe é utilizado, praticamente, apenas como correspon- dente a você, ou seja, na 2ª pessoa do discurso9. Dessa maneira, semelhante- mente à relativa resumptiva de G, a relativa resumptiva de OI passou a ter um PP na função de pronome lembrete. Assim, não deve ter sido por acaso que as relativas resumptivas nessas duas posições apresentaram o maior índice de aumento de frequência, destacando-se essas posições como as grandes favo- recedoras da relativa resumptiva. Ou seja, esses dados mostram uma assimi- lação do padrão oblíquo. Esses dados corroboram a hipótese número 1 deste estudo, isto é, esses dados estão indicando que o fenômeno de mudança no sistema de relativização do PB, que fez surgir a cortadora e promoveu a substituição da estratégia padrão por esta estratégia, atingiu a relativa resumptiva. De acordo com essa ideia, a relativa resumptiva de agora não tem a mesma estrutura que subjazia à relativa resumptiva do PB até a primeira metade do século XIX. Há um contraste entre as propostas de Kato (1993) e Kato e Nunes (2009), por um lado, e de Tarallo (1983) e Kenedy (2002), por outro. Pode- mos identificar duas gramáticas diferentes nessas propostas: uma na qual está presente a estrutura de LD, a dos primeiros, e outra na qual essa estrutura não existe, ou não é relevante para a relativização, a dos últimos. Podemos considerar que essas duas gramáticas possam se constituir em dois momentos históricos do PB. O momento atual do PB é o de uma língua com proeminên- cia de tópico e sujeito.10 Como explicar o aumento da frequência de relativas resumptivas? Pela proposta de Tarallo (1983), a mudança da relativização em PB circunscreve-se a uma mudança que ocorre na estrutura da relativa resumptiva, na qual os resumptivos passam a ser opcionalmente apagados, juntamente com a preposição no caso das relativas preposicionais. Também pela proposta de Kenedy (2002), a relativa cortadora se constitui a partir de uma estrutura como a da relativa resumptiva, apagando-se a cópia mais baixa. A previsão 9 Exemplo: Eu lhe disse que seria assim (=Eu te disse que seria assim). 10 Para discussão sobre tipologia das línguas veja Li e Thompson (1976). Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 76 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 que se pode fazer a partir dessas propostas seria de diminuição da frequên- cia de relativas resumptivas, uma vez que passa a existir a possibilidade de apagamento desse resumptivo, mantendo-se a mesma estrutura. Entretanto, tal previsão contraria o que observamos nos corpora. Assim, por essas duas propostas fica difícil explicar o aumento, de modo geral, da frequência de relativas resumptivas observado nos dados. Os dados que analisamos acima confirmam a relação não só entre as mudanças no sistema pronominal e o surgimento da relativa cortadora como também entre as mudanças no sistema pronominal e mudanças no comporta- mento da relativa resumptiva, conforme hipótese aqui defendida. A relação entre essas mudanças é clara para as relativas preposicio- nais e para a de OD, uma vez que o PB passou a admitir um resumptivo nulo nessas posições. Com relação à relativa de S não se tem, todavia, essa clareza. Vários estudos têm demonstrado que em português brasileiro não há resumptivos nulos em posição de S (FIGUEIREDO SILVA, 1996; FERREI- RA, 2000). Como se observa em (21), se a categoria vazia não pode ocorrer em contexto de ilha, está envolvida, nesse caso, uma operação de movimento. (21) esse é [o funcionário]i que o gerente elogiou a decoração que elei/ *Øi fez Kato e Nunes (2009) argumentam que, uma vez que se verifica, atra- vés de configurações de ilha, a impossibilidade da existência de um pronome nulo em posição de sujeito, sentenças como (22a) só podem ser derivadas pela estratégia padrão (cf.(22b)). (22) a. a pessoa que Ø comprou o livro (KATO; NUNES, 2009, p.109) b. [DP a [CP [DP pessoak [DP que tk]]i [CP C 0 [IP ti comprou o livro]]]] Pelo que se vê, não podemos pensar em uma operação de apagamento para as relativas de S, pois a categoria vazia nesse caso é um vestígio de movi- mento. Entretanto, verificamos no gráfico 3 que a mudança no sistema de rela- tivização em PB do século XVIII para o XX implicou uma drástica mudança no comportamento das relativas de S e OD, as quais inverteram suas posições quanto ao favorecimento da estratégia resumptiva. A ocorrência de pronome resumptivo em posição de S passou de desfavorecida a favorecida, enquanto ocorrência de pronome resumptivo em posição de OD fez o caminho oposto. A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 77 Se a mudança na relativização em PB está, de fato, relacionada à mudan- ça no sistema pronominal, como as alterações desse sistema podem ter atingido a relativa resumptiva de S, cujo resumptivo não é substituído por uma categoria vazia do tipo pro? Em outras palavras, como a relativa resumptiva de S passou a ser mais frequente sem o envolvimento de um tipo de mudança pronominal relacionada a S, como a perda do sujeito nulo, por exemplo? Vamos analisar essa questão considerando que a possibilidade de a construção de tópico estar na base de, pelo menos, algumas das relativas de sujeito (sem resumptivo realizado) não está descartada com a inexistência de resumptivo nulo em relativas de sujeito. Assim, para a relativa em (23) temos duas possibilidades de estrutura subjacente. Se essa relativa estiver associada à sentença em (24a), ela terá a estrutura da relativa padrão em (24b) como estrutura subjacente. (23) Essa música que todo mundo está dizendo que vai fazer sucesso ... (24) a. Todo mundo está dizendo que essa música vai fazer sucesso. b. [DP essa [CP [DP músican [DP que tn]]i [CP C [IP todo mundo está dizendo [CP que [IP ti vai fazer sucesso]]]]]]] ... Mas, ao lado dessa possibilidade figura a possibilidade dessa relativa estar associada à estrutura de tópico em (25a), perfeitamente aceitável em PB. Nesse caso, a relativa em (23) teria a estrutura em (25b). A diferença entre essa estrutura e a estrutura da relativa não-padrão cortadora proposta por Kato e Nunes (2009) está no fato de que não se tem em (25b) um resumptivo nulo. O que ocorreria, nesse caso, seria um movimento do termo topicalizado da posição de S para a posição de tópico, de onde esse item seria extraído no processo de relativização.11 (25) a. essa músicai, todo mundo está dizendo que ti vai fazer sucesso. b. [DP essa [CP [DP músican [DP que tn]]i [CP C [Top ti [IP todo mundo está dizendo [CP que [IP ti vai fazer sucesso]]]]]]] ... 11 Ross (1967) opõe construções de LD, identificada pela presença de um resumptivo (cf. (i)), a cons- truções de tópico, em que ocorre uma categoria vazia (cf. (ii)). Como em PB o resumptivo pode ser nulo, essa distinção nem sempre é possível, segundo Pontes (1987) (cf. (iii)). (i) (As for) Johni , I saw himi yesterday. (ii) Beansi I don’t like Øi . (apud KATO, 1993, p. 229) (iii) Cerveja, eu gosto pro/t. Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 78 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 Assim como ocorre com as construções de tópico, na posição de sujei- to no IP da relativa, pode haver um vestígio de movimento, como em (25b), ou um pronome resumptivo, como em (26). Neste caso, temos a relativa re- sumptiva. (26) [DP essa [CP [DP músican [DP que tn]]i [CP C [Top ti [IP todo mundo está dizendo [CP que [IP elai vai fazer sucesso]]]]]]] ... Dessa maneira, o aumento da frequência de relativas resumptivas em posição de sujeito pode ser justificado se consideramos a hipótese número 1 deste estudo. Ou seja, se consideramos que a mudança no sistema de relativi- zação em PB alterou a estrutura subjacente da relativa resumptiva, passando esta de uma estrutura sem envolvimento de LD para uma estrutura com base na construção de LD (cf. (8)) ou na construção de tópico, como em (26). Assim, na perspectiva dessa análise, o aumento da frequência de relativas re- sumptivas está associado ao fato de o PB contemporâneo ser uma língua com proeminência de tópico e sujeito, o que levaria naturalmente a relativa com estrutura de tópico a ser mais frequente, como se observa nos dados. Então, pela presente análise, a relativa resumptiva em PB teve um tipo de estrutura até a segunda metade de século XIX – uma estrutura sem LD ou tópico – e, a partir desse período, mudou essa estrutura para a construção de LD, no caso das relativas de OD, OI, Obl e G, e para a construção de tópico no caso da relativa de S. Considerando a proposta de relativização por alçamento de Kayne (1994) para as relativas-wh, as relativas resumptivas produzidas por merca- dores do século XVIII em (10a), (13) e (19) teriam a estrutura em (27a), (27b) e (27c), respectivamente. (27) a. [DP o [CP [DP vendedork [DP que tk]]i [CP C [IP elei lhe dirá o meu modo de viver]]]] b. [DP o [CP [DP Paquete das Cartask [DP que tk]]i [CP C [IP oi fazem [sahir ...]]]] c. [DP o [CP [DP carregado de sua contak [DP que tk]]i [CP C [IP fico dilijen- ciando a suai venda]]]] De que maneira a mudança da relativa resumptiva se deu em PB é o que pro- curo discutir ao propor a hipótese número 2, que será analisada na subseção a seguir. A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 79 Reanálise da estrutura subjacente da relativa resumptiva em PB Assumindo que a relativa cortadora tem a estrutura de LD como es- trutura subjacente, levanto a hipótese de que essa relativa como input levou a criança a uma reanálise da relativa resumptiva, aproximando a estrutura subjacente desta da estrutura da relativa cortadora. Uma situação de mudança hipotetizada por Kato (1993, p. 256) cor- robora essa hipótese. Segundo a autora, o genitivo seu/sua, assim como os clíticos, admite alternante nulo, ao lado do pronome regido por preposição (cf. (28)) (28) a. Joãoi disse que seui pai anda doente. b. Joãoi disse que o pai delei anda doente. c. Joãoi disse que o [ø]i pai anda doente. (KATO, 1993, p. 246) Kato (1993, p. 251-252) explica que, quando o paradigma apresenta prossintagmas nulos, o input sintático que cont ém tais prossintagmas torna- se passível de ser analisado como produto de duas gramáticas diferentes. As- sim, a categoria vazia em (28c) que é a representação de um constituinte nulo membro do paradigma (meu, teu/seu, ø) para uma geração, pode ser reanali- sada por uma nova geração como um constituinte nulo no interior do NP (pai ø(= de João/dele)), com as mesmas características do constituinte vazio da relativa cortadora com PP complemento de verbo. A representação paralela a (28c), internalizada pela nova geração, seria (29). (29) Joãoi disse que o pai [ø= de João (dele)]i anda doente. (KATO, 1993, p. 252) De acordo com a hipótese deste estudo, um processo semelhante a esse ocorreu com a relativa cortadora tomada como input por uma nova gera- ção, no decurso de sua aquisição da linguagem. Tal processo de reanálise da categoria vazia dessa relativa implicou reanálise da estrutura subjacente da relativa resumptiva, que foi associada à cortadora. Então, sendo o constituinte vazio da relativa cortadora de OI, Obl e G um PP = pro, o preenchimento fonético desse constituinte, quan- do se realiza uma relativa resumptiva, pode ser reanalisado como P + expressão-R ou P + pronome tônico. Se esse processo ocorreu, de fato, Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 80 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 a relativa resumptiva foi associada completamente à relativa cortadora e a estrutura subjacente da relativa resumptiva foi reanalisada como es- trutura de LD. Assim: (30) à relativa cortadora: a. [DP o [CP [DP meninok [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP o pai proi anda doen- te]]]]]... foi associada a relativa resumptiva, que ganhou a estrutura: b. [DP o [CP [DP meninok [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP o pai delei anda doen- te]]]]]... no lugar da estrutura sem LD: c. [DP o [CP [DP meninok [DP que tk]]i [CP C [IP seui pai anda doente]]]]]...; (31) à relativa cortadora: a. [DP o [CP [DP homemk [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP aquela moça deu uma bofetada proi ]]]]]... foi associada a resumptiva, que ganhou a estrutura: b. [DP o [CP [DP homemk [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP aquela moça deu uma bofetada nelei ]]]]]... no lugar da estrutura sem LD: c. [DP o [CP [DP homemk [DP que tk]]i [CP C [IP aquela moça deu-lhei uma bofetada ]]]]]... No caso da relativa de Obl, em que já ocorria um PP e não um clítico ou um possessivo como pronome resumptivo, a categoria vazia da cortadora foi também associada à possibilidade de preenchimento por um PP, modificando, de qualquer forma, a estrutura subjacente da resumptiva, em conformidade com o paradigma que se formava. Dessa maneira: (32) à relativa cortadora: a. Há [DP D [CP [DP clientes bonsk [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP a gente já está habituado a trabalhar proi] foi associada a relativa resumptiva, que ganhou a estrutura: b. Há [DP D [CP [DP clientes bonsk [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP a gente já está habituado a trabalhar com elei] no lugar da estrutura sem LD: A relativa resumptiva em dois momentos do português brasileiro Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 81 c. Há [DP D [CP [DP clientes bonsk [DP que tk]]i [CP C [IP a gente já está ha- bituado a trabalhar com elei] Na posição de OD, podemos ter uma categoria vazia, que é um pro = DP, ou um vestígio de movimento. Independentemente dessa ambiguidade estrutural, a associação da relativa resumptiva à estrutura da relativa cortado- ra, levou a nova geração à construção de um novo paradigma para as relativas resumptivas, substituindo também a relativa de OD sem LD pela relativa com LD. Nessa mudança, o pronome resumptivo em relativas de OD não será mais um clítico devido às alterações no sistema pronominal. Isto acabou por promover um alinhamento dos pronomes: todas as posições sintáticas passa- ram a comportar as formas ele/ela como pronome resumptivo. Dessa forma: (33) a resumptiva de OD sem LD: a. ... são [DP D [CP [DP projetosk [DP que tk]]i [CP C [IP aqui se limitam a pô-losi em prática]]]. foi substituída pela resumptiva de OD com LD: b. ... são [DP D [CP [DP projetosk [DP que tk]]i [CP C [LD ti [IP aqui se limitam a por elesi em prática]]]. Por fim, no caso da relativa de sujeito, a associação da resumptiva ocorreu com a construção de tópico, completando o novo paradigma das re- lativas resumptivas. Assim: (34) a resumptiva de S sem Top: a. ... [DP essa [CP [DP moçak [DP que tk]]i [CP C [IP você disse [CP que [IP elai é bonita]]]]] foi substituída pela relativa resumptiva de sujeito com estrutura de Top: b. ... [DP essa [CP [DP moçak [DP que tk]]i [CP C [Top ti [IP você disse [CP que [IP elai é bonita]]]]] Considerações finais A discussão em torno das hipóteses defendidas neste estudo indica que duas estruturas distintas subjacentes à relativa resumptiva correspon- Adriana Stella C. LESSA-DE-OLIVEIRA 82 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009 dem a dois períodos históricos do PB. Assim, concluo que a relativa re- sumptiva que conhecemos hoje, como falantes do PB contemporâneo, tem como base sentencial a construção de LD (como propõem KATO, 1993 e KATO; NUNES, 2009), a mesma base sentencial das relativas cortadoras; e um tipo de relativa resumptiva sem construção de LD vigorou em PB, de acordo com a hipótese aqui defendida, até a segunda metade do século XIX, aproximadamente. LESSA-DE-OLIVEIRA, Adriana Stella C. Relative acquisition and linguistic change in Brazilian Portuguese. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2009. ABSTRACT: The present research focuses on the change of the BP (Brazilian Portuguese) relativization system verified by Tarallo (1983). Based on empirical evidence, I try to prove the hypothesis that changes on the PB pronominal system that happened in the XIX century reached the resumptive relative. In favor of this hypothesis the analyzed corpora show that: a) although the resumptive strategy keeps a marginal frequency from the XVIII century to the XX century, there was an increase of the resumptive strategy frequency in the last century; and b) changes in the BP pronominal system show relations to changes found in the resump- tive strategy. KEYWORDS: Brazilian Portuguese. Language Acquisition. Linguistic Change. PP-Chopping Relatives. Resumptive Relatives. Generative Theory. Referências CERQUEIRA, V. C. A forma genitiva “dele” e a categoria de concordância (AGR) no português brasileiro. In: ROBERTS, I.; KATO, M. (Orgs.) Português Brasileiro. Uma Viagem Diacrônica, Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 129-162. CORRÊA, V. R. Oração Relativa: o que se fala e o que se aprende no português do Bra- sil. 1998. 164p. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. FERREIRA, M. B. Argumentos nulos em português brasileiro. 2000. 113p. 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Tese (Doutorado em Filosofia) ― University of Pennsylvania, Pennsylvania, Philadelphia, 1983. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 85 MODELAÇÃO DE DADOS E PRODUÇÃO DE “REALIDADES” NA ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA1 Gredson dos SANTOS2 RESUMO: O texto faz considerações críticas sobre o tratamento quantitativo dos dados no interior da sociolinguística e seu impacto na formulação de “realidades” no que tange ao espaço linguístico brasileiro. O trabalho comenta brevemente como as operações de seleção, tratamento, análise e interpretação de dados, segundo uma metodologia quantitativa, “forma- tam”, em distintos graus de intensidade, o “real” que está no escopo da análise sociolinguística. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da Ciência. Filosofia da Linguística. Sociolinguística. Introdução A filosofia da linguística é uma área que tem como principal preocupa- ção a relação entre as diversas teorias linguísticas e o seu objeto de estudos. Em outras palavras, uma das tarefas que a filosofia da linguística impõe a si é verificar criticamente até que ponto as formulações das teorias produzidas no interior dos estudos linguísticos se aproximam ou se afastam do “real” que pretendem investigar. Esse campo de estudos enquadra-se numa área mais 1 Este texto é fruto de algumas indagações do autor decorrentes das discussões travadas na disciplina Seminários Avançados III, oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Letras e Lin- guística da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenada pela professora Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva. As reflexões apresentadas são absolutamente provisórias. Embora o texto resulte das discussões realizadas nas aulas de Mattos e Silva e do professor Dr. Carlos A. Faraco, e embora este último tenha feito algumas sugestões de abordagem na linha da epistemologia da linguística, os equí- vocos presentes no trabalho são, evidentemente, de minha inteira responsabilidade. 2 Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Instituto de Letras, UFBA, Salvador, Bahia, Brasil. Professor Assistente de Linguística do Centro de Formação de Professores, da Univer- sidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). gredsons@bol.com.br Gredson dos SANTOS 86 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 ampla do conhecimento, a filosofia da ciência, que se volta para a natureza das teorias e práticas científicas e a sua relação com os resultados que produ- zem. No âmbito da linguística brasileira, as discussões acerca da natureza das várias teorias que aqui frutificaram ainda são tímidas. No entanto, a reflexão crítica acerca do trabalho científico é um imperativo ético e acadêmico: ético porque diz respeito, necessariamente, ao comprometimento do cientista com os valores da transparência e publicidade de seu trabalho, além do seu com- promisso socialmente assumido de contribuir para a compreensão de fatos do mundo; acadêmico porque a revisão crítica do trabalho conduz a resultados mais condizentes com a “verdade” buscada pela sua prática, além de refinar o alcance das formulações feitas no interior de dada teoria. Aí está situada a relevância do trabalho que aqui se propõe, na medida em que este busca pro- duzir uma pequena reflexão sobre um dos modos – dentre tantos outros - de operar com o fato linguístico. O objetivo geral deste texto é tecer considerações críticas sobre o tra- tamento quantitativo dos dados no interior da análise sociolinguística e seu impacto na formulação de “realidades” no que tange ao espaço linguístico brasileiro. O trabalho pretende ainda comentar sucintamente como as opera- ções de seleção, tratamento, análise e interpretação de dados, segundo uma metodologia quantitativa, “formatam”, em distintos graus de intensidade, o “real” que está no escopo da análise sociolinguística. Segundo aponta Borges Neto (2004, p. 9), uma vez que a filosofia da linguística (às vezes chamadas também de epistemologia da linguística) pre- cisa de “boas descrições” das teorias linguísticas, esse campo de saber se vin- cula estreitamente à história/historiografia da linguística. O presente trabalho, ao propor uma reflexão crítica sobre uma técnica de análise sociolinguística, não é propriamente um trabalho de sociolinguística. Nosso posicionamento vincula-se a uma formulação produzida no in- terior da filosofia heideggeriana. Em Ciência e pensamento do sentido (2002), o filósofo alemão, desdobrando sua afirmação de que “a ciência é a teoria do real”, faz uma reflexão sobre o sentido das palavras “teoria” e “real”, mostrando com isso que teoria pode ser entendida: 1) como observação (contemplação), que prescindiria de qualquer elaboração do real – o que permitiria falar em ciên- cia pura, desinteressada e sem propósito; 2) no sentido de tratar, empenhar-se, trabalhar – sentido mediante o qual “a ciência é uma elaboração do real terrivel- mente intervencionista” (HEIDEGGER, 2002, p. 48). Nesse particular, importa Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 87 lembrar que o filósofo distingue, em sua reflexão, o modo grego de pensar o fazer científico (contemplar o vigente em sua vigência) e o modo moderno. As- sumindo que o segundo conceito é o que marca a ciência moderna, Heidegger postula que “a ciência põe o real”, transformando-o em objetidade – um real capaz de ser submetido a um conjunto de operações e processamentos, isto é, numa sequência de causas aduzidas que se podem prever. Mais adiante em sua reflexão, assegura que qualquer real que tenha sua “objetidade” processável passa a ser o traço fundamental de representação produzida pela ciência mo- derna – a ciência moderna torna o real objetidade, recorta-o de modo a poder calculá-lo. Mas, um traço característico desse proceder da ciência é justamente que, para que a ciência se produza, ela precisa de um método, que não pode ser questionado pelo cientista em sua atividade como cientista (o cientista deve se- guir o método, deve submeter-se a ele) – a não ser que se afaste dessa posição. Por isso é que Heidegger afirma na sequência de sua exposição: “Nenhuma físi- ca tem condições de falar da física, como física [...] o mesmo vale para a filolo- gia. Na condição de teoria da língua e de literatura, a filologia nunca poderá ser objeto de um exame filológico. É o que vale para toda a ciência” (2002, p. 55). Assumindo como pressuposto válido as formulações presentes em Heiddeger (2002 e 2008), Borges Neto (2004), Freire-Maia (2008), entre ou- tros, proceder-se-á aqui a uma discussão bem geral em torno de certos aspec- tos da análise sociolinguística, mormente no que diz respeito a noções como as de “fatores sociais”, “vernáculo” e “norma culta” e a acomodação das mes- mas em análises estatísticas. Breves considerações em torno do conceito de “verdade” e de sua relação com a ciência3 Uma consulta a dicionários etimológicos associa o significado da pa- lavra latina veritas ao sentido que costumamos atribuir à palavra verdade, que diz da qualidade pela qual as coisas se apresentam tais como são. Além disso, verdade expressa uma conformidade do que se diz com o que é. No âmbito da 3 As considerações que se fazem aqui não são uma formulação do autor deste texto, que assume aqui sua limitação em produzir uma reflexão mais profunda no campo em que ora se aventura. As palavras escritas nesta seção são antes anotações de leituras feitas de obras que tratam do assunto, mormente Heidegger (2002 e 2008), Freire-Maia (2008) e Borges Neto (2004). Saliente-se ainda que as noções expostas a seguir importam ao trabalho na medida em que o autor tentará relacioná-las a alguns aspec- tos do modelo sociolinguístico de análise linguística. Gredson dos SANTOS 88 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 filosofia em geral e da filosofia da ciência em particular, o conceito de ver- dade não é algo de fácil definição, justamente porque é um conceito asso- ciado à transcendência, é uma noção primária e intuitiva, aut-evidente e ao mesmo tempo misteriosa, assim como as noções do belo, do bem e do ser. É Freire-Maia (2008, p. 27-28) que nos aponta que, embora derivada de veritas, a palavra verdade pode ser empregada em três dimensões distintas: 1) a que está ligada à própria origem latina: uma narração fiel ao que aconteceu. Veritas. Neste caso, se dizemos “É verdade que Paulo viajou”, isso realmente ocorreu; Paulo não está mais entre nós; 2) outro sentido provém da palavra correspondente em grego: aleteia. Neste caso, a verdade resulta de um descobrimento. A verdade é como a re- velação de algo que estava encoberto. “Este livro é de linguística...” significa que se trata de um livro que aborda um assunto em particular e não qualquer um; algo que foi constatado no momento em que se examinou o livro; 3) o outro sentido está relacionado com a palavra hebraica emunah. Algo verdadeiro e confiável. “Fulano não é meu amigo de verdade” significa que, se posto à prova, não se mostra amigo, não é confiável. Ainda segundo Freire-Maia, esses três aspectos da verdade podem ser assim tratados. Se nos referimos a algo passado e sua descrição nos permite prever o que virá a acontecer no futuro, está-se usando o emunah, que diz daquilo em que se pode confiar; de algo cujo comportamento esperado será confirmado. Se a descrição está relacionada a algo que exatamente aconteceu, então é o veritas latino que aparece. Quando, por outro lado, se conhece algo que não se conhecia antes, ou quando algo que não era visto passa a ser, então ocorre a verdade aleteia. Há ainda duas outras maneiras de se tentar precisar o conceito de ver- dade. Neste particular, pode-se afirmar que há dois tipos de verdade: as lógi- cas e as factuais. Uma verdade lógica independe de fatos. Se se diz que 2 = 2, está-se enunciando uma verdade lógica. Se o termo “variantes” é empregado para se referir a duas coisas diversas, mas de mesma natureza, como duas formas iguais de se dizer a mesma coisa, sejam elas quais forem, pode-se assumir isso como uma verdade lógica, tal como (2+4) = (3+3). As verdades factuais são verdades empíricas. Sua validade advém da verificação do que se diz e de sua correspondência com o que é ou com o que aconteceu. São exemplos de verdades factuais: “o gavião voa”; “mamíferos não põem ovos”; “a língua portuguesa deriva da língua latina”. Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 89 Heidegger (2008), em sua Introdução à filosofia, especialmente na pri- meira seção do livro, em que discute as relações entre filosofia e ciência, atribui a essência da verdade e o seu pertencimento ao ser-aí. O ser-aí é, em linhas bem gerais, aquele que tem como essência a qualidade de poder, na acepção do autor, “ser-um-com-o-outro”: o homem, que diferente dos objetos sem vida (classificados pelo filósofo como entes por si subsistentes), é um ser cuja natu- reza implica o compartilhamento da verdade, o desvelamento do ente. Em sua constituição ôntica, o ser-aí é um ser descobridor, ao passo que a verdade do ente por si subsistente é o ter sido descoberto (HEIDEGGER, 2008, p. 127-8). Note-se que, nesta preleção, o filósofo levanta a discussão acerca da essência da verdade em virtude de pretender abordar a essência do conhecimento científico. Heidegger aponta ainda que o conceito escolástico de verdade – ca- racterizada como adequação do intelecto às coisas – está associado à posição que encara a verdade como uma verdade proposicional. De acordo com esse entender, a verdade é uma verdade do juízo, do enunciado, na medida em que este tem o caráter de mostrar as coisas. Cabe lembrar que é esse conceito de verdade que é tradicionalmente associado à práticaacientífica. Disso implica que se a verdade reside mesmo na proposição e a ciência pode ser definida como um conhecimento que busca a verdade, então ela, a ciência, é uma co- nexão de proposições verdadeiras (HEIDEGGER, 2008, p. 50). Mas Heidegger, mesmo reconhecendo que essa concepção de verdade goza de prestígio no interior da história da filosofia, lembra que nem todo juízo mostra e levanta a seguinte ponderação: Mas, se a ciência deve ser o encontro e a determinação da verdade, então se torna simultaneamente questionável se o conceito basilar de verdade como verdade pro- posicional é suficiente para esclarecer a essência da verdade científica. Talvez resida até mesmo na caracterização da verdade como verdade proposicional e na determi- nação da ciência a partir de seu resultado um único e mesmo erro fundamental. Por meio de uma apreensão mais radical da essência da verdade, precisamos nos colocar em condições de, desde o começo, ver também a essência da ciência de modo mais originário. Precisamos chegar até o ponto em que evitemos desde o principio tomar a ciência como um conteúdo proposicional. (HEIDEGGER, 2008, p. 51-2) Como se vê, o autor associa o entendimento da essência da ciência à própria busca da essência da verdade, na medida em que se admite que o conhe- cimento científico busca atingir a verdade. Para isso, o autor elabora uma crítica ao conceito tradicional de verdade como uma proposição, como um juízo. Ele Gredson dos SANTOS 90 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 não nega que a verdade exista. De maneira bem direta, afirmará que “verdade significa desvelamento do ente” (HEIDEGGER, 2008, p. 82). Entretanto, como há entes de diversos modos de ser, existem correspondentemente diversas “mo- dulações da verdade” (HEIDEGGER, 2008, p.112). Com tal raciocínio, o autor conclui que uma determinação essencial da verdade é o fato de que ela não reside na proposição, mas no ser-aí (HEIDEGGER, 2008, p. 114). Evidentemente que a noção de verdade, especialmente quando corre- lacionada à ideia de ciência, implica também pensar o que vem a ser o “real”. Se pensarmos à maneira platônica, o real são as ideias. Esse modo de pensar implica rejeitar a realidade de todas as outras coisas. Analisando o problema ontológico na filosofia da ciência e como ele pode ser aplicado à Linguística, Borges Neto (2004, p. 42) destaca a posição de Popper (1963), para quem é possível pensar no real a partir de três dimen- sões. O primeiro mundo que goza de realidade é o dos objetos físicos (livro, lápis, campo gravitacional etc.); o segundo mundo real é o dos processos mentais (saudade, crença, desejos etc.); o terceiro compreende as entidades e relações teóricas (teorias, conceitos, argumentos etc.). Segundo mostra Bor- ges Neto, Popper entende, diferentemente de Platão, que os objetos do tercei- ro mundo são criações da psicologia humana que passam a existir, de fato, a partir do momento em que são criados, ganhando realidade autônoma. Outra via em que se pode pensar o que vem a ser o real é a partir da dicotomia já clássica entre realidade subjetiva e realidade objetiva. Os objetos pertencentes à realidade subjetiva seriam aqueles cuja existência não pode ser definida a partir de parâmetros únicos universalmente válidos. Um exemplo: num estádio de futebol uma torcida vê seu time perder. Naquela multidão, muitos podem ficar extremamente tristes e até com raiva de um ou de todos os jogadores. Isso não impede, entretanto, que um grupo saia satisfeito com a atuação do time, mesmo em face da derrota, e não tão triste assim. O exemplo nos diz o seguinte: os sentimentos de raiva, satisfação e tristeza são coisas que existem, mas obviamente não podem ser tocadas, cheiradas e nem são sentidas com mesma intensidade em todas as pessoas. Isso é basicamente o que caracteriza o real subjetivo. Os objetos da realidade objetiva são aqueles que podem ser percebidos por nossos órgãos do sentido ou por equipamentos que ampliam essas limitadas capacidades (como telescópio, microfone, quimógrafo etc.) ou podem ser defi- nidos por meio de uma relação matemática única. Outro exemplo: se menciono Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 91 “triângulo equilátero”, todos, independentemente do tamanho que atribuam ao objeto, terão em suas mentes uma figura de três lados A, B e C em que A=B=C. Se falo “cadeira”, as pessoas que conhecem o objeto pensarão em algo que é feito para sentar, independentemente do formato, tamanho, cor etc. Se, considerando essas coisas, voltarmos a pensar no conceito de ver- dade e no que é a ciência, podemos formular provisoriamente que a ciência se preocupa fundamentalmente com o real que pode ser apreendido de modo objetivo, sobretudo em função do modo como os próprios cientistas operam e dos instrumentos de que lançam mão para apreender e representar esse real. É novamente Heidegger (2008, p. 169) que coloca a questão: a ciência é, então, um tipo de verdade? O filósofo responde afirmativamente: a ciência é um tipo de verdade. A verdade, porém, pertence essencialmente ao ser-aí. Esse existe na verdade; a verdade é existente. A ciência como possibilidade de existência do ser-aí é uma possibilidade do ser na verdade. (2008, p. 169) Convém ressaltar que o filósofo adverte que não se deve tomar a ciência como uma atividade absoluta na lida com a verdade. Ela não implica necessa- riamente nenhuma elevação do ser-aí humano, mas “na medida em que é uma possibilidade do ser aí, pode ser dessa ou daquela maneira, pode atuar dessa ou daquela forma” (HEIDEGGER, 2008, p. 172). Também diz o autor que a verdade científica não é a única espécie de verdade nem a mais elevada, mas é certamente “uma postura fundamental possível da existência huma- na” (HEIDEGGER, 2008, p. 178). A partir desse ponto, podemos começar a pensar como essas conside- rações podem se relacionar com a linguística em geral e com a sociolinguísti- ca em particular. Em outros termos, uma questão que pode ser levantada diz respeito a como as análises linguísticas no interior de uma disciplina como a sociolinguística podem ser entendidas como uma postulação do real em termos de representação no âmbito do exercício teórico de uma prática científica. Antes de abordarmos mais de perto essa questão, será reproduzida aqui uma longa citação de Heidegge), que servirá de base para as considerações a serem traçadas na próxima seção do trabalho. Eis as palavras do filósofo: [...] Somente a ciência traz consigo a autêntica verdade sobre o ente. Um simples exemplo pode deixar claro esse estado de fato: tomemos o modo como é descoberto o Sol. Para os gregos dos primeiros tempos, em seus primórdios, ele era o deus Gredson dos SANTOS 92 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 Hélios, o deus que atravessava o espaço celeste em sua carruagem de fogo e submer- gia no oceano. Mais tarde, essa interpretação foi perdendo força, e o Sol tornou-se um disco que percorre sua trajetória. Logo o disco se mostrou como uma esfera de fogo, como uma bola que se movimenta em torno da Terra. Depois disso, foi a Terra que se tornou uma esfera que se movimenta em torno do Sol, que é o centro. E por fim, esse sistema solar apareceu como um sistema entre muitos outros. Nosso Sol foi então amplamente investigado por meio do espectro solar. Onde está então a verdade? Será que a física e a astronomia atuais conse- guem afirmar que elas descobriram o sol tal como ele é? Onde se acha o critério para que a concepção atual do sistema solar possa se mostrar como a única concepção verdadeira, para que ela possa ser assumida ao mesmo tempo como mais verdadeira do que as concepções mais antigas e até mesmo mais verdadeira do que a concepção mítica? No entanto, não continuamos, ainda assim, a falar do pôr-do-sol? Seria esse apenas um modo de falar? Re- almente não o vemos se pôr, e esse desvelamento do sol não domina nosso ser-aí, cotidiano? (2008, p. 176) Essas palavras não são de modo algum uma tentativa de usurpar a cre- dibilidade e consistência das formulações que faz a ciência. Com elas quer o autor mostrar que o conhecimento científico goza de uma especificidade em relação ao ente, que resulta na definição mesma de ciência e de verdade: dei- xar justamente o ente ser como ele é. A ciência é, assim, “ser no desvelamento do ente em virtude do desvelamento” (HEIDEGGER, 2008, p. 192). Isso envolve a contemplação do ente, que, na teorizaçãoacientífica, é impelido a “responder” aos questionamentos da ciência. Assim, quando um cientista se debruça sobre, por exemplo, como se dá a aquisição por uma criança de um segmento silábico com onset ramificado em língua portuguesa, ele opera com procedimentos que “forçam” o surgimento daquilo que era um todo, um continuum fônico indistinto (para os pais da criança, por exemplo); o cientista “provoca”, então, a emergência dessa categoria outrora invisível (ou inexis- tente mesmo) e o surgimento de um padrão de regularidade e hierarquia que torna possível ao pesquisador postular a tal entidade e colocar como problema a sua aquisição. Estas últimas observações apontam para um fato que marca a ciência moderna: a intervenção no real. Uma vez que uma ciência só é ciência na medida em que circunscreve o seu real, o seu positum, passa a fazer parte de sua essência a modulação do ente a ser desvelado por ela – alguns exemplos da linguística podem mesmo nos mostrar isso. Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 93 A “realidade” da linguagem na linguística As teorias linguísticas são uma maneira que os pesquisadores encon- traram de produzir uma interpretação de um real difícil de ser definido e cap- tado em sua integralidade. Se perguntarmos a um homem comum o que é uma língua talvez ele tenha uma dificuldade de fornecer uma definição precisa ou talvez ele a defina tal como ouviu na escola. Uma coisa é certa, porém, qual- quer que seja a alternativa: todos nós, especialistas ou não, nos percebemos como seres cuja existência bio-psico-social se dá na e pela língua. Ela está tão em nós que submetê-la aos rigores da investigação científica não é uma tarefa fácil. Uma das razões se deve ao fato de que a língua(gem) enquanto objeto de investigação não pode ser estudada sem que esse mesmo objeto se constitua instrumento mesmo de análise do pesquisador. Em outras palavras: a botânica se dedica à análise de algo que é exterior ao ser do cientista. Nessa ciência, o objeto será estudado com o recurso a instrumentos que não são em sua natureza “botânicos”. São sempre instrumentos exteriores à constituição vegetal. Tal não é de modo algum o caso da linguagem.Se, na ciência em geral, a terminologia é um problema importante na medida em que participa da definição mesma do campo das diversas teorias elaboradas, na linguística esse problema, por exemplo, é ainda mais complicado: o significado de um termo pode ser objeto de análise (basta pensarmos no problema clássico da Semântica) e ao mesmo tempo meio sem o qual dada análise não se sustenta (pensemos na rigorosa definição de competência em Chomsky ou nos problemas em torno do conceito de palavra em Morfologia). Note-se que a Terminologia é uma disciplina no interior da linguística. E não é novidade a frustração de Saussure com a impre- cisão dos termos empregados em linguística (cf. BENVENISTE, 1995, p. 44). No que tange ao modo como o real buscado pela linguística é formu- lado pelos pesquisadores da área, pode-se dizer que esse real (que, por sinal é “manipulado” de modos bem diversos em função do modo como é con- templado teoricamente4) nem sempre encontra correspondência com o modo como os usuários não-linguistas o percebem. Basta pensarmos no seguinte: 4 Um exemplo dessa “manipulação”: se no âmbito do modelo Padrão, a teoria chomskyana era basi- camente um “sistema de regras”, a partir dos anos 80 a gramática passa a ser vista pelos gerativistas como um “sistema de princípios”, em que a subespecificação de parâmetros variáveis é a explica- ção dada para a diversidade das línguas – note-se que postular “princípios” e “parâmetros” é uma operação que dá existência, no nível teórico, a “coisas” que não podem ser captadas diretamente da realidade. Gredson dos SANTOS 94 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 é provável que quando pense na expressão “língua portuguesa”, um linguista logo pense em um mosaico de coisas que compõem essa entidade. Há quem pense nos parâmetros que a especificam frente aos princípios presentes nas demais línguas. Alguns talvez pensem como uma realidade estruturada em níveis como a fonologia, a sintaxe e a morfologia. Há ainda os que podem considerar a expressão inadequada se se pensa no modo como se fala em Por- tugal e no Brasil. É possível que um sociolinguista imagine logo um conjunto de variáveis morfossintáticas e fonéticas que compõem essa entidade... Certamente, isso tudo, todos esses conceitos, todas essas entidades do terceiro mundo de Popper (1963), não são reais para um falante comum. Isso explica o fato de muitos acharem mesmo absurda a ideia de que, para certos indivíduos (os linguistas), não exista o modo certo de falar. Para os falantes co- muns esse mundo povoado de “coisas” como fonemas, morfemas, tópico, foco, anáfora, sujeito nulo, ergativos e tudo o mais que a imaginação dos pesquisado- res “inventa” não existe, e a expressão “língua portuguesa” é mesmo referente a algo usado com as mesmas características do norte ao sul do Brasil. A verdade que a linguística persegue, ao implementar suas investiga- ções, mesmo se considerarmos o âmbito restrito de atuação dos linguistas, não é mesmo de fácil demonstração. Se, como afirmou Heidegger (2008), a ciência desvela o ente e esse desvelar se faz múltiplo em função da diversidade do ser do ente, podemos dizer que o ente que a linguística procura desvelar tem uma constituição ôntica tal que seu desvelamento está ligado ao próprio modo como o ser-aí (neste caso o linguista) se coloca junto a esse ente. Em resumo: o ente se revela múltiplo e, além disso, o ser-aí que o desvela ocupa posições diversas. Borges Neto (2004, p. 34), tentando encontrar uma resposta para o pro- blema da multiplicidade de teorias linguísticas, lançou mão da noção de obje- to observacional e objeto teórico. Nos termos do autor, o objeto observacional é o conjunto dos fenômenos estudados iguais a todas as teorias. Entretanto, no nível da formulação teórica, esse objeto é notado de diversas maneiras. Isso explicaria a diversidade de teorias linguísticas: o objeto observacional é uno, mas o objeto teórico é diverso. Uma interpretação talvez nem tanto diversa do problema pode ser a se- guinte: o ente linguagem (objeto observacional, nas palavras de Borges Neto) não é de modo algum igual se é observado por um linguista ou por um falante comum. Aquilo que os linguistas veem como linguagem certamente difere do que os demais humanos veem, embora a percepção natural inicial possa Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 95 ser idêntica. Além disso, esse ente, mesmo entre os linguistas, é de diversas maneiras, isto é, ele se mostra de diversas formas – o que talvez nos permita dizer que ele não é um objeto observacional, mas vários mesmo. Além disso, o modo como o ser-aí (linguista ou não) que o investiga se coloca junto a ele é bem multifacetado – isso se alinha bem à noção de objeto teórico colocada por Borges Neto. Em outras palavras: talvez o objeto observacional uno, tal como proposto por Borges Neto, só possa ser postulado como um uno muito etereamente. Assim é que a língua no interior da doutrina saussuriana é inter- pretada como uma entidade dupla-face que é, ao mesmo tempo, indivi- dual e social. Mas o interessante é que a noção de fato social em Saus- sure, herdada das formulações durkheimianas, não é múltipla. O social da linguagem, no âmbito deste raciocínio, é que ela é compartilhada (sempre da mesma forma) por um grupo de indivíduos, visto também como corpo coletivo uno que compartilha algo que está nesse corpo, mas é fora dele. Tanto assim que as chamadas variações foram atribuídas, no interior da proposta saussuriana, às idiossincrasias do indivíduo (e não como uma propriedade intrínseca à natureza do ente língua), não mere- cendo maior atenção por parte do linguista, que tinha à mão um estado de língua para estudar. Uma questão que se coloca é: até que ponto tal formulação é ver- dadeira ou falsa? Em outros termos, qual o grau de realismo da proposta saussuriana? A resposta tem um caráter epocal. É evidente que quando essas ideias começaram a circular elas gozavam de aceitação por parte de uma ampla comunidade de linguistas que, conforme o seu senso de realidade, viam nessa formulação uma tradução do ser da língua. Entre- tanto, quando começou a ser testada, quando começou a ser colocada à prova, as formulações estruturalistas começaram a dar sinais – para certo grupo de linguistas – de que seu grau de realismo não era tão forte quando se olhava mais amplamente para o ente linguagem. É Lucchesi (2004, p. 57) que mostra o dilema: “a questão da mudança converteu- se então num anátema no âmbito da linguística saussuriana ortodoxa, uma ameaça permanente à sua concepção da língua”. Com isso, na visão daqueles que propunham uma alternativa à análise estrutural, a teoria estruturalista não deixava, para usar uma terminologia heideggeriana, o ente ser como ele é. Nesse sentido, a intervenção saussuriana nesse real Gredson dos SANTOS 96 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 era tão forte que tentava impor uma adequação da natureza do ente à contemplação do ser-aí e não o contrário. Na tentativa de solução desse problema, a interpretação sociolin- guística propõe uma mudança nas regras desse jogo teórico. Resolve in- tegrar a variabilidade à natureza mesma do ente linguagem e assume uma interpretação do ser social da linguagem diversa: o social não é mais o social homogêneo de Durkheim. Agora, esse “social” implica necessaria- mente uma multiplicidade de individualidades, de identidades mesmo. E isso se transfere para a língua: se ela é algo social, ela é também diversa. Com isso, a teoria tentava melhor acomodar a mudança em seu interior – note-se que isso ilustra bem o fato de qualquer modelo teórico opera uma intervenção no real; os modelos nunca são apenas uma contemplação do ente como ele é. Nesse caso, pode-se mesmo falar numa adequação das principais formulações estruturalistas à nova teoria, que não é de modo algum um rompimento qualitativo face à concepção anteriormente vigente. Ou seja: a sociolinguística – sem uma revisão crítica dos fundamentos – integra em seu mundo teórico uma série de entidades que povoavam outro mundo (cf. LUCCHESI, 2004, p. 206). Dois, dentre os vários problemas de cunho epistemológico que isso implica, são estes: a lín- gua é então um reflexo (total ou parcial) das contradições sociais? O desvelar-se do ente da teoria sociolinguística em função da multipli- cidade de identidades a que ele se prende revelar-se-á menos proble- mático, ou seja, o ser-aí sociolinguista estará mais próximo da verdade do ente? O tratamento da linguagem na teoria sociolinguística e a modelação do real Em Ciência e pensamento do sentido, Heidegger faz a seguinte observação: Como a arte, a ciência tampouco é, apenas, um desempenho cultural do homem. É um modo decisivo de se apresentar tudo que é e está sendo. Por isso devemos dizer: o que se chama de ciência ocidental europeia determina também em seus traços fundamentais e em proporção crescente, a realidade na qual o homem de hoje se move e tenta sustentar-se. (2002, p. 39) Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 97 Essa reflexão nos conduz a entender que o fazer científico não é uma atividade afastada do real que investiga. Ela, de fato, determina esse real. No dizer de Heidegger, a ciência vai ao mundo tomar-lhe as contas. Para isso, precisa recortá-lo de modo a poder mensurá-lo (pense-se já aqui na análise quantitativa da variação linguística). Assim, a verdade da ciência é uma ver- dade derivada dessa alteração no real, ainda que possamos considerar que tal atividade tente priorizar o deixar ser do ente como ele é. No âmbito da teoria sociolinguística, a questão do tratamento do real é uma constante. O fato de a teoria ter integrado em seu interior os conceitos estruturalistas de sistema, estrutura e regularidade, colocando-os junto às no- ções de variação e mudança, impõe aos pesquisadores uma postura de busca de adequação dos procedimentos a esse novo real que lhes afronta. Um desses procedimentos inclui a análise estatística rigorosa, que é uma tentativa que os sociolinguistas empreendem de dar maior objetidade ao ente que investigam e fazer emergir os padrões de regularidade que a teoria atribui à variação linguística. Em Sociolinguística quantitativa: instrumental de análise, Guy e Zil- les oferecem ao leitor detalhes dos procedimentos da metodologia quantita- tiva em sociolinguística. Numa seção em que esclarecem o que é e por que usar o VARBRUL, os autores declaram: de modo geral, o uso do VARBRUL facilita a construção de um modelo quan- tificado de processos linguísticos (e dentro de certos limites [...] dos processos sociais) que controlam e produzem os padrões regulares da variação linguística (2007, p. 105). Note-se, nesta observação, a palavra “construção”. Seu emprego evi- dencia a intervenção do método no real a ser investigado. Uma vez que esse real não salta aos olhos do linguista de forma estruturada e justamente pelo fato de que esse real não pode dizer como quer ser abordado, o linguista precisa fazer uma intervenção. No caso da teoria sociolinguística, isso im- plica construir os padrões de regularidade das formas linguísticas. É inte- ressante notar ainda que os próprios autores admitem a limitação do método no que tange à modelação/construções dos padrões sociais ligados à análise linguística. Note-se ainda que isso se relaciona com o problema epistemo- lógico que colocamos acima, na medida em que o modelo capta melhor os padrões de regularidade linguística do que propriamente sociolinguística. Gredson dos SANTOS 98 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 Evidentemente que essas observações não têm nenhuma pretensão de discutir falhas do modelo ou mesmo de levantar dúvidas sobre sua validade. O objetivo básico é tentar mostrar como a prática dominante na sociolin- guística quantitativa produz um real cuja natureza pode se distanciar mais ou menos do ente investigado. Um problema interessante na análise sociolinguística é a definição da amostra e seu tratamento. O uso do programa coloca questões que vão desde a extensão da amostra bem como sua representatividade face à comunidade em que ela é coletada até a melhor forma de executar seu tratamento no pro- grama. Isso por si já mostra que, mesmo coletada do modo mais rigoroso pos- sível, a amostra é já um recorte do real que pode apresentar maior ou menos discrepância em relação à realidade tal como ela é. Evidentemente que esse é um problema presente em toda a ciência, já que ela não é (nem pretende ser) a reprodução do real que investiga. Mas é Heidegger novamente que nos diz: toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e suas causas, numa explicação causal [o que não parece ser o caso da sociolinguística], quer, enfim, assegure em seus fundamentos, um sistema de relações e ordenamentos. (2002, p. 50) Nesse caso, isso implica necessariamente o emprego de um método que deve ser aceito pelo cientista como válido e como o mais apropriado para sua análise. Assim, o que se evidencia é que, em função desse impera- tivo, o cientista – no nosso caso, o linguista – não consegue tocar a essên- cia de sua prática. Nas palavras de Heidegger (2002, p. 56), não assiste ao cientista “a possibilidade de acesso ao incontornável de sua essência”. É por isso que o autor afirma que nenhuma física é capaz de falar da própria física. De modo mais direto, o que se quer com isso é afirmar que, embo- ra consciente de sua operação e de que ela é uma dentre outras possíveis, o sociolinguista no exercício de seu método tem que assumi-lo como o mais apropriado para tratar do real. Com isso escapa-lhe, entretanto, a consciência de que esse real apropriado ao método é um real particular, definido em seus termos no exercício teórico de uma disciplina ou dou- trina científica. Para ilustrar: uma questão mal resolvida em muitos trabalhos so- ciolinguísticos diz respeito ao tratamento de categorias que pertencem Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 99 à chamada variável explanatória, mais especificamente dos fatores cha- mados de extralinguísticos. É comum encontrarmos trabalhos que quan- tificam e confrontam ocorrências de formas entre homens e mulheres, mas não elaboram uma reflexão das representações de gênero no inte- rior da comunidade em que a amostra foi colhida. Muitos dos trabalhos limitam-se ao estabelecimento de categorias tais como escolaridade, classe social, gênero etc., sem uma reflexão do quanto tal categorização se aproxima e importa, de fato, para a compreensão de como a utiliza- ção de certos fatos de língua está vinculada às práticas sociais/culturais/ identitárias do grupo estudado. É muito comum a ideia de que basta cor- relacionar frequências de certas formas linguísticas a categorias como escolaridade e faixa etária para se ter um retrato sociolinguístico com- pleto da comunidade de fala. A noção de vernáculo, muito importante no âmbito da teoria, guia a coleta da amostra – tanto em termos de extensão da mesma quanto no que tange ao modo de coleta dos dados. Entretanto, a de- finição seca de vernáculo como o falar “espontâneo” do falante em situações “naturais” de interação é muitas vezes assumida sem uma re- flexão crítica da própria noção de identidade: o que seria “natural” em termos de interação? A depender do perfil da comunidade investigada, não seria “natural” falar em situações formais? A identidade fragmen- tária do falante e mesmo da comunidade, muitas vezes é tratada como uma questão de estilo, apenas, não como algo que é da própria consti- tuição ôntica do indivíduo. Qual a implicação mais séria disso? Esse modo acrítico de exame pode realmente “forjar” um real ou mesmo deformá-lo, produzindo cenários que, de fato, não guardam a proximidade imaginada com a realidade. Guy e Zilles fazem uma advertência similar: Uma prática bastante comum nos estudos sociolinguísticos no Brasil tem sido a de organizar amostras estratificadas, com igual número, de por exemplo, homens e mulheres, jovens e velhos etc. [...]. a prática de constituir amostras estratificadas faz sentido. No entanto, as categorias utilizadas – sexo, idade, escolaridade, etnia, classe social etc. – são muitas vezes estabelecidas de modo apriorístico ou mesmo pré-teórico. O avanço na pesquisa está apontando para a necessidade de repensar tais categorias. (2007, p. 111) Gredson dos SANTOS 100 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 Outro exemplo: uma categoria que se revela extremamente problemá- tica no âmbito da sociolinguística brasileira é o que se chama geralmente de “norma culta”. Por vários motivos essa noção é problemática: pela própria noção de norma (herdada da tradição coseriana); pelas implicações semân- ticas do adjetivo que compõem a expressão; pelo problema de delimitar a extensão do que vem a ser isso, já que ela apresenta muitas coincidências com outras normas. Até mesmo um critério como o de que falantes com curso superior com- pleto são os falantes da norma culta é extremamente problemático. E isso le- vanta uma questão séria que não é enfrentada (e é mal resolvida) no geral dos trabalhos de sociolinguística: a norma culta é um vernáculo? Se a resposta é afirmativa, há que se considerar que o Brasil da época do NURC mudou bas- tante e que há muitos brasileiros (e conheço de perto vários casos) que hoje têm curso superior e cujos pais nunca foram à escola – daí: se o vernáculo é adqui- rido na convivência com a família, como considerar que um falante de nível superior cujos pais não tenham sido nem alfabetizados tenha como vernáculo a norma culta? Como lidar com essa discrepância entre método e conceito? Como se vê, a entidade norma culta tem existência complicada e já é de difícil aceitação hoje. Faraco (2008), que faz um exame aprofundado do conceito de norma culta e de outros que lhe estão associados, chega mesmo à seguinte conclusão: Por tudo que afirmamos no texto, talvez melhor faríamos se abandonássemos a de- nominação norma culta. De um lado, nos livraríamos de sua carga de injustificável elitismo. Por outro lado, estaríamos nos aproximando de uma análise mais precisa da realidade linguística brasileira na medida em que não há, pelo menos no plano da fala, diferenças substanciais entre o que se poderia chamar de norma culta e a linguagem urbana comum. (2008, p. 64) Como se vê, a modelação dos dados no interior da análise sociolin- guística intervém num real que, em função do método analítico a que é sub- metido, pode se distanciar muito do ente a ser desvelado pelo ser-aí pesqui- sador. Problema similar já foi discutido por Odete Menon (1993), durante o Seminário Nacional sobre a Diversidade Linguística e o ensino de Língua Materna. Naquela ocasião, a autora discutia A questão das afirmações gene- ralizantes sobre o português do Brasil e os dados do projeto NURC. Sintetizo a seguir alguns pontos da argumentação dela. Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 101 Menon cita o trabalho de Moreira da Silva (1983, p. 4, apud MENON, 1996, p. 208), que afirma que o pronome se não ocorre na língua oral. Destaca também que Pontes (1992, p. 21) faz uma afirmação semelhante, ao dizer que no PB oral, o se desaparece em construções existenciais. Logo a seguir, Menon faz a seguinte afirmação: Coincidentemente, ambos são mineiros e, no seu dialeto, existe uma tendência, constatada já há algum tempo, a de apagar o pronome se reflexivo de alguns verbos pronominais. Mas daí a estender esse fato a nível de PB e a todos os se, inclusive o que exerce função de sujeito, vai uma certa extrapolação. É perfei- tamente plausível que o fenômeno em tela se estenda a outras regiões do Brasil. No entanto, é nesse momento que se apresenta uma séria dificuldade: a falta de trabalhos descritivos dos vários dialetos do PB para se contrapor a esse tipo de afirmação. (MENON, 1996, p. 208) Ao longo de seu texto, a autora segue apontando outros exemplos de afirmações generalizantes sobre o PB com base no Projeto NURC, ao passo que destaca alguns problemas metodológicos do Projeto e enfatiza a neces- sidade de trabalhos mais pontuais acerca do português falado por indivíduos escolarizados e não-escolarizados. O que tudo isso sugere é que a verdade do ente buscada pela socio- linguística é uma dentre outras e que, nem sempre, as imagens que ela cria desse real permitem que o ente seja mesmo como ele é. Como o desvelamento desse ente se sujeita também ao modo como o ser-aí se coloca junto a ele, só o olhar afastado, só a contemplação descerradora do ente pode aproximar as formulações teóricas do próprio ente contemplado. O problema é que o exer- cício do método, como salienta Heidegger (2002), pressupõe sua aceitação de certa forma incondicional – e é aí que se revela, como nos aponta o filósofo, esse caráter terrivelmente intervencionista da ciência enquanto teoria do real. É aí que se revela a construção de uma realidade operada pelo tratamento do linguista – é, portanto, essa situação própria da ciência que justifica que se desenvolva uma ‘filosofia da linguística’. Considerações finais Este texto pretendeu fazer uma breve reflexão sobre o modo como a sociolinguística trata os dados que coleta e como isso implica uma produção do real que pode ser mais o menos condizente com o ente que a teoria procura Gredson dos SANTOS 102 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 desvelar. Durante as considerações destacou-se que, em alguns trabalhos so- ciolinguísticos, as noções de “sociedade”, “grupos sociais”, “comunidade” são empregadas de modo apriorístico ou mesmo pré-teórico, o que pode compro- meter o alcance das formulações de tais estudos. Além disso, apontou-se que tal situação se relaciona também ao fato de que ao submeter os dados a um tratamento estatístico computacional sem uma reflexão crítica sobre o método em si, o sociolinguista “forja” uma “realidade” da qual ele nem mesmo tem consciência. Note-se que não se está negando aqui a validade do modelo labo- viano; o que interessa aqui é dizer que, como qualquer outro, é um modelo que intervém no real de um certo modo. Assim, quando se faz sociolinguística (ou gerativismo ou linguística histórica) há que se seguir um método, mas é funda- mental ter clareza de que o método não nos dá o ente tal como ele é. As conclusões sinalizam para os seguintes aspectos: a) urgente se faz a produção de trabalhos no âmbito da filosofia/historiografia/epistemologia da linguística brasileira – o que permitiria uma revisão crítica dos trabalhos que têm sido produzidos. Tal revisão poderia contribuir para uma melhor avalia- ção do impacto que as pesquisas linguísticas em geral e as sociolinguísticas em particular têm na compreensão dos diversos fenômenos que circunscre- vem a realidade linguística do Brasil. Além disso, tal revisão poderia contri- buir ainda para uma aplicação mais efetiva da pesquisa sociolinguística no espaço escolar brasileiro; b) apenas o exercício do método não fornece ao sociolinguista elementos para que ele pense sua prática – daí porque é impor- tante um exame dos fundamentos filosóficos do seu método e de sua ciência. Agradecimentos: Ao professor Carlos Alberto Faraco e à professora Rosa Virgínia Mattos e Silva. SANTOS, Gredson dos. Data modelling and the production of “realities” in sociolinguistic analysis. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009. ABSTRACT: This text makes critical considerations on the quantitative data treatment in sociolinguistics and its impact on the formulation of “realities” with regards to the Brazilian linguistic space. Furthermore, this paper holds brief comments on how the data selection, treatment, analysis, and interpretation operations, following a quantitative methodology, “format”, in different intensity degrees, the “real” which is in the scope of the sociolinguistic analysis. KEYWORDS: Science Philosophy. Linguistic Philosophy. Sociolinguistics. Modelação de dados e produção de “realidades” na análise sociolinguística Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 85-103, 2009 103 Referências BENVENISTE, Émile. Saussure após meio século. In: ______. Problemas de linguís- tica geral I. Tradução de Maria da Glória Novack e Maria Luisa Neri. Campinas, SP: Pontes, 1995. p. 34-49. BORGES NETO, José. Ensaios de filosofia da linguística. São Paulo: Parábola, 2004. FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. FREIRE-MAIA, Newton. Verdades da ciência e outras verdades: a visão de um cien- tista. São Paulo: EdUNESP; Ribeirão Preto, SP: SBG, 2008. 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Brasília: Editora da UNB, 1963. 104 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 LINGUAGEM E EMOÇÕES Marinalva VIEIRA BARBOSA1 RESUMO: Neste artigo, o objetivo será tecer algumas reflexões sobre a problemática de pôr as emoções como objeto de interesse dos estudos da linguagem. Especificamente, focalizarei a questão da circunscrição do universo patêmico e dos traços linguísticos das emoções. O estudo desenvolve- se em torno de discursos de professores e alunos do Ensino Fundamental e Médio. A base teóri- ca é derivada das concepções de sujeito e linguagem defendidas por Bakhtin (1976 [1926]; 1995 [1929a]; 1997 [1929b]) e dos estudos desenvolvidos por Plantin (2003; 2004) e Plantin et al (2000). PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Sentidos. Emoções. Introdução As emoções podem ser objeto de interesse dos estudos da linguagem? Por vias teóricas diferentes, acompanho Charaudeau (2000) na resposta afirmativa para tal questão. Ainda o sigo na defesa de que a resposta precisa ser cercada de um quadro teórico que descreva as condições em que podem aparecer como elemento de linguagem, pois estudos como os desenvolvidos por Plantin (2003), visando a construir formas de abordagens da emoção falada e da fala emocionada demons- tram que a abordagem discursiva do tema ainda exige construções tanto do objeto como do campo teórico e metodológico de sustentação. Nos estudos da linguagem, ainda é difícil estabelecer diferenciação entre “a expressão de emoção (as marcas de afetividade na linguagem) e os patêmicos ou os elementos suscetíveis de provocar emoção no alocutário” (AMOSSY, 2006, p. 197). 2 Neste artigo, tratarei da questão da categorização semântica do uni- verso patêmico e da circunscrição dos traços linguísticos das emoções (e os 1 Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Uni- camp, Campinas, São Paulo, Brasil. marinalvav@gmail.com 2 “l’expression de l’émotion (les marques de l’affectivité dans le langage) et les pathémes ou éléments susceptibles de créer l’émotion chez l’allocutaire”. Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 105 seus possíveis efeitos de sentidos). A base teórica deste estudo é derivada das concepções de sujeito e linguagem defendidas por Bakhtin (1976 [1926]; 1995 [1929a]; 1997 [1929b]) e dos estudos desenvolvidos por Plantin (2003; 2004) e Plantin et al (2000). Para desenvolver as análises, tomo como base discursos produzidos por alunos e professores nas interações em sala de aula. O que defino como “discurso de emoção” é o resultado dos esforços empre- endidos por ambos para se contraporem aos temas e posicionamentos de seus interlocutores imediatos nas interações. A seleção do corpus para estudo é baseada na concepção de paradigma indiciário proposta por Ginzburg (1999), que permite, no trabalho com os atos de linguagem, conceber sujeitos cujo discurso não se perde ou se explica por meio da eleição de traços generali- zantes de pertencimento a uma comunidade (neste caso, a comunidade de professor ou de aluno), mas também não são atos absolutamente singulares e, por isso, sem relação com outros discursos. A definição do corpus indiciário depende da inter-relação entre pequenos acontecimentos. Sobre a circunscrição linguística A maioria dos trabalhos (dos poucos!) que discute a inscrição do afe- tivo na linguagem volta-se para a necessidade de definir o aspecto linguístico das emoções por ser esta uma questão de difícil solução. Engelmann (1978), ao fazer uma revisão das variações semânticas das palavras e conceitos liga- dos ao campo das emoções, dos sentimentos, das paixões, em idiomas como o francês, inglês, alemão, italiano e português, afirma que há uma dificuldade muito grande em construir uma dimensão linguística para as emoções. Nas palavras do autor, “Queríamos delimitar o universo e explicitar os usos do ou dos termos para rotular esse universo. Fomos frustrados com relação a essa expectativa” (p. 38). Eggs (2000), ao defender a relevância e a atualidade da Retórica das Paixões, assinala que todas as emoções, atitudes, os bons e maus hábitos, as manifestações feias e belas são lexicalizados e gramaticalizados em uma multiplicidade de palavras, torneios e construções enunciativas que surgem por meio de uma determinada forma de organização do discurso de emoção. Plantin (2003) complementa essa concepção ao defender que há uma estrutu- ração do emotivo na língua cuja materialização é possível de ser identificada nas formas de organização do discurso. Tais afirmações autorizam um estudo Marinalva VIEIRA BARBOSA 106 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 discursivo das emoções a partir da perspectiva de que o componente afetivo tem uma face linguística que pode ser apreendida se colocarmos o próprio processo de constituição do discurso como base. Focalizar a organização linguística das emoções não responde à ne- cessidade de identificar as experiências subjetivas dos sujeitos objetivadas no léxico ou nos enunciados de caráter afetivo. O objetivo é considerar termos linguísticos arregimentados como estratégias para melhor construir o projeto de dizer de ordem emotiva. Para analisar o discurso de emoção focalizando sua estruturação, Plan- tin (2003) propõe, com base na consideração de elementos lexicais, uma es- trutura sintática para o que denomina enunciados de emoção. Este recebe a seguinte definição: “o enunciado de emoção atribui uma emoção a uma pes- soa [seja ela o próprio locutor ou o interlocutor] e, em certos casos, menciona a fonte da emoção” (p. 108).3 Pela conceitualização apresentada, a declara- ção “eu estou triste porque minha amiga partiu” pode ser caracterizada como enunciado de emoção porque apresenta um sujeito que enuncia sua tristeza (lugar psicológico marcado por um substantivo subjetivo) e localiza a fonte dessa emoção (a partida da amiga). Os três elementos identificadores são: quem fala (se é o sujeito ou não das emoções), o que fala e porque fala. Na afirmação “Eu vou perder a paciência com você logo no começo da aula”, o que permite caracterizar o enunciado de emoção é o sintagma “perder a paciência”, que se sustenta na declaração de um estado subjetivo afetivo. E não só os termos de nomeação principais, mas também os seus derivados morfolexicais (vergonha → vergonhoso, envergonhado) são considerados para definir os enunciados de emoção. A consideração dos derivados sustenta- se na concepção de que não é necessário, nos estudos do discurso, construir categorias linguísticas que deem respostas precisas às categorias de emoções. Neste estudo, a definição do que seja um termo de emoção não se sustentará somente na consideração de elementos linguísticos já reconhecidos como per- tencentes ao campo semântico das emoções. Haverá distensão porque mui- tos enunciados serão definidos como tais pelo seu funcionamento discursivo. Isso pode fazer com que um léxico, embora não classificado semanticamente como de emoções, seja a base para a definição de um enunciado de emoção porque carregado de sentidos afetivos ou porque pode provocar/atribuir esses 3 “l’enoncé d’émotion attribue une émotion à une personne et, dans certains cas, mentionne la source de l’émotion”. Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 107 sentidos no outro e ao outro. E não se trata de um tipo de análise que transfor- ma a linguagem num domínio puro e simples da subjetividade, mas, sim, da consideração de determinados aspectos discursivos que permitem afirmar que um recurso linguístico específico, dependendo dos objetivos do discurso e das circunstâncias em que é usado, pode produzir efeitos de emoção. Ainda sobre a organização dos enunciados, a mudança do sujeito das emoções muda o estatuto estrutural do enunciado. Na afirmação “ela é uma pessoa que provoca tristeza”, “ela” é posta como a fonte geradora da emoção, o locutor e, por empatia, o interlocutor são os sujeitos do sentimento. Essa noção explica as atribuições indiretas de emoção, feitas cotidianamente como no caso do enunciado “Ele ficou vermelho professora”. O termo de emoção remete à leitura que o locutor faz das ações do interlocutor. A estruturação dos termos e enunciados de emoção obedece aos direcionamentos e objetivos do discurso. Sua organização linguística põe o enunciador no lugar de ava- liador, pois, trabalhando com o que lhe é dado pelo campo do visível e pelo que é enunciado pelo outro, organiza o discurso envolvendo recursos verbais e extraverbais. Tal organização pode indicar solidariedade pela assunção da posição de empatia ou pode indicar rejeição, esta marcada, por exemplo, pela ironia. Por meio do trabalho com o linguístico, os interlocutores se recolo- cam, excluem e incluem a si mesmos e ao interlocutor no jogo interlocutivo. A seleção de um elemento linguístico e não de outro aponta para um trabalho não aleatório; ao contrário, é resultado das percepções avaliativo-afetivas, direcionadas ao objeto e/ou ao outro sujeito. A localização dos enunciados com base em termos ou palavras perten- centes ou não ao universo semântico das emoções não implicará a afirmação de que, embora descreva uma emoção, o sujeito esteja emocionado ou então que o discurso produzirá efeitos de sentidos emotivos. Tendo por referência o que diz Ducrot (1984) sobre a orientação argumentativa, a orientação dos sentidos afetivos de um termo ou palavra pode mudar, quer seja para não produzir efeitos de emoção ou para produzir, de acordo com as orientações e objetivos do discurso. Essa flexibilidade leva Plantin (2003) a propor que também existem os termos indiretos de emoção, derivados de enunciados que não comportam palavras que remetam diretamente ao campo semântico das emoções, mas que são suscetíveis de provocar e/ou conotar efeitos afetivos. Isso ocorre sobretudo quando se conhece a situação enunciativa, pois é o tema que define o caráter afetivo ou não. Exemplificam essa questão os efeitos de Marinalva VIEIRA BARBOSA 108 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 sentidos produzidos pelas pequenas palavras e diminutivos usados pelos pro- fessores para responder às ações dos alunos.4 Assim, no que tange à dimensão linguística, a hipótese assumida é o de que a língua constitutiva do discurso de emoção é uma sistematização aberta, formada com base nas “ações do sujeito sobre a linguagem”. Esse trabalho é responsável por deslocamentos nos sistemas de referências da língua, produzindo com isso certa novidade não só em termos de sentidos afetivos como também em referência ao uso dos termos linguísticos (GERALDI, 1991). Os deslocamentos serão fundamentais para compreender os sentidos do discurso e, sobretudo, a re- lação sujeito e discurso de emoção. Consequentemente, o que será apresentado a seguir como a dimensão linguística do discurso não pretende ser um modelo, mas condições de possibilidades para a inscrição do afetivo na língua. Abrindo parêntese para análise A necessidade de especificar o termo linguístico afetivo Para justificar o posicionamento assumido acima, desenvolverei a análi- se de uma pequena sequência discursiva, resultante de uma situação de intera- ção entre professores e alunos, em que as palavras “surpresa” e “perplexidade” aparecem para definir a reação do locutor diante das ações dos seus interlocu- tores. Nas definições dicionarizadas, essas duas palavras, quando adjetivos, são dadas como sinônimos. Isto é, qualificam o mesmo estado de emoção de uma pessoa diante de um acontecimento inesperado. Numa possível semântica das emoções, seriam sinonímias. Por essa indiferenciação, o uso de um termo ou de outro seria simples paráfrase para melhor clarear os sentidos do discurso, já que não há distinção entre as duas palavras no plano conceitual. No entanto, na sequência abaixo, situação em que o sujeito do discurso atribui-se uma emoção para responder aos seus interlocutores, podemos constatar que, se essas pa- lavras podem funcionar como sinônimos perfeitos, existem situações em que apresentam empregos específicos que mudam a sua significação não permitin- do tratá-las como termos que remetem ao mesmo estado afetivo. Vejamos: 4 O termo “pequenas palavras” aparece neste trabalho em uma filiação indireta aos estudos desenvolvidos por Bouchard (2000), para definir e tratar do caráter afetivo das expressões “muito bem”, “é isso mesmo” e do pronome relativo “isso”. Este texto não foi citado nas referências. Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 109 A7SEF [...] 01 A1 professo::ra/ hoje nosso grupo vai ver um 02 filme pra aula de geografia 03 P (...) não/ eu preciso admitir que estou 04 surpresa (.) não/ perplexa MESMO(.) to::do 05 dia: têm uma historia nova pra não ficar 06 na aula de português (.)não dá pra 07 negar que vocês são criativos 08 A1 i::h p’ofessora\ foi a p’ofessora de 09 geografia que passou o filme 10 P eu sei:::/ mas vocês não podem ver o filme 11 no’tro horário// (..) tem que ser sempre 12 na minha aula// (.) 13 A2 ((rindo)) é:h que a gente não tem tempo 14 P e com a cara de pau também/ (.) L/ você 15 sabe que essa historia me deixa mais 16 irritada ainda/(.)você já pensou na confusão 17 se eu resolvesse atender a falta de tempo de 18 todo aluno que me pede// [...] A enumeração, que pode ser vista como necessidade de clarear os sen- tidos do primeiro termo, no caso acima é um importante indício de que a distinção remete à preocupação do locutor em precisar para o interlocutor a dimensão crescente dos seus sentimentos diante das ações deste. Ou seja, a necessidade de configurar o grau de força, de progressão do sentimento enunciado é o elemento que não permite o estabelecimento de uma relação tranquila de sinonímia entre os dois termos. Trata-se de um discurso que se- gue o movimento imposto pelo grau de inventividade dos interlocutores, daí o enunciado irônico de que “não dá pra negar que vocês são criativos”. “Sur- presa” e “perplexa” não foram enumerados por causa da preocupação em fazer o locutor compreender o que estava sendo nomeado, mas, sim, visando a fazê-lo compreender a dimensão da força das suas (re)ações. Ou a dimen- são de como estavam sendo recebidas. Tanto que há simetria crescente entre “estou surpresa (.) não/ perplexa MESMO” e a afirmação seguinte: “to::do dia: têm uma história nova pra não ficar na aula de português”. A surpresa mudou para perplexidade na medida em que as estratégias dos interlocutores Marinalva VIEIRA BARBOSA 110 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 se renovaram para atingir sempre o mesmo objetivo: não assistir à aula de língua portuguesa. Se consideramos a vizinhança entre os termos linguísticos, o uso do “não” para negar a primeira definição e a contiguidade do intensificador “mesmo” corroboram com a hipótese de que o sentido de perplexa não é o mesmo que o de surpresa. Há um trabalho com a “intenção” de fazer os dois termos significarem de modos diferentes. Na linha 14, a qualificação direta dos sujeitos desse ato como “cara de pau” e o ato de fala seguinte – “L/ você sabe que essa história me deixa mais irritada ainda/” – explicam o enunciado de emoção inicial: trata-se principalmente de irritação diante das insistentes estratégias. A perplexidade descrita tem um acento avaliativo negativo. No entanto, como a diferenciação progressiva e o traço avaliativo apreciativo foram definidos pelos objetivos do discurso e no interior mesmo da interação verbal, não criaram nenhum tipo de incongruência por causa da sinonímia existente entre os termos lexicais. O que ocorre na construção do enunciado de emoção analisado é um típico trabalho do sujeito sobre a linguagem com o objetivo de provocar no in- terlocutor compreensão específica. Pensando numa possível correspondência do linguístico com os objetivos do discurso, o adequado seria pôr no lugar de “perplexo” o termo “espanto”, que estabeleceria força semântica maior para o discurso. Entretanto, o termo “espanto”, nas práticas linguageiras cotidianas, pressupõe também o medo. No contexto das interações em sala de aula, não há o objetivo de dizer que as ações do aluno provocam medo ou susto; isso tocaria na representação sobre o modo de ser do professor. Dizer-se perplexa retorna para o outro uma avaliação negativa, mas que não compromete a po- sição do enunciador. O trabalho sobre a língua visando à construção de si e de sentidos afetivos geram certa novidade que impede classificações rígidas sobre o léxico das afetividades. Embora os termos “surpresa” e “perplexo” pertençam ao campo semântico mais amplo das emoções, são os usos que orientam os traços específicos das significações no interior de um determina- do discurso. O sentido afetivo dos diminutivos A repetição constante dos diminutivos nas interações em sala de aula geralmente é vista como formas mecânicas de o professor responder ao alu- Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 111 no. Para um interlocutor exterior que não se detenha no todo discursivo, não há dúvidas que são repetitivas e banalizadas. Porém, se considerarmos que os usos de tais recursos linguísticos são característicos dessa fase de esco- larização (desaparecem ou perdem a intensidade nas demais fases), pode-se concluir que seus sentidos estão ligados às pequenas táticas próprias da sala de aula. Em outras palavras, tanto professor como aluno reconhecem e legiti- mam seu funcionamento e, consequentemente, o uso cotidiano os ressignifica conforme o movimento do discurso. Assim, de acordo com Auchlin (2000), a compreensão dos seus sentidos não depende de representação conceitual, mas da experienciação, mais ou menos direta, mais ou menos composta, do que podemos fazer delas em um contexto específico de discurso. Os seus sentidos estão ligados ao contexto das interações, aos objetivos do discurso e, ao serem enunciados, têm os sentidos construídos por meio da inter-relação entre discurso verbal e elementos extraverbais, conforme pode ser verificado na sequência retirada de aula numa quarta série: A1EF4S [...] 85 A1 o seu palhaço é feio= 86 A2 =ti:::a ele tá me chamando de fé::ia 87 (inaudível) 88 P já vai minha querida(.)não desperdicem 89 cola (...) gente/o material é pra ser 90 usado mais de uma vez por isso vocês 91 precisam ser cuidadosos(...)C/ você não 92 pode ficar tratando mal a M (...) gente/ 93 pode ficar cada um no seu lugar 94 A3 que cor eu pinto o olho//= 95 P =por que você está choran:::do// o que foi 96 que aconteceu:::// 97 A2 ele tá xingando o meu palha::ço e não–nã– 98 nã–não gosto 99 P C/ eu já não disse pra você não ficar 100 implicando com a coleguinha/ (.) isso é 101 muito feio e papai do céu não 102 gosta(.)o::h minha linda/vem sentar aqui 103 perti:nho da tia (.) bem perto da mesa da 104 tia (...) I:::SSO\ agora faz o seu Marinalva VIEIRA BARBOSA 112 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 105 trabalhinho faz ((a aluna para de chorar e retoma a 106 atividade)) [...] Diante do choro, que materializa uma emoção, a professora procura construir um discurso para solucionar a polêmica e restabelecer a execução da atividade (construir um palhaço). Para tanto, usa abundantemente os di- minutivos. Se acompanharmos o movimento do discurso, vemos que é por meio deles que regula as ações entre os interlocutores, criando uma situação favorável para que um pare de chorar e sem pôr o outro também em posição de descontentamento. O alvo da crítica (85 e 86) era o palhaço e não a aluna. Esta, porém, faz uma interpretação por analogia e confunde proprietário com propriedade, o que permite a conclusão de que ela está sendo caracterizada de feia. A intervenção da professora começa, por se tratar de um discurso dirigi- do a crianças, com a definição da aluna ofendida por “coleguinha”, o que (re) estabelece a igualdade entre os dois não só no que se refere ao tamanho físico, mas, sobretudo, quanto à necessidade de serem companheiros. A definição di- minutiva, seguida da afirmação carregada de valor moral religioso, busca en- sinar que o desrespeito ao igual desagrada a um ente maior. O pequeno lugar atribuído pelo termo “coleguinha” também é atribuído indiretamente ao autor da crítica que, pela expressão “isso é muito feio e papai do céu não gosta/(.)”, é figurativizado como pequeno, igual à coleguinha ofendida. O termo “papai do céu”, nas interações cotidianas, é comumente usado pelas mães. A partir da linha 102, o discurso ganha um tom afetivo, revelando, pelo uso dos termos “minha linda” e “pertinho”, um trabalho discursivo para incidir sobre a imagem que a aluna criou de si (daí o choro), ou na imagem dada pelo outro sobre sua produção. O choro pressupõe descontentamento e tristeza conforme atesta a própria resposta: “ele tá xingando o meu palha::co” e “não–nã–nã–não gosto”. O adjetivo “linda”, se considerada a situação de enunciação, segundo Kerbrat-Orecchioni (2002), tem valor axiológico sub- jetivo, mas também pode se desdobrar em adjetivo de valor afetivo. Para que responda a segunda condição, é necessário que enuncie, ao mesmo tem- po, uma propriedade do objeto ou do sujeito e uma reação afetiva do sujeito falante. A expressão adjetiva “minha linda” particulariza a aluna na relação entre interlocutores. Entretanto, seu valor afetivo não se constrói isoladamen- Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 113 te, mas na relação com o todo do enunciado: “O::h minha linda vem sentar pertinho da tia”. A expressão adjetiva e o advérbio de lugar no diminutivo não só retornam à aluna um tom afetivo apreciativo, mas também criam a ideia de pertencimento (marcado, sobretudo, pelo possessivo minha) e de proteção (diminutivo pertinho). Por ser uma resposta maternal ao sofrimento da aluna, o termo “o::h minha linda” passa a ser a definição para a criança que chora porque teve o seu trabalho considerado feio. É uma resposta à sensibilidade que motivou o choro mais que referência à beleza física. Assim, no pedido para que a aluna sente “pertinho”, tem-se uma resposta afetiva (poderíamos falar de uma espé- cie de reação afetiva ao choro) que objetiva diminuir o sofrimento pela oferta de uma espécie de recompensa: a proteção e o aconchego da proximidade. É a partir do valor que essa imagem tem para o mundo infantil que a professora organiza o seu discurso, define o tom para se dirigir à aluna. E, por fim, o ter- mo “trabalhinho” recria outro lugar para o trabalho nesse pequeno universo. Os argumentos com diminutivos têm duplo valor: podem conotar sentidos de afetividades e de ironias. São também um recurso para ridi- cularizar o que seria para o locutor uma infantilização ou inadequação do interlocutor. No Ensino Médio e na Universidade, aparecem em discursos que criticam, reprovam as ações e, por isso, atribuem um pequeno lugar ao interlocutor resultante da interpretação de que seu gesto é medíocre. Entre adultos e crianças, outros são os sentidos. Os argumentos fundados em pa- lavras no diminutivo figurativizam um mundo condizente com a posição do interlocutor e, por isso, não provoca estranhamento à criança. Ao contrário, alimenta as interações com pequenas demonstrações de cuidados, carinho e incentivo, tornando próximos os interlocutores, uma vez que, nas palavras de Rimé (2005, p. 120), “as crianças são mais sensíveis ao contágio que os adultos”. 5 As mudanças e os acréscimos de sentidos ocorridos nas pequenas pa- lavras e diminutivos estão diretamente vinculados à orientação apreciativa das enunciações. Esse excedente que transforma os termos linguísticos pode ser apreendido no interior das enunciações vivas, pois tal alargamento se constrói com base nos valores e aspectos da existência humana que se torna- ram objetos da fala e da emoção humana, e são integrados no horizonte social 5 “les enfants sont plus sensibles à la contagion que les adultes”. Marinalva VIEIRA BARBOSA 114 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 de um determinado grupo de sujeitos em constante interação. A compreensão dos sentidos patêmicos dos diminutivos, assim como os efeitos de sentidos considerados cognitivos, pragmáticos e axiológicos, dependem da conside- ração das circunstâncias nas quais aparecem. As palavras utilizadas por um falante vêm carregadas com as informações que a situação de discurso passa de forma objetiva para o material semântico, e que apenas as reconhecem os sujeitos envolvidos no contexto de produção. Em suma, banalidade do uso dos diminutivos no cotidiano não impõe a banalização dos seus sentidos se- mânticos e, exatamente por isso, em cada situação de uso surge a remissão a novos temas. No contexto da sala de aula do EF, tendo em vista a posição dos interlocutores, passam a ter valor de retornos afetivos, pois o professor, no sentido retórico do termo, os insere no seu discurso com o objetivo de tocar e convencer para ensinar. Fechando o parêntese: a construção dos sentidos afetivos Considerar as especificidades dos atos nos obriga a analisar a lingua- gem abrindo mão da máquina estrutural que transforma os acontecimentos em abstrações estáveis. Pela perspectiva de Bakhtin, não há como falar na construção de um sistema que garanta a existência estável de um campo se- mântico das emoções. Os termos linguísticos por si sós, nas condições de discurso, não garantem a construção dos sentidos, afetivos ou não, porque o uso da linguagem, o “falar depende não só de um saber prévio de recursos expressivos disponíveis mas de operações de construção de sentidos destas expressões no próprio momento da interlocução” (GERALDI, 1991, p. 9). Pode-se dizer que os signos de cunho afetivo apresentam um potencial se- mântico próprio da língua, mas a consideração do contexto concreto de sua realização é fundamental para sua definição. O processo de (re)atualização dos sentidos ou de um signo linguístico nas interações assume função pri- mordial para qualquer estudo que se debruce sobre a constituição do afetivo como elemento de linguagem pois, ainda segundo Geraldi, é a dinâmica do trabalho linguístico que é relevante. Os elementos linguísticos que apareceram nos discursos de professo- res e alunos podem ser definidos como índices de contextualização do dis- curso de emoção, uma vez que é pela combinação de diferentes elementos (entonação, recursos linguísticos, razão das produções do discurso) que se Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 115 realiza o investimento afetivo em termos discursivos. Entre esses elementos, estão as repetições, os discursos diretos (com finalidade de narrar os estados afetivos), os nomes e adjetivos pertencentes (em termos de significação no sentido bakhtiniano) ao campo semântico das afetividades. Entretanto estes não são formas especializadas de comunicação afetiva, muito menos de uma emoção específica. O efeito de sentido pode ser obtido pelo emprego de al- gumas palavras, mas também por meio daquelas que não remetem ao campo semântico das afetividades. Em várias situações de interação, os sentidos foram construídos pelo uso de elementos linguísticos diretos, na medida em que as palavras trazem, elas mesmas, uma significação afetiva, ou também por termos indiretos. A semântica desse tipo de discurso é subversiva, escapa ao controle porque não está submetida a uma lógica racional interna, e sim ao que é pró- prio do sujeito. Tal situação é bem sintetizada pelas conclusões que Charau- deau apresenta quando afirma que: a) Existem palavras que descrevem de modo transparente emoções como “cólera”, “angústia”, “horror”, “indignação”, etc., mas sua aparição não significa que o sujeito que as emprega as sinta como emoção (problema da autenticidade), nem que produ- zirão um efeito patêmico no interlocutor (problema de causalidade). Às vezes, temos o fenômeno curioso de despatemização quando essas palavras são empregadas com demasiada insistência como faz a mídia (parece se produzir, então, uma interrupção meta-enunciativa). b) Existem palavras que não descrevem emoções, mas são uma espécie de bons can- didatos ao seu desencadeamento: “assassinato”, “conspiração”, “vítimas”, “mani- festação”, “assassino”, por exemplo, são suscetíveis de nos conduzir a um universo patêmico. Sim, mas qual? Não é a mesma coisa quando falamos de uma manifes- tação silenciosa (expressão de dor e de indignação) como aquela da marcha branca dos Belgas a propósito do processo de Dutroux, aquela das mulheres da Praça de Maio na Argentina ou a dos espanhóis contra o ETA; ou quando falamos de uma manifestação agitada, e mesmo violenta (expressão de desespero e reivindicação), como ocorre na África e ou no Oriente Médio. Esse universo também não será o mesmo quando sei que a vítima de um acidente aéreo é uma “velha dama”, “meu patrão”, “um banqueiro riquíssimo”; dito de outra maneira, como demonstra a teo- ria dos topoi (Ducrot), a orientação argumentativa (aqui diremos patêmica) de uma palavra pode mudar, ou mesmo inverter-se, de acordo com seu contexto e, eu diria, sua situação de uso. c) Enfim, conforme já dito, existem enunciados que não apresentam palavras patê- micas se não tivermos conhecimento da situação de enunciação: “basta!” “gritam as vítimas do enésimo bombardeio da sua cidade”; “Meu filho era puro, inocente”, diz Marinalva VIEIRA BARBOSA 116 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 um pai debruçado sobre um túmulo no momento em que era entrevistado em uma reportagem na Bósnia; “Um dia comum em Sarajevo”, diz um jornalista na televi- são, mostrando as imagens do último bombardeio que acaba de acontecer na cidade. Esses três tipos de problema lembram que a construção discursiva do sentido como aposta de efeitos intencionais visados depende das inferências que podem produzir os participantes do ato de comunicação e essas inferências dependem do conheci- mento que podem ter da situação de enunciação (2000, p. 139-140).6 Das conclusões de Charaudeau (2000) é possível derivar que os ele- mentos linguísticos que formam os enunciados e discurso de emoção não são adquiridos em um dicionário. Afirmação óbvia, mas que parece ser constan- temente esquecida pelos linguistas que tratam do tema. Se o discursivizar das emoções fosse mero ato de apropriação de um sistema de expressões e termos 6 “a) il est des mots qui décrivent de façon transparente des émotions comme “colère”, “angoisse”, “horreur”, “indi-gnation”, etc., mais leur apparition ne signifie pas que le sujet que les emploie les ressente comme des émotions (problème d’authenticité), ni qui ils produiront un effet pathémique auprès de l’interlocuteur (problème de causalité). Parfois on a même affaire à ce phé- nomène curieux de despathèmisation lorsque ces mots sont employés avec trop d’insistance, como le font les médias (il semble se produire alors un décrochage méta-énonciatif); b) Il est des mots qui ne décrivent pas des émotions mais sont comme sortes des bons candidats à leur déclenchement : “assassinat”, “complot”, “victimes”, “manifestation”, “tueur” par exemple, sont susceptibles de nous entraîner dans un univers pathémique. Oui mais lequel ? Il ne sera pas le même selon que l’on parle d’une manifestation silencieuse (expression de la douler et d’indignation), comme celle de la marche blanche des Belges à propos de l’affaire Dutroux, celle des femmes de la place de mai en Argentine ou celle des espagnols contre l’ETA, ou que l’on parle d’une ‘manifestation agitée’, voire violente (expression du desepoir et de revendication), comme en Afrique ou au Moyen Orient. Cet univers ne sera pas non plus le même selon que j’apprends que la victime d’um vol est une ‘vieille dame’, ‘mon patron’, un ‘banquier richissime’, ou que la autrement dit, comme le montre la théorie des topoï (Ducrot), l’orientation argumentative (ici nous dirons pathémi- que) d’un mot peut changer, voire s’inverser, selon son context et, ajouterai-je, sa situation, sa situation d’emploi ; c) enfim, comme on l’a déjà dit, il est des énoncés qui ne comportent pas de mots pathémi- ques dès lors que l’on a connaissance de la situation d’énonciation : ‘Assez !’ crient des gens victimes du énième bombardement de leur ville ; ‘Mon fils était un pur, un innocent ‘ dit um père penché sur une tombe et interviewé lors d’un reportage en Bosnie ; ‘Un jour ordinaire Sarajevo’ dit un jounaliste à la télévision en montrant les images du dernier bom- bardement qui vient de se produire dans cette ville. Ces trois types de problèmes rappellent que la construction discursive du sens comme mise en œuvre d’effts intentionnels visés dépend des inférences que peuvent produire les partenaires de l’acte de communication et que ces inférences dépendent elles-mêmes de la connaissance que ces partenaires peuvent avoir de la situation d’énonciation” (p. 139-140). Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 117 prontos, não haveria por que falar em construção de sentidos. Muito menos haveria razão para apontar a importância da historicidade na constituição do sujeito e da linguagem, pois tanto a semântica das palavras como os próprios atos que tais palavras constituem teriam sempre o mesmo sentido. É na diferenciação feita por Bakhtin (1995 [1929a]) entre tema e significação (um dos momentos em que trabalha para romper a oposição entre a significação estável e os sentidos vindos da realidade transitória) que se podem encontrar elementos para explicar a construção de senti- dos do discurso afetivo, pois se trata de algo que não está na língua nem no sujeito, mas na inter-relação deste com o contexto constitutivo do discurso. Na distinção feita pelo autor, a significação é a parte estável da língua, mas por si só não responde pelos sentidos das enunciações. É a capacidade potencial de construir sentidos, algo próprio dos signos linguísticos. Inegavelmente existem termos linguísticos que comportam com mais clareza a significação afetiva (alegria, tristeza, medo etc.), porém é na situação histórica e concreta de realização da enunciação que os sentidos efetivamente se constroem. Nas situações concretas e vivenciais, aquele que fala serve-se da lín- gua para suas necessidades enunciativas concretas e, por isso, o centro de gravidade, para ele, não está na conformação da norma ou na utilização de um recurso linguístico específico, mas no novo sentido que cada forma pode adquirir no contexto da enunciação. O que importa para um interlocutor que está alegre ou triste necessariamente não é o uso de tais signos linguísticos, mas aquilo que permite que as palavras usadas o figurativizem para seu in- terlocutor como um sujeito triste ou alegre. No mundo das práticas efetivas, não há separação entre as abstrações conceituais e o próprio ato vivido. Um constitui o outro e daí a dificuldade de estabelecer um grande espectro de termos lexicais e elementos ou torneios sintáticos que remetam ao universo das afetividades de modo abstrato e limpo. O aprendizado do sentir e discur- sivizar as afetividades se dá pelos mesmos caminhos com que aprendemos a nos mover em determinada língua. O sentido dos enunciados e palavras afetivas se constitui pela realiza- ção do tema da enunciação, que é único e irrepetível. A significação da pala- vra “tristeza”, por exemplo, está garantida pelo conjunto histórico de valores de uma sociedade, mas a efetiva condição de termo linguístico expressivo da emoção tristeza vai ocorrer em um contexto histórico e concreto. Os sentidos Marinalva VIEIRA BARBOSA 118 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 afetivos não estão na língua, porém, sua constituição resulta da interação en- tre interlocutores inseridos nos universos de linguagem. Somente se realizam no processo de compreensão responsivo. As valorações são constitutivas dos sentidos dos termos linguísticos afetivos. Em outras palavras, a língua afetiva ganha sentido pelo valor ine- rente a todo ato humano. Nos casos dos usos dos diminutivos e pequenas ex- pressões linguísticas, a mudança ou acréscimo de significação estava central- mente organizada em torno da apreciação. Para Bakhtin (1995 [1929a]), não há palavra cujo sentido se realize sem os valores apreciativos, que, de fato, são os responsáveis pelos deslocamentos semânticos. Como já assinalado, a palavra em uso está sempre relacionada à vida e esta ganha materialidade nas entonações resultantes de valores atribuídos ou agregados pelo que é dito por cada locutor. Ao dar vida à palavra com sua entonação, o sujeito dialoga di- retamente com os valores de sua comunidade, expressando seu ponto de vista em relação a esses valores. Assim, os sentidos dos termos e enunciados de emoção não são aden- dos conotativos juntados pela ação do falante à significação denotativa. Aliás, Bakhtin rejeita tal dicotomia porque ela separa, impõe hierarquias naquilo que não está separado ou hierarquizado. Isto é, separa sentido e signo linguís- tico quando o signo é sempre pluriacentuado. Defender a existência de uma semântica universal das afetividades é, antes de tudo, buscar construir garan- tias no código, o que, devido às condições de uso, é uma impossibilidade, pois o conotativo e o denotativo existem no sistema abstrato da língua. Nas situações de uso, os sentidos nascem da “luta incessante dos acentos em cada área semântica da existência” (BAKHTIN, 1995 [1929a], p. 136). Os sentidos afetivos são irredutíveis às relações concreto-semânti- cas ou às relações lógicas, que por si mesmas carecem de momentos dia- lógicos. Pode-se até trabalhar definições lógicas ou concretas dos termos linguísticos de emoção, mas enquanto tais eles não discutem entre si ou promovem encontros que possibilitem o nascimento do discurso de emo- ção. Para se tornarem significativas, “as relações lógicas e concreto-se- mânticas devem, como já dissemos, materializar-se; ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enuncia- do e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ele expressa” (BAKHTIN, 1997 [1929b], p. 184). Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 119 Considerações finais Pelo exposto, pode-se concluir que a linguagem afetiva se constitui a partir de procedimentos linguísticos complexos e, para compreender seu funcionamento, é necessário combinar diferentes meios linguísticos e extra- linguísticos. Para Drescher, a construção dos sentidos emotivos depende, com certa variação, da consideração de pelo menos quatro aspectos semântico- comunicativos: “[...] a subjetivação, a intensificação, a visualização e a ava- liação” (2003, p.162). 7 Juntos formam o todo que permite definir o caráter afetivo da lin- guagem. Porém, segundo a autora, os diferentes estudos que tratam da face semântica do afetivo não conseguem oferecer respostas consistentes para o entrelaçamento desses quatro elementos. Caminhando no mesmo sentido, penso que não há avanços nas discussões promovidas pelos linguistas que tratam da questão porque ou os sentidos afetivos são postos como somente pertencentes ao campo das relações fora da linguagem, ou são postos como estritamente pertencentes à língua. Nas duas situações, apagam-se as tensões entre tema e significação. Entretanto, ainda muito colada às teorias comunicativas, Drescher define os quatro aspectos considerando as intervenções de uma psique individualizada na construção dos sentidos de cunho afetivo. Assim, assumo seus postulados de que os quatro elementos acima são fundamentais à identificação da dimensão lin- guística dos termos ou enunciados de emoção (e, sobretudo, sobre o que seja um discurso impregnado de sentidos afetivos), mas penso ser necessário (re)defini- los à luz das discussões que Bakhtin (1995 [1929a]) faz entre tema e significação e, consequentemente, entre verbal e extraverbal. Aliás, os quatro aspectos elen- cados por Drescher estão contidos nas três questões utilizadas por Bakhtin para explicitar como se efetiva o diálogo entre o verbal e o extraverbal na construção da linguagem, a saber: 1) “o horizonte espacial comum entre os interlocutores”; 2) “o conhecimento e a compreensão compartilhada entre os interlocutores de um determinado discurso”; 3) “a avaliação comum que fazem da situação em que se dá a produção do enunciado” (1976 [1926], p. 4 ). O autor defende que o diálogo entre o verbal e o extraverbal, confor- me demonstrado no tópico anterior, não pode ser reduzido a relações lógicas, 7 “[...] la subjectivisation, l’intensification, la visualisation et l’évaluation”. Marinalva VIEIRA BARBOSA 120 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 linguísticas, psicológicas ou naturais. São relações específicas, próprias dos acontecimentos de linguagem e, por isso, se estabelecem entre enunciados ou mesmo no interior dos enunciados. No interior dessa inter-relação, constro- em-se os índices de valores, uma vez que não são meras interligações entre enunciados, e sim interações complexas entre sujeitos por meio da lingua- gem. Por essa concepção, as avaliações e julgamentos de valores são centrais na constituição do linguístico. O tom e o valor elevam o ato de linguagem à condição de evento único. Em síntese, a semântica do linguístico de cunho afetivo engloba, pressupõe: 1) A subjetividade ou subjetivação: é um dos elementos que permite ao sujeito trazer para a linguagem seu traço de singularidade. É o que adiciona à palavra, ao enunciado, a coloração nova que faz do tema um acontecimento irrepetível. Como a concepção de subjetivo adotada tem bases fincadas no so- cial, o modo como vemos, sentimos, amamos é construído pela mediação da palavra do outro. Ou seja, nossos perceptos e afetos compõem a reunião entre elementos linguísticos e a parte presumida de um enunciado. O presumido pode ser flagrado, nos discursos analisados, por exemplo, nos modos de cada profes- sor agenciar um acontecimento como a insubordinação de um aluno. Existem os que chamam a coordenação da escola para retirá-lo da sala; existem os que gritam e assumem também uma posição de insubordinação; existem os que se põem a resolver a situação por meio do discurso, assumindo a posição de alteridade que resiste ao outro porque tem lugar delineado e único nos aconte- cimentos de sala de aula. Todas as possibilidades são legítimas dentro do “ser professor”. A opção por uma ou outra é o que denuncia a interpretação única que cada um faz sobre esse ser para si. Nessas situações, o componente afe- tivo surge como um índice legítimo da presença e do trabalho do sujeito na linguagem. Trabalho esse que se organiza baseado nas representações (que se traduzem em entonações emotivo-volitivas) que têm de si e do outro e não um componente obscuro que invade a linguagem, turvando sua clareza. 2) A entonação ou intensificação: segundo Bakhtin (1995 [1929a]), é o nível mais óbvio na constituição e identificação dos acentos avaliativos. No nível enunciativo, a entonação reforça a veracidade do enunciado, pois é dada ao interlocutor como ponto de partida para compreender o que lhe está sendo dito, personificando, portanto, o enunciado. É algo que não se reduz ao movimento da voz, ainda que a englobe, mas é o lugar da memória, dos tons que cada sujeito passa a propor para si com base na imagem social do Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 121 lugar que ocupa. Uma mãe que busca acalentar um filho fala ou canta em tom baixo e lento. A professora do Ensino Fundamental que tenta ajudar o aluno a construir uma atividade usa tom semelhante ao da mãe que fala ao filho. A entonação reflete a relação do sujeito com o meio social ao qual pertence. A professora apresenta memória desse lugar impregnada de tons que se con- fundem com o lugar da professora, da mãe, da tia. Esses múltiplos tons se constituem pelas similaridades com aqueles devido às próprias atribuições do ser professora nessa etapa de escolarização. Não imaginamos a leitura do A B C para alunos das séries iniciais feita de forma extremamente rápida. Temos uma memória, e a professora também a tem, que adota um ritmo cadente para ler. A entonação pode ser flagrada na escolha e disposição do material verbal. Isso explica por que as pequenas palavras, conforme apontadas nas análises, nem sempre reconhecidas como pertencentes ao universo das emoções, ga- nham carga de sentidos afetivos quando inseridas no conjunto do discurso de professores e alunos. Sua significação se constitui pelo tom cadente e, sobretudo, porque inserido em práticas discursivas voltadas a um interlocutor ainda criança. Também encontramos entonação pelas valorações feitas por meio da linguagem, pois “quase todo exemplo de entoação viva na fala con- creta emocionalmente carregada se processa como se ela se endereçasse, por trás de objetos e fenômenos inanimados, a participantes animados e agente na vida” (BAKHTIN, 1976 [1926], p. 7). Em suma, a entonação modifica as sig- nificações, as transforma em sentidos concretos, de maneira tal que os signos linguísticos passam a ser sempre outros. 3) A visualização ou a unidade do visível: no caso das interações ver- bais, é o elemento resultante do excedente de visão, da posição isotópica ocu- pada pelo locutor. Do lugar que ocupa, que jamais pode ser ocupado pelo interlocutor para falar de si, o locutor tem acesso ao corpo do outro, aos seus gestos e ao mundo em que aquele está inserido. O excedente de visão lhe per- mite construir representações, leituras e interpretações sobre os movimentos mais ínfimos do outro. Permite, portanto, um trabalho com a finalidade de produzir efeitos de proximidade, de presença e de participação. O professor que percebe a desatenção do aluno aproxima-se, por exemplo, implicando-o, citando-o diretamente, para (re)capturar sua atenção. A constante movimen- tação do auditório, geralmente, é interpretada como sinais de cansaço dos interlocutores. A partir disso, o locutor opta por falar de forma mais lenta, mais enfática, pode pôr em pauta questões que imagina serem de interesse dos Marinalva VIEIRA BARBOSA 122 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 seus ouvintes, fazer referência irônica (usando recursos linguísticos específi- cos) à dispersão do interlocutor. É do conjunto visto e sabido que se constrói o enunciado. São ações que não têm articulações específicas no verbal, mas orientam a construção dos sentidos e direcionam o enunciado. Dão forma significativa a sua dimensão linguística. 4) A dimensão avaliativa: os três elementos elencados acima, direta ou indiretamente, são formas de avaliação ou materializam acentos avaliativos. Não é possível a existência de enunciação sem modalidade apreciativa. Os estudos ligados à filosofia da linguagem já há muito apontam a relação entre emoções e avaliação, mas negando causalidade entre elas: isto é, as emoções não nascem de avaliações precedentes. Ao contrário, os acentos avaliativos são saturados de afetividades. Estas, construídas no diálogo linguageiro do sujeito com o seu entorno. Por meio desse diálogo ocorrem as mudanças dos sentidos, resultado das avaliações, reavaliações e deslocamentos das palavras de um contexto apreciativo para o outro. Não há discurso, enunciados ou palavras cuja significação seja construída sem acento avaliativo. Bakhtin é contundente: “Sem acento apreciativo, não há palavra (1929, p. 132)”. Morin o complementa: “os valores só são valores saturados de afetividade”. Assim, “nossa realidade [inclusive a linguística] é uma co-criação em que a afetivi- dade entra com a sua parte” (2002, p. 122). Optar por uma análise dos elementos linguísticos entrelaçados pelos recursos expressivos, conforme realizado neste estudo, significa considerar a linguagem afetiva como acontecimento: algo que se organiza em torno da tensão criada sempre entre o locutor e o interlocutor e destes com a própria língua. O que nasce do encontro é acontecimento porque não é determinado pela rigidez do sistema nem pela soberania do sujeito. Aliás, a tensão nasce exatamente porque há indeterminação. O discurso é um espaço sem garantias rígidas e por isso é necessário o trabalho, o que obriga o sujeito a trabalhar com e sobre a linguagem para dar conta de um projeto de dizer. Assumir esse postulado não significa defender que o plano do signo linguístico não é relevante para compreender os sentidos do discurso de emo- ção, mas assumir que sua semântica não pode ser construída sem comportar necessariamente duas dimensões em estreita correlação: a significação dada pela estrutura (aquilo que é sempre igual) e os sentidos dados pela enunciação (aquilo que é mutável e/ou adaptável) - ou seja, é necessário assumir que o mesmo (o linguístico) pode ser sempre outro (por isso, a palavra é signo por Linguagem e emoções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009 123 excelência) quando os sujeitos fazem uso da língua. Segundo Geraldi (2004), isso traz intranquilidade àqueles que estão acostumados a sempre apostar nas estabilidades dos sistemas com a finalidade de reter os sentidos dos enuncia- dos como algo que pode ser rigorosamente recuperável. Porém, apostar nas instabilidades dos sentidos, não fechá-los em sistemas, no que tange ao dis- curso de emoção, pode ser uma alternativa para rompermos a oposição entre sentido e fato, entre o universal e o individual, entre a língua e a linguagem. VIEIRA BARBOSA, Marinalva. Linguistic and semantic aspects of the emotions in discourses. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 104-124, 2009. ABSTRACT: This article aims at analyzing some aspects that constitute the problem of placing emotions as the core interest of language’s studies. Specifically, I will focus on the circumscription of the “pathémique” universe and of the linguistic traces of emotions. The study is based on discourses of teachers and students from Primary and High School. The theoretical base derives from the conceptions of subject and language defended by Bakhtin (1976 [1926], 1995 [1929a] e 1997 [1929b]) and by studies developed for Plantin (2003; 2004) and Plantin et al (2000). KEYWORDS: Discourse. Meanings. 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Paris: PUF, 2005. 125125Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 125 A KOINIZAÇÃO1 DE UMA AUTOTRADUÇÃO DE MANUEL PUIG: O VOSEO Andreia DOS SANTOS MENEZES2 RESUMO: Partindo do pressuposto de que as traduções realizadas à língua espanhola são frutos de um processo de koinização, analisaremos um caso específico de autotra- dução: o romance Sangre de amor correspondido, do argentino Manuel Puig, elaborado originariamente em português brasileiro, em 1982, com cenários e personagens cariocas, e traduzido no mesmo ano pelo próprio autor. As obras de Manuel Puig, como ele mesmo afirmou, estão muito calcadas nas falas de pessoas reais guardadas em sua memória. Nesta, tratando-se de personagens brasileiras, como se concretizaria esse processo de rememora- ção em espanhol? Elas falariam como argentinos? Procurando responder a essa pergunta, focalizaremos a presença/ausência, na tradução, do voseo, uma das características mais marcantes da fala argentina. PALAVRAS-CHAVE: Autotradução. Espanhol. Voseo. Koinização. Manuel Puig. Sangre de amor correspondido. Introdução Utilizaremos como material de análise neste artigo o romance Sangre de amor correspondido, uma autotradução realizada pelo escritor argentino Manuel Puig da sua obra Sangue de amor correspondido. A primeira versão foi elaborada originariamente em português em 1982 quando o autor vivia na 1 Consideremos a variante utilizada nos meios de comunicação de massa, traduções, dublagens, manuais de espanhol como língua estrangeira e em alguns momentos da literatura, como uma koiné, sendo o termo “koinização” o “proceso dinámico, normalmente de estabilización (regularización o acomoda- ción lingüística) y mezcla de dialectos” (MEDINA LÓPEZ, 1997, p. 33). 2 Programa de Pós-graduação em Língua e Literaturas de Língua Espanhola da FFLCH-USP, São Paulo, SP, Brasil. andreiasmenezes@uol.com.br Andreia DOS SANTOS MENEZES 126 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 cidade do Rio de Janeiro para onde havia se mudado no ano anterior. Depois, o romance foi traduzido no mesmo ano ao espanhol pelo próprio autor. Observamos que o processo de feitura, tanto da obra em português quanto da sua tradução ao espanhol, é bastante singular. Vejamos a seguinte afirmação do próprio autor sobre esse tema: Chego ao Rio de Janeiro e começo a descobrir uma música e um colorido na lin- guagem popular que me fascinam [...] Como esse homem, quase que totalmente analfabeto, consegue esse colorido na sua fala, esse colorido, essa musicalidade? Convidei-o para gravar nossas conversas e daí saiu este romance que foi escrito, não digo em português, foi escrito num dialeto do Estado do Rio. Eu necessitava, seguindo minhas pesquisas de sempre, da música, e da cor, dos valores pictóricos da linguagem popular. Necessitava continuar minha procura num idioma, num dialeto de lá. Depois eu mesmo traduzi este romance para o espanhol. (GARCÍA RAMOS apud CARRICABURO, 1999, p. 474)3 Encontramos outras declarações do autor nas quais ele fala sobre a sua insegurança em escrever em espanhol por não estar certo quanto a que variante seguir, bem como por estar há muito tempo longe da “língua argen- tina viva”. Em função desses fatores, lançava mão da estratégia de escrever rememorando falas já antes ouvidas. No entanto, nos deparamos, neste caso, com um processo distinto. A primeira versão foi escrita em uma língua estrangeira à do autor, a qual pouco dominava no momento da escritura, e a obra em espanhol é uma tradução, de maneira que o recurso da memória parece ficar comprometido. Poderia o au- tor, na obra em espanhol, escrever com base em falas da sua memória, mesmo não sendo os personagens e o cenário argentinos? Falariam os personagens brasileiros de Sangre de amor correspondido como argentinos na obra em espanhol? Que estratégia utilizou o autor? Acreditamos que existe nas traduções realizadas em língua espanhola, tanto as literárias como as dos meios de comunicação em massa, a busca por 3 No original: “Llego a Río de Janeiro y empiezo a descubrir una música y un colorido en el lenguaje popular que me fascina. [...] ¿Cómo ese hombre, casi analfabeto o analfabeto del todo, logra ese colori- do en su habla, ese colorido, esa musicalidad? Lo invité a hacer grabaciones de nuestras conversaciones y de ahí salió esta novela que fue escrita, no digo en portugués, fue escrita en un dialecto del Estado del Río. Yo necesitaba, siguiendo mi investigación de siempre, la música, y el color, los valores pictóricos del lenguaje popular. Necesitaba seguir mi búsqueda en un idioma, en un dialecto de allí. Luego yo mismo traduje la novela al español [...]”. 127127 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 127 uma koiné dessa língua, e pensamos que esta autotradução elaborada por Puig não foge desse movimento. Buscaremos mostrar, com base no texto em espa- nhol, algumas estratégias que acreditamos evidenciar essa busca. Deteremos nosso foco de análise a presença/ ausência do voseo na obra em espanhol. O voseo na Argentina Dentre os traços mais característicos do espanhol falado na Argentina está o voseo. O voseo é uma forma de tratamento informal de segunda pessoa utilizado em algumas regiões da América Latina, sendo que na Argentina, ela praticamente substituiu o tratamento de tú (CARRICABURO, 1999, p. 30). Em artigo publicado em 1941, Fontanella (apud CARRICABURO, 1999, p. 30) apontava que o uso do vos se estendia a todas as classes sociais, porém realizava-se somente “com quem se tem confiança, entre iguais e de superior a inferior, neste caso com o duplo objetivo de destacar a distância ou com tom protetor, carinhoso”.4 Essa pesquisadora destaca também o fato de que naquele momento era o tú a forma de tratamento que o Conselho Nacio- nal de Educação da Argentina indicava para ser ensinado e empregado pelos professores ao dirigir-se aos seus alunos, dando origem à existência de três formas de tratamento no uso coloquial: o vos, informal, o usted, formal, e o tú como uma forma intermediária entre as duas. Carricaburo (1999) aponta que na atualidade o tú desapareceu na Ar- gentina como forma de tratamento informal, ainda que as crianças saibam utilizá-lo em função do contato que mantêm com meios de comunicação em massa, os quais difundem outras variantes do espanhol5. Segundo essa pes- quisadora, na Argentina: [...] com relação ao tú, a invasão do vos foi completa. A escola deixou de ser o centro irradiador da segunda pessoa do singular. As professoras já não são obrigadas a tratar de tú os seus alunos e o vos não é somente habitual na literatura infantil, mas também é utilizado nos livros escolares de leitura. A menor quantidade de imigrantes espanhóis 4 No original: “entre quienes tienen confianza, entre iguales y de superior a inferior, en este caso con el doble valor de destacador de distancia o con tono protector, cariñoso”. 5 Carricaburo (1997, p. 27) fala sobre um “tú ficcional” na Argentina por estar associado à ficção ou ao que seja alheio à Argentina: “El niño argentino suele utilizar el tuteo e incluso el futuro sintético durante el juego. Igualmente los adolescentes relacionan el tuteo con los teleteatros, ya sean de otros países americanos o grabados en la Argentina y que a través del tú quieren captar un mercado más amplio” . Andreia DOS SANTOS MENEZES 128 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 também influenciou a perda do tú. [...] Praticamente ninguém emprega hoje o tú na linguagem cotidiana. Isso porque o vos é algo mais que norma culta, é a norma geral em quase toda a República. (CARRICABURO, 1999, p. 32-33)6 Quanto à extensão geográfica do voseo na Argentina, segundo Carri- caburo (1999), somente na Patagônia e na Terra do Fogo pode-se encontrar a coexistência do tuteo com o voseo. Também na região de Santiago del Es- tero, encontra-se o voseo pronominal, mas com a flexão verbal do tuteo. Como dissemos, pode-se encontrar o voseo em diversas regiões da América Latina, porém não se realizando da mesma maneira. Na Argentina, ocorre o voseo denominado “tipo argentino”, ou tipo II para o pesquisador Rona (apud CARRICABURO, 1999, p. 40). Nessa classe de voseo argenti- no, a diferença entre os usos dos verbos e dos pronomes entre o tú e o vos é evidente apenas nos seguintes casos: - no uso do pronome sujeito (vos x tú); - no Presente do Indicativo (por exemplo: trabajás x trabajas, comés x co- mes, partís x partes, tenés x tienes), exceto o verbo estar, que tem a mesma forma do tú (estás); - no Imperativo Afirmativo (por exemplo: trabajá x trabaja, comé x come, partí x parte, decí / di), exceto o verbo estar que tem a mesma forma do tú (está); - nos pronomes complemento de preposição (por exemplo: contigo x con vos, para ti x para vos, por ti x por vos). Em todos os outros tempos verbais, bem como no oblíquo te e nos pos- sessivos tu e tuyo, as duas formas de tratamento não apresentam diferenciação. O voseo na literatura argentina Encontramos em escritores argentinos como Cortázar e Borges o uso corrente do voseo em suas obras, no entanto, na literatura do chamado “pós- 6 No original: “[...] con respecto al tú la invasión del vos ha sido completa. La escuela ha dejado de ser centro irradiante de la segunda persona del singular. Las maestras ya no son obligadas a tratar de tú a sus alumnos y el vos no es sólo habitual en la literatura infantil, sino que también se utiliza en los libros escolares de lectura. La menor cantidad de inmigrantes españoles asimismo ha incidido en la pérdida del tú. [...] Prácticamente nadie emplea hoy el tú en el lenguaje cotidiano. Y es que el vos es algo más que la norma culta, es la norma general en casi toda la República.” 129129 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 129 boom”, tal uso começa a decair. Carricaburo (1999) relata que, por media- dos dos anos 70, começa a haver uma diminuição do interesse pela literatura hispano-americana, coincidentemente com uma piora da situação econômica dos países dessa região. Frente a essa conjuntura, os escritores começam a produzir uma literatura com vistas ao mercado espanhol. Dá-se início, en- tão, conforme havíamos mencionado anteriormente, à “estandardização” da linguagem utilizada pelos escritores em suas obras literárias. Além disso, a pesquisadora cita também como potencializador desse “espanhol estândar” o fato de muitos dos escritores argentinos haverem se radicado em outros paí- ses, havendo assim uma perda da identidade rio-platense. A autora cita o que aconteceu no caso da tradução. Carricaburo (1999) diz que no campo da tradução houve uma tendência à utilização de um “espa- nhol estândar” que permitisse a venda das obras traduzidas ao maior número possível de países. Essa autora diz também que, durante os anos 60, as tradu- ções argentinas de romances policiais lançavam mão do lunfardo e de gírias rio-pratenses, fato esse que já não ocorre mais, nem mesmo nas traduções de romances policiais. Quanto ao uso do voseo, há uma forte diminuição do uso dessa forma de tratamento nas traduções elaboradas na Argentina. O voseo na obra de Puig Continuando com El voseo en la literatura argentina, de Norma Car- ricaburo, encontramos um estudo sobre a obra de Puig (1999) no que tange ao uso do voseo que nos será sumamente útil neste sub-capítulo. Na citada obra, a autora faz um levantamento quanto ao emprego do voseo nos romances de Manuel Puig. Nesse levantamento, a autora mostra que não há uma constante numérica quanto à utilização dessa forma de trata- mento nas obras do autor. Tal inconstância se deveria ao fato de que a opção com relação ao uso de tú ou de vos não é aleatória. Carricaburo começa sua análise pelo primeiro romance do autor, La traición de Rita Hayworth (apud CARRICABURO, 1999). Neste romance, o tú é utilizado na fala de personagens espanhóis, em diálogos cinematográficos ou nos escritos da personagem Esther, que deseja escrever empregando uma linguagem que se aproximasse ao que considerava ser um discurso literário. O voseo é a forma realista pela qual se expressam as personagens, de tal ma- neira que é a forma de tratamento predominante do romance. Andreia DOS SANTOS MENEZES 130 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 Este também é o caso de Boquitas Pintadas (apud CARRICABURO, 1999), segundo romance do autor. Aqui também o uso do tuteo se restrin- ge a situações bem determinadas, como quando lança mão do discurso das radionovelas, letras de bolero, orações religiosas ou cartas de conselheiras sentimentais de revistas femininas. Carricaburo (1999) chama a atenção para o monólogo da personagem Nené. Nessa passagem, há uma mescla entre o tuteo e o voseo. O primeiro é utilizado quando a personagem se dirige a Deus ou ao falecido ex-namorado. De acordo com a pesquisadora, o tuteo seria um indicador da falsidade desse monólogo. Buenos Aires Affair (apud CARRICABURO, 1999) segue a mesma estrutura dos romances anteriores no que se refere ao emprego do tuteo: este é utilizado apenas em inserções de outros discursos, como epígrafes ou os mo- nólogos que a personagem Gladys constrói durante suas experiências sexuais. Quanto ao romance seguinte, El beso de la mujer araña (apud CARRICABURO, 1999), pode-se dizer que segue as mesmas estratégias dos anteriores no que se refere à utilização das formas de tratamento. Contudo, como o emprego dos discursos provenientes do cinema e do bolero já não se trata de inserções na narração apenas, mas fazem parte da própria estrutura do romance, o número de usos de tú é consideravelmente maior do que nos ro- mances anteriores, pois é nesses discursos que aparecem as formas tuteantes. Com Púbis Angelical (apud CARRICABURO, 1999) começa o ciclo dos romances de Puig escritos fora da Argentina. Além disso, a própria história transcorre fora do país de origem do escritor, no México. Nesse romance, as formas de tratamento servem para caracterizar a origem das personagens: os mexicanos usam tú, enquanto os rio-prantenses usam vos. Maldición eterna a quien lea estas páginas (apud CARRICABURO, 1999) foi um romance escrito durante a estada de Puig em Nova York, origi- nariamente em inglês para depois ser traduzido pelo próprio autor à sua língua materna. A versão em espanhol, segundo Carricaburo (1999), não apresenta nenhum uso de vos. Seu último romance, Cae la noche tropical (apud CARRICABURO, 1999), foi escrito quando Puig vivia no Rio de Janeiro. As personagens principais são duas senhoras, ambas com idade por volta dos 80 anos. Puig decidiu-se por essas personagens porque, segundo ele, devido ao longo período que se encontrava afastado da Argentina, já não se considerava capaz de utilizar per- sonagens argentinos jovens, pois não saberia mais como eles falariam (apud 131131 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 131 CARRICABURO, 1999). Em função disso, resolveu criar duas personagens an- ciãs seguindo a estratégia de rememorar as falas de suas tias. Aqui, utiliza muito pouco as formas tuteantes: não há nenhuma forma pronominal de tú e escassos no caso dos registros verbais. Sangre de amor correspondido (1982) foi escrito no período entre esses dois últimos romances citados. Analisaremos, a seguir, o seu caso espe- cífico quanto ao voseo. O voseo/tuteo em Sangre de amor correspondido Como acabamos de ver no sub-item anterior, o uso do voseo está pre- sente em quase todos os romances de Puig e não é aleatório, mas serve sempre como caracterizador: inserção de discursos não literários, como os do cinema, dos boleros, dos tangos ou folhetinescos, ou ainda caracterização de persona- gens argentinos em contraste com outros estrangeiros. Vimos também que no romance Maldición eterna a quien lea estas páginas, segundo Carricaburo (1999), não há o uso de vos em nenhum momento na versão em espanhol do original em inglês. Sabemos que Sangre de amor correspondido teve um pro- cesso de feitura semelhante ao daquela obra, ou seja, foi escrito primeiramente numa língua estrangeira ao autor para em seguida ser traduzida ao espanhol. Como se dá, então, o uso dessa forma de tratamento tão característica do espa- nhol utilizado na Argentina nessa obra? Foi, como no caso do romance escrito originariamente em inglês, completamente abolido da versão em espanhol? Encontramos em Sangre de amor correspondido a utilização de estra- tégias pelas quais se esquiva do uso das formas marcadas do voseo do espa- nhol da Argentina, ou seja, os pronomes sujeitos, o Imperativo Afirmativo, o Presente do Indicativo e os pronomes complemento de preposição. Ou seja, fez uso apenas de formas verbais e pronominais que possuem a mesma forma tanto para tú como para vos, de maneira que não se pudesse definir claramente qual a forma de tratamento que estava sendo utilizada. Vejamos a seguir alguns exemplos dessas estratégias:7 1. Imperativo Afirmativo com forma de 2ª pessoa em tratamento de você em português; perífrase impessoal “haber + que” e construção impessoal com se puede em espanhol: 7 Todos os grifos são nossos. Andreia DOS SANTOS MENEZES 132 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 Fecha os olhos, coloca as duas mãos sobre seus olhos e me procura. (1982, p. 57) Hay que cerrar los ojos, taparse los ojos con las manos, y después se puede empezar a buscar al que está escondido. (1998, p. 60) 2. Imperativo Afirmativo com forma de 2ª pessoa em tratamento de você em português; mudança para a forma de tratamento usted em espanhol: Você está acostumado a ir pra cama sem comer (...) Foda-se e cale a boca, porra! vá, vá dar uma olhada nessa porta, pra ver se está bem fechada, e na janela, dê uma olhada na tranca, que hoje aqui não entra ninguém. (1982, p. 130) Ya estás acostumbrado a irte a dormir sin comer (...) ¡Jódase y cálle- se, mierda! Y vaya a revisar esta puerta, a ver si está bien cerrada, y la ventana, revise la tranca, que acá hoy no entra nadie. (1998, p.134-135) 3. Imperativo Afirmativo com forma de segunda pessoa em tratamento de você em português; uso de verbos dicendi em espanhol: Jure me dizer a verdade, eu lhe peço. (1982, p. 113) Te pido que jures decirme la verdad. (1998, p. 117) 4. Imperativo Afirmativo em tratamento de você em português; uso de outro modo e tempo verbal em espanhol: Se levante! Não quero ouvir nem uma palavra sua. (1982, p. 57) ¡Todavía no te has levantado! No quiero oír más una palabra tuya. (1998, p. 60) 5. Perífrase “ter + que” em português; perífrase impessoal “haber + que” em espanhol: (...) você tem que dizer a verdade, embora isso lhe faça doer. (1982, p. 149) (...) hay que decir la verdad, aunque te joda. (1998, p. 155) 6. Presente do Indicativo em tratamento de você em português; construção com verbo “estar” em espanhol: “Ah, você não quer sair por causa das mulheres que estão passeando por aí (...)”. (1982, p. 101) 133133 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 133 “¡Ah, estás escondido por todas esas mujeres que andan paseando por ahí!”. (1998, p. 104) 7. Presente do Indicativo em tratamento de você em português; mudança de modo em espanhol: “Aquela outra garota me dá o que você não me dá, você tem mas não me dá”. (1982, p. 77) “La Azucena me da lo nunca me diste, no porque no tengas, sino por- que nunca me quisiste dar”. (1998, p. 81) 8. Presente do Indicativo em tratamento de tu + 3a pessoa em português; for- ma de tratamento usted em espanhol: (...) tu tem uma porrada de mulher aí (...). (1982, p. 78) (...) usted tiene un montonal de mujeres (...). (1998, p. 82) 9. Presente do Indicativo em tratamento de tu + 3a pessoa em português; “haber + que” em espanhol: “Pô, Josemar! Como é que tu consegue ter mulher assim?”. (1982, p. 98) “¡Eh, Josemar! ¿cómo hay que hacer para tener tantas mujeres?”. (1998, p. 101) 10. Construção condicional com Futuro do Subjuntivo com a forma de tra- tamento você em português; construção condicional com verbo “estar” em espanhol: “Olha, filha, eu não aguento mais, se você quiser botar as cartas na mesa (...)”. (1982, p. 45) “Yo no aguanto más así, si estás dispuesta a colocar las cartas sobre la mesa (...)”. (1998, p. 47) 11. Forma de tratamento você em português; uso de expressão com substantivo em espanhol: “Pô, você hein! se esconde tão bem!”. (1982, p. 57) “¡Ay, qué tipo este! ¡qué bien que se sabe esconder!” (1998, p. 61) Andreia DOS SANTOS MENEZES 134 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 12. Uso de você em posição de objeto indireto precedido pela preposição contra em português; uso de pronome possessivo como complemento da pre- posição em espanhol: Você era um roceiro que não tinha nada, por que então todos contra você? (1982, p. 78) Eras un chacarero que no tenía nada ¿por qué todos en contra tuyo? (1998, p. 82-83) 13. Uso de pronome sujeito “tu” em português; omissão do pronome sujeito em espanhol: “Tu vai levar, a vaca não pega ninguém”. (1982, p. 31) “No, vas a obedecer, la vaca no ataca a nadie”. (1998, p. 31) 14. Uso de contigo como objeto indireto em português; uso de pronome átono em espanhol: “Olha minha filha aí, eu preciso falar contigo”. (1982, p. 41) “M’hijita, no te vayas, tengo que hablarte de algo”. (1998, p. 43) 15. Uso de contigo como objeto indireto; omissão dessa estrutura em espanhol: “Hoje eu vou dormir contigo na tua cama”. (1982, p. 85) “Esta noche me voy a dormir a tu cama”. (1998, p. 89) 16. Uso de você precedido da preposição pra em português; uso da forma de tratamento usted em espanhol: Quem é você? Eu estava falando pro cagão, pro Josemar, e não pra você, eu não conheço você. (1982, p. 121) ¿Quién es usted? Yo le estaba hablando al cagón, a Josemar, no a usted, a usted no lo conozco. (1998, p. 125) Como expusemos anteriormente, o voseo utilizado na Argentina se eviden- cia por meio do pronome sujeito, Imperativo Afirmativo, Presente do Indicativo, com exceção dos verbos ser, ir e estar, e pronomes complemento precedido de pre- posição. Analisemos, então, os exemplos selecionados e vejamos mediante que es- tratégias Puig (1998) se exime da utilização dessas formas verbais e pronominais. Encontramos nos exemplos 1, 5, e 9 a utilização de formas verbais em espanhol nas quais ocorre o que podemos denominar como uma neutralização 135135 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 135 do sujeito. Nesses trechos selecionados vemos ou o uso do verbo haber ou o da impessoal com “se”, formas essas nas que o sujeito de segunda pessoa não se manifesta na forma verbal. Outras estratégias de “neutralização” utilizadas foram: a mudança para perífrases com o verbo estar e ir, que são os únicos que no Presente do Indicativo não diferenciam as formas vos / tú (pares de exemplos 7 e 10); o uso de verbos dicendi e consequente mudança do verbo principal para o modo subjuntivo (par de exemplos 3); a mudança do modo Imperativo Afirmativo para o Pretérito Perfeito (par de exemplos 4) ou para o Presente do Subjun- tivo (par de exemplos 7); a adoção de substantivo em lugar de um pronome sujeito (par de exemplos 12) ou a omissão deste (par de exemplos 13); os pronomes precedidos por preposição foram omitidos (par de exemplos 15) ou transformados em pronomes átonos (pares de exemplos 14), ou ainda trans- formados em pronomes possessivos, com a manutenção do verbo ir conjuga- do no Presente do Indicativo em 2a pessoa, já que, como já dissemos, forma parte com o verbo estar dos únicos que neste tempo verbal não possui formas diferenciadas para tu e vos (par de exemplos 13). Em todos esses exemplos mencionados neste parágrafo, foram adotados, na versão em espanhol, pro- nomes, verbos, modos e tempos verbais que não marcam a diferença entre o tuteo e o voseo argentino. No entanto, chamou-nos a atenção os casos dos pares de exemplos 2, 8 e 16, nos quais houve uma mudança da forma de tratamento informal utili- zada em português para a formal em espanhol, adotando, assim, a forma usted e, consequentemente, as formas verbais e pronominais da 3a pessoa. No par de exemplos 2 selecionado, a personagem-narradora Josemar está se dirigindo à personagem Zilmar, estabelecendo um diálogo. Como a personagem Zilmar não reconhece neste momento da narrativa a Josemar como personagem, mas somente como narrador, estabelece-se aí uma relação a qual podemos chamar de hierarquicamente distinta. Josemar trata Zilmar in- formalmente de você, chegando a lançar mão de termos chulos para referir-se a este, como podemos ver no próprio trecho selecionado. Já Zilmar trata seu interlocutor formalmente, utilizando a forma de tratamento senhor. No entan- to, na versão em espanhol, vemos que há uma alternância entre a formalidade e a informalidade quando a personagem Josemar se refere à personagem Zil- mar. Vemos que, durante esse mesmo diálogo, Josemar utiliza formas verbais e pronominais de 2a pessoa (estás, irte), que são, como dissemos anteriormen- Andreia DOS SANTOS MENEZES 136 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 te, as mesmas tanto para tú quanto para vos. Um pouco mais adiante, lança mão de formas verbais de 3a pessoa referentes à forma de tratamento formal usted no Imperativo Afirmativo, forma verbal que, como já afirmamos, ex- pressa a diferença entre o tuteo e o voseo argentinos. Nesse mesmo momento do romance, a personagem-narradora Josemar estabelece diálogo com outras duas personagens: Lourdes, mãe de seus filhos, e Carminha, sua própria mãe. No trecho 16, vemos quando ele fala com Lourdes. Vejamos a seguir quando conversa com sua mãe: 17. Fique aí em Bauru, que ocê já não tem mais casa, nem comida, e sua velha foi pra outro lugar porque está doente. (1982, p. 122) Usted quédese ahí en Baurú, que no tiene más casa, ni comida, y su vieja se fue a otra parte porque está enferma. (1998, p. 126) Observamos por meio dos pares de trechos 16 e 17 selecionados que, quando as personagens Lourdes e Carminha se dirigem a Josemar, passa algo semelhante ao que descrevemos no parágrafo anterior: em português, as personagens femininas tratam Josemar informalmente de você/ocê, en- quanto em espanhol utilizam usted. Nestes dois últimos casos, a diferença quanto ao caso anterior está em que não há uma alternância entre as formas informais e formais como no da personagem Josemar com relação a Zilmar. Esse usted é frequente em usos coloquiais em que se procura repreender alguém com quem habitualmente se utiliza tratamento informal, e é um dos recursos que mais evidenciam a tentativa de não definir o texto na direção do vos ou do tú. Por que o uso dessas estratégias? [...] eu escrevia rememorando filmes que tinham me dado muito prazer. Puig (apud GILLIO, 2001)8 Acreditamos que os exemplos selecionados no sub-capítulo anterior evidenciam a intenção deliberada que teve Puig em não utilizar, na versão em 8 No original: “[...] yo escribía rememorando películas que me habían dado mucho placer.” 137137 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 137 espanhol, formas verbais ou pronominais que pudessem corroborar tanto o uso do tuteo como o do voseo. Tudo indica que tais estratégias foram intencionais, porque requerem um grande controle em relação ao que “fluiria” tentando aproximar-se da fala de nativos do espanhol de qualquer região. Ou seja, esse procedimento parece indicar que Puig buscou verdadeiramente não utilizar na versão em espanhol nenhuma estrutura linguística no que se refere ao voseo que pudesse fazer com que se identificasse o texto com alguma região hispano-falante determi- nada, mais especificamente a Argentina, país de origem do autor. Mas não só isso, ele utilizou estratégias no que tange à forma de tratamento que fazem com que não se possa dizer que o texto traz traços da fala argentina, mas tam- pouco pode-se afirmar o contrário. Parece que Puig se insere no movimento de koinização encontrado nas traduções realizadas para a língua espanhola. Acreditamos, no entan- to, que tal uso tem objetivos determinados. Julgamos que o fato de as personagens serem brasileiras contou nessa escolha. Corroboram nossa afirmação os estudos já mencionados de Carricaburo (1999) quanto ao uso do voseo nos demais romances de Puig. Como vimos, o uso do tuteo limitava-se à inserção de discursos provenientes do universo musical, ci- nematográficos ou folhetinescos, ou seja, lançou mão do mencionado tú ficcional. Já o voseo estava relacionado à realidade ou ainda servia como caracterizador de personagens rio-pratenses frente a outros provenientes de outros países hispano-falantes. O movimento de koinização do espanhol das traduções foi exacerbado pelo surgimento da indústria cinematográfica e televisiva. As obras de Puig têm forte influência do discurso do cinema. O escritor chegou a afirmar em entrevista concedida a Soler Serrano (2002) que a maior influência na sua escritura não provém da literatura, mas dos filmes aos quais assistia desde pequeno, sempre intermediados por traduções. O escritor afirmou, também, que quando começou a escrever, primei- ramente roteiros cinematográficos, lançava mão da memória. Já comentamos sobre o uso desse recurso na escritura dos romances de Puig, que afirmava escrevê-los rememorando falas de parentes e amigos. Porém, no início de sua carreira, as falas que rememorava para escrever eram as provindas dos filmes de Hollywood: Andreia DOS SANTOS MENEZES 138 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 Eu queria fazer cinema. Fazia roteiros com temas muito escapistas em geral que, além do mais, copiavam filmes de Hollywood, e dos quais ninguém gostava, [...] eu escrevia rememorando filmes que tinham me dado muito prazer. (GILLIO, 2001)9 Ademais, Puig teve uma experiência laboral como tradutor de legen- das de filmes. Ou seja, a presença da comentada koiné está interligada à pró- pria vida e produção literária do autor. Pensamos que essa relação de Puig com as dublagens em espanhol de filmes estrangeiros também possa estar relacionada ao movimento singular de koinização que encontramos em Sangre de amor correspondido. Sendo a obra uma tradução de um original escrito em uma língua estrangeira, locali- zada num espaço estrangeiro, com personagens estrangeiras, pensamos que o trabalho de associar sua escrita a vozes provindas de sua memória também esteve presente na produção da obra em espanhol. No entanto, talvez tenha estado mais relacionado à memória das falas provindas das dublagens dos filmes, falas essas, como vimos, frutos de uma koiné. DOS SANTOS MENEZES, Andreia. The Koinization of a selftranslation of Manuel Puig: the voseo. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009. ABSTRACT: Assuming that the translations made from Spanish into another language re- sult from a koinization process, we will analyze a specific case of self-translation: the novel Sangre de amor correspondido written by the Argentinian writer Manuel Puig. The novel was elaborated in Brazilian Portuguese in 1982, with scenes and characters from Rio de Janeiro. The translation into Spanish was made in the same year by the author. In general, the works of Manuel Puig, as he himself affirmed, are based on the memory of real people speech. With the presence of Brazilian characters, how does the memory process occur in the Spanish version? Do the characters speak as the Argentinian ones? In order to answer these questions, we will focus our analysis on the presence/absence of the voseo in the Spanish version because it is one of the most important characteristics of Argentinian speech. KEYWORDS: Self-translation. Spanish. Voseo. Koinization. Manuel Puig. Sangre de amor correspondido. 9 No original: “Yo quería hacer cine. Hacía guiones con temas muy escapistas en general que además, copiaban películas de Hollywood, y que, además, no gustaban a nadie. [...] yo escribía rememorando películas que me habían dado mucho placer.” 139139 A koinização de uma autotradução de Manuel Puig: o voseo Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 125-139, 2009 139 Referências CARRICABURO, N. El voseo en la literatura argentina. Madri: Arcos Libros, 1999. GILLIO, M. E. Manuel Puig, a diez años de su muerte: “Yo escribía rememorando películas”. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2001. MEDINA LÓPEZ, J. Lenguas en contacto. Madri: Arcos Libros, 1997. PUIG, M. Sangue de amor correspondido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. ______. Sangre de amor correspondido. Barcelona: Seix Barral, 1998. SOLER SERRANO, Joaquín. Videoteca de la memoria literaria: Manuel Puig por Joaquín Soler Serrano. Barcelona: Editrama, 2002. 140 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 “POÉTICA”, DE MANUEL BANDEIRA: ANÁLISE SEMIÓTICA Dayane Celestino de ALMEIDA1 RESUMO: Manuel Bandeira escreveu vários poemas que tratam do “fazer poesia”, ora di- zendo para que a poesia serve, ora dizendo como ela deve ser. Este trabalho apresenta uma análise de um desses poemas – “Poética” – sob a perspectiva da semiótica francesa. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica. Poesia. Manuel Bandeira. Greimas. Introdução Ao longo de sua carreira, Manuel Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja, eles tratam do “fazer po- esia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo como ela deve ser. Este trabalho apresenta uma análise de um desses poemas – “Poética” – sob a perspectiva da semiótica francesa ou greimasiana. Procuramos fazer uma análise minuciosa do poema, descrevendo também a organização do plano da expressão (HJELMSLEV, 1975) e salientando suas relações com o plano do conteúdo. Procuramos, ainda, responder à seguinte pergunta: Em que medida o poeta segue, no próprio poema, o que ele preconiza? Ou seja, procuramos averiguar como se relacionam o conteúdo e a expressão nesse poema, veri- ficando se o que se diz em uma dessas faces é de fato o que se faz na outra. Um ponto importante a mencionar é o fato de que a semiótica tem como princípio o estudo do texto em si, ou seja, ela tem como fio condutor uma investigação cujo ponto de partida é o exame do texto “de dentro para fora, esforçando-se por construir, antes de tudo, uma escrupulosa descrição “interna” do texto, para, só então, ir em busca das suas conexões intertextuais 1 Programa de Pós-graduação em Semiótica e Linguística Geral da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, SP, Brasil. dayane.almeida@usp.br “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 141 ou contextuais. Assim, a semiótica considera que o texto é um todo de sig- nificação que “produz em si mesmo as condições contextuais de sua leitura” (BERTRAND, 2003, p. 23). Sendo a obra de Bandeira já amplamente estudada e sendo “Poética” um texto bastante conhecido e examinado, pode-se indagar a respeito da re- levância de nosso trabalho. A esta indagação respondemos que ao estudar o poema em questão sob um novo ponto de vista – o da semiótica – o nosso objeto passa a ser diferente daquele de estudos previamente realizados, uma vez que, como afirmou Saussure (1969), é o ponto de vista que cria o objeto. Análise do poema “Poética” integra o quarto livro de poemas de Manuel Bandeira, in- titulado Libertinagem e publicado em 1930. Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas. Dentre os poemas de Bandei- ra que podem ser considerados uma ars poética, talvez este seja o mais co- nhecido e aclamado. Quanto a isso, citamos o crítico Ivan Junqueira, quando afirma que ‘Poética’ não é apenas um dos melhores poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais significativo no que se refere ao discurso metalinguístico e à síntese de seus procedimentos líricos (2003, p. 107). Vejamos a transcrição do poema: POÉTICA2 Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente proto- [colo e manifestações de apreço ao sr. diretor Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo 2 Todos os poemas de Bandeira aqui analisados foram extraídos da obra Estrela da vida inteira (1993). Dayane Celestino de ALMEIDA 142 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com [cem modelos de cartas e as diferentes [maneiras de agradar às mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Quanto ao poema estar de acordo com os preceitos modernistas, vale ressaltar que isso é o que ocorre em todo o livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre 1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no Itinerário de Pasárgada, que esses foram os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo (1984, p. 91). De acordo com “Poética”, a poesia deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas, dos modelos tradicionais. Livre “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 143 para falar de qualquer tema. Dessa forma, “Poética”, assim como “Os sapos” (Carnaval, 1919), soa como um grito de libertação. Grito que, na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas sim, a uma “ir- reverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos”,3 uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa liberdade de movimentos” e com- plementa: “liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p. 75). Ou, como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade” (apud JUNQUEIRA, 2003, p. 89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p. 363). Passemos agora à análise do poema. Primeiramente, faremos o exame do plano do conteúdo, indo em seguida ao plano da expressão, procuran- do destacar, sempre que possível, as relações existentes entre esses planos. Procuramos verificar quais as estratégias utilizadas na construção do sentido nesse poema e, para tanto, iniciaremos abordando o nível narrativo, conforme o percurso gerativo do sentido (GREIMAS; COURTÉS, 1983). Observamos que há um enunciado no qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o lirismo comedido, bem comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não desejados são aqueles que estão de acordo com um destinador-manipulador (GREIMAS; COURTÉS, 1983) represen- tável aqui pela “poesia tradicional”. Ao dizer que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato antes estabelecido com tal destinador e passa a responder à manipulação de um novo destinador, qual seja, a “poesia modernista”. Passa, portanto, a querer-estar em conjunção com um novo objeto de valor: o lirismo no qual estão inscritos os valores que lhe foram sugeridos pelo seu novo destinador. A expressão Abaixo os puristas nos faz perceber a presença de mais um actante, ou seja, de um anti-sujeito (os puristas). Quando rompe o contrato com o primeiro destinador, o sujeito opera uma transformação, pois passa da conjunção com determinado objeto de valor para a disjunção. Como o sujeito do fazer é igual ao sujeito do estado (S1=S2), trata-se de uma renúncia (BARROS, 2001). Isto é, ocorreu uma pri- 3 Conforme o dicionário Houaiss. Dayane Celestino de ALMEIDA 144 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 vação reflexiva, pois o sujeito abriu mão do objeto. A partir do momento em que o sujeito anuncia querer outro objeto, o poema não apresenta mais nenhu- ma ação, nenhum fazer que repare a sua falta. O sujeito, portanto, mantém-se como um sujeito virtual, que quer ser ou fazer algo. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador. Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o lirismo livre). O quadrado semiótico que representa tais posições modais seria o seguinte: Figura 1 - Quadro semiótico: querer-ser No que diz respeito à continuidade versus descontinuidade (TATIT, 2001, p. 177), o sujeito, ao propor uma ruptura com os valores preestabele- cidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está afirmando a desconti- nuidade. Em primeiro lugar, ele propõe uma “parada da continuação”, mas ao afirmar os novos valores que agora quer, ele finaliza o percurso afirmando uma “continuação da parada” e inserindo-se, em termos tensivos, numa área de retenção, conforme o quadrado semiótico a seguir: querer-ser querer-não-ser não-querer-ser não-querer- não-ser Continuidade Relaxamento (continuação da continuação) Descontinuidade Retenção (continuação da parada) Não-Continuidade Contenção (parada da continuação) Não-Descontinuidade Distensão (parada da parada) Figura 2 – Continuidade versus descontinuidade “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 145 A ruptura proposta vai ao encontro de um dos ideais no movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética renova- dora. Segundo ele: O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de téc- nicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional (...). (1980, p. 258). Cabe ainda ressaltar que, ao caracterizar os dois tipos de lirismo, o sujeito acaba fazendo uma avaliação de cada um deles, passando, portanto, à condição de um destinador-julgador, que sanciona positivamente um tipo de lirismo e ne- gativamente o outro. O tipo de lirismo que recebe a avaliação negativa chega até mesmo a ser considerado pelo sujeito como um não-lirismo ou como um lirismo mentiroso. Ao negar um determinado lirismo e afirmar o outro, dizendo em segui- da De resto não é lirismo, o narrador (que, no nível narrativo, conforme acabamos de mencionar, assume também o papel de julgador) desmascara o lirismo nega- do, dizendo que ele nem ao menos é lirismo. Se arrolarmos aqui as modalidades veridictórias (GREIMAS; COURTÉS, 1983), podemos dizer que esse lirismo negado é da ordem da mentira, pois parece lirismo, mas não é: A análise do nível discursivo nos mostra que, no âmbito da sintaxe discursiva (Cf. FIORIN, 2005, p. 55), há uma debreagem enunciativa, que ser parecer não-ser não-parecer segredo mentira verdade falsidade Figura 3 – Modalidades veridictórias Dayane Celestino de ALMEIDA 146 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 inscreve no enunciado um narrador em primeira pessoa, como podemos ver pelo uso dos verbos em primeira pessoa (estou, quero). A debreagem enuncia- tiva não é apenas da categoria de pessoa, mas também da categoria de tempo; o “agora” é dado pela utilização dos verbos no presente do indicativo. Ao final do poema, no último verso, ocorre uma debreagem enuncia- tiva de segundo grau, indicada pelo uso do travessão. Ocorre, pois, a inclusão de um interlocutor. Na verdade, narrador e interlocutor designam a mesma pessoa no discurso, porém em duas instâncias enunciativas distintas. Esse recurso, ao lado do fato de esse verso ser o último do poema, confere um destaque ao verso, que reitera e reforça o que estava sendo dito. Ele acaba por resumir ao mesmo tempo em que conclui decisivamente qual é o tipo de lirismo desejado: o lirismo que é libertação. Ainda no mesmo nível analítico, passemos ao estudo da semântica dis- cursiva (FIORIN, 2005, p. 88). Constatamos que o tema principal desse texto é o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES apud KOSHIYAMA, 1996, p. 83). Ao longo do texto o narrador enumera características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é, que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p. 22). O poema pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se agrupam formando um percurso figurativo. Dessa forma, o primeiro percurso figurativo observado é aquele composto por comedido, bem comportado, funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Esse é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro” (BRANDÃO, 1992, p. 124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos universais, sintaxes de exceção e rit- mos inumeráveis compõem o percurso figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e sifilítico formam o percurso figurativo do liris- mo interesseiro. Por fim, o último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras contabilidade, tabela de cossenos, secretário do amante exemplar, modelos de cartas, que compõem o percurso figurativo da mecaniza- ção ou do excesso de rigidez formal, no sentido da utilização de moldes prees- tabelecidos. Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do “lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 147 que há, na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a experimentação de novas formas artísticas. Os quatro percursos figurativos apontados estão, na verdade, interli- gados, remetendo a um único tema que é o da opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de aprisionamento. O lirismo asso- ciado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987, p. 23), esse poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos, bêbedos e clowns de Shakes- peare formam o percurso figurativo da liberdade – corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é libertação –, uma vez que esses papéis não estão presos às convenções sociais. Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em oposição que recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a liberdade do “fazer poético”. Voltando ao adjetivo pungente (verso 18), uma consulta ao dicionário Houaiss nos revelou as seguintes acepções (grifo nosso): 1. Que tem a ponta rígida e aguçada, capaz de ferir, perfurando; pontiagudo. 2. Que provoca dor viva, aguda, penetrante, cáustica; lancinante. 3. Derivação por metáfora: que afeta e/ou impressiona profundamente o ânimo, o sentimentos, as paixões; muito comovente. 4. Derivação por metáfora: que desperta sensação física aguda, penetrante. 5. Derivação por metáfora: que provoca no paladar sensação forte, picante, azeda, amarga ou afim. As palavras que grifamos acima constituem, todas, figuras de in- tensidade (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001). No mais, interessa-nos particularmente a definição de número 3. Através dela, fica claro que, para o enunciador de nosso texto, a poesia deve “tocar a alma”. O lirismo pungente é aquele capaz de comover, de provocar os sentimentos. E a poesia só pode atingir essa pungência se for livre. O gráfico da correlação entre extensi- dade e intensidade pode nos ajudar a compreender tal relação. Pungente corresponde a um “mais” no eixo da intensidade, que é onde se encontra a valoração. Um “mais” em tal eixo corresponde a outro “mais” no eixo da Dayane Celestino de ALMEIDA 148 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 extensidade que aqui chamaremos de “liberdade formal e temática”. O “lirismo verdadeiro”, segundo “Poética”, se encontra na área onde se jun- tam o máximo da pungência e o máximo da liberdade formal e temática. Ao contrário, quanto menor for a liberdade, menor será o valor e estará configurado o “não-lirismo”. Vejamos: Essa análise vai ao encontro do que diz Jozef (1989, p. 91), ao afir- mar que Bandeira pretende a “libertação da inspiração poética dos entraves temático-formais”. É interessante, ainda, observar que, além de vocábulos relacionados estritamente ao universo poético ou linguístico, encontramos outra isotopia que tem como traço principal o /humano/. Muitos substantivos e adjetivos do poema referem-se a uma atividade ou comportamento humano. Sabemos, po- rém, que o texto não é sobre a vida e os tipos de homens, pois essas palavras e expressões estão associadas ao lirismo, ou seja, é de poesia que fala o texto. É a própria palavra lirismo (bem como o título Poética), que é a chave para que o enunciatário já “entre” no texto pensando neste como um tratado de poesia. Ainda sobre os tipos humanos, os que aparecem disforicamente e re- metem à opressão são justamente aqueles que vivem de alguma forma presos às regras e valores convencionais (o funcionário público, o sr. diretor, o se- cretário). Ao contrário, os tipos euforizados são, conforme já mencionamos, aqueles que vivem com mais liberdade e rompem com as convenções. Sobre estes últimos, Brandão (1987, p.27) afirma: Intensidade Extensidade lirismo + – – + Liberdade formal e temática Valoração não- lirismo Figura 4 – Lirismo versus não-lirismo “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 149 Todos eles representam manifestações espontâneas, impulsos sem repressão nem censura. Cada um, a sua maneira, rompe com as regras sociais preestabelecidas: de sanidade (o louco), de boa conduta (o bêbado), de seriedade (o palhaço). Diante do que foi exposto até aqui, percebemos que o poema eufo- riza um lirismo livre, uma poesia “livre das amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais especificamente à poe- sia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à poesia romântica, visto que: O lirismo namorador / raquítico / sifilítico compõe um conjunto que tem sua referên- cia na temática romântica. O poeta questiona aqui alguns dos motivos mais utiliza- dos por nossos românticos, o amor inconsequente, o patriotismo, o estado doentio. (BRANDÃO, 1987, p.24) A partir da análise dos níveis narrativo e discursivo, podemos depreen- der a categoria semântica básica que está no nível fundamental. Na verdade, são duas as categorias de base nesse texto: Opressão versus Liberdade e Integração versus Transgressão, sendo Transgressão e Liberdade os polos afirmados e In- tegração e Opressão os negados, conforme o quadrado semiótico abaixo: As várias relações que observamos nesse texto, nos três níveis do per- curso gerativo do sentido, podem ser homologadas, conforme se vê no qua- drado semiótico a seguir: Opressão Integração Liberdade Transgressão Não-Opressão Não-Integração Não-Liberdade Não-Transgressão Figura 5 – Quadrado semiótico: opressão versus liberdade Dayane Celestino de ALMEIDA 150 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 Adotando uma postura crítica com relação à poesia “tradicional”, o enunciador acaba por valorizar o seu contrário. Levando em consideração, neste momento, os estudos de Fontanille e Zilberberg (2001) acerca do valor, podemos associar o lirismo valorizado (a poesia modernista) ao regime da par- ticipação, que tem por operador a mistura – valorizando, assim, uma poética mais livre e diversificada – em oposição à valorização da poesia “tradicional” do raro, do puro, associada ao regime da exclusão, que tem por operador a tria- gem. Podemos visualizar melhor tais relações através do quadro abaixo: Assim, o poema nega os valores de absoluto, ao passo que afirma os valores de universo. A valorização da poesia tradicional pode ser representa- Não-Opressão Não-Integração Não-Disforia Contenção Não-Continuidade (parada da continuação) Não-Liberdade Não-Transgressão Não-Euforia Distensão Não-Descontinuidade (parada da parada) Opressão Integração Disforia Relaxamento Continuidade (continuação da continuação) “Poesia Tradicional” Liberdade Transgressão Euforia Retenção Descontinuidade (continuação da parada) “Poesia Modernista” Figura 6 – Quadrado semiótico Valores de absoluto Valores de universo Regime Exclusão Participação Operadores Triagem/Fechamento Mistura/Abertura Benefícios Concentração Expansão Poética “tradicional” Poética “modernista” Figura 7 – Valores de absoluto e valores de universo “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 151 da pelo gráfico a seguir, onde a um “mais” no eixo da intensidade (valoração) corresponde um “menos” no eixo da extensidade e vice-versa. Esse tipo de correlação é chamado de inversa e quanto mais se avança em direção ao “me- nos”, aos valores de absoluto, maior é a valorização: Por outro lado, a valorização da poesia modernista – que tende para o “misturado”, para o universal, para o diverso – é dada através de uma correla- ção chamada conversa, onde um “mais” no eixo da intensidade pede um outro “mais” no eixo da extensidade. Quanto mais se avança em direção ao “mais” (ao universal), maior é o valor, conforme podemos ver no seguinte gráfico: Apesar de esse “eu” professar uma lógica da inclusão, da heteroge- neidade (Todas as palavras, Todas as construções, Todos os ritmos), suas “reivindicações” encontram-se dentro de uma lógica da triagem, no que se Absoluto Valoração Intensidade + – – + Extensidade Poesia tradicional Figura 8 – Poesia tradicional + – – + Universal Valoração Intensidade Extensidade Poesia modernista Figura 9 – Poesia modernista Dayane Celestino de ALMEIDA 152 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 refere aos lirismos a serem descartados, excluídos (lirismo comedido, lirismo raquítico, lirismo namorador, etc.). Ou seja, para carregar a bandeira de uma poética que admite a participação, ele permanece no regime da exclusão, ao excluir o exclusivo. Gostaríamos, ainda, de tecer um breve comentário acerca da aspec- tualidade em “Poética”. Considerando o que afirma Zilberberg (apud TA- TIT, 2001, p. 49), ao sustentar que a aspectualidade “conteria apenas valo- res demarcatórios, ou de ‘limite’ (‘saliências’) e valores segmentais ou de ‘gradação’ (‘passâncias’)”, verificamos que, em “Poética”, estão presentes os valores de limite, como se pode ver principalmente pela expressão Estou farto, presente muitas vezes ao longo do poema e que remete a um aspecto terminativo. Por outro lado, se considerarmos que, ao propor a ruptura com as poéticas vigentes, o sujeito também anuncia que quer outros valores em troca, podemos afirmar que o aspecto é incoativo, pois uma ação vai começar. O aspecto é o ponto de vista sobre um processo e “Poética” apresenta dois deles: um que está ao fim e um que está por começar. A mesma coisa aconte- ce se observarmos separadamente o verso Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo, onde estão presentes duas ações: uma que para (aspecto terminativo) e uma que se inicia – vai averiguar – (aspecto incoativo). Finda a análise do plano do conteúdo, concentraremos nossa atenção nas questões referentes ao plano da expressão, a fim de proceder a uma descri- ção deste e, quando possível, relacioná-lo ao plano do conteúdo. Assim como todos os poemas de Libertinagem, “Poética” é composto de versos livres. São 20 versos, de variados comprimentos, que se organizam em algumas estro- fes, também divididas irregularmente. A primeira estrofe é composta de três versos, de tamanhos bastante distintos: 8, 11 e 38 sílabas cada um. Os três expõem características do lirismo que está sendo apresentado. O primeiro traz um adjetivo (comedido), o segundo, uma locução adjetiva (bem comportado) e o terceiro utiliza a expressão funcionário público, junto com todas as suas características, para qualificar o lirismo. Notamos, ainda, neste último verso, a aliteração do [p] justamente nesta sequência sem vírgulas: público / ponto / expediente / protocolo / apreço. Além disso, vemos que os elementos da série presente nesse verso não estão separados por vírgula, como estariam normal- mente. Essa ausência de vírgulas marca a adoção de uma estética modernista, habituada desde Alcools (APOLLINAIRE, 1971) a infringir ou até abolir a “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 153 pontuação. Em segundo lugar, ela pode ser lida como aceleração, que indica a exasperação desse enunciador, que “desabafa” seu descontentamento com a poética tradicional num só impulso, contrapondo-se, já aí, ao “comedido” e “bem comportado”. Os três versos juntos formam uma única proposição, um período composto por três elementos coordenados. Nos dois primeiros versos, vemos uma semelhança sonora entre as duas palavras finais: ambas são adjetivos, ambas são paroxítonas e ambas começam e terminam com sons semelhantes: comedido – comportado. Ao compor um verso tão longo quanto o último – com uma métrica totalmente distinta das que a tradição utilizava – o enunciador mostra que não tem comedimento4 e vai, assim, ao encontro do que afirma quando diz estar farto do lirismo comedido. Dessa forma, o plano da expressão corrobora e reforça o que se diz no plano do conteúdo. Aparece, em seguida, um verso isolado, mas que retoma a ideia da primeira estrofe e até mesmo repete o início do primeiro verso (Estou farto do lirismo). Desta vez, porém, não há apenas um adjetivo ou locução adjetiva qualificando lirismo, mas sim, uma oração subordinada inteira (que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo). Este verso é formado por 30 sílabas, mas se fosse dividido em três partes, teria três partes iguais, como se fossem três versos decassílabos: Es / tou / far / to / do / li / ris / mo / que / pá / ra e / vai / a / vê / ri / guar / no / di / cio / ná / rio o / cu / nho / ver / ná / cu / lo / de um / vo / cá / bu / lo. Não podemos deixar de reparar na semelhança sonora entre as pala- vras vernáculo e vocábulo, que formam uma rima interna ao verso. Ainda com relação a esse verso, o fato de ele ser divido em três partes remete a outras séries de três que permeiam todo o poema, conforme vemos a seguir:5 4 Considerando uma das acepções de comedimento, dada pelo dicionário Houaiss: “moderação deter- minada pelas exigências das circunstâncias, dos deveres, dos usos; continência”. 5 Os três elementos desta série são, ainda, seguidos por “sobretudo” e um outro sintagma (adjetival e preposicionado). Dayane Celestino de ALMEIDA 154 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 versos nome adjetivo ou locução adjetiva série 1 1 lirismo comedido2 lirismo bem comportado 3 lirismo funcionário público versos pronome indefinido sintagma nominal5 série 2 6 todas as palavras7 todas as construções 8 todos os ritmos versos adjetivo (proparoxítono) série 3 10 político11 raquítico 12 sifilítico versos nome complemento nominal série 4 17 lirismo dos bêbados18 lirismo dos bêbados6 19 lirismo dos clowns de Shakespeare Também o verso de número quinze, ao descrever o que seria o “não- lirismo”, pode ser divido em três partes. Ele diz que o “não-lirismo” será: 1. contabilidade; 2. tabela de cossenos; 3. secretário do amante exemplar [...]. Cada uma dessas séries encontradas no plano da expressão tem uma correspondência no plano do conteúdo. Vejamos:6 verso ou série plano do conteúdo verso 4 purismo de linguagem verso 15 mecanização; excesso de rigidez formal série 1 ajustado e rotineiro série 2 poética livre; lirismo livre série 3 lirismo interesseiro série 4 poética livre; lirismo livre Voltando ao quinto verso, verificamos que ele também aparece so- zinho visualmente, mas está intimamente ligado à estrofe que segue, pois 6 Antes do complemento nominal há dois adjetivos: O lirismo difícil e pungente dos bêbados. “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 155 os três versos de tal estrofe (que estão coordenados) são sua continuação. Esses quatro versos formam um bloco (conforme já vimos durante a análise do plano do conteúdo) e constatamos que da primeira parte para esta há uma mudança de tom. Os quatro primeiros versos introduzem o tema e têm um tom melancólico, “cansado”. Já este segundo bloco apresenta um tom mais exaltado e lembra um manifesto. Quanto à métrica, o verso que está isolado possui 5 sílabas (redondilha menor) e esse é um fato interessante, pois tal mé- trica, que foi muito utilizada tradicionalmente, aparece justamente no verso que introduz o bloco de ideias contra as características tradicionais da poesia. Os demais versos possuem, respectivamente, 18, 16 e 14 sílabas. Também nessa estrofe há um paralelismo na construção, pois os três versos têm a mes- ma estrutura sintática e se iniciam por “todos/as” (fato já indicado quando mostramos as séries existentes). A próxima estrofe é formada por cinco versos e apresenta algumas singularidades. Além de ser a maior em número de versos, é a única que possui versos compostos por uma só palavra, sempre um adjetivo propa- roxítono e com o mesmo final, sendo também a única vez que ocorre uma rima em todo o poema, usada, segundo Koshiyama (1996, p. 89), “de um modo irônico”. A separação desses adjetivos em três versos diferentes dá uma maior ênfase à ideia que se quer passar. No último verso, mais uma vez, existe uma oração subordinada qualificando o lirismo (que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo), da mesma maneira que ocorreu no verso 4. Na estrofe seguinte, há apenas dois versos, um de sete sílabas (redondilha maior) e outro de 50 sílabas. Percebemos também uma grande recorrência de sons nasais (consoantes e vogais) no último verso: contabilidade / cossenos / amante exemplar com cem modelos / maneiras / mulheres e mais uma vez apa- rece uma enumeração sem vírgulas. Voltando à questão da extensão do verso, na verdade, tanto esse verso quanto os outros de tamanho bastante grande podem ser vistos como pequenos trechos em prosa dentro dos poemas. É como se o poeta quisesse mostrar que o lirismo livre pode ser expresso por qualquer forma, por qualquer gênero. Poemas desse tipo, com esses versos “em prosa”, ocorrem ao longo de todo o livro Libertinagem – como em “O Cacto” e “Camelôs” – e tam- bém em outros momentos no decorrer da obra de Bandeira, como, por exemplo, nos poemas “Jacqueline”, do livro Estrela da manhã e “Nova poética”, do livro Belo Belo. Transcrevemos a seguir trechos dos poemas supracitados: Dayane Celestino de ALMEIDA 156 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 1. “(...) Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz. O cacto tombou atravessado na rua, Quebrou os beirais do casario fronteiro, Impediu o transito de bondes, automóveis, carroças, Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a [cidade de iluminação e energia:  Era belo, áspero, intratável.” (O Cacto) 2. “(...) Alegria das calçadas Uns falam pelos cotovelos:  “O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar um pedaço de [banana para eu acende o charuto. Naturalmente [o menino pensará: Papai está malu...” (...)” (Camelôs) 3. “(...) Houve tempo em que olhei para os teus retratos de menina como olho [agora para a pequena imagem de Jacqueline morta. Eras tão bonita! Eras tão bonita, que merecerias ter morrido na idade de Jacqueline  Pura como Jacqueline. (...)” (Jacqueline) 4. (...) O poema deve ser como a nódoa de brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho. Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por [cento e as amadas que envelheceram sem maldade. “Poética”, de Manuel Bandeira: análise semiótica Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 157 Além disso, lembremos-nos de que Bandeira é também bastante co- nhecido pela composição de “poemas em prosa”, tais como “Lenda Brasilei- ra” e “Noturno da Rua da Lapa”, também de Libertinagem. A próxima estrofe é a que fala sobre o lirismo desejado. Até o momen- to todos os “blocos” foram introduzidos por negações (Estou farto..., Abai- xo..., Estou farto..., De resto não é...) e agora é a única vez no poema em que há uma afirmação: Quero antes... A métrica continua irregular e, assim como na primeira estrofe, há a repetição da palavra lirismo em todos os versos, numa estrutura paralela. Por fim, o último verso vem também sozinho. Para falar que o que deseja é o lirismo que é libertação, o poeta volta a utilizar a negação (uma negação dupla), o que reforça a ideia de que o que se quer é apenas o lirismo libertação. Acerca da importância de tal negação nesse último verso, citamos Brandão (1987, p. 28): A palavra lirismo é, a um só tempo, objeto de ‘Não quero mais saber (do)’ e sujeito de ‘(que) não é libertação’. A dupla negação projeta para fora de si o seu oposto positivo, sem perder, contudo, a raiz da negatividade que o alimenta. Do interior da negação surge a forma ambicionada (...). Atualizar a forma sugerida, isto é, dizer, por exemplo, que o último verso do poema tem o sentido de ‘Apenas quero o lirismo que é libertação’ seria eliminar aquilo que ele tem de mais significativo, que é sua insatisfação, sua incompletude... Considerações finais O estudo semiótico que fizemos de “Poética” mostrou-se bastante pro- veitoso, permitindo-nos realizar uma descrição minuciosa dos seus planos da expressão e do conteúdo, trazendo, ainda que modestamente, novas luzes para a avaliação da obra poética de Manuel Bandeira. A partir dos elementos expostos, é possível afirmar que em “Poética” há uma convergência entre expressão e conteúdo, uma vez que o que se diz em uma dessas faces é o que se faz na outra. O poeta segue no próprio poema o que ele pre- coniza: usa imagens cotidianas e um vocabulário simples, além de compor o poema com uma “liberdade de formas”, isto é, com divisão irregular entre estrofes, versos livres, ritmo irregular, versos “muito longos”. Portanto, o próprio poema apresenta, no plano da expressão, os preceitos indicados no plano do conteúdo. Dayane Celestino de ALMEIDA 158 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009 ALMEIDA, Dayane Celestino de. “Poética”, by Manuel Bandeira: a semiotic analysis. Re- vista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 140-159, 2009. ABSTRACT: Throughout his career, Manuel Bandeira wrote some poems that talk about “making poetry”, saying either what the poetry is for or how it should be. This paper presents an analysis of one of these poems – “Poética” – from the perspective of French Semiotics. KEYWORDS: Semiotics. Poetry. Manuel Bandeira. Greimas. Referências APOLLINAIRE, Guillaume. Alcools. Paris: Larousse, 1971. ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura. In: ______. Obra imatura. São Paulo: Itatiaia, 1980. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. ______ Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 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Os resultados foram bastante positivos, mas apon- taram a necessidade de algumas modificações para o melhor aproveitamento dos alunos. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros textuais. Arquitetura textual. Capacidades de linguagem. Introdução Este artigo tem por objetivo apresentar uma experiência de ensino de produção escrita para estudantes universitários de Francês como língua se- gunda2 baseada em gêneros textuais. Trata-se, com efeito, de um curso minis- trado por mim e por uma assistente3 para os cursos de francês na Universida- de de Guelph, Canadá, no primeiro semestre de 2008. Como sabido, o Canadá é um país oficialmente bilíngue, tendo o fran- cês e o inglês como línguas oficiais. Porém, exceto a única província em que 1 Departamento de Letras Modernas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. elousada@usp.br. 2 FLS: francês como língua segunda designa uma língua que tem estatuto particular, quer seja social e/ou político, como no caso do francês nas províncias anglófonas do Canadá. A LS pode ser também a língua da escolarização e, em ambos os sentidos, diferencia-se das outras línguas estrangeiras. 3 Teacher assistant: TA. Em 2007/2008, Laetitia Fabre. Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 161 o francês é a primeira língua, o Québec, nas outras províncias o inglês é a língua mais usada, apesar da existência de inúmeras comunidades francófo- nas em várias partes do país. A aprendizagem do francês é possibilitada, na escola, por meio de vários sistemas, sobretudo o das classes de imersão, em que os alunos têm aulas de francês como parte do currículo. Além disso, exis- tem várias oportunidades para aperfeiçoar o nível de língua, através de cursos de francês diretamente em províncias e/ou regiões francófonas patrocinados pelo governo canadense, com bolsas de estudos. Após o contato menos ou mais bem-sucedido com o francês na escola, os alunos têm a possibilidade de escolher matérias relacionadas ao francês quando entram na faculdade. Sendo assim, no nível da graduação, são oferecidos cursos de francês em vários níveis, desde principiantes até níveis mais avançados, centrados na produção oral ou na produção escrita, passando por vários cursos de literatura francesa e quebequense. Apesar de serem oferecidos cursos para iniciantes, é importante lembrar que, no Canadá, os alunos são raramente verdadeiros principiantes em francês como o são em outras línguas, já que têm vários conhecimentos sobre essa língua aprendidos ao longo da escolaridade. Da mesma forma, os alunos de segundo e/ou terceiro ano têm mais conhecimento do que o esperado nesses níveis em outros contextos. Neste artigo, vamos abordar o caso do curso de francês para produção escrita, oferecido aos alunos de terceiro ano universitário, que têm essa maté- ria como obrigatória. Foi nesse curso que pude fazer uma experiência de ela- boração de um currículo para ensino de gêneros textuais escritos em francês, posto em aplicação no primeiro semestre do ano de 2008. Para apresentar essa experiência, dividimos este artigo em quatro partes: primeiramente a funda- mentação teórica que embasou tanto a elaboração do programa como sua aplicação em sala de aula; em seguida, a apresentação detalhada do contexto de estudo e do programa utilizado, seguida da análise dos resultados obtidos. Finalmente, passaremos à apresentação das considerações finais. Pressupostos teóricos Este estudo, desde a elaboração do programa do curso até sua aplica- ção em sala de aula, está baseado nos pressupostos teóricos do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2006, 2007, 2008), sobretudo no que diz respeito à questão dos gêneros textuais e às características linguístico-discur- Eliane Gouvêa LOUSADA 162 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 sivas dos textos. Além disso, baseamo-nos também nos trabalhos sobre utili- zação de gêneros textuais para aprendizagem de língua materna (francês) no contexto da Suíça francófona (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) e para o ensino de português como língua materna no Brasil (MACHADO, 2001; MACHADO; ABREU-TARDELLI; LOUSADA, 2004a e b, 2005, 2007). Utilizamos, so- bretudo, as aplicações dessa perspectiva teórica para língua estrangeira, princi- palmente em suas realizações no Brasil (CRISTÓVÃO, 2002; DAMIANOVIC, 2006; LOUSADA, 2002a, 2002b, 2006; ABREU-TARDELLI, 2006). Um dos conceitos teóricos a partir do qual nosso programa de curso foi montado é a noção de gênero como proposta por Bakhtin (1997 [1953]) e retomada por Bronckart (2006, 2007, 2008). Para Bakhtin (1997 [1953]), a cada tipo de atividade humana que implica o uso da linguagem correspon- dem enunciados particulares, os gêneros do discurso. Bronckart retoma essa concepção de gênero, propondo a terminologia gênero de texto e guardando para o termo discurso um outro significado.4 Esse autor salienta, ainda, que a linguagem é constituída de práticas situadas, ou seja, a atualização da linguagem por indivíduos em situações concretas. Essas práticas situadas são chamadas por Bronckart (2008, p. 87) de agir linguageiro, que, por sua vez, se traduz em um texto. Dentro dessa perspectiva teórica, o texto seria visto como toda unidade de produção verbal que veicula uma mensagem organizada e que visa a produzir um efeito de coerência sobre o destinatário, ou, então, como uma unidade comunicativa de nível superior, correspondente a uma determinada unidade de agir linguageiro. (BRONCKART, 2008, p. 87). Para Bronckart (2008, p. 88), os gêneros de textos estão presentes no arquitexto de uma comunidade linguageira, tendo sido construídos pelas ge- rações precedentes e organizados em um repertório de modelos. Assim, o falante de uma língua tem a seu dispor uma série de modelos textuais e vai escolher (“adotar”) o mais apropriado a uma determinada situação que se caracteriza por uma série de parâmetros físicos (emissor, receptor, espaço- tempo do ato de produção) e sociossubjetivos (tipo de interação social em curso, objetivos possíveis nesse quadro, papéis atribuídos aos protagonistas da interação). Dessa forma, o texto produzido terá sempre características 4 Ver Bronckart 2006, 2008. Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 163 genéricas, provenientes da adoção de um modelo do arquitexto, e caracterís- ticas individuais, provenientes de escolhas individuais em função da situação de produção (BRONCKART, 2008, p. 88). Ainda segundo Bronckart (2007), a partir da situação de produção, o falante/enunciador/textualizador vai organizar seu texto segundo os três níveis da arquitetura textual. O primeiro nível diz respeito à infra-estrutura textual, subdividida em dois regimes de organização: a planificação geral do conteúdo temático, ou seja, a ordem dos conteúdos temáticos que aparecem no texto, como um resumo, e os tipos de discurso, referentes à construção de mundos discursivos. Os tipos de discurso podem ser entendidos como perten- centes a dois eixos principais: narrar e expor. O eixo do narrar – disjunção, pode ser implicado ou autônomo, ou seja, pode apresentar ou não implicação em relação ao ato de produção (através de dêiticos espaciais, temporais e de pessoa). O eixo do expor – conjunção, pode também ser implicado ou autô- nomo. Sendo assim, dentro desses dois eixos, há uma outra divisão que dá origem aos tipos de discurso: narrar – disjunto e autônomo (tipo de discurso narração); narrar – disjunto e implicado (tipo de discurso relato interativo) e expor – conjunto e implicado (tipo de discurso interativo) e expor – conjunto e autônomo (tipo de discurso teórico).5 Ainda no nível da infra-estrutura textual, Bronckart (2007) baseia-se em Adam (1996) e propõe uma outra forma de planificação que são as sequ- ências. Diferentemente dos tipos de discurso, essas sequências podem ou não estar presentes, aparecem geralmente combinadas (é difícil encontrar em um texto uma só sequência) e dividem-se em: narrativa, descritiva, argumentati- va, explicativa, injuntiva e dialogal. Além disso, Bronckart (2007) apresenta o grau zero da sequência narrativa, onde não há intriga, tensão, que seria o script e o grau zero das sequências argumentativa e explicativa, a esquemati- zação, onde não há a necessidade de explicar algo de difícil compreensão ou argumentar em favor ou contra algo que pode ser contestável.6 Para esse autor (BRONCKART, 2007), o segundo nível da arquitetura textual é constituído dos mecanismos de textualização, que é caracterizado pela coerência e pela coesão. A primeira diz respeito às relações entre os ní- veis de organização de um texto e é explicitada pelos organizadores textuais. A segunda pode ser divida em coesão nominal e verbal. 5 Para maiores explicações sobre os tipos de discurso, ver Bronckart 2006, 2008. 6 Para maiores explicações sobre as fases das sequências, ver Bronckart 2007. Eliane Gouvêa LOUSADA 164 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 No terceiro nível da arquitetura textual, encontramos os mecanismos de responsabilidade enunciativa que dão a coerência pragmática do texto (BRONCKART, 2007). Nesse nível, encontramos a questão das modaliza- ções, responsáveis pelas diversas avaliações do falante/enunciador/textuali- zador sobre um ou outro aspecto do conteúdo temático. Encontramos também a questão das vozes que explicitam as instâncias que assumem ou se respon- sabilizam pelo que está sendo dito. Voltando à questão dos gêneros textuais, podemos dizer que, enquan- to os gêneros são relativamente estáveis, os textos que os materializam são extremamente variáveis e maleáveis (BRONCKART, 2006; SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), o que torna difícil a sua classificação. Assim, como cada si- tuação de uso da língua se realiza verbalmente através de um gênero, pode- mos concluir que a capacidade de comunicação depende do maior ou menor domínio (DOLZ; SCHNEUWLY, 1996) que se tem do gênero em questão, mesmo quando se trata de língua materna (LM). Evidentemente, enquanto construções sociais e históricas, muitos gêneros podem ser mais ou menos dominados pelos locutores nativos de uma língua. Uma entrevista de em- prego, mesmo em língua materna, pode ser um gênero de difícil realização para muitos falantes adultos, enquanto que uma conversa para comprar algo em uma loja pode ser mais fácil para a maioria dos falantes adultos, em lín- gua materna, já que se trata de um gênero bastante usado no cotidiano. Já em língua estrangeira, é necessário que os alunos aprendam a compreender e produzir textos pertencentes a gêneros mais ou menos conhecidos /mais ou menos parecidos com suas realizações em LM, dado que as sociedades contemporâneas do mundo ocidental apresentam, muitas vezes, textos com características semelhantes. Sendo assim, procuramos, em nosso programa, selecionar gêneros que pudessem ser de algum interesse para os alunos, baseando-nos nos seguintes critérios propostos por Dolz e Schneuwly (1998) e expostos por Cristóvão (2002, p. 97): a) a dimensão psicológica, incluindo as motivações, a afetividade e os inte- resses dos alunos; b) a dimensão cognitiva, refletindo a complexidade do tema e o estatuto do conhecimento dos alunos; c) a dimensão social, envolvendo a densidade social do tema, suas potencia- lidades polêmicas, a relação entre eles e os participantes, os aspectos éticos, Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 165 sua presença real no interior ou no exterior da escola e a possibilidade de, com ela, se desenvolver um projeto de classe; d) a dimensão didática, que demanda que o tema não seja excessivamente cotidiano, mas que possa ser apreensível. Em relação ao item a, procuramos fazer uma escolha de gêneros que pudessem ser motivantes e interessantes para uma classe que tinha alunos com idade média de 19 a 26 anos. Buscamos, dessa forma, selecionar temas de textos que pudessem agradar a essa faixa etária de alunos. Por exemplo, quando o gênero escolhido era um guia turístico, escolhemos uma cidade francófona canadense; para a biografia, foram escolhidos autores francófo- nos, dentre os quais alguns canadenses; para a produção escrita de sinopse e resenha crítica de filme, foram escolhidos filmes atuais. Em relação ao item b, por se tratar de alunos do terceiro ano de francês na faculdade, que tinham um bom nível de língua, em geral, foram escolhidos gêneros mais complexos materializados em textos que envolvem mais conhecimento linguístico. De- vido ao grande interesse dos alunos dessa universidade e dos canadenses, em geral, pelo tema da ética e da ecologia, foram escolhidos textos e gêneros que propiciaram o debate sobre esses temas em sala de aula, criando polêmicas e discussões, atendendo, assim, ao critério c. No que diz respeito ao item d, é necessário salientar que se tratava do ensino de língua segunda e não língua materna. Sendo assim, como o francês é uma língua estrangeira para os alu- nos e não a LM, os gêneros escolhidos podiam até ser cotidianos para eles, porém em inglês e não em francês. A partir desses critérios de escolha dos gêneros a serem trabalhados, poderiam ser propostos agrupamentos de gêneros, em função de suas caracte- rísticas tipológicas dominantes, que são, para Schneuwly e Dolz (2004): nar- rar, relatar, argumentar, expor, descrever ações (sequências injuntivas) e que podem ser compreendidas a partir da infra-estrutura textual (tipos de discurso e sequências) descrita acima. Além do gênero como unidade de ensino a partir da qual o programa seria organizado, adotamos também a noção de gênero como ferramenta que atua no processo de aprendizagem (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 28.). Nessa segunda abordagem, o gênero seria encarado como um verdadeiro megainstrumento mediador entre o sujeito e a situação. O gênero textual, enquanto megainstrumento, contribuiria para o desenvolvimento dos três ti- pos de capacidades de linguagem: as de ação, as discursivas, as linguístico- Eliane Gouvêa LOUSADA 166 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 discursivas. Segundo Dolz, Pasquier e Bronckart (1993) e Dolz e Schneuwly (1998), ao interagirmos nas diferentes situações sociais por meio dos textos que produzimos, fazemos uso dessas capacidades, que estão diretamente li- gadas aos três níveis da arquitetura textual propostos por Bronckart (2006, 2007) e explicitada acima. As primeiras envolvem a mobilização das repre- sentações do produtor sobre o contexto de produção do texto. As capacida- des discursivas envolvem as operações de organização textual do texto a ser produzido, de escolha de um ou vários tipos de discurso e a escolha do modo de organização sequencial. As últimas, as capacidades linguístico-discursi- vas, envolvem os aspectos linguísticos propriamente ditos, incluindo várias operações de textualização (como, por exemplo, a operação de se assegurar a coesão textual, verbal e/ou nominal) e operações enunciativas (como, por exemplo, o gerenciamento de vozes e a modalização dos enunciados). O trabalho em sala de aula constituiria, então, em compreender e pro- duzir textos, pertencentes a diferentes gêneros, visando a desenvolver nos alunos as capacidades descritas acima. Para tanto, podemos trabalhar a partir de agrupamentos de gêneros e desenvolvimento de uma sequência de ativi- dades que constituem a sequência didática (SD). Embora de maneira sucinta, apresentaremos, a seguir, os gêneros escolhidos e a sequência didática pro- posta para desenvolver essas capacidades. O contexto de desenvolvimento desse estudo Como já mencionado, a experiência que relatamos neste artigo foi con- duzida em uma turma de francês como segunda língua do terceiro ano uni- versitário, em uma província anglófona do Canadá. Tratava-se de uma classe de 49 alunos, de faixa etária entre 19 e 26 anos, em geral. Os alunos tinham níveis bastante heterogêneos de francês, desde alunos praticamente bilíngues (francês e inglês), até alunos que ainda têm alguma dificuldade com a escrita e mesmo a fala em francês. O curso durou 12 semanas, sendo dividido em 3 aulas de 50 minutos por semana. Levando em conta os critérios expostos anteriormente para a escolha dos gêneros textuais a serem trabalhados, foram escolhidos os seguintes gê- neros para desenvolvimento com os alunos: Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 167 Quadro 1: gêneros escolhidos, aspectos tipológicos, sequências e aspectos linguísticos7 Aspectos tipológicos Gêneros textuais Sequências predominantes Aspectos linguísticos  Descrever  Narrar  Relatar  Argumentar  Guia turístico  Biografia  Conto  Sinopse de filme, cartão postal  Resenha crítica de filme  Carta do leitor  Carta de reivindicação, solicitação  Texto publici- tário  Artigo de opi- nião  Manifesto ecoló- gico  Descritiva  Script (grau zero da sequên- cia narrativa)  Narrativa  Script  Argumentativa  Nominalização  Voz passiva  Tempos do passado : passé composé, imparfait, plus-que- parfait, passé simple  Discurso indireto  Comparação  Conectivos: cause, conséquence, opposition et concession, but, condition  Subjuntivo Para o trabalho em sala de aula, foram estabelecidos critérios para uma sequência didática compatíveis com o tipo de curso, número de alunos em sala de aula e número de horas disponíveis para o curso. Dentro das limi- tações de termos muitos alunos e poucas horas de aulas, não foram realizadas produções iniciais, pois optamos por começar diretamente pela análise de um 7 Neste quadro as três primeiras colunas apresentam uma sequência / ordem dos conteúdos e podem ser lidas horizontalmente. A quarta coluna apresenta os aspectos linguísticos sem ordem específica, pois podem corresponder a um ou mais gêneros. Eliane Gouvêa LOUSADA 168 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 texto pertencente ao modelo de gênero que tínhamos a intenção de trabalhar. Sendo assim, propusemos as seguintes etapas da SD, apresentadas aqui de maneira esquematizada:8 1. Apresentação da situação de produção: as representações dos alunos sobre as várias situações de ação de linguagem que podem dar origem ao texto per- tencente ao gênero em questão. 2. Um primeiro contato com o gênero: análise da situação de ação de lingua- gem que deu origem ao texto escolhido como modelo do gênero e compara- ção com as respostas ao item 1. 3. Análise do texto em relação ao aspecto tipológico dominante, à(s) sequência(s) predominante(s) e aos aspectos linguísticos característicos. 4. Atividades para desenvolver os aspectos tipológicos dominantes, as sequ- ências predominantes e/ou os aspectos linguísticos característicos, segundo as dificuldades dos alunos. 5. Atividades visando a dar o input necessário para a produção final do texto. Por exemplo, no caso da redação de um conto, as atividades foram relacio- nadas à reconstituição dos contos conhecidos dos alunos e de seus elementos mais característicos. No caso da redação da carta de reivindicação e do ma- nifesto ecológico, os alunos assistiram a vídeos on-line abordando questões ecológicas que permitiram melhor conhecer o tema e a situação de ação de linguagem. 6. Produção do texto final, em grupos de dois ou três alunos. 7. Indicação dos erros pelo professor e pela assistente, através de uma legenda disponível para os alunos na plataforma blackboard,9 levando em conta erros relacionados ao gênero e erros relacionados à língua. Nota provisória, até a segunda correção, baseada em critérios de correção descritos mais à frente. 8. Refacção do texto, pelos alunos. 9. Correção pelo professor e pela assistente, com modificação na nota em função das correções. Além das etapas acima descritas, os erros mais frequentes eram anota- dos e, ao término da escrita de um gênero de texto, uma série de 10 a 12 erros 8 Para uma apresentação da sequência didática típica para trabalho com gêneros, ver Schneuwly e Dolz, 2004. 9 Cada curso e cada classe dispõem de um espaço na plataforma blackboard onde estão disponíveis os documentos importantes para o curso. Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 169 mais frequentes era impressa e distribuída aos grupos para correção em sala de aula. Durante essa atividade, os alunos eram levados a refletir sobre o erro, deviam propor sua correção e a explicação da regra subjacente. Resultados da análise das produções Antes de passarmos para a discussão sobre os resultados obtidos, pa- rece-nos importante salientar que, a cada produção escrita final realizada, os resultados obtidos foram analisados, segundo os critérios abaixo:  Adequação ao gênero  Escolha dos conteúdos temáticos  Coesão e coerência  Aspectos sintáticos  Aspectos lexicais Embora a adequação ao gênero apareça formalmente apenas no pri- meiro item, todos os outros itens também foram analisados em relação à ade- quação ao gênero. Em função dos critérios acima, podemos dizer que os textos mais bem escritos e mais adequados ao gênero foram: a biografia, o guia turístico, o conto e o texto publicitário. A carta do leitor, a carta de reivindicação, o cartão postal e o manifesto ecológico podem ser considerados como mais ou menos adequados ao gênero. Em relação ao artigo de opinião, podemos dizer que a adequação ao gênero variou muito de aluno para aluno, assim como o mani- festo ecológico. No caso do artigo de opinião, o maior problema encontrado foi relacionado à questão dos tipos de discurso usados, mais especificamente ao eixo da implicação / autonomia dos parâmetros da interação. Na verdade, nesse gênero textual, não é comum a implicação dos parâmetros da intera- ção ao texto, como fizeram muitos alunos. Em outras palavras, foi usada a primeira pessoa do singular para mostrar a opinião própria, sem levar em conta que se tratava de um artigo de opinião para uma revista ou jornal em que o jornalista não expressa sua opinião em primeira pessoa. Já a sinopse e a resenha crítica de filme ficaram bem aquém do que era esperado dos alunos. Os maiores problemas desses dois gêneros textuais foram: em alguns casos, a menção à situação em que foram ao cinema para assistir ao filme, ou seja, Eliane Gouvêa LOUSADA 170 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 novamente a implicação dos parâmetros da interação no texto, o que não é uma característica do gênero; a enorme interferência do inglês na maneira de formular os enunciados. Na verdade, foi o gênero de texto em que a língua materna mais interferiu. Para tentar entender a diferença nos resultados das produções textuais, procuramos rever o processo de escrita de cada um dos gêneros e pudemos observar o seguinte:  Os quatro gêneros de textos mais bem escritos foram os gêneros mais bem trabalhados em termos de análise do modelo de gênero. Em out- ras palavras, trata-se dos gêneros que foram desenvolvidos durante mais aulas, com muitos recursos audiovisuais e com os quais os alu- nos mais se envolveram.  Os quatro gêneros que tiveram resultado médio quanto ao nível das produções dos alunos foram gêneros razoavelmente bem trabalhados em sala de aula, em termos de análise do modelo de gênero.  Em relação aos dois gêneros que apresentaram mais disparidades no nível das produções dos alunos, pudemos observar que o artigo de opinião foi razoavelmente bem compreendido pelos alunos que vieram frequente- mente às aulas. Porém, como não havia um único modelo do gênero e, já que vários artigos foram trabalhados na fase final do curso, talvez tenha faltado um modelo mais canônico para muitos alunos, que acabaram ten- do dificuldades em visualizar o que era pedido com o artigo de opinião. Em relação ao manifesto ecológico, tratou-se do último texto escrito em aula. Sendo assim, embora todo o contexto sobre ecologia tenha sido bem explorado, não houve tanto tempo para analisar manifestos ecológicos e os alunos também já estavam um pouco cansados.  Em relação à sinopse e à resenha crítica de filme, os textos em que os alunos tiveram mais dificuldade de produzir um texto adequado ao gênero, pudemos constatar, em primeiro lugar, a falta de tempo (por problemas alheios ao cronograma) para melhor analisar várias sinop- ses e resenhas críticas de filme. Além disso, este pareceu ser um gêne- ro que os alunos dominavam bastante bem em inglês. Dessa forma, talvez pelo fato de conhecerem bem o gênero em inglês e de não terem tido tempo para analisar melhor o gênero em francês, as produções tenham tido tantas características das formulações em inglês. Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 171  Além disso, no que diz respeito aos erros mais frequentes trabalhados com os alunos, podemos dizer que alguns deles foram corrigidos pe- los alunos em suas produções finais, porém muitos deles foram esque- cidos, talvez pela grande quantidade de erros frequentes ressaltados. A partir das observações acima, propomos, em seguida, uma reflexão sobre os resultados obtidos e sobre as mudanças necessárias para o próximo semestre do curso, visando a obter melhores resultados. Considerações finais Em primeiro lugar, é importante mencionar que a atitude dos alunos em relação ao curso foi muito boa. Em geral, os alunos interessaram-se bas- tante pelo curso e fizeram muitos elogios ao tipo de curso e de atividades. Por esta razão e pelos resultados das produções, em sua maioria satisfatórios, podemos dizer que o curso teve sucesso de modo geral. Sendo assim, devem ser mantidos, em nossa opinião: o trabalho baseado em gêneros textuais, al- guns dos gêneros textuais escolhidos, o trabalho sobre os erros frequentes e as correções dos alunos, a reescrita do texto, o recurso a outras atividades, recur- sos audiovisuais, entre outros, visando a dar mais dinamismo ao curso. Esse último item contribuiu também para criar um ambiente de imersão no tema a ser tratado, e mesmo no gênero textual a ser escrito, que motivou bastante os alunos para a escrita e, talvez por isso, resultou em produções melhores. No entanto, a partir das observações apresentadas anteriormente, parece-nos importante salientar também a necessidade de efetuar algu- mas mudanças para assegurar um melhor nível de produções e um me- lhor aproveitamento do semestre em geral. Em primeiro lugar, parece-nos importante elaborar um programa de curso em que haja tempo suficiente para o trabalho com os diferentes gêneros, ainda que menos gêneros se- jam abordados. Nesse sentido, seria necessário mais tempo para analisar o texto usado como modelo do gênero a ser trabalhado, para que os alunos possam aprender as características do gênero e também suas realizações linguísticas em francês. Segundo os resultados obtidos, a análise minucio- sa do modelo de gênero a ser produzido parece-nos ser de vital importân- cia para a verdadeira aprendizagem, sobretudo por se tratar de uma língua outra que a língua materna. Um dos pontos a ressaltar nesse nível é a Eliane Gouvêa LOUSADA 172 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 importância de trabalhar melhor os tipos de discurso, a criação de mundos discursivos, sobretudo a implicação e autonomia em relação à situação de ação de linguagem (interação), já que a autonomia não foi respeitada nas sinopses, resenhas críticas e artigos de opinião. Além disso, seria neces- sário mais tempo para as correções linguísticas e para a refacção do texto, sem o que a aprendizagem, tanto do gênero textual, quanto dos aspectos linguísticos, não atinge o nível que poderia atingir. De qualquer forma, a escolha de um programa baseado em gêneros textuais visando à aprendizagem da produção escrita em uma segunda língua parece ter sido uma proposta bastante interessante e adequada para esse pú- blico de produção escrita de francês em nível universitário. LOUSADA, Eliane Gouvêa. Written production in french as a second language at the univer- Written production in french as a second language at the univer- sity: an experience based on textual genres. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009. ABSTRACT: This paper aims at presenting an experience of written production based on genres of texts with students of French as a second language at the University of Guelph, Canada. This experiment was carried on in a French course for 3rd year students whose mother tongue is English. The curricula chosen, as well as its application in class, were based on the theoretical framework of the Sociodiscursive Interactionism as presented by Bronckart (2006, 2007, 2008) and on the works of many authors who use genres of texts to teach languages (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; CRISTÓVÃO, 2002). The results were quite interesting, but show the need of some changes in order to increase the learning of the target language. KEYWORDS: Genres of texts. Textual architecture. Language capacities. Referências ABREU-TARDELLI, L. A. Elaboração de sequências didáticas: ensino aprendizagem de gêneros em língua inglesa. In: DAMIANOVIC, M. C. Material Didático: Elaboração e Avaliação. Taubaté: Cabral, 2006. p. 73-85. ADAM, J.-M. L’analyse des récits. Lonrai: Les Éditions du Seuil, 1996. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1953]. Produção escrita em francês como segunda língua: uma experiência baseada em gêneros textuais Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 160-174, 2009 173 BRONCKART, J-P. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de letras, 2006. ______. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. 2. ed. São Paulo: Educ, 2007. ______. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Campinas: Mercado de Letras, 2008. CRISTÓVÃO, V. L. O gênero quarta capa no ensino do inglês. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. 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Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 175 O DESAFIO DE ENSINAR INGLÊS: EXPERIÊNCIAS DE CONFLITOS, FRUSTRAÇÕES E INDISCIPLINA Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER1 Laura Stella MICCOLI2 RESUMO: Este artigo relata resultados de uma pesquisa desenvolvida com três professoras de inglês que atuam em escola pública, particular e cursos livres. Com base nos dados ob- tidos, foi possível identificar algumas experiências de conflito vivenciadas: despreparo para ensinar a língua estrangeira, indisciplina dos estudantes, agressão ao profissional e frustração por não conseguir ensinar de forma efetiva. Além disso, as docentes descrevem a importância que a teoria do ensino de línguas desempenha na busca de solução para os obstáculos que surgem na prática. Os resultados indicam uma necessidade de maiores estudos que visem a compreender as experiências vivenciadas por professores e o modo como superam os de- safios, para que possamos conhecer melhor a realidade do ensino de língua estrangeira em diferentes contextos. PALAVRAS-CHAVE: Experiências. Indisciplina. Língua inglesa. Introdução A busca de aprimoramento profissional, de aquisição de conhecimentos para, em última instância, contribuir para a melhoria da qualidade da educação levou a primeira autora a realizar uma pesquisa na qual investigou as crenças de professores e estudantes de língua inglesa em escolas públicas. Um resultado inesperado desse trabalho foi o papel que a indisciplina cumpre no processo de ensino e aprendizagem de inglês. Apresentada por professores como uma justi- ficativa para suas opções didáticas e por estudantes, como uma explicação para 1 Programa de Pós-graduação da Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. cidazolnier@yahoo.com.br 2 Departamento de Linguística Aplicada (POSLIN) da Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. miccoli.laurastella@gmail.com Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 176 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 seus diferentes comportamentos em sala da aula, a indisciplina representa um problema merecedor de uma atenção especial, principalmente quando há ado- lescentes em sala de aula. No caso do ensino e aprendizagem de língua inglesa, a indisciplina foi identificada como uma subcategoria dentre as categorias de experiência comuns à sala de aula (MICCOLI, 1997 e 2007a) e, tal como na pesquisa de Zolnier (2007), é um problema que afeta professores e estudantes em outros contextos, além da escola pública. Por ser uma experiência que aflige indistintamente professores (MICCOLI, 2007a) e por serem essas experiências uma das bases para a existência de suas crenças (BARCELOS; BATISTA; ANDRADE, 2004; CONCEIÇÃO, 2005; ZOLNIER, 2007), nos propusemos a investigar (1) os piores conflitos viven- ciados por um grupo de professoras, esperando obter a referência à indisci- plina dos adolescentes como problema e a (2) identificar quais são as crenças que emergem, a partir dessa experiência problemática. Neste artigo, a vivência da indisciplina (ZOLNIER, 2007) se encontra com o construto experiência (MICCOLI, 2007a) para ampliar a discussão sobre indisciplina em sala de aula, como um dos múltiplos conflitos viven- ciados por professores de inglês. Buscamos melhor compreender seu impacto e encontrar respostas viáveis para a superação desse problema. Finalmente, queremos compartilhar a compreensão que desenvolvemos sobre o assunto, tendo como propósito estreitar a relação entre teoria e prática. O Problema Embora a pesquisa produzida pela Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas Estrangeiras (LAELE), ao longo dos últimos 40 anos, tenha contribuído para a ampliação do conhecimento e de uma melhor compreensão do processo de aquisição de uma segunda língua, nem sempre suas implicações, pelo menos aquelas diretamente aplicáveis à prática, chegam às escolas. O problema pode estar na restrição do acesso às pesquisas, cujos resultados não chegam aos pro- fessores, nas poucas oportunidades de atualização ou nos próprios professores, mantenedores de uma perspectiva negativa a respeito da pesquisa como desvin- culada ou distante da realidade enfrentada por eles em salas de aula. Dessa forma, se tomarmos por base a literatura sobre o ensino e aprendizagem de língua em salas de aula, observamos que ainda predominam práticas de ensino que, embora superadas, mantêm-se inalteradas, na qual a referência à indisciplina é recorrente. O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 177 Partindo do conceito de experiência apresentado por Miccoli (2007a), este trabalho investiga as experiências de conflito relatadas por três professo- ras de inglês. Pressupomos que a observação da própria prática, como objeto de investigação científica para a construção de teorias, oferece aos profes- sores a oportunidade de perceber que a dicotomia “teoria x prática” pode e deve ser superada, conforme propõe Leffa (2003). Além disso, acreditamos que algumas das frustrações e dos conflitos vivenciados por professores do ensino regular tenham origem no descompasso entre a prática de ensino ain- da vigente, com ênfase em cópias e exercícios gramaticais, e as expectativas dos aprendizes, sintetizadas no desejo de aprender a falar inglês (ZOLNIER, 2007). Por isso, é preciso acreditar que (1) os obstáculos podem ser supera- dos, (2) as necessidades podem ser supridas e (3) a aprendizagem de uma língua estrangeira com eficiência na escola regular é uma possibilidade real. Acreditamos ser competência da LAELE o tratamento das experiências de conflito vividas por professores e estudantes, assumindo com eles as dificul- dades encontradas, enfrentando-as como uma base recorrente de desafios, sobre a qual pesquisadores e professores devem se debruçar para encontrar soluções viáveis, de acordo com o contexto de ensino. Portanto, o presente trabalho bus- ca documentar e compreender as experiências de conflito de professoras que trabalham em diferentes contextos de ensino, bem como avaliar se essas expe- riências corroboram ou extrapolam a categorização existente de experiências de professores de língua inglesa (MICCOLI, 2007a). Primeiramente, nos referi- mos à fundamentação teórica que delimita este estudo. A seguir, apresentamos a metodologia adotada, abrangendo o perfil das professoras entrevistadas, os con- textos nos quais lecionam, os instrumentos e os procedimentos para a coleta de dados. Posteriormente, apresentamos os resultados, discutindo os problemas, as piores experiências relatadas e a importância atribuída por essas professoras às teorias sobre o ensino e a aprendizagem de línguas. Fundamentação Teórica Miccoli (2007a) fez uma revisão de vários trabalhos que se referiam a experiências nas aulas de inglês e constatou que o foco principal dessas investigações recai sobre os estudantes ou os professores em pré-serviço. Se- gundo a autora, a pouca ênfase das pesquisas no trabalho do professor em serviço compromete o entendimento dos processos que ocorrem nas salas Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 178 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 de aula de línguas, uma vez que este se constitui como um espaço coletivo, onde diferentes experiências, inclusive aquelas problemáticas, acontecem. Miccoli (2007b) adverte que o ensino e a aprendizagem de língua estrangeira no Brasil são marcados por uma série de obstáculos. Por isso, a pesquisa de- senvolvida nesse contexto representa um importante ponto de partida para o desenvolvimento de ações efetivas e superação dos desafios. Além disso, Miccoli (2006, p.142) acrescenta que os professores da rede particular de ensino se defrontam com problemas similares aos enfren- tados por profissionais de instituições públicas. Suas pesquisas têm revelado que, além da indisciplina e da dificuldade encontrada para desenvolver as quatro habilidades, outros desafios compartilhados são: “salas com muitos alunos, carga horária reduzida em relação às outras disciplinas, heteroge- neidade e problemas com o currículo”. Os resultados da autora corroboram outros estudos, principalmente no contexto da escola pública, como os de- senvolvidos por Oliveira (2004), Basso (2006), Dutra e Oliveira (2006) e Almeida Filho (2002). De acordo com Miccoli (2006, p.153), há uma “necessidade de tratar as questões que afligem os professores de língua estrangeira na sua prática, a partir de suas experiências”. A autora (2007a) afirma que ainda são incipien- tes os estudos sobre as experiências desses professores, o que revela certa negligência com o que acontece em sala de aula, como base para diminuir a distância que separa teoria e prática. Além desse distanciamento típico da academia, há ainda uma resistência por parte dos professores, com relação aos conhecimentos teóricos, por acreditarem que são produzidos por pesqui- sadores que desconhecem, ou conhecem apenas superficialmente, a realidade vivida pelos profissionais do ensino de línguas. Segundo Miccoli (2007b, p. 269), a pesquisa ainda incipiente sobre ex- periências conflituosas, no ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira, representa uma lacuna que merece ser preenchida. Por isso, a autora defende a necessidade de uma agenda de investigação que tenha as seguintes metas: a) documentar as experiências, pois “embora muito seja afirmado, poucos dados documentais sustentam a maioria das afirmações”, b) interpretar os resulta- dos, a partir da teoria; c) preparar professores e estudantes para lidar com as situações problemáticas e, finalmente, d) tornar possível uma interação mais estreita entre a escola e o pesquisador, de forma que as pesquisas possam ofe- recer oportunidades de superação. O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 179 A indisciplina é um assunto comumente tratado por profissionais da área de educação. Há vários trabalhos que buscam elucidar questões afins aos conflitos vivenciados por professores com referência explícita à indiscipli- na (AQUINO, 1998; GUIMARÃES, 1996; PARO, 2000). Com relação aos problemas enfrentados, especificamente por professores de inglês, além de Miccoli (2005, 2006 e 2007a), podemos citar Basso (2006), Coelho (2006), Dutra e Oliveira (2006) e Zolnier (2007). Coelho (2006, p. 137) investigou as crenças de quatro docentes de escolas públicas do interior de Minas Gerais, evidenciando estudantes desmo- tivados e professores frustrados. O desinteresse dos alunos foi diagnosticado como consequência de um ensino pouco desafiador e fácil ao qual “os alunos reagem negativamente, causando conflitos em sala de aula, como por exem- plo, a indisciplina e a indiferença apontadas por todos os professores”. Por outro lado, a frustração do professor surge como resultado do “conflito entre os que eles querem ensinar e o que realmente fazem na prática”. O conflito em sala de aula também se manifesta pela dificuldade de desenvolver um trabalho coerente com aquilo em que se acredita, confor- me apontado por Dutra e Oliveira (2006, p. 181). O trabalho das autoras, desenvolvido com professores de inglês de escolas públicas, revelou que “o contexto da escola regular é o que mais gera tensões, devido a fatores como turmas grandes, alunos desinteressados e choque entre o desejo do professor e a expectativa do aluno” As autoras observam uma estreita ligação entre a desmotivação e a indisciplina: “A desmotivação de alguns alunos gera uma indisciplina que atrapalha o desenvolvimento do grupo” e o professor “passa a não desenvolver atividades comunicativas para não perder o controle da disciplina” (p. 185). Conflitos similares entre as ações do professor e as expectativas dos estudantes foram igualmente identificados por Zolnier (2007). A partir de da- dos coletados em salas de aula de estudantes da 5ª série (atual 6o. ano do Ensino Fundamental) pertencentes a uma escola pública, a autora discute o problema da indisciplina. Os estudantes começam os estudos de língua in- glesa de maneira interessada e participativa, devido a uma compreensão do papel da língua inglesa na sociedade em que vivem. Nesse primeiro momen- to, o professor privilegia o lúdico como uma forma de desenvolver o prazer pela aprendizagem. Entretanto, à medida que os jovens avançam às séries posteriores, mostram-se mais agitados, o que leva a professora a optar pelo Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 180 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 desenvolvimento de atividades de leitura, como uma maneira de controlar a disciplina em sala de aula. Esse caminho encontrado pela professora não atende às expectativas dos estudantes, que desejam desenvolver a habilidade oral, uma vez que acre- ditam que estudam inglês para aprender a falar. A autora defende a importân- cia de o professor buscar formas alternativas de lidar com a indisciplina, sem deixar de satisfazer as expectativas dos aprendizes. Para que esse problema possa ser contornado, Zolnier (2007) sugere algumas estratégias: a) conhecer melhor os estudantes e a fase de seu desenvolvimento (adolescência) de for- ma a conquistar a sua confiança e os incentivar a investir em uma aprendiza- gem eficiente; b) oferecer um ensino motivador e direcionado às expectativas dos alunos; c) elaborar normas de comportamento em conjunto com toda a comunidade escolar. Uma complexa rede de relações conflituosas explica os resultados supracitados, entre as quais encontramos a indisciplina – uma experiência comum que afeta tanto professores quanto estudantes. Por isso, observamos haver a necessidade de maior investimento em pesquisas que tratem desse problema, principalmente no que se refere ao contexto de língua estrangeira. Metodologia Para Miccoli (2007b, p. 270), a narração de uma experiência pode transformar a compreensão do que foi vivido. Para ela, “a experiência é um recorte da existência, pois ela se constitui naquilo que consideramos como elementos que nos perturbam, desencadeando mudanças estruturais”. Assim, ao relatar uma experiência, o narrador não só identifica os aspectos significa- tivos daquilo que vivenciou, como também tem a oportunidade de compreen- der o seu sentido mais profundo e, eventualmente, ter acesso à possibilidade de sua transformação. Por esses motivos, os dados para o desenvolvimento dessa investigação se apoiam nas experiências relatadas pelas professoras que colaboraram conosco, revelando os eventos mais conflituosos por elas viven- ciados. O presente estudo é caracterizado como um estudo de caso, que teve por objetivo compreender as experiências de conflito vivenciadas por profes- sores de inglês em diferentes salas de aulas. O caso ou a unidade de análi- se em questão (JOHNSON, 1992) é a experiência relatada pelo participante, O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 181 conforme Miccoli (1997). A partir dessa metodologia, o levantamento de da- dos foi realizado com o objetivo de responder a quatro perguntas: 1. Quais as piores experiências vivenciadas por professores de inglês em diferentes contextos? 2. Como esses conflitos afetam os professores? 3. Que papel a teoria de ensino desempenha diante desses obs- táculos? 4. O que os professores fazem para superar as dificuldades? Para obter as respostas almejadas, buscamos a colaboração de profes- sores que atendessem a apenas um critério: mais de 10 anos de experiência com o ensino de língua inglesa em diferentes contextos, a saber: na escola pública, na escola particular ou em curso livre. A justificativa para esse cri- tério reside na expectativa de uma capacidade de ação mais segura atribuída ao professor mais experiente. Inicialmente, foi realizado um convite informal a um grupo de professores conhecidos da primeira autora. Dentre os pro- fissionais convidados, três professoras que trabalham em cidades da Zona da Mata de Minas Gerais, voluntariamente, concordaram com a proposta da pesquisa. O procedimento adotado para a coleta dos depoimentos foi agendar entrevistas individuais de acordo com a disponibilidade das participantes e da pesquisadora. Estas aconteceram em 9, 16 e 17 de outubro de 2007. As entrevistas, que seguiram o roteiro das perguntas de pesquisa, foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas à luz do marco teórico que delimita este estudo. Participantes As professoras que aceitaram participar desse trabalho têm idade entre 40 e 50 anos e trabalham em pequenas cidades do interior de Minas Gerais. Para preservar a identidade das informantes, foram escolhidos pseudônimos, a saber: Luiza, Marina e Clara. Luiza é professora de português e inglês do ensino médio em uma escola pública. Possui também experiência de ensino em escola particular (português) e participa de um projeto de educação continuada há quatro anos. Ela revela insegurança para conversar em inglês, mas é uma profissional de- Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 182 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 dicada, investe em seu aprimoramento profissional e se dispõe a correr riscos, ou seja, se esforça para se comunicar com outros interlocutores mais profi- cientes. Marina leciona inglês para três turmas de terceiro ano do ensino mé- dio em uma escola particular, sendo que uma dessas turmas é uma seleção dos melhores estudantes da instituição. Coincidentemente, são os que se mostram mais interessados nas aulas. Eles pagam uma mensalidade mais cara, mas frequentam um número maior de aulas, buscando estar bem preparados para o vestibular. Além da escola particular, ela leciona em um curso livre. Sua ex- periência inclui também uma atuação de dois anos como professora substituta no departamento de Letras de uma universidade federal da região. Clara é professora e coordenadora de um curso livre de inglês. Pos- suía um cargo efetivo no ensino fundamental em uma escola pública, mas pediu exoneração devido aos inúmeros problemas enfrentados com a indisci- plina dos alunos. Assim como Marina, Clara é falante fluente de inglês. Análise dos Dados Após a transcrição das entrevistas, os dados foram analisados em três etapas. Primeiramente, examinamos cada entrevista isoladamente, buscando compreender o posicionamento de cada professor sobre cada uma das per- guntas. A seguir, comparamos as respostas de cada uma das delas, procu- rando identificar similaridades ou diferenças. Ao mesmo tempo, agrupamos as respostas dentro das categorias e subcategorias de experiências, segundo Miccoli (2007c). Posteriormente, selecionamos os dados mais significativos em relação às perguntas de pesquisa e às particularidades do contexto de en- sino. Terminada a análise, procedemos à interpretação dos resultados, tendo, como suporte, a revisão de literatura e procurando responder às perguntas de pesquisa. Discussão dos dados Segundo Miccoli (2007c, p. 28), as experiências podem ser classifica- das em cognitivas, sociais e afetivas. As cognitivas se referem aos processos mentais que dizem respeito à aprendizagem da língua. As sociais envolvem a relação social dentro da sala de aula entre estudantes e entre o(s) estudante(s) O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 183 e o professor. As afetivas referem-se ao papel das emoções e sentimentos suscitados no processo de aprendizagem. No que concerne a essa pesquisa, dentre as várias experiências relatadas, selecionamos as sociais e afetivas que se referem a eventos de conflitos e frustrações vivenciados durante as aulas de inglês. A discussão dos dados está organizada da seguinte maneira: a) tipos de conflitos vivenciados; b) piores experiências; c) reações diante dos obstácu- los; d) interface teoria/prática frente aos conflitos; e) estratégias de superação ou convivência com os conflitos. Tipos de conflitos vivenciados Luiza se classifica como uma professora que gosta de lecionar, mas sente-se frustrada por não falar de forma fluente. Ela gostaria de poder estu- dar em outro país, como os Estados Unidos porque acredita que assim teria mais segurança no desenvolvimento de seu trabalho e poderia exigir mais do aluno. Apesar de afirmar que é possível aprender bem a língua inglesa aqui no Brasil, ela relata que é preciso morar no exterior para adquirir segurança e aprimoramento. Para a docente, essa insegurança é a causa de suas maiores dificuldades: Luiza: Eu me sinto um pouco frustrada. Eu acho que sei pouco inglês e esse problema é pior que a indisciplina. Para eu dar uma aula de por- tuguês, rapidinho eu preparo uma aula. Aula de inglês para mim... eu tenho mais dificuldades porque eu tenho medo de chegar lá e perder a ponta da corda. Se os alunos virem que eu dei mancada, acabou. Eles perderão a confiança em mim. Então, no ensino médio, quando eu chego a dar uma coisa, aquilo já foi visto umas mil vezes. Por outro lado, nas aulas de português, tenho muito mais segurança porque vivo no país que fala aquela língua. Eu tenho muito mais materiais. O professor de português tem muito mais atenção que o professor de inglês. Geralmente tem mais cursos de reciclagem, tem muito mais materiais. Os problemas relatados por Luiza coincidem com os que são apre- sentados por Miccoli (2007b), Almeida Filho (2002) e Conceição (2006) no que se refere à escassez de materiais e despreparo do professor de língua Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 184 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 estrangeira. Luiza se sente mais segura para trabalhar com português por ter um maior conhecimento da língua materna e por ter o suporte de um maior número de materiais didáticos. Sua maior dificuldade, a insegurança, pode ter como origem o despreparo para ensinar inglês, conforme discutido por Du- tra e Mello (2004). Além disso, a crença de que um bom professor de inglês precisa residir no país da língua-alvo, como destacado por Barcelos (1995), parece ser um obstáculo à própria aprendizagem. Outro aspecto que merece destaque é quando afirma: “no ensino médio, quando eu chego a dar uma coisa, aquilo já foi visto umas mil vezes”. Talvez o fato de um conteúdo já ter sido estudado várias vezes, faz com que os alunos se desinteressem pelas aulas. Nesse caso, talvez fosse útil, a professora fazer um levantamento daquilo que os alunos já sabem e trabalhar a partir do que já foi aprendido. Com relação à indisciplina, ela acredita que os alunos se comportam de modo similar nas aulas de inglês e português, apesar de se interessarem mais pelo último. No que se refere às dificuldades comportamentais, enfatiza: Luiza: O pior é o aluno que enfrenta e desrespeita o professor. O apático, a gente conversa, procura saber o que está acontecendo, a gente ainda vê um jeito de controlar a situação. Agora o aluno que não tem ética alguma é mais difícil conviver com ele. Ele perturba mais. Lá tem um menino que fala assim: eu sirvo ao capeta. Eu estou aqui para servir ao capeta. Aí ele cospe nas meninas, bate nos meninos... Segundo a professora, um comportamento de desrespeito ao professor e aos colegas é uma questão de falta de ética, uma vez que prejudica o trabalho de todos e não permite que interações significativas sejam desenvolvidas entre os que desejam aprender. Em síntese, Luiza vivencia experiências conflituosas de natureza afetiva e social. Sua frustração se deve ao sentimento de inseguran- ça para a atuação como professora de inglês. Ao mesmo tempo, considera que parte de seu despreparo deve-se ao descaso das autoridades responsáveis por não oferecerem aos professores a oportunidade de uma constante atualização. Essa experiência externa à sala de aula se reflete na desvalorização da discipli- na na escola e pelos estudantes. Finalmente, a experiência da indisciplina é de natureza social, desafiando-a mais para sua superação do que o manejo daquele estudante desmotivado. A desvalorização da língua estrangeira, sentida por Lu- íza, é compartilhada por Marina, na escola particular: O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 185 Marina: Não tem aula de reforço. Outras matérias até têm, mas inglês não. Então, tem muito preconceito por parte da escola. A escola privile- gia outras matérias e não privilegia aulas de reforço de inglês. Se o aluno não acompanha, ele tem que arrumar aula particular ou recor- rer ao colega. O baixo status das aulas de inglês, a que as duas docentes se referem, é recorrente nos estudos de Basso (2006) e Dutra e Oliveira (2006). Para Ma- rina, as maiores dificuldades na escola particular são as conversas paralelas entre os estudantes. Apesar disso, a participante dessa pesquisa não considera os conflitos de indisciplina como problemas sérios. Durante os cinco anos de atuação profissional na instituição em que trabalha, raramente se viu obrigada a comunicar uma ocorrência de indisciplina aos superiores: Marina: Até hoje, foram umas três ocasiões que eu tive que escrever no livro de relatórios. A maioria das vezes eu tento resolver em sala. A in- disciplina vem da falta de interesse. O problema da indisciplina é o desinteresse, não é agressão verbal. Segundo a professora, o desinteresse dos alunos se refere a uma políti- ca anterior da escola que facultava a presença deles nas aulas de inglês, desde que apresentassem comprovantes de matrícula em cursos livres. Como essa política mudou, no ano em que realizamos a pesquisa, os alunos não enten- dem o porquê de estudarem inglês na escola: Marina: Até no ano passado, isentavam das aulas os alunos que faziam in- glês fora. Este ano, eles vieram com este espírito: o que eu estou fazendo aqui? Desde o início do ano, eu mostrei pra eles a importân- cia de frequentar as aulas porque eles estão sendo preparados para o vestibular. A gente trabalha com textos, com o inglês instrumental. Na turma mais avançada os alunos são mais interessados. No ensino médio regular, ficaram poucos bons. A maioria, cerca de 80%, é bem interessada. Como são provenientes de escolas do interior, reclamam que, no ensino público, o inglês não é muito explorado. Acaba sendo mais deficiente. Então, eles têm muita dificuldade em acompanhar e se desinteressam. A indisciplina vem da falta de interesse. Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 186 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 O que se pode observar, no depoimento de Marina, é que trabalhar com turmas heterogêneas constitui-se em um grande desafio para o desen- volvimento de ações eficazes, pois o desinteresse gera a indisciplina. Esse comportamento tem como origem, por um lado, o fato de os melhores apren- dizes considerarem que não precisam das aulas e, por outro lado, os estudan- tes oriundos do ensino público apresentarem dificuldades para acompanhar o programa. No estudo desenvolvido por Coelho (2006), constatamos que os estudantes se desinteressam pelas aulas, por considerá-las fáceis. No caso de Marina, tanto a dificuldade quanto o conteúdo fácil levam à desmotivação. Dessa forma, os dados confirmam que a indisciplina tem origem em uma ex- periência de natureza pedagógica – a dificuldade em atender às necessidades específicas dos estudantes – sejam eles bem preparados ou não. Diferentemente das participantes anteriores, Clara, professora que abandonou a escola pública pelas dificuldades enfrentadas com a indisciplina, reconta algumas experiências alarmantes de convivência com os estudantes. A docente define a indisciplina como: “é tudo que foge ao padrão estipulado pelas pessoas, pela sociedade, pela nossa cultura, pela educação que a gente recebeu de berço. Muitos jovens hoje não possuem limites”. Segundo Clara, a disciplina pressupõe um respeito aos limites impostos pela sociedade. Essa noção de limite, como algo essencial para a convivência humana, condiz com os pressupostos defendidos por Cardoso (2002) e Tiba (1985). Clara descreve com preocupação a complexidade do contexto no qual lecionava: Clara: A gente tinha problemas com drogas, roubos de computadores da escola, os carros dos professores eram arranhados. Outro dia fiquei sabendo que colocaram o pé para uma professora tropeçar. Ela se machucou, teve que ir para o hospital e depois abandonou a escola. Eu via agressão física, mas o pior era a conversa, a agitação. Tinha muitas conversas paralelas, falta de interesse, alunos apáticos. Você começa a falar do quanto o estudo é importante e, para eles, tanto faz... Uma está passando esmalte, outra está passando batom, um está ouvindo música, outro está mexendo no celular... Era uma in- disciplina muito grande... Na escola pública, Clara afirma ter tido sérios problemas de descaso com o patrimônio público, e os bens alheios. Além disso, a violência e o O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 187 desinteresse pelos estudos eram constantes. Por mais que tentasse motivar e despertar os estudantes para a importância da língua inglesa, ela considerava não atingir resultados satisfatórios. Problemas como a agressão ao profissio- nal, o roubo e a ameaça de dano ao patrimônio do professor fazem parte do cotidiano e são encontrados na literatura sobre a escola (PARO, 2000). Por outro lado, no curso livre, ela afirma não ter dificuldades com questões de indisciplina e considera que o trabalho com o aluno apático é mais complexo: Clara: Os dois são ruins, mas eu prefiro o que bagunça porque tenho como segurá-lo: castigando, conversando, ligando para os pais... Já o alu- no apático, aquele que não tem motivação, eu acho muito difícil. Eu tenho um aluno aqui no curso que até hoje nunca olhou na minha cara. Com esse eu não consegui nada. Agora, o outro, levadíssimo, dei advertência, chamei os pais... Com esse eu estou conseguindo. Com o outro, não. Os meios de que dispõe para lidar com o aluno indisciplinado no curso livre condiz com o que Marina defende – a importância dos limites na educa- ção, principalmente porque nesse contexto ela pode cobrar dos pais e contar com seu apoio. Marina: A gente liga para os pais quando os alunos faltam ou quando tem problema de indisciplina. Os próprios pais aqui no cursinho pro- curam a gente. Quando o filho tem problema sério, eles vêm pra falar com a gente. O contato é bem maior que na escola. Apesar de Clara afirmar que prefere lidar com o aluno indisciplinado, é importante ressaltar que ela abandonou seu cargo na escola pública, devido a problemas de indisciplina. Nesse contexto, a docente atribuiu sua dificulda- de em desenvolver um trabalho eficiente ao grande número de alunos e à falta de interesse. Esse resultado corrobora os apresentados por Miccoli (2006). Além disso, Clara observa, entre os aprendizes, uma ausência de objetivos relacionados ao estudo da língua estrangeira: Clara: Lá eu acho muito difícil por causa do grande número de alunos. Na nossa área, eu acho que eles não têm interesse. Eles não veem a ne- Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 188 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 cessidade de estudo de inglês. Muitos desses alunos extremamente indisciplinados não vão até o fim do curso. Por qualquer motivo eles desistem. Eles acham que não vale a pena estudar. Uns vão trabal- har, outros vão para a marginalidade. Entre esses muito difíceis, a maioria para de estudar. Muitos a escola nem precisa expulsar. Eles se excluem por conta própria. Guimarães (1996) e Paro (2000) classificam a escola pública como sendo essencialmente excludente, ou seja, há uma grande dificuldade para tratar o diferente, principalmente aquele que não se enquadra aos padrões de comportamento da instituição. Paro (2000) apresenta evidências que revelam o quanto os estudantes são avaliados e classificados somente pelo comporta- mento que apresentam. O autor relata ainda a forma como os estudantes repe- tem o discurso de exclusão da escola e, por isso, muitos abandonam a escola antes que ela o expulse. O grande número de alunos como empecilho para o desenvolvi- mento de um processo de ensino e aprendizagem satisfatório, como de- fendido por Clara, não se sustenta porque é possível ser bem-sucedido em condições adversas. Esse é o caso vivenciado por Marina, que leciona numa sala com 56 alunos. Visto que ambas convergem na experiência da indisciplina como um problema, o número de estudantes por sala não pa- rece ser determinante, mas sim o desinteresse dos estudantes e o descaso institucional para com a disciplina, como afirmado pelas duas docentes. Piores experiências Quando foram convidadas a relatar as piores experiências vividas na escola, ao longo de suas carreiras, as professoras revelaram as seguintes: Luiza: Foi quando eu estava grávida e um menino me xingou de nomes terríveis. Eu não suportei aquilo. Então eu juntei as minhas coisas e vim embora para casa. Eu fui ao médico e tirei licença antes da hora. Quando eu voltei, este menino não estava lá. Parece que ele teve problemas com outro professor, tentou bater em outro professor, também bateu na mãe dele na rua... E você fica triste em saber que uma pessoa destas passou por sua vida e você não conseguiu fazer O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 189 nada por ela. E a gente fica triste porque hoje ele é presidiário, usa drogas, atira nos outros, bate na mãe. Inclusive ele está preso agora. Marina: Só tive uma agressão verbal, mas eu consegui contornar. Eu dei uma resposta na hora. Ele abaixou a cabeça. Depois eu conversei com ele. Muitas vezes, a conversa foge do controle. Os adolescentes conversam muito. É a parte mais difícil, geralmente depois de um feriado ou do último horário, quando eles estão cansados... O que me incomoda mais é a conversa, mas é uma característica própria dos jovens, a agitação... Clara: Numa prova, uma aluna falou que iria deixar um bilhete para mim. E esse bilhete era um desenho de um cemitério muito bem desenha- do e cada professor tinha o seu túmulo, com o nome da matéria e do professor. Eu tinha sido a última professora a entrar e eles gostavam um pouco de mim. Mas eu já tinha o meu túmulo lá. O que diferen- ciava o meu túmulo dos outros era que o meu tinha umas florzinhas. Então eu perguntei pra ela: “eu já estou aqui?” E ela: “está, mas você é um pouco mais boazinha”. O desenho tinha o formato da escola. Ela queria todos os professores mortos. Tinha alguns túmulos sem nome na lápide. Quando eu perguntei o porquê, ela disse que era para os professores que viriam. Outro caso que me marcou demais foi um menino que era muito difícil. Eu chamei a mãe. Era uma mãe muito simples, já mais velha. Chorando ela falou pra mim assim: “professora, liga para o 190 e mande prender meu filho. Eu prefiro ver o meu filho preso. Se ele souber que vim aqui, ele vai me espan- car em casa”. Eu chorei junto dessa mãe porque eu não sabia o que falar... Eu não tinha palavras... Meu coração doeu... Como se pode observar no depoimento das três professoras, as expe- riências de conflito vividas por elas são realmente muito mais complexas na escola pública. Ao se deparar com uma situação de agressão verbal, Luiza pre- feriu se ausentar da sala e buscar uma licença médica, o que era seu direito, uma vez que estava prestes a ter uma filha. No entanto, como não lidou diretamente com o problema, ficou aquele sentimento de não ter feito nada pelo estudante, que hoje é presidiário. As situações de agressão ao professor, às quais Luiza Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 190 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 se refere, são citadas por Paro (2000), embora o autor relate que os estudantes também são vítimas de violência física, por parte do professor. O mesmo sentimento de frustração foi mencionado por Clara, diante do desespero da mãe e da gravidade da situação. A única coisa que conseguiu fazer foi abraçá-la e ser solidária ao seu sofrimento. Com relação ao desenho da menina da 6ª série (atual 7o. ano do Ensino Fundamental), Clara o mostrou para a direção e a família foi convidada a comparecer na escola. Depois disso, os pais providenciaram um acompanhamento psicológico para a filha e a pro- fessora também dedicou a ela uma atenção especial, procurando sempre res- saltar suas qualidades e seus pontos positivos. Certo tempo depois, recebeu outro desenho da aluna, contendo rosas. De certa forma, a professora se sente recompensada por tê-la ajudado, ao detectar o problema e contribuir para que pudesse receber apoio médico e familiar. Resultados como esses também são apresentados por Paro (2000). Concluindo, parece que o diferencial para que uma experiência ruim não se constitua como um evento não superado está numa reação imediata e à altura do conflito enfrentado. Um pouco de compreensão é também importan- te, pois, como Marina nos lembra, os adolescentes têm uma agitação natural e sentem a necessidade de conversar. Essa consciência, além de fundamental, é corroborada por Tiba (1985), pois os jovens também fazem da escola um importante espaço de lazer e socialização (PARO, 2000; COSTA, 2002). Reações frente aos conflitos O pedido de uma reflexão sobre o modo como reagem frente aos con- flitos feito às professoras elicitou depoimentos reveladores: Luiza: Eu já tive aluno que no princípio do ano era péssimo, em matéria de disciplina, e quando chegou o final do ano, tinha mudado completa- mente. Ao longo do ano, eu conversei muito com ele, pedia, falava que aquele caminho não era bom, tentava animá-lo, tentava mostrar as qualidades dele, as coisas que ele podia fazer. Então ele conseguiu melhorar, mas não são todos que reagem a esse tipo de estímulo. Tem menino que em um ano é terrível e dá muito trabalho. No ano seguinte ele muda completamente. Acho que também amadurece. Alguns que são levados a vida toda. O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 191 Marina: Fica muito difícil pra mim, mandar os alunos pra fora de sala... Quando há indisciplina, eu peço para eles se retirarem para ir ao ban- heiro. Eu já combino assim, se não estão interessados na aula, eles saem, vão ao banheiro e ficam por lá. Pra evitar essa coisa de mal estar, de eu mandar o fulano sair de sala. Se eu mandar, eles ficam zanzando pela escola, são recolhidos, tem um livro de advertência, mas eu procuro segurar a onda. Isso é muito angustiante para mim e eu procuro ter postura na sala de aula. Procuro me impor dentro do conhecimento, ilustrando que aquilo é muito importante e que vale a pena. Procuro motivá-los. Com o tempo a gente vai aprendendo que os problemas não são tão graves assim. A gente vai aprendendo a contornar. Clara: Nada que eu levava tinha valor. Como professora eu me sentia mui- to diminuída. Quando você estuda, prepara, tem retorno e vê o olho do aluno brilhando, você fica muito feliz. Mas quando você prepara e não consegue... eu não conseguia fazer o que eles mereciam. Eu ficava muito abalada. Eu até tive um sério problema físico que foi comprovado ser de origem emocional. Eu ficava tão cansada, não tinha vontade de sair, não tinha vontade de me arrumar... E minha autoestima só caindo. Foi muito difícil para mim. Eu chorava muito, tive problemas sérios de saúde, hemorragia direto. Eu fazia todos os exames e não dava nada. Quando eu estava prestes a tirar o útero, deixei a escola e o fluxo foi diminuindo até se normalizar. Através de suas falas, podemos observar que cada uma das do- centes procura uma forma de mitigar os conflitos, ou seja, de certa forma procuram uma zona de conforto,definida como um conjunto de comporta- mentos que levam ao estabelecimento de um espaço confortável de ações, no qual a ansiedade e o risco não têm espaço (BARDWICK, 1995). Dessa forma, torna-se possível continuar a trabalhar sem um grande desgaste, tanto para si próprias como professoras, quanto para a relação com seus alunos. Luiza afirma que, depois de muitos anos de trabalho, não sofre tan- to com a indisciplina. Para tentar amenizar o problema, ela procura estar sempre próxima do aluno, conversando com ele, motivando-o e fazendo-o acreditar em suas qualidades e em seu potencial, assim como realçado por Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 192 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 Paro (2000). No entanto, ela enfatiza que os aprendizes reagem de forma diferente aos mesmos estímulos. Às vezes, algo que funciona para um es- tudante não leva ao mesmo resultado com outro. Ela também acredita que a mudança e o amadurecimento fazem parte da trajetória humana, ou seja, em determinadas situações, o professor não precisa tomar qualquer tipo de atitude, pois o tempo se encarrega de resolver as dificuldades, ponto de vista coerente com Tiba (1985). Para Marina, a zona de conforto encontrada estabelece um espaço isento de atritos com os alunos e com a direção da escola, mas não livre de conflitos interiores, uma vez que afirma “é muito angustiante pra mim”. Quando os estudantes conversam demais, ela simplesmente pede que saiam para ir ao banheiro. Parece existir, entre a professora e os estudantes, uma norma implícita de comportamento, ou seja, para evitar atritos, ela não os expõe ao rigor das normas institucionais e eles, por sua vez, aceitam o convite para não incomodarem o desenvolvimento das aulas. Por sua vez, Clara sente que a recompensa do professor está na mo- tivação, no brilho do olhar do estudante. Como ela sempre preparou com atenção suas aulas, via o desinteresse dos alunos como algo que afetava diretamente sua autoestima. E, aos poucos, foi ficando cansada, desesti- mulada, chegando a perder o interesse em cuidar de si própria e ter sérios problemas de saúde. Os sentimentos manifestados por Clara são reconheci- dos também em outros contextos. Basso (2006, p. 74), por exemplo, relata: “fica evidente que a auto-estima do professor de LE encontra-se fortemente abalada”. Coelho (2006, p. 128) também afirma que os professores sentem “frustração e decepção diante da realidade de trabalho que encontram” e Dutra e Oliveira (2006, p.182) confirmam haver uma “tensão entre as in- tenções e ações do professor. Ele acaba não conseguindo colocar em prática as ações a que se propõe. Há um choque entre o desejo do professor e as barreiras impostas pelo contexto”. Interface teoria/prática frente aos conflitos Quanto à importância da teoria no desenvolvimento do trabalho do professor de inglês, as percepções das participantes se deram como apresen- tado a seguir: O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 193 Luiza: Sem teoria não tem jeito de trabalhar. Teoria e prática estão inter- ligadas. Para mim a teoria está diretamente ligada ao ser humano, ao tratar o ser humano. Às vezes você sabe a matéria, mas não sabe passar a matéria, não sabe trabalhar para que os alunos gostem das aulas. A experiência conta? Conta. Mas eu conheço meninos que estão saindo da universidade e que dão aula muito melhor do que eu. Às vezes ele estuda mais e está com o pé atrás. Se não estudar, não valho nada. Quanto mais leio, mas descubro que tenho que ler. Quanto mais estudo, mas descubro que tenho que estudar. É infinito! Não tem como falar: “sou uma boa professora porque tenho 20 anos de serviço”. Mentira! Esses professores novos são melhores. Não adianta também saber muito inglês e não ter consideração com o ser humano. Marina: A teoria desempenha um grande papel em meu trabalho. Para lidar com a indisciplina, eu gosto da psicologia. Eu gosto de lidar com os sentimentos do aluno. Eu procuro ser amiga, ser dura, ser firme. Eu elogio, eu me preocupo, eu não sou dona do conhecimento, aquela coisa de aluno passivo e eu só dando aula expositiva, sem ligar pra nada. Eu converso, de vez em quando paro a aula, dou exemplos da minha vida... Mostro um pouco do meu lado humano também. Se o aluno está desatento, eu procuro chegar perto. Só estar próximo do aluno, não precisa dizer nada... A psicologia me ajudou bastante, apesar de as turmas serem grandes e eu não conseguir guardar o nome de todos. Não dá porque são duas aulas de 50 minutos por semana e muitos alunos por sala, 40, 45, tem uma de 56 alunos... Eu só consigo conhecer aqueles que me procuram, aqueles que têm dúvidas ou dificuldades. Para esses alunos, eu vou à escola à tarde e estudo com eles na biblioteca. Clara: Eu buscava ajuda mais nas pessoas do que nos livros. As pessoas que passam pelos mesmos problemas possuem mais vivência. A teoria é muito importante, mas quando você enfrenta a situação mesmo... O livro tem a teoria... A teoria é muito importante, mas quando você vai e enfrenta... Quando eu conversava com as pessoas, eu achava que me ajudava mais. A experiência de outras pessoas me ajudava mais. Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 194 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 Das três professoras, apenas Clara parece preferir mais as lições da prática, embora todas atribuam um papel importante à teoria. Demonstram também ter noções teóricas sobre a importância da motivação para os estu- dos. No entanto, Luiza e Marina relatam acreditar mais na importância de um trabalho que conjugue os fundamentos teóricos com a prática escolar. Além disso, a psicologia parece ser a ciência que mais serve de suporte para as dú- vidas e frustrações dos professores. Para Luiza, além de ter um bom relacionamento com os estudantes, é preciso ter conhecimentos de didática para que o profissional saiba ensinar bem. Ela destaca que hoje os professores saem mais bem preparados das uni- versidades, além de terem o “pé atrás”, ou seja, como não possuem a segu- rança da prática, têm que se dedicar e se preparar mais. Luiza frequenta um programa de formação continuada para professores de inglês há quatro anos e afirma o quanto se sente mais segura por ter acesso ao conhecimento produ- zido pelas universidades. Marina se mostra familiar com os termos usados na teoria do ensino de línguas, relata que se preocupa muito em desenvolver uma prática coerente com a teoria e acredita no suporte que a psicologia dá ao profissional. Apesar de ter pouco contato com seus estudantes e não conseguir memorizar o nome de todos, ela considera essencial estar próximo deles, principalmente dos que apresentam maiores dificuldades. Para isso, dedica parte de seu tempo livre para esclarecer as dúvidas que eles apresentam. Além disso, ela procura mo- tivar o estudante, partindo de suas próprias experiências, assim como defen- dido por Basso (2006). Clara destaca, na entrevista, uma crença no distanciamento entre te- oria e prática, ao revelar que “muitas coisas são maravilhosas nos livros, mas a realidade é diferente”. Seu posicionamento parece semelhante aos resultados de Oliveira (2004, p. 46) sobre professores de inglês de uma es- cola pública de Goiás que “se sentem desmotivados e desesperançosos ao experienciar a realidade de ensino da língua inglesa nas escolas da rede ofi- cial”. Segundo a autora, esses professores “chegam, inclusive, a qualificar a teoria ministrada na universidade como utópica e não funcional naquela realidade” (p. 54) e destacam ainda que naquele contexto “a teoria está mui- to distante da prática”. O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 195 O que fazer para mitigar os conflitos Como vimos, as professoras lidam com os conflitos que vivenciam da melhor maneira possível. A análise de seus depoimentos nos permite identi- ficar, a partir das experiências relatadas pelas três professoras entrevistadas, que a administração dos conflitos passa por três estratégias principais: valo- rizar a escola, conhecer o estudante e buscar apoio especializado, como será discutido a seguir. a) valorizar a escola e a língua estrangeira Aquino (1998) destaca que, atualmente, a imagem social da escola parece estar ameaçada de forma que ela e seus profissionais enfrentam um grande descrédito, por parte da comunidade e dos próprios alunos. As pala- vras de Luiza ilustram bem essa falta de credibilidade profissional a que o autor se refere: Luiza: Nós temos uma turma de 3º ano de ensino médio que não cala a boca nem um minuto. Eles passeiam o tempo todo. Boa parte dessa turma era alunos de uma escola particular. Como a escola deles fechou, eles tiveram que vir para a nossa. Eles também fazem cursinho pré- vestibular. Eles têm aquele preconceito e acham que a nossa escola não está com nada e não vai fazer nada por eles. Por isso eles fazem aquela bagunça toda. Essa turma nossa era ótima, excelente, mas quando vieram os alunos da escola particular, acabou a turma. Essa cultura de que a nossa escola não vai ajudá-los está impedindo a gente de trabalhar com aqueles que querem. Luiza condena o fato de os alunos que vieram da escola particular não acreditarem na instituição pública e ainda prejudicarem os que lá estavam anteriormente. No que se refere à importância da valorização da escola pela sociedade, Luiza acredita que essa mudança de atitude precisa começar pelo próprio professor. Sua convicção a fez matricular a única filha no mesmo local onde trabalha: Luiza: Você fala mal de um lugar onde você trabalha? A escola presta para você trabalhar, mas não presta para seu filho estudar? Quer dizer Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 196 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 que os filhos dos outros não merecem? Minha filha só vai parar de estudar lá se eu parar de trabalhar lá. Não é porque eu não possa pagar. Dinheiro e tempo são questões de prioridade. Então para mim não é prioridade minha filha estudar numa escola particular. Porque a escola pública pode ser tão boa quanto a particular. Eu acredito na escola pública. Apesar de todas as dificuldades, eu acredito. A gente também pode ajudar a melhorar a escola. Barcelos, Batista e Andrade (2004) discutem o preconceito com re- lação à escola pública que é citado por Luiza. A atitude da professora de acreditar no contexto onde trabalha e, inclusive, matricular a única filha nessa escola é um fator que afeta grandemente o seu trabalho, pois ela se prepara e investe em sua formação continuada. Seu exemplo precisa ser seguido por outros professores que simplesmente criticam e não se envolvem em projetos de mudanças efetivas. Por sua vez, ao lidar com alunos desinteressados, Marina também pro- cura chamar a atenção deles para a importância dos estudos: Marina: Como eles vêm de famílias que exigem porque pagam... E toda hora eu toco na mesma tecla, eu falo, olha, você está pagando caro... Va- mos aproveitar o profissional... A fala de Marina, que procura sempre destacar para o aluno a im- portância dos estudos, uma vez que o ensino é pago, merece também uma reflexão. A partir desse resultado, observamos uma necessidade de despertar nos alunos da escola pública uma consciência da importância dos estudos, uma vez que eles também são pagos, já que nossos impostos são muito altos. Essa falta de consciência dos alunos também é discutida por Paro (2000) e por Paiva (2006, p. 122): “infelizmente eles não tiveram consciência de seus direitos para demandar mais da escola e aceitaram currículos que não aten- diam às suas necessidades”. No entanto, mais preocupante é saber que a falta de consciência dos alunos tem origem no discurso e nas atitudes dos próprios professores, como relata Luiza: Luiza: Eu sou contra todo tipo de preconceitos e adoro colocá-los à prova. Eu acho que a gente tem preconceito quando diz: “esse menino é O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 197 muito pobre”, “esse menino não tem o que comer em casa, não vai aprender”. Muitas vezes, se ele questiona, “credo, que menino cha- to”, “esse menino questiona tudo”. Na verdade, o que se pede hoje é que os alunos sejam questionadores, mas o que eu tenho visto é pro- fessores nada abertos a esses alunos. Eles não são realmente aceitos. Luiza destaca que nem todos os professores encorajam a consciência crítica porque os alunos questionadores “cobram que a gente faça um trabalho bem feito e incomodam”. Após a entrevista, ela exemplifica a atitude de uma aluna que desejava ser aprovada no vestibular e, por isso, cobrava qualidade da escola. No entanto, essa estudante não era bem vista por todos os profes- sores. Segundo Luiza, em uma ocasião, quando ela se preparava para entrar e começar sua aula de inglês, encontra na porta a professora de português que lhe pede que deixe os estudantes terminarem uma redação. Antes que Lui- za respondesse, a aluna protesta: “E inglês, nós não vamos aprender, não?”. Diante dessa “ousadia”, a professora de português se sente indignada e ainda usa apelidos pejorativos para se referir à aluna, posteriormente. Apesar de va- lorizar essa atitude, Luiza reconhece sua raridade, uma vez que a comunidade (escola e família) não valoriza o estudo de inglês: Luiza: Se algum menino tem mais consciência da necessidade, ele me co- bra e eu sou obrigada a dar uma aula do jeito que ele está me cobran- do, mas a maioria não está incentivada para aquela aula. Mesmo que a gente fale que é importante, o povo todo, a família, a própria escola tem aquela cultura, o preconceito de que inglês não é tão necessário. Isso atrapalha o trabalho da gente. Atrapalha mesmo! Infelizmente no Brasil tem este preconceito... De um modo geral, podemos observar que a valorização das au- las de inglês ainda está longe de ser ideal, como apresentado por Basso (2006) e Dutra e Oliveira (2006). A situação parece complexa, uma vez que não há um consenso entre os próprios professores e muitos deles acham que podem utilizar os horários dessa disciplina para o desenvol- vimento de atividades totalmente alheias ao seu programa. A nosso ver, parece que o professor de inglês precisa lutar intensamente, até mesmo com os próprios colegas de escola, para conseguir valorizar seu trabalho Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 198 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 e, com isso, tentar influenciar o modo como a instituição, os estudantes e a família veem o estudo de inglês. b) Conhecer, valorizar e motivar o aluno Todas as professoras relataram que um relacionamento próximo ao estudante pode ajudar a solucionar os conflitos, mas, para isso, torna-se ne- cessário tempo e disponibilidade para conhecê-lo: Luiza: Cada aluno é um. O que eu uso para um aluno não funciona para o outro. Então eu procuro buscar conhecer esse menino e assim vou saber como posso tocá-lo. Se bem que, às vezes, eu consigo con- hecer o menino, mas não consigo tocá-lo. Para dar certo tem que respeitar o aluno. É a lei do retorno. Tudo que você faz para os out- ros volta pra você. Então, a gente tem que respeitar a cultura dos meninos, o jeito de cada um porque cada um tem a sua inteligência, não ficar comparando uns com os outros... Luiza afirma que os esforços não produzem os mesmos resultados para todos os alunos e, por isso, o professor precisa conhecê-los para com- preender o que é significativo para eles. Suas proposições condizem com Miccoli (2007c, p. 37), que defende: “para haver sucesso na aprendizagem, o professor deve conhecer bem os seus alunos. Só assim ele poderá saber o que funciona ou não. [...] Há uma necessidade de uma relação mais estreita e transparente entre professor e aluno”. Marina, por sua vez, também acredita no relacionamento próximo. No entanto, ela destaca: Marina: Não dá tempo. São só duas aulas de 50 minutos por semana. São muitos alunos. Na sala de aula, procuro falar a linguagem dos alu- nos, procuro não ser a dona da sala, procuro interagir. Sempre trago exemplos do dia a dia deles... Sempre pego algo que está aconte- cendo, coloco o nome do aluno no quadro, saio um pouco do livro... Clara: Pra dar certo, tinha que fazer um trabalho mais próximo, junto da família. A família é a base de tudo. O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 199 Todas as três participantes reconhecem a necessidade de reconhecer as diferenças no trato com os estudantes. A percepção das profissionais condiz com alguns princípios da abordagem humanista, a qual, segundo Williams e Burden (1997), orienta o professor a identificar e atender às necessidades in- dividuais do público-alvo. Além disso, os autores acreditam que os professo- res devem procurar conhecer os aprendizes como indivíduos e compreender o modo como eles veem o mundo, sem impor suas próprias convicções. Uma consideração feita pelas três professoras merece nossa atenção: a crença no seu papel como motivadoras. Elas acreditam que devem motivar seus estudantes e procurar meios de despertar o interesse pela aprendizagem da língua estrangeira: Luiza: Para que o aluno goste da matéria, ele tem que gostar da gente primeiro. Daí é um caminho longo a percorrer. Se a gente tem um período longo de convivência, a gente pode até conseguir, mas em um ano só, acho difícil. Como as aulas de inglês são poucas, é mais difícil. Com português é mais fácil porque a gente tem mais contato com o menino. Marina: Procuro preparar aulas bem criativas e, assim, não ficar só naquela aulinha que eles estão acostumados. Eles falam: olha, a sua aula é a mais legal, mais interessante, você é a professora mais legal, coisas assim. Então, o problema não é porque a professora é ruim, não mo- tiva e que é chata... Para motivar eu procuro dar aulas criativas, eu procuro ser amiga. Clara: Eu fiz o meu melhor. Eu levei muitos jogos, eu fiz o que podia, mas foi uma coisa além das minhas forças. Eu não conseguia, de jeito algum, atingir nem 10% do que eu gostaria de atingir. As professoras reconhecem a importância da motivação para que uma aprendizagem efetiva aconteça. Partindo do princípio que diz ser preciso gos- tar do professor, dedicam tempo e esforço para elaborar aulas criativas, o que, segundo elas, nem sempre atinge os resultados esperados. O “gostar do professor”, como destacado por Luiza, condiz com o que Williams e Burden (1997) postulam. Segundo os autores, o professor desempenha um papel im- Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 200 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 portante em todos os estágios do processo motivacional, uma vez que todos os aprendizes são influenciados, de alguma forma, pelos próprios sentimentos relacionados ao professor. Assim, suas percepções do profissional e da inte- ração que ocorre entre eles irão, indubitavelmente, afetar a motivação para aprender. c) Ter com quem contar As professoras destacam a importância de um trabalho coletivo na escola, de modo que o profissional não se sinta sozinho e desamparado frente aos conflitos. Quando se tem com quem contar para superar os problemas, até a saúde do profissional pode melhorar, conforme relata Luiza: Luiza: Quando eu entrei para o projeto de educação continuada, eu tomava 40 mg de Fluoxetina por dia. Depois de 2 anos no projeto, eu reduzi para 10 mg por dia. Tem dia que eu nem preciso tomar. Eu só tomo quando estou muito nervosa ou vou ter que enfrentar uma situação difícil. Essa mudança aconteceu porque eu aprendi como lidar com as pessoas e elaborar melhor minhas aulas. Eu adquiri mais segu- rança. Sem contar que, na hora que preciso de alguma coisa, ligo para uma colega e consigo material. Melhorou também a minha au- toestima porque eu tenho com quem contar, coisa que eu não tinha antes. Clara: A escola podia fazer mais. Onde eu trabalhava não havia amizade entre os professores. O ambiente não era bom. Os professores for- mavam pequenos grupos, uns contra os outros. Faltava união em todos os sentidos. Se tivesse união, se todos trabalhassem juntos, talvez os resultados pudessem ser melhores. Faltava amizade e até respeito entre os colegas. Era uns contra os outros, até com os aju- dantes de cozinha. Faltava respeito, faltava um pouco de Deus ali. Os relatos de Luíza e Marina revelam a importância de um trabalho desenvolvido por uma equipe de profissionais comprometidos com a quali- dade da educação. Luiza encontrou apoio para as dificuldades, fora de seu ambiente de trabalho, em um programa de formação continuada e, por isso, conseguiu superar seus problemas de saúde e, apesar das limitações que acre- O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 201 dita ter, desenvolve um trabalho satisfatório e com dedicação. Esse resultado confirma o que diz Miccoli (2005) num trabalho em que enfatiza a importân- cia do investimento na própria formação profissional. Os projetos de educa- ção continuada podem se tornar espaço privilegiado para o desenvolvimento do professor, tanto na expansão de seu conhecimento da língua estrangeira, quanto na ampliação de sua compreensão das diferentes teorias de ensino. Além disso, servem para constituir uma rede de pessoas ligadas pelo mesmo objetivo, ou seja, um espaço de estudo, ação, avaliação e partilha, como de- fende Miccoli (2005). Por sua vez, Clara, que possui excelente domínio da língua inglesa, se viu obrigada a abandonar a escola pública por não ter conseguido superar os obstáculos, os problemas de saúde e a falta de apoio dos profissionais da escola. Suas afirmações nos levam a acreditar que a desarmonia existente entre os professores e alunos era apenas um reflexo das inúmeras desavenças existentes entre os profissionais daquele contexto. Um ambiente de trabalho ideal, em termos de relações humanas, é descrito por Paro (2000): professores e funcionários se relacionam em relativa harmonia, se apoiam e os atritos são resolvidos de forma saudável. Clara afirma que naquela escola faltava um pouco de Deus, como se ela evidenciasse a inexistência de um amor fraterno, capaz de apoiar o outro na dificuldade e, principalmente, respeitá-lo, como ser humano e profissional. Ao se ver sozinha diante das dificuldades, preferiu deixar a escola e buscar trabalho onde se sentisse mais valorizada e não tivesse tanto desgaste físico. Hoje se dedica exclusivamente ao ensino em cursos de idiomas. Considerações finais O desenvolvimento desse trabalho nos permite apresentar algumas conclusões que consideramos importantes. A primeira delas se remete à es- cassez de trabalhos que investiguem com maior profundidade as experiências de professores, como afirma Miccoli (2007a). Neste trabalho, investigamos a prática do professor quanto às suas experiências com a indisciplina, buscando documentar e aprender com eles sobre como lidar com o problema – o tipo de experiência conflituosa mais reportada por professores de inglês em contexto público e particular (MICCOLI, 2006; ZOLNIER, 2007). Os resultados nos permitiram conhecer como se manifesta essa indisciplina, bem como conhe- Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 202 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 cer a maneira como diferentes professoras lidam com essa experiência. Além disso, identificamos as diferenças entre as professoras, em relação ao trata- mento bem-sucedido da indisciplina e do estudante . Uma segunda conclusão nos permite reconhecer a validade de nossos re- sultados que condizem com os estudos de Basso (2006), Coelho (2006), Dutra e Oliveira (2006) e Miccoli (2006), quanto à coerência entre a maneira como o conflito é concebido e o modo como o professor reage a ele, bem como sua in- fluência na interação com os alunos e no desenvolvimento de um trabalho eficaz. Um resultado que merece destaque é a importância da intervenção, pois vimos como a não resolução ou a decisão pelo não tratamento de um conflito pode mudar o curso de uma vida, para o bem ou para o mal, afetando diretamente a saúde e a autoestima, tanto do estudante quanto do professor. Outro efeito negativo dos conflitos, principalmente com relação à escola pública, diz respeito ao fato de que vários profissionais, com boa competência linguística como Clara, se veem forçados a procurar outros ambientes de trabalho, como os cursos livres, o que reforça a crença de que esse contexto possui os melhores profissionais e a escola pública vi- vencia maiores problemas. Reconhecemos que os professores recém-formados saem das univer- sidades ainda despreparados para lidar com os conflitos inerentes às relações entre professor e estudantes, em sala de aula, simplesmente porque a discus- são sobre a prática é ainda incipiente na graduação. Inovações nos cursos de Letras, como os estudos de casos (PAIVA, 2005; MEC/SESU, 2002), são um primeiro passo para colocar o profissional em contato com a realidade do ensino nas escolas, ao mesmo tempo em que oferecem condições e suporte para examinar os obstáculos à luz da teoria do ensino de línguas. Além disso, quanto mais pesquisas sobre a sala de aula forem desenvolvidas, maiores as chances de o conhecimento produzido chegar aos formadores e aos graduan- dos. Assim, os recém-formados em Letras se sentirão mais bem preparados para enfrentar o que a sala de aula lhes reserva. Uma terceira conclusão remete à compreensão da experiência confli- tuosa na sala de aula. Entendemos que os conflitos só surgem quando há um choque entre diferentes pontos de vista. Costa (2002, p. 141) afirma que “a violência é utilizada para obter respostas mais imediatas. O diálogo, muitas vezes, não tem tão curto alcance como a violência”. Por isso, precisamos estar atentos às insatisfações de nossos alunos. Se os jovens não aprendem a O desafio de ensinar inglês: experiências de conflitos, frustrações e indisciplina Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 203 dialogar em suas famílias, eles podem começar a aprendê-lo na escola, desde que estejamos dispostos a assumir essa responsabilidade, conscientes de es- tarmos sujeitos a erros e acertos. Os conflitos podem ser positivos se nos levar a refletir e avaliar nossa abordagem de ensinar e nossas ações em sala. Como apontaram os resultados, um relacionamento de respeito, diálogo e confiança pode ser um importante ponto de partida para a superação dos obstáculos. Finalmente, concluímos que os resultados nos contextos pesquisados revelam que não só a escola pública, mas também a particular e os cursos livres apresentam-se como contextos desafiadores para o desenvolvimento de um trabalho significativo e direcionado às expectativas dos estudantes, como discutido por Zolnier (2007). Esperamos que esses dados motivem outros pesquisadores a inves- tirem em pesquisas sobre outras experiências, de modo que a teoria possa se aproximar mais da prática da sala de aula e os professores não se sintam sozinhos, diante da grande tarefa que é o ensino de uma língua estrangeira. ZOLNIER, Maria da Conceição Aparecida Pereira; MICCOLI, Laura Stella. The challenge of teaching english: teachers’ experiences of conflict, frustration and indiscipline. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009. ABSTRACT: This paper presents results of a research, developed with three English tea- chers who work in public, private and language schools. The subjects reported some con- flicting experiences: feelings of being unprepared to teach the foreign language, students’ indiscipline, aggressive behavior towards the professional and frustration for not achieving good results. Moreover, the teachers describe the importance that the second language the- ory plays in order to overcome the problems they face, in their career. The results indicate a necessity of more studies which aim to deeply understand the teachers’ experiences and the way they deal with the challenges, so that we can be better informed about the reality of the teaching of foreign language in different contexts. KEYWORDS: Experiences. Indiscipline. English language. Referências ALMEIDA FILHO, J.C.P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas: Pontes Editores, 2002. AQUINO, J.G. A indisciplina e a escola atual. Revista da Faculdade de Educação, v. 24, n. 2, São Paulo, 1998. p. 181-204. Maria da Conceição Aparecida Pereira ZOLNIER e Laura Stella MICCOLI 204 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 175-206, 2009 BARCELOS, A.M.F. A cultura de aprender língua estrangeira (inglês) de alunos formandos de letras. 1995. 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Ensino de Línguas Estrangeiras. Línguas Modernas. Para início de conversa Sempre houve no Brasil identificação estreita entre a Educação, a es- trutura humanística e clássica dos currículos e o desenvolvimento do ensino de línguas para o aprendizado de idiomas modernos. Assim, é oportuno notar a observação de Chagas: “a evolução do ensino de línguas no Brasil confun- de-se com a história da própria escola secundária brasileira” sendo que uma contém a outra (1957, p. 83). Para o autor, é somente a partir de 1931 que as disciplinas concernentes à área de estudo começam a ser tratadas mais seria- mente na escola secundária. A preocupação principal do ensino brasileiro no período imperial foi a de proporcionar educação diferenciada a uma elite, sendo pouca a atenção conferida à instrução das massas e relegada a um quase abandono a Escola de Primeiras Letras. Situação que muito se parecia com a de Portugal, já que a política do colonizador interferia em ambos os países de maneira abrangente, aproximados quanto ao índice de analfabetismo, perto de 80% de suas popu- lações até o início do século XX. 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Comunicação e Letras da Univer- sidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), São Paulo, SP, Brasil. verahanna@mackenzie.com.br Vera Lucia Harabagi HANNA 208 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 Há de se enfatizar que, desde 1808, ao entrar no processo de re-euro- peização, o país tentava sair da condição de marginalizado quanto à cultura, à economia e ao comércio do mundo ocidental, porquanto o que se apresentava era um retrato vivo do resultado da derrocada do monopólio comercial portu- guês. Segundo Gomes (2007, p. 305), as expectativas políticas e econômicas e, consequentemente, as perspectivas de futuro de colonizador e colonizado mostravam-se antagônicas — enquanto Portugal se exauria com as guerras napoleônicas, tornando-se “uma metrópole amorfa, empobrecida e humilha- da pela longa ausência do rei”, o Brasil, já quase uma ex-colônia, “no mesmo período e pela mesma razão, havia mudado, enriquecido, prosperado e agora contemplava o futuro com esperança e otimismo”; as realidades tornavam- se, desse modo, irreconciliáveis. No contexto sócio-político, destaque-se que a partir da ‘invasão lusitana’, os portugueses aqui chegados com a Família Real trouxeram na bagagem os britânicos como fiadores da sobrevivência do Brasil como nação. A Grã-Bretanha, parceira comercial mais importante de Portugal desde o século XVIII, transferiria sua hegemonia nas atividades ban- cárias, de seguros, de navegação, de comércio, para a colônia. O país estaria, portanto, não sob o domínio português, mas sim, como Portugal, sob a esfera político-econômica dos ingleses. Ao exercer seu poder de jovem imperialista, logo nos primeiros contatos comerciais com os luso-brasileiros aqui estabe- lecidos, os bretões forneceriam, no que tangia às influências linguísticas, não só os empréstimos lexicais que vinham naturalmente acompanhando os ob- jetos importados, mas também ideias, padrões de comportamento, hábitos de consumo, gostos artísticos, referências políticas e, com especial ênfase, novas invenções, que acrescentariam traços culturais originais à vida brasileira e à paisagem urbana nas décadas seguintes. A influência britânica sobre o Brasil nos oitocentos tornou-se tão marcante que se dizia que estavam londonizando o país (cf. PALLARES-BURKE, 1997). No final do século XIX, com a proclamação da República começaria, teoricamente, uma nova era. Entretanto, no que se refere à educação, conti- nuou em vigência o sistema dual, ou seja, de um lado, cabiam à União o de- ver e o direito da criação de instituições de ensino superior e secundário nos estados e a promoção deste último no Distrito Federal, então sediado no Rio de Janeiro; de outro, cabiam às unidades federativas a criação e o controle do curso primário e profissional (escolas normais de nível médio para moças e escolas técnicas para rapazes). Característica marcante do início da República Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 209 e do novo século que nascia era o surgimento de uma sociedade urbana, com- posta de ex-escravos, elite aristocrática, uma camada emergente considerada média (composta de intelectuais, padres, militares em franca ascensão), uma pequena burguesia industrial e um grande estrato composto de imigrantes. Com essa nova estrutura, o país já não podia suportar o sistema dual de ensi- no, simplista por excelência; assim, suas bases sofreriam pressões que iriam, aos poucos, comprometer seus alicerces. Muitas Reformas Educacionais já vinham acontecendo a partir da criação do Colégio de D. Pedro II, em 1837, e com elas muitos problemas e entraves; algumas nem chegaram a sair do papel e motivos não faltavam para que isso acontecesse. Um dos principais era a barreira formada pela minoria influente, desejosa de manter o status quo. Juntava-se a isso a pouca atenção que o governo dava à educação das camadas mais carentes. Optou-se por examinar neste artigo questões atinentes ao ensino de línguas, a partir de um corpus referente ao Período Jesuítico (1549-1759), ao Período Pombalino (1760-1808), ao Período Joanino (1808-1821), e ao Perí- odo Imperial (1822-1888). Fazem-se observações que atingem até o início do século XX, ressaltando aspectos que se julgam mais representativos quanto às inúmeras reformas que ocorreram. O Período Jesuítico, 1549-1759 A história da escola brasileira registra as primeiras experiências do en- sino de uma língua estrangeira tão logo o português passa a ser ensinado aos índios com a chegada dos jesuítas ao Brasil. Desde a fundação dos colégios pio- neiros até o primeiro quartel do século XX, houve o predomínio do humanismo clássico na escola do hoje intitulado Ensino Médio, ressalte-se, mesmo após a introdução do ensino das línguas modernas. Esse humanismo apoiava-se no Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Lesu. Plano de estudos oficial para a educação jesuítica, elaborado pela Companhia de Jesus e publicado em 1599, fora pensado para uniformizar a formação dos que ensinassem e estudassem nos colégios da ordem em qualquer parte do mundo. Era composto de trinta conjuntos de regras que, além de apresentar normas de conduta, de responsabilidade e comportamento dos membros da hierarquia educacional jesuítica e administrativa, oferecia instruções sobre organização e administração escolar e um programa com método de ensino e procedimentos pormenorizados. Compreendia as ‘cinco classes’, representadas Vera Lucia Harabagi HANNA 210 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 pela Retórica, pelas Humanidades e pelas Gramáticas Superior, Média e Infe- rior. O ensino de línguas, por essa cartilha, centrava-se no Latim e no Grego, reputadas como disciplinas dominantes, e, as demais, como o Vernáculo, não possuía estudo autônomo. O Ratio Studiorum obedecia a uma divisão de três períodos, ou cursos, oferecendo os títulos de bacharel, licenciado e mestre em artes, a saber: o nível de Letras Humanas ou Humanidades, com três anos de duração; o nível de Filosofia e Ciências, também denominado curso de Artes, igualmente de três anos (com os níveis de Lógica, Metafísica e Filosofia Moral) e o nível de Teologia ou Ciências Sagradas, de quatro anos.O curso de Letras ou Humanidades (o que equivaleria, hoje, ao Ensino Médio) compreendia o estudo da Gramática, Humanidades e Retórica. Grande ênfase era dada à eloquência, o que justificava o ensino da gramática em três ou quatro anos, fator decisivo na preparação do aluno para o segundo momento, que visava ao aperfeiçoamento da escrita. As regras de oratória, estilo e erudição eram os objetivos primeiros das aulas de Retórica, seguidos de História, Geografia e Cronologia. Após seu término, os alunos estavam preparados para os níveis seguintes de Artes, ou para outras carreiras como Medicina e Direito, que só poderiam ser cursadas na Europa. A grande maioria dos alunos, no entanto, dava por encerrados seus estudos após essa primeira fase. O início da alfabetização acontecia nas Escolas de Ler e Escrever, em que os jesuítas se preocupavam não somente com a língua e a religião da metrópole, mas também com os valores e os modos de vida do coloni- zador, numa tentativa de substituição da cultura nativa. Ainda que os cursos posteriores privilegiassem o princípio da educação por meio do estudo das línguas clássicas, já havia acontecido uma síntese de elementos linguísticos — portugueses e indígenas, seguidos de africanos. Realce-se o movimento inverso na adoção das línguas indígenas pelos jesuítas — tentava-se adotar uma língua franca que, praticada largamente na região do litoral brasileiro do início da colonização até meados do século XVIII, ficaria conhecida como língua geral, de intercurso, fundamentalmente o tupinambá. Os missionários jesuítas estudaram-na, descreveram-na em artes de gramática, não obstante seu aprendizado fosse comumente informal: aprendiam-no com o intuito de alcançar uma melhor interlocução com os nativos e propunham-se a traduzir para ela as orações, as músicas sacras, as peças teatrais. Falar o dialeto dos lo- cais tornava possível o contato social e o trabalho de catequese. A língua geral era utilizada na vida cotidiana da colônia, falada por brancos e consolidada Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 211 pelos bandeirantes, exploradores do território em direção ao interior do país. E o português falado no Brasil começava a diferenciar-se do da metrópole; a base indígena se fazia presente, acompanhada de marcas africanas. À parte a doutrinação dos nativos, a instrução era direcionada primordial- mente à formação da minoria dominante. O ensino de primeiras letras tornara-se uma mera ‘passagem’, como define Chagas, para o Curso de Letras, não havendo, em absoluto, a preocupação com a formação profissional daqueles que não pudes- sem continuar na escola (1957, p. 5). Traço marcante da educação jesuítica, esse distintivo do ensino brasileiro perdurou até pelo menos meados do século XX. Apesar do predomínio do estudo das línguas clássicas — latim e grego —, em vários momentos, o ensino deste último teve de sofrer adaptações quanto ao que prescrevia o Ratio Studiorum. Muitas vezes o ensino do grego foi substituído pelo do tupi para que se viabilizasse a catequese dos gentios. Ao mesmo tempo, aquelas línguas também estavam presentes no aprendizado de outras disciplinas, como a História e a Geografia, estudadas por meio do exercício de tradução dos clássicos. Seguia-se o plano de ensino que confiava na tradição literária e acadêmica do humanismo clássico; assim, os valores e modelos de inspiração greco-romana renascentista seriam mantidos durante os longos 210 anos em que o ensino no Brasil esteve sob a égide dos jesuítas. Uma grande ruptura histórica neste processo de educação aconteceria em 1759, quando Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal, ministro de D. José I, decide expulsar todos os jesuítas da metrópole e das colônias, confiscando seus bens, sob a argumentação de que a Companhia de Jesus agia como um poder autônomo dentro do Estado português. Esse procedimento encontrava eco em outros países da Europa, onde religiosos eram vistos como um impedimento à implantação da nova filosofia iluminista que se dissemina- va. A secularização dos empreendimentos missionários, por sua vez, garanti- ria maior equilíbrio da balança comercial do estado português; dessa forma, mais do que combater a religião propriamente dita, diminuíam-se regalias gozadas pelas ordens religiosas nos domínios portugueses. O Período Pombalino (1760-1808) Tendo vivido na Inglaterra, Pombal cultivava um pensamento ligado ao Enciclopedismo (defesa da liberdade individual, comercial, industrial). Ape- Vera Lucia Harabagi HANNA 212 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 sar de ter passado sete anos em Londres (1738- 1743) como enviado especial — Ministro Plenipotenciário —, não escondia sua aversão aos britânicos e aos seus “métodos de dominação econômica” em relação ao comércio português (AVELLAR, 1983, p. 9); acrescente-se, não chegou a aprender o inglês, tam- bém pelo motivo de que unicamente o francês era considerado língua diplo- mática. Mesmo assim, foi marcante a influência da política econômica daquele país em suas ideias, fato que fazia com que sonhasse ver o reino português su- perar a velha estrutura agrária semi-feudal e entrar na era industrial. Presumia, ainda, que, ao expulsar a Companhia de Jesus, tornar-se-ia iminente a adoção de um novo sistema de educação, de responsabilidade da Coroa Portuguesa. Durante o período Pombalino, o Estado assumiria, pela primeira vez, os encargos da educação, a metodologia eclesiástica dos jesuítas seria substi- tuída pelo pensamento pedagógico da escola pública e laica. Após reinado ab- soluto de dois séculos, seguiu-se um período de mais de uma década até que se conseguisse substituir os jesuítas e seus métodos. Pombal não conseguira criar um sistema substituto de ensino adequado nem encontrara professores bem formados, o que acabou resultando numa fragmentação das estruturas administrativas já existentes (ROMANELLI, 1998). Note-se que, apesar de existirem propostas formais, as reformas pombalinas não foram implantadas de fato e este período é divisado como de decadência da educação na colônia, como esclarece Azevedo, Entre a expulsão dos jesuítas em 1759 e a transplantação da corte portuguesa para o Brasil em 1808, abriu-se um parêntese de quase meio século, um largo hiatus que se caracteriza pela desorganização e decadência do ensino colonial. Nenhuma orga- nização institucional veio, de fato, substituir a poderosa homogeneidade do sistema jesuítico, edificado em todo o litoral latifundiário, com ramificações pelas matas e pelo planalto, e cujos colégios e seminários formam, na Colônia, os grandes focos de irradiação da cultura. (1976, p. 61) Houve uma intensa, aguda e sistemática reação antijesuítica ao ser instalada uma comissão chamada de Diretoria de Estudos, ou seja, uma es- pécie de comitê controlador, que proibia o ensino público ou particular sem a sua licença. Assinale-se que as aulas régias não se articulavam entre si, ou seja, cada uma constituía uma unidade de ensino, independente do currícu- lo, ou duração prefixada. Os docentes passaram a ser selecionados através de exames, em concursos, mas em geral era baixo o seu nível em compa- Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 213 ração ao dos jesuítas. Tornavam-se, apesar disso, únicos e ‘proprietários’ vitalícios das cadeiras, ficando facultado ao aluno o direito de matricular-se em quantas disciplinas desejasse. Persistiam as ambiguidades: ao lado dos professores régios, mantinha-se a continuidade do predomínio da Igreja nas instituições de ensino, assim como era evidente que a intenção da escola secundária preparava os alunos para ingressarem ou na Universidade de Coimbra ou em quaisquer outras na Europa. A ideia que predominava era a do interesse da metrópole em ‘modernizar’ a elite brasileira para que esta servisse, mais tarde, não aos interesses da fé, mas aos interesses portugue- ses na Colônia. Apesar das mudanças, o currículo continuava fundamentado nas mes- mas diretrizes do século XVI, ou seja, baseado nos estudos de Gramática e Retórica, muito longe do interesse nas línguas e literaturas modernas. O ensi- no secundário, que era ministrado em forma de curso no tempo dos jesuítas, passou a ser ensinado em aulas régias, ou seja, avulsas, de Filosofia e Retórica. No tocante à instrução e ao uso de línguas, Pombal proibiu, em 1758, o aprendizado e a prática do tupi e instituiu o português como única língua do Brasil, com o in- tuito de desprestigiar o poder da Igreja Católica sobre a Colônia. Nas aldeias indígenas, ao mesmo tempo em que os administradores ocupavam o lugar dos missionários e implantavam duas escolas públicas — uma para meninos e ou- tra para meninas — impeliam os alunos a usar a língua portuguesa. O ensino de línguas estrangeiras prosseguia privilegiando o latim e o grego, mas, como assegura Azevedo (1976), e meio às dualidades dessa estrutura escolar come- çava, lentamente, a se abrir lugar para uma educação mais científica, assim como para o ensino de línguas vivas, como o Inglês, o Francês e as Literaturas Modernas, que passariam a figurar nos currículos, [...] em lugar de um ensino puramente literário, clássico, o desenvolvimento do en- sino científico que começa a fazer lentamente seus progressos ao lado da educação literária, preponderante em todas as escolas; em lugar da exclusividade de ensino de latim e do português, a penetração progressiva das línguas vivas e literaturas modernas (francesa e inglesa2); e, afinal, a ramificação de tendências que, se não chegam a determinar a ruptura de unidade de pensamento, abrem o campo aos primeiros choques entre as ideias antigas, corporificadas no ensino jesuítico, e a nova corrente de pensamento pedagógico, influenciada pelas ideias dos enciclopedistas franceses, vitoriosos, depois de 1789, na obra escolar da Revolução. (1976, p. 56-57) 2 Os grifos nesta citação e em todas que se seguem neste artigo são da pesquisadora. Vera Lucia Harabagi HANNA 214 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 Apesar das ideias dos enciclopedistas, de caráter social e político, estimu- larem aqueles que haviam estudado na Europa (também inspirados pela Indepen- dência dos Estados Unidos ocorrida em 1776), a escola mantinha-se tradicional. Período Joanino (1808-1821) A partir da chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, o país inicia uma busca, a princípio lenta, mas que se torna frenética no fim do século XIX, para se transformar numa nação desenvolvida, acima de tudo, reconhecida in- ternacionalmente. O processo de modernização do Brasil inicia-se com D. João VI, que traz na bagagem as ideias liberais do empirismo inglês e a influência de enciclopedistas franceses. Mesmo antes de chegar ao Rio de Janeiro, o mo- narca já havia aberto os portos da colônia a outras nações, encerrando séculos do monopólio português. Fica conhecido como ‘o criador de instituições’ e, entre as mais importantes iniciativas, implanta, em 1808, a Biblioteca Pública e a Imprensa Régia, ocorrências que dão início à circulação do primeiro jornal, a Gazeta do Rio, no mesmo ano; na Bahia, em 1812, Variedades ou Ensaios de Literatura, o primeiro periódico de que se tem notícia; em 1813, a primeira revista carioca, O Patriota. Pari passu, são inaugurados os primeiros cursos su- periores não-teológicos no Brasil — Agricultura, Química, Desenho Técnico e Botânica — e introduzidos os estudos profissional, militar, superior e artístico. São criados, ao mesmo tempo, escolas especiais e cursos práticos para suprir a grande demanda imediata de pessoal com formação especializada e preparado para atender ao serviço público. Apesar da importância que se atribui à criação do ensino superior, não se deve deixar de anotar que os demais níveis, como a escola primária e a secundária, continuavam sem merecer atenção, o que acen- tuava uma tradição de educação voltada para uma elite que detinha o poder na Corte. O primário continuava sendo a Escola de Ler e Escrever e o secundário permanecia com o modelo pombalino de aulas régias, em que foram criadas pelo menos vinte cadeiras, dentre as quais as de Gramática Latina, de Mate- mática, de Desenho, de História, de Retórica e de Filosofia, de 1809 a 1821 (ROMANELLI, 1998, p. 38-39). As línguas modernas pareciam estar galgando um lugar de relevo em 1809. Destaca-se a Resolução de consulta da mesa do desembargo do Paço de 14 de julho de 1809 (apud CELANE, 2000, p. 221), que “Crea nesta cidade uma cadeira de Arithmetica, Álgebra e Geometria, uma de Inglez e uma de Francez”. Essa resolução enfatiza a visão pragmática de Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 215 D. João VI, que percebia que a formação de novos funcionários exigia, naquele momento, também, o conhecimento de novos idiomas. O interesse pelo apren- dizado da língua francesa, sinônimo de erudição e cultura, justificava-se, pois a vida intelectual no Brasil, assim como em todo o mundo ocidental, seguia o modelo francês, sobretudo após 1789. O objetivismo prático confirmava que o ensino da língua inglesa, por seu lado, tornava-se igualmente imprescindível, já que facilitaria sobremaneira o contato comercial com a Inglaterra. Leia-se, além disso, naquele documento, que juntamente às disciplinas da área das ci- ências exatas, determinava-se a conveniência da introdução das duas línguas para que se completasse a educação literária na instrução pública, ainda que de modo tradicional, clássico, E sendo outrossim tão geral, e notoriamente conhecida a necessidade, e utilidade das línguas francezas e ingleza, como aquellas que entre as línguas vivas teem o mais distinto logar, é de muito grande utilidade ao Estado, para augmento, e prosperidade da instrução publica, que se crêe nesta capital uma cadeira de língua franceza, e outra de ingleza (apud CELANE, 2000, p. 222). Acentuando o caráter prático que justificava o ensino das duas línguas, aconselhava-se que os professores não se esquecessem de ensinar o ‘bem falar e o escrever’, assim como vislumbrava-se a importância do binômio língua-cultura naquele aprendizado: E pelo que toca à matéria do ensino, ditarão [os professores] as suas lições pela Grammática que for mais conceituada, emquanto não formalizem alguma de sua composição; habilitando os discípulos na pronunciação das expressões e das vozes das respectivas línguas, adestrando-os em bem fallar e escrever, servindo-se dos melhores modelos do século de Luís XIV. (apud CELANE, 2000, p. 222) Entendia-se, do mesmo modo, naquela resolução, a preocupação em conhecer o lugar e as tradições do povo da língua-alvo, assim como o ‘idio- tismo da língua’ – ou seja, seus traços e construções peculiares, assim como que se considerasse, em suas ‘traducções‘, não o sentido literal mas sim os dos elementos que a constituíam, e fazendo que nas traducções dos lugares conheçam o genio, e idiotismo da língua, e as bellezas e elegancias della, e do estylo e gosto mais apurado e seguido. (apud CELANE, 2000, p. 222) Vera Lucia Harabagi HANNA 216 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 Uma concepção clássica de ensino das línguas vivas era condição sine qua non para a introdução das disciplinas no currículo, bem como era ressal- tada a necessidade da comparação com a língua pátria a partir dos usos de literatos quinhentistas: No ensino das duas línguas referidas seguirão os Professores, quanto ao tempo, e ho- ras das lições, e attestações do aproveitamento dos discipulos, o mesmo que se acha estabelecido, e praticado pelos Professores de Grammatica Latina. [...] Na escolha destes livros se preferirão os da mais perfeita e exacta moral; e para a comparação com a língua patria se escolherão os autores clássicos do século de quinhentos, que melhor reputação teem entre os nossos literatos (apud CELANE, 2000, p. 222) Quanto à contratação dos docentes, não traz a resolução nenhum por- menor, mas é possível encontrar em Almeida (2000) alguns dados sobre a nomeação dos primeiros professores de Francês e de Inglês. Em 26 de agosto de 1809, em carta assinada pelo próprio rei, para a cadeira de Francês, foi contratado o Pe. René Boiret, que lecionava a mesma matéria no Colégio Real dos Nobres, em Portugal. Em 9 de dezembro do mesmo ano, foi designa- do o padre irlandês Jean Joyce, o primeiro professor de língua inglesa do país. Podia-se ler na nomeação que “era necessário criar nesta capital uma cadeira de língua inglesa, porque, pela sua difusão e riqueza e o número de assuntos escritos nesta língua, a mesma convinha ao incremento e à prosperidade da instrução pública” (2000, p. 42). Ainda de acordo com o mesmo autor, há registro a respeito do interesse pelas línguas modernas demonstrado por D. João VI, como indica aviso de 8 de julho de 1811: Uma escola de Educação, fundada no Rio de Janeiro, por volta de 1808, pelo Pe. Felisberto Antônio de Figueiredo e Moura, na qual se ensinavam o Português, o Latim, o Francês, o Inglês, a Retórica, a Aritmética, o Desenho e a Pintura obteve a proteção do governo e, neste sentido, foi determinado que os alunos deste estabe- lecimento fossem isentos da prisão e do recrutamento. (2000, p. 47) Em termos práticos, no que se refere à exposição da língua inglesa no cotidiano das grandes cidades, observa-se que a imprensa escrita teve um papel preponderante em sua divulgação, através, principalmente, do anúncio de venda de produtos britânicos. Os jornais divulgavam um novo estilo de vida ao apregoar as inovações, não só de caráter tecnológico, mas também ar- quitetônico, de moda, de comportamento social, assim como divulgava obras Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 217 e ideias literárias e políticas. Para que se entendessem melhor as novas ten- dências e o idioma que as acompanhavam, era preciso conhecê-lo. Gilberto Freyre apresenta, em Os Ingleses no Brasil (2000), anúncios de professores ingleses ou de língua inglesa, encontrados nos jornais cariocas desde a pri- meira metade do século XIX, como o de ‘Professora Ingleza’, saído na Ga- zeta do Rio de Janeiro, de 8 de fevereiro de 1809: Na Rua do Ourives nº 27 mora huma Ingleza com casa de educação para meninas que queirão aprender a ler, escrever, contar e falar Inglez e Portuguez, cozer e bordar, etc. (apud FREYRE, 2000, p. 266). Outro exemplo, do mesmo jornal, de agosto de 1809, oferece o ensino da língua inglesa com ênfase na gramática: Quem quizer aprender a Lingoa Ingleza grammaticalmente com perfeição em pou- co tempo, há de fallar com Francisco Ignácio da Silva, o qual entrega hum bilhete com o nome ao mestre, natural de Londres. [E na mesma Gazeta anunciava João Loureço Toole]:... professor de Lingoa Ingleza; estabelece Aula da dita Lingoa, a qual ensina grammaticalmente, como também Arithmetica e Escripturação dobrada (apud FREYRE, 2000, p. 270). Mais de dez anos mais tarde, o ensino de inglês se destinava a meninos e meninas e não faltaram também colégios que, já nas primeiras décadas do século XIX, incluíram estudos mais práticos em seus currículos, inclusive o ensino de línguas, como se nota no anúncio de um ‘Collegio Inglez’, no Jor- nal do Commercio de 1827: Línguas Latina, Portugueza, Ingleza, Franceza, e Hespanhola, gramaticalmente, Historia e Geographia, Lógica, Rhetorica e elocução Escripta, Arithmetica, e Es- cripturação de livros por partidas dobradas, Álgebra e Geometria, Dezenho e Dança (apud FREYRE, 2000, p. 269). À guisa de exemplo, sobre a influência britânica no país, que mais tar- de justificaria o ensino definitivo e obrigatório daquela língua, registre-se que, além do incentivo às disciplinas práticas, os britânicos também incentivaram o início da co-educação e até a mudança do tipo de caligrafia. Com isso, a rigidez perpendicular da antiga letra dos portugueses foi sendo substituída por uma inclinação de trinta e cinco graus, própria da letra à inglesa. Ademais, a hege- Vera Lucia Harabagi HANNA 218 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 monia econômica, curiosamente, impunha que tinta e papel para essa escrita também fossem ingleses: a Real Japan Ink e o papel Bath, o pergaminho usado para registrar documentos importantes (cf. FREYRE, 2000, p. 243). Em 1830, a busca por aulas particulares, segundo reclame no Jornal do Commercio, não parecia, ser muito alentadora, haja vista o aviso para en- contrar professores de língua inglesa nativos, Deseja se saber, se nesta Corte existe alguma aula Ingleza, cujo mestre seja também Inglez; pede-se o favor de annunciar a sua moradia por este Jornal, a fim de se hir tratar do ensino de hum menino que já aprende a hum anno o mesmo idioma (apud FREYRE, 2000, p. 270). O curto Período Joanino, compreendido entre 1808 a 1821, marca o início da re-europeização do país. O contato com outros povos e ideias, assim como a necessidade imediata de uma reorganização administrativa, animou o desenvolvimento da vida urbana não só do Rio de Janeiro, mas de Salvador e de Recife. As duas primeiras décadas do século XIX, após a chegada da Corte ao Brasil, são consideradas de grande relevância para a educação bra- sileira, já que o Período Pombalino havia reduzido a educação a uma quase estagnação. O fato de as instituições criadas por D. João VI terem surgido, pela primeira vez, de necessidades do país, ainda que em função de ser sede do reino português, é avaliado como extremamente positivo. Além disso, ao romper com o ensino jesuítico colonial, são as novas instituições que dão origem à estrutura do ensino imperial. O Período Imperial (1822-1888) Ao mesmo tempo em que grandes mudanças ocorriam no Brasil, o povo português estava insatisfeito em relação à demora do retorno da Família Real e o consequente abandono de seu território em mãos inglesas, responsá- veis por vários excessos na expulsão das tropas napoleônicas em 1809. Em razão de tal descontentamento, acrescido da pressão dos políticos portugue- ses no sentido de que fossem fechados os portos brasileiros e restabelecido o monopólio comercial, tem início a Revolução Constitucionalista na cidade do Porto, que faz apressar a volta de D. João VI a Portugal em 1821, precipita a proclamação da independência do Brasil em 1822 e força a outorga de uma Constituição brasileira em 1824, que perduraria por todo o período imperial. Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 219 No que diz respeito à educação, o Art. 179 daquela Lei Magna dizia que estava garantida a “instrução primária e gratuita para todos os cidadãos”, assim como a criação de “Colégios e Universidades, onde serão ensinados os elementos das ciências, belas artes e artes” (RIBEIRO, 1998, p. 43). O docu- mento ainda abolia o privilégio do Estado para oferecer instrução. Outro fato de destaque nesse período é a adoção do Método Lancaster, em 1823, transformado em ‘Método Oficial’, pela Lei de 15 de outubro de 1827. Aquele método já fora experimentado na Europa, levado da Índia para a Inglaterra, e seu uso apoiava-se, especialmente, na tentativa de se suprir a falta de professores. Era conhecido também como ‘Ensino Mútuo’, em que um aluno treinado (decurião) ensinava um grupo de dez alunos (decúria) sob a rígida vigilância de um inspetor. Avalia-se que a aplicação do Método Lan- casteriano não obteve o resultado esperado e apenas serviu para diminuir as despesas da Coroa com a contratação de professores. Em relação ao ensino de línguas modernas, é sabido que o francês já tinha algum destaque desde o início do século XIX. Almeida (2000) informa que, quando foi criada a Academia de Ensino da Marinha, no Rio de Janeiro, em 1808, “exigia-se o conhecimento do Francês para ser admitido” (p. 47). O mesmo acontecia na Academia Militar Real do Rio de Janeiro, fundada em 1810, em que “o curso era de sete anos e todos os livros escolares eram em francês” (p. 47). O inglês, no entanto, passou a fazer parte dos exames de admissão para os cursos de Direito somente em 1831, quando sete disciplinas (Latim, Francês, Inglês, Retórica, Filosofia Racional e Moral e Geometria) foram incorporadas aos Estatutos das Academias de Ciências Jurídicas do Im- pério. Em 1832, o inglês passou a fazer parte, ao lado do francês, de maneira opcional, do exame de admissão para os Cursos de Medicina. É necessário que se considere a instalação da Impressão Régia no Rio de Janeiro como um dos maiores destaques da abertura intelectual do país, pois além de inaugurar um novo momento histórico e cultural, abriu caminho para o surgimento de casas editoriais, tipografias e de um mercado de livros até então inexistente. Em 1812, a Biblioteca Pública é franqueada à cole- tividade e registra-se, como lembra Almeida (2000), além daquela, a exis- tência de numerosas associações literárias e científicas, públicas e privadas, entre as quais, a biblioteca inglesa British Subscription Library, fundada em 1826, portadora de 12.000 volumes à época (p. 21). A procura por aulas de inglês, observada anteriormente, remete à questão da existência de livros de Vera Lucia Harabagi HANNA 220 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 autores de língua inglesa encontrados no Brasil no período. É oportuno notar que estudos mais recentes, como aqueles efetuados por Vasconcelos (2004), contradizem informações de que apenas literatura francesa era procurada ou, então, de que as obras da língua inglesa eram lidas em versões francesas. A autora revela que havia, na ocasião, uma presença expressiva de romances ingleses, quer no original, quer traduzidos. Entre os escritores mais lidos es- tava Walter Scott, com dezenas de obras no original e traduzidas, sendo que a mais popular era Ivanhoé e suas aventuras, que constavam do catálogo do Gabinete Inglês de Leitura, da Biblioteca Fluminense (fundada em 1847), do Gabinete Português de Leitura Rio de Janeiro, (fundado em 1837) e da British Subscription Library. Em segundo lugar estava Charles Dickens, com ou- tras dezenas de obras, destacando-se David Copperfield, Great Expectations, Oliver Twist, em inglês, francês ou em tradução portuguesa, e de Christmas Carols, de 1843, encontrado no Gabinete Português de Leitura. Seguiam-se Daniel Defoe com As Aventuras de Robinson Crusoe, Robert Louis Steven- son, com A Ilha do Tesouro, vários romances de Edgard Allan Poe, das irmãs Bronte, de Jane Austen, de Joseph Rudyard Kipling, para citar apenas alguns. Circulavam, também, textos de pensadores e poetas, como Geoffrey Chaucer, Samuel Coleridge, Henry Wadsworth Longfellow, o ensaísta escocês Thomas Carlyle, o filósofo e economista político John Stuart Mill, o filósofo Herbert Spencer. De Jonathan Swift, famoso por Viagens de Gulliver a vários países remotos, foram encontradas traduções portuguesas de 1793, 1836 e 1870 na Biblioteca Fluminense e no Gabinete Português de Leitura. Esses e outros es- critores de língua inglesa e suas obras, lembre-se, são citados inúmeras vezes por Machado de Assis em suas crônicas, direta ou indiretamente. Apesar dessas iniciativas, o ensino brasileiro, até meados do século XIX, ainda padecia da herança recebida da colônia, ou seja, tinha poucas es- colas primárias e médias em mãos de eclesiásticos e alguns seminários epis- copais destinados a uma pequena minoria nobre da corte. Em 1834, com o Ato Adicional da Reforma Constitucional, a educação primária e secundária ficaria a cargo das províncias, restando à administração nacional o ensino su- perior. O objetivo era a descentralização do ensino e um aumento do número de escolas elementares, intuito só atingido por poucas províncias, como a de São Paulo, por exemplo, que passava por um grande avanço político-econô- mico, ao mesmo tempo em que recebia imigrantes europeus que prezavam a educação como forma de ascensão social. Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 221 Mais uma vez, impera o sistema dual de ensino, com superposição dos poderes central e provincial, o que, a longo prazo, definiu a composição da es- trutura e grade curricular da escola secundária. O ensino profissionalizante ou técnico era desprezado e considerado desonroso pelo regime escravista que dava grande ênfase à educação literária e retórica. A descentralização acarre- tou um desenvolvimento das escolas secundárias particulares, principalmente nas capitais e províncias. Criado pelo Governo Federal, em 1837, o Colégio de Pedro II consti- tuiu-se na única instituição de cultura geral fundada durante o Império. Após a criação do Colégio, destinado a servir de padrão de ensino, houve várias tentativas de mudança na educação brasileira, com inúmeras reformas rela- tivas à organização escolar como um todo. A instituição passou por momen- tos considerados de franco progresso, mas inúmeras vezes atravessou fases de estagnação e retrocesso, à mercê das reformas políticas e ministeriais. A predominância dos estudos literários e retóricos do Colégio, de caracterís- tica fortemente europeizante e aristocrática, ainda revelaria uma verdadeira obsessão com os estudos superiores, não havendo, em absoluto, preocupação com a educação do povo. É possível registrar-se um avanço na escola brasi- leira secundária após a criação do Colégio de D. Pedro II, ainda que a essên- cia da orientação quinhentista fosse mantida — o currículo inicial do colégio demonstra forte interesse no latim e grego, por exemplo. A língua inglesa, de acordo com o decreto de 2 de dezembro de 1837, entrou para o currículo das escolas que se dedicavam ao ensino secundário de fato, ocasião em que Ber- nardo de Vasconcelos, regente interino do Colégio, decreta que naquele edu- candário “serão ensinadas as línguas latina, grega, francesa e inglesa, retórica e os princípios elementares de geografia, história, filosofia, zoologia, minera- logia, botânica, química, física, aritmética, álgebra, geometria, e astronomia” (Annuario do Collégio Pedro II, 1914, p. 42). Dedica-se, pela primeira vez, uma maior atenção às línguas modernas. Em 1841, quando o curso completo da instituição passou para sete anos, juntamente com as clássicas, as línguas modernas passaram a fazer parte de quase todas as séries, conforme palavras de Azevedo: [...] as matemáticas e as ciências físicas, químicas e naturais amontoavam-se nos três últimos [anos], enquanto o grego é ensinado em quatro, e o latim, o francês e o inglês se estendem pelos sete anos, apresentando o latim maior número de lições do que o de quaisquer outras disciplinas. Esse plano de estudos consagra no Colégio Pedro II Vera Lucia Harabagi HANNA 222 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 um ensino secundário de tipo clássico, com predominância dos estudos literários e adaptado menos às condições especiais do meio do que às tradições morais e intelec- tuais do país. (1976, p. 79) Em 1855, o ministério de Couto Ferraz introduz alterações conside- ráveis no ensino, que visavam às exigências culturais e sociais do Brasil de então. O ensino secundário passou a ser ministrado em sete anos, seguindo orientação dos liceus franceses, divididos em dois ciclos: um ciclo de quatro anos, semelhante ao antigo ginásio, chamado de ‘estudos de primeira classe’, e outro de três que lembra o antigo colegial, os ‘estudos de segunda clas- se’. Tal orientação foi mantida até 1900 quando o tempo foi reduzido para seis anos. Obteria o grau de Bacharel em Letras o aluno que terminasse os dois ciclos, interesse esse de quase todos que o frequentavam. Constavam do exame de admissão, de acordo com o Decreto n. 1.601, de 10 de maio de 1855 (GPHELB, 2006), para os cursos superiores, provas de versão de autores clás- sicos latinos, e de renomados escritores em francês e em inglês, assim como trechos de autores nacionais deveriam ser traduzidos para a língua pela qual se optasse para o exame. Tanto o currículo das línguas clássicas como o das modernas sofreram várias alterações após serem inseridas no Ensino Secundário. Como demons- trará o quadro, na conclusão desse artigo, a Reforma Couto Ferraz, ao mesmo tempo em que dedicava dez anos de estudo ao latim e ao grego, destinava, pela primeira vez, nove anos ao francês, ao inglês e ao alemão, mais um, facultativo, ao Italiano — medida que se manteve mais ou menos estável até o fim do regime imperial. Em 1857, acontece a reforma do Marquês de Olinda que, segundo o Annuario do Collégio Pedro II de 1914 (p. 68), dividiu a instituição em dois estabelecimentos, o Internato e o Externato e acrescentou um 5º ano aos estudos de primeira classe. Nessa série foi incluído o inglês, ao lado do francês, alemão, italiano, latim e grego. O número de aulas de língua estran- geira nunca foi consensual, passando por inúmeras modificações num eterno câmbio de horas entre os idiomas, o que ocasionou, com o passar dos anos e a vontade dos ministros, a diminuição do número final de horas semanais para aquelas disciplinas. O auge e a decadência no estudo de línguas estrangeiras, na verdade, seguem o próprio auge e desprestígio por que passou a Escola Se- cundária durante o Império e a Primeira República, numa eterna tentativa de Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 223 adaptar o país e o ensino às mudanças que ocorriam celeremente pelo mundo. Chagas (1957) afirma que o estudo de línguas estrangeiras somente passou a ser levado a sério no ensino secundário oficial a partir de 1931, com a Refor- ma Francisco de Campos, que destinou seis horas por semana ao ensino do latim e dezessete ao estudo de línguas modernas. Para Chagas, essa primeira experiência séria para atualizar o estudo de idiomas modernos permite en- xergar no desenvolvimento da didática do ensino de línguas estrangeiras no Brasil “duas fases claramente definidas: ‘antes de 1931’ e ‘depois de 1931’.” Em 1860, o inspetor geral Euzébio de Queiroz explica em relatório que deveria haver o acréscimo de um ano para o estudo do francês — à época dado em três anos enquanto ao inglês eram dedicados quatro, como relata Almeida (2000): [...] é útil consagrar um ano mais ao estudo do francês; ele baseia sua opinião na di- ficuldade gramatical desta língua, maior que a da língua inglesa à qual se dedicam quatro anos e somente três para a língua francesa. (p. 103) A Reforma Paulino de Souza, de 1870, pretendia imprimir aos estudos realizados no Colégio Pedro II um caráter formativo, habilitando os alunos não só para os estudos superiores, mas para a vida e, acima de tudo, pretendia que a instituição fosse capaz de competir com os estabelecimentos particula- res no aliciamento de candidatos às Academias. Apesar de ser “uma fase rica de propostas de reformas de quase todas as instituições existentes”, como as- segura Ribeiro (1998, p. 65), em 1872, o Brasil contava com uma população de 10 milhões de habitantes e apenas 150.000 alunos matriculados em escolas primárias. O índice de analfabetismo é de 66,4% e as reformas, baseadas no liberalismo e cientificismo do século XIX, não surtem o efeito esperado, pois pareciam estar longe da realidade. Segundo o Grupo de Pesquisa História do Ensino de Línguas no Bra- sil (2006), o Decreto n. 4.468, de 1º de fevereiro de 1870, dizia que o ensino de línguas estrangeiras seria comparável ao de Língua Portuguesa e, quan- to às Línguas Vivas, enfatizava, pela primeira vez, a habilidade oral, assim como sugeria um “aperfeiçoamento nas linguas latina, franceza e ingleza” com “prelecções elementares” sobre a índole, formação e progresso de cada uma delas, alternadas com a leitura, tradução e “appreciação litteraria” dos “autores clássicos”. Vera Lucia Harabagi HANNA 224 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 Colégios laicos e as primeiras escolas protestantes destacam-se nessa época por trazer as ideias pedagógicas americanas e propagá-las no Brasil. Em São Paulo, é fundada a Escola Americana, em 1870, que se dedica ao ensino elementar e, dez anos mais tarde, à escola secundária — ambas do Ma- ckenzie College, hoje, Escola Americana e Colégio Presbiteriano Mackenzie, que serviriam de modelo para a escola pública em São Paulo no início da República: [...] na realidade, transplantavam para o Brasil as experiências que os Estados Uni- dos haviam desenvolvido, a partir das inovações que receberam da Europa. O prag- matismo americano ainda não havia encontrado sua expressão filosófica e já a escola americana atendia às exigências das condições sócio-culturais de sua clientela (REIS FILHO, 1974, apud RIBEIRO, 1998, p. 68). No Decreto n. 6.130, de 1º de março de 1876 (GPHELB, 2006), com exceção do grego, houve uma diminuição considerável no número de aulas de línguas estrangeiras — o alemão e o italiano já haviam sido extintos na reforma de 1870; o latim e o francês ficam com apenas metade de suas aulas, respectivamente 3 e 2 anos de estudo, e o inglês passa de 4 para 1 ano, sendo ensinado apenas no 5º ano, assemelhando-se ao programa de francês e ao de línguas clássicas, com a exceção da conversação. Em 1879, o Conselheiro Leôncio de Carvalho realiza uma reforma de ensino que permitiria “a cada um expor livremente suas ideias e ensinar as doutrinas que acredite verdadeiras, pelos métodos que julgue melhores”, pois defendia que os Estados Unidos e países europeus prosperavam em consequência da “adoção do princípio de liberdade de ensino” (RIBEIRO, 1998, p. 67). Ao mesmo tempo, manteve as matrículas avulsas e introduziu a frequência livre e os exames vagos no Externato do Colégio de Pedro II, que continuava com um ensino secundário propedêutico e seletivo. No currículo de línguas estrangeiras houve apenas acréscimo de uma aula a mais na cadeira de inglês, que passou a ser ensinado no terceiro e quarto anos. A Reforma do Ministro Homem de Mello, em 1881, foi a última do período imperial e merece destaque, no Annuario do Collegio Pedro II, de 1914, pelo fato de ter sido dada maior atenção ao ensino de Português, até o 5º ano, feito a partir de então, com desdobramentos nas séries seguintes: Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 225 sendo continuado no 6º pela Retórica, Poética e Literatura Nacional e terminando no 7º pela história da Língua, pelo seu estudo comparativo com as outras línguas românticas [...] e pela análise das diferentes fases da literatura lusitana. (1914, p.84) Quanto às outras línguas, “o Latim seria estudado do 2º ao 5º ano e o Inglês no 4º e 5º ano, o Alemão e o Grego no 6º e 7º ano, o Italiano no 7º” (1914, p. 86-87). É necessário ressaltar que àquela data, embora o currículo das línguas clássicas e modernas tenha sofrido constantes perdas e ganhos no número de horas de estudo, nada é comparável à falta de atenção dedicada ao estudo da língua portuguesa. Comparativamente, como explica Chagas, espantava que, embora fossem ensinadas sete línguas, [...] ‘além de Retórica e Literatura, ‘entre essas línguas’ o Português nem sequer aparecesse no plano de 1876; ou aparecesse com menos de 1% nos de 1841 e 1878; com menos de 10% nos de 1853 e 1857; e com menos de 15% nos de 1862 e 1870; para surgir 27,7% no de 1881; sempre considerando isoladamente a área de Letras (1978, p. 20). Não se pode deixar ainda de comentar que o interesse no idioma na- cional teve lugar na escola secundária apenas pela razão de passar a ser exigi- do como preparatório para os exames de ingresso aos cursos superiores. Ao se estudar a evolução do ensino no país como um todo, conclui-se que o Brasil chegava ao final do século XIX numa situação quase calamitosa. Segundo Morais (1989), no final do século XIX, o país contava com poucas escolas primárias — 250 mil alunos em cursos primários, num total de 14 milhões de habitantes — ou seja, pouco havia sido feito para a educação básica. No que se refere à frequência nos cursos superiores, em 1864, havia 826 alunos estudando Direito (essa preferência aumentaria ainda mais), 294 na Escola de Medicina, 154 em Engenharia e 109 na Escola Militar (p.103). Sabe-se que após 1870, com o fim da Guerra do Paraguai, aumentam as campanhas abolicionistas e republicanas e setores descontentes da igreja e dos quarteis promovem movimentos que levam à queda da Monarquia. A educação refletia as incertezas do período: a instrução pública, em algumas províncias, encontrava-se em grande atraso enquanto em outras havia muita lentidão. Em poucas era sensível o progresso, mas nenhuma apresentava um resultado que pudesse ser considerado satisfatório, quer pelo número e ex- Vera Lucia Harabagi HANNA 226 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 celência de professores e estabelecimentos de ensino, quer pela frequência e aproveitamento dos alunos. Ao cair a Monarquia em 15 de Novembro de 1889, o Governo Pro- visório, em que dispunha de grande influência Benjamin Constant, professor afamado e adepto do Positivismo, reformou profundamente a instrução em todo país. A Reforma de Benjamin Constant, Decreto n.º 1.075, de 22 de novembro de 1890, tinha como princípios orientadores a liberdade e a lai- cidade do ensino, como também a gratuidade da escola primária. As línguas estrangeiras modernas sofrem mais uma vez um corte de aulas no currículo da escola secundária e diminui-se um ano no estudo do latim. Eliminam-se o italiano, a retórica e do estudo das literaturas estrangeiras, substituído pelo da História da Literatura Nacional. O inglês, juntamente com o alemão, passa a ser disciplina optativa nos estudos de primeira classe, oferecido do 3º ao 5º ano. A reforma de Benjamim Constant não foi colocada em prática, ele foi afastado do ministério e faleceu no ano seguinte. As línguas modernas retomaram relativa importância, novamente, com a Reforma Fernando Lobo, Decreto n.º 1.041, de 11 de setembro de 1892, em 1892. O latim, o francês e o alemão passaram a ter o mesmo tempo de estudo que as línguas clássicas – três anos – fazendo parte dos exames nos institutos oficiais de ensino secundário dos estados. Em 1898, a nova Reforma Amaro Cavalcanti, Decreto n.º 2.857, de 30 de março de 1898, institui um novo regulamento para o colégio de D.Pedro II, o “Curso Propedêutico ou Realista”, de seis anos, e o “Curso Clássico ou Humanista”, de sete anos, que dá, mais uma vez, prioridade às disciplinas hu- manísticas — História da Filosofia, Latim e Grego. As línguas vivas, inglês, alemão e francês eram oferecidas em quase todos os anos dos dois cursos, como optativas, versão que perdurou quase que integralmente nas duas décadas se- guintes. Com o ministro Epitácio Pessoa, Decreto n.º 3.890, de 1.º de janeiro de 1901, em 1901, aquelas línguas voltam a ter um aspecto pragmático, perdendo o tratamento literário. Até 1931, quando se verifica uma mudança de paradigma no ensino brasileiro — formação do aluno com vistas aos grandes setores da ativida- de nacional —, verifica-se um movimento pendular entre a visão prática do ensino de línguas estrangeiras e suas respectivas ‘evoluções literárias’, nos variados regulamentos que se seguiram. É naquele ano, com Portaria de 30 de junho de 1931, que se enfatiza, como procedimento de ensino oficial Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 227 das línguas vivas, nas aulas de francês, de inglês e de alemão a utilização do ‘Método Direto Intuitivo’, ou ‘Método Direto’— metodologia monolíngue de ensino de língua estrangeira centrada somente no uso da língua alvo em sala de aula, idealizada no final do século XIX, por François Gouin, com o nome de Series Method, tornando-se mais tarde, o Direct Method. Foi uma das primeiras reações ao excesso de explicações de regras gramaticais e me- morização de listas de vocábulo; em seu lugar, o aluno aprenderia por meio da associação direta de palavras e frases com objetos e ações; o uso da língua materna e a tradução são quase que proibidas nessa percepção. O período da Primeira República (1889-1929) constituiu-se de uma série de reformas no ensino, tão indefinidas quanto as da fase anterior, tornan- do-se apenas um prolongamento do Império. Fica evidente que, conquanto tivesse havido por volta de oito reformas empreendidas durante trinta e cinco anos, elas não serviram para apresentar resultados positivos na educação bra- sileira como um todo, pois a preocupação primeira de preparar jovens para o curso superior continuava incoerentemente a se perpetrar, em detrimento da escola básica. Entrava-se no novo século continuando a buscar inspiração nos modelos europeus que, paulatinamente, ganhavam a concorrência dos padrões americanos, seguindo a tendência marcante do século XX. Inspira- ções à parte, a história demonstra que, embora as pretensões fossem elevadas, correriam outros trinta anos até que as reformas na educação começassem a apresentar algum resultado positivo: isso só aconteceria a partir da Reforma Francisco de Campos, em 1931. Considerações finais Muitos foram os que, em geral, com pouco conhecimento dos proble- mas educacionais, apresentaram projetos de reforma do ensino, as quais, no entanto, não lograram resolver os graves problemas educacionais brasilei- ros. Não somente faltava infraestrutura institucional como também vontade e apoio político das classes mais abastadas, que temiam ideias efetivamente reformadoras. O resultado desastroso a que se chegara em 1890, no Brasil, era o índice de 85% de analfabetos, sendo que a virada do século apresentaria, igualmente, um número nada otimista de 75% de analfabetos que perduraria até 1920, segundo o Anuário Estatístico do Brasil de 1936. Com referência à evolução do ensino de línguas estrangeiras, o quadro abaixo, baseado nos da- Vera Lucia Harabagi HANNA 228 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 dos de Chagas (1957, p. 87), demonstra claramente, como expusemos ao lon- go deste artigo, o desprestígio sofrido por aquelas disciplinas, que acompa- nha, como já se disse, o próprio desprestígio da escola secundária brasileira. Por Períodos de Estudo Data Reformas Línguas Clássicas Línguas Modernas Latim Grego Francês Inglês Alemão Italiano 1855 Couto Ferraz 7 3 3 3 3 1 (Facul- tativo) 1857 Marquês de Olinda 7 2 3 4 2 1 (Facul- tativo) 1862 Sousa Ramos 7 2 3 4 2 2 (Facul- tativo) 1870 Paulino de Souza 6 2 4 4 - - 1876 Cunha Figueiredo 3 2 2 1 2 (Faculta- tivo) - 1878 Leôncio de Carvalho 3 2 2 2 2 - 1881 Homem de Melo 4 2 2 2 2 1 (Facul- tativo) 1890 Benjamin Constant 3 2 3 3 (opcional) - 1892 Fernando Lobo 3 3 3 3 3 - 1900 Epitácio Pes- soa 3 3 3 3 3 - Mais do que a constante redução do tempo dedicado ao ensino de lín- guas estrangeiras e da crescente mudança de currículos, demarcadas no qua- dro, o início do século registra falta de qualidade no ensino, oferecido ainda somente a uma pequena parcela da população, interessada, geralmente, ape- nas na busca de um diploma — fenômeno que ficou conhecido como ‘bacha- relismo’—, segurança e ascensão profissional. O bacharel em Direito tornara- se uma nova constante na vida política brasileira, com carreira valorizada na conjuntura sócio-político-cultural da época. Em resumo, persistia o ensino secundário já considerado de má qualidade no Império. O Brasil adentra o novo século atingido pelo confronto de ideias entre correntes divergentes e Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 229 a existência de novas forças sociais, sobretudo aquelas relacionadas com as modificações na estrutura econômica, que, influenciadas pelos movimentos europeus, reforçam a incerteza do caminho a seguir. Os resultados relativos ao índice de analfabetismo indicam que o Brasil não conseguia tirar o atraso de séculos de colonização portuguesa e alcançar a velocidade do passo dado pela Europa e os Estados Unidos com a Revolução Científico-Tecnológica. Havia um clima de enaltecimento do cosmopolitismo, identificado com a vida e os padrões europeus e valores burgueses. Aqueles que faziam parte das eli- tes pareciam não esconder que almejavam ser menos ‘brasileiros’, enterrar o passado colonial, escravocrata e esconder a vergonha do Brasil de ser pobre e negro. A tentativa da formação do que seria uma identidade brasileira era tam- bém estimulada pelo programa de incentivo à imigração, com o objetivo claro de que os europeus trariam prosperidade econômica e social e europeizariam e ‘embranqueceriam’ a sociedade brasileira. Procurava-se, com a integração dos imigrantes ao trabalho, um ideal de construção de uma nacionalidade (HANNA et al, 2006, p. 66). A Belle Époque, momento em que a cena cultural fervilhava com o cinema e que a arte alcançava novas formas com o Impressionismo e a Art Nouveau, é bruscamente interrompida com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. No Brasil, a Belle Époque Tropical abrange aproximadamente o pe- ríodo pós-republica, de 1900 a 1920 — ocasião em que o país, aproveitando o momento de mudança drástica no padrão do comércio mundial, amplia suas exportações para as nações beligerantes, ao mesmo tempo em que cria novas indústrias para substituir parte dos artigos importados. Como se posicionaria a educação no Brasil nesse contexto de mu- danças sócio-econômico drásticas? Como acompanhar as novas ideias pro- pagadas em âmbito internacional, surgidas de grupos de estudiosos europeus e americanos que rompiam com o ensino tradicional e propunham reformas educacionais que transformariam a concepção de educação no mundo oci- dental? Para que se tente entender o difícil período que enfrentaria a educa- ção brasileira até aproximadamente 1930, no que se refere à equiparação do país às potências europeias e americanas, é preciso lembrar que, enquanto o Brasil ainda não conseguira solucionar o índice de aproximadamente 75% de analfabetos, as matrículas nas universidades americanas haviam triplicado durante a década — de 250.000 estudantes em 1920, passaram a 750.000 em 1930 (LANE; O’SULLIVAN, 1999). Vera Lucia Harabagi HANNA 230 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 Faz-se imperativo citar apenas alguns dos nomes mais importantes, responsáveis por mudanças surpreendentes no modo de pensar a educação, como um todo, nas primeiras décadas do século XX e já em prática nos paí- ses de que se originavam. São eles: o educador escocês Alexander Sutherland Neil, que funda em 1921, na Inglaterra, a Escola Summerhill; a educadora italiana Maria Montessori, que edita, no mesmo ano, o Manual da Pedagogia. Em 1923, é a vez de Jean Piaget lançar a obra A linguagem e o pensamento na criança, e, no ano seguinte, O raciocínio e o julgamento na criança. O fi- lósofo, reformador e educador americano John Dewey, um dos fundadores da Escola do Pragmatismo, que já havia lançado em 1887, Psicologia, em 1899, Escola e Sociedade e que, em 1916, editaria uma das obras mais extraordi- nárias na área da Pedagogia Moderna, Democracia e Educação. Mas essa é uma outra história, que fica para uma outra vez. HANNA, Vera Lucia Harabagi. Considerations regarding the course of foreign language teaching in Brasil: XVI - XIX Century. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009. ABSTRACT: The aim of this article is to present a brief history of the Brazilian education. We draw a panorama of the development of the teaching of modern languages and recollect language instruction memory of the period. KEYWORDS: Brazilian Education. Foreing Language Teaching. Modern Languages. Referências ALMEIDA, José Ricardo Pires. História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889) História e Legislação. Brasília: INEP/ PUC SP, 2000. AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil: a administração pombalina. 2. ed. Brasília: FUNCEP/Editora da Universidade de Brasília, 1983. ______. A transmissão da cultura.... São Paulo: Melhoramentos/INL, 1976. (Parte terceira da 5. ed. da obra “A cultura brasileira”) CELANE, Maria Antonieta Alba. O ensino de Língua Estrangeira no Império: O que mudou? In: BRAIT, Beth; BASTOS, Neusa (Orgs.). Imagens do Brasil: 500 anos. São Paulo: EDUC, 2000. p. 216-248. Reflexões sobre a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 207-231, 2009 231 CHAGAS, Valnir. Didática Especial de Línguas Modernas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. COLLEGIO PEDRO II. Annuario do Collegio Pedro II, 1º Anno, 1914. Revista dos Tribunaes, Rio de Janeiro, 1914. FREYRE, Gilberto. 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Neste trabalho, realizado na perspec- tiva da História das Ideias Linguísticas, que articulamos com a Semântica da Enunciação e a Análise de Discurso, buscamos compreender as filiações de sentidos do documento que aprovou o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vias de entrar em vigor unificando a ortografia do Português do Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Timor Leste e São Tomé e Príncipe. PALAVRAS-CHAVE: Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Políticas Linguísticas. História das Ideias Linguísticas. Introdução Neste trabalho, analisamos a orientação argumentativa do documento que aprovou o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado, em 1990, pelos governos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, mais tarde, em 2004, pelo governo do Timor-Leste. Trata-se de uma ação político-jurídica fomentada pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, doravante CPLP, oficialmente constituída em 1996, mas em funcionamento desde 1989, quando ocorreu, na cidade de São Luís, no Maranhão, o primeiro encontro dos Chefes de Estado e de Go- verno dos países de Língua Portuguesa. Essa agremiação de países considera como imperativas a “afirmação e divulgação cada vez maiores da Língua Portuguesa”, como lemos em sua 1 Programa de Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Bolsista FAPESP, Campinas, São Paulo, Brasil. jose-simao@uol.com.br Acordo Ortográfico e a unidade imaginária da língua portuguesa Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 233 declaração constitutiva, e tem como objetivos, entre outros, a “promoção e difusão da Língua Portuguesa”, como consta do artigo terceiro de seu estatuto. Essa não foi, contudo, a primeira vez que se buscou a unificação or- tográfica da Língua Portuguesa daqui e d’além mar, como apontam Souza e Mariani (1996). Não faltam, em nossa história das ideias linguísticas, ações político-jurídicas com vistas a unificar e simplificar a ortografia da Língua Portuguesa do Brasil e de Portugal. Destacam-se, nesse sentido, as atuações da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa na produção conjunta de vocabulários ortográficos. Essas tentativas anteriores de unificação e simplificação da orto- grafia da Língua Portuguesa se caracterizaram, como assinalam Souza e Mariani, pela busca do “ideal ortográfico” que garantisse “o prestígio e a expansão de um idioma nacional” (1996, p. 91). São acordos e tratados ortográficos firmados ou apenas formulados entre o Brasil e Portugal que sinalizam as contradições constitutivas de nosso processo de gra- matização. Na segunda metade do século XIX, começou, de forma mais regular, o processo brasileiro de descrição e instrumentação da Língua Portuguesa, na base, sobretudo, de duas tecnologias: a gramática e o dicionário. A partir dessa época, o saber sobre a Língua Portuguesa aqui produzido se tornou questão brasileira. A produção de gramáticas e dicionários se articulou com a constituição da língua nacional do Brasil. Apesar disso, produziu-se a necessidade de legitimar a escrita brasilei- ra do Português associando-a à já historicamente legitimada escrita portugue- sa, como vemos nos tantos gestos que buscaram a unificação da ortografia de Portugal e do Brasil. 1. Argumentação e agenciamento político da enunciação A argumentação tem sido objeto de estudo desde a antiguidade. Ela foi inicialmente teorizada pela Retórica. O primeiro tratado metódico sobre a arte da palavra, intitulado Teoria Retórica, foi escrito por Córax e Tísias, na Sicília, por volta do ano 465 antes de nossa era. Depois de se desenvolver amplamente na antiguidade greco-romana como a arte de falar em público de forma persuasiva, a Retórica acabou se José Simão da SILVA SOBRINHO 234 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 limitando, por longo período, à classificação das figuras de estilo. Viu-se, assim, diminuído, no século XIX, o interesse pelo estudo da argumentação. No século XX esse interesse aumentou com o surgimento da chamada Nova Retórica. Multiplicaram-se os estudos da argumentação. Plantin (1996) fala, em termos gerais, de três grandes tendências na abordagem da argumen- tatividade hoje em dia. Uma tendência define a argumentação como relativa a uma das ope- rações do espírito. Para essa tendência são três as operações do espírito: a apreensão, o julgamento e o raciocínio. A essas três operações cognitivas cor- respondem, respectivamente, três operações linguísticas: a referência, a pre- dicação e a argumentação, igualmente hierarquizadas. Na primeira operação, o espírito apreende um “conceito”, que, no pla- no linguístico, o ato de referência liga a um “termo”. Na segunda operação, o espírito reúne dois conceitos em uma “proposição”. No plano linguístico, o ato de predicação liga o termo sujeito ao termo predicado, constituindo, assim, um “enunciado”. Na terceira operação, o espírito articula um grupo de proposições em uma “inferência”. No plano linguístico, essa articulação liga os enunciados em uma “argumentação” (PLANTIN, 1996). Depois dos anos 1950, houve, segundo Plantin (1996), uma “pragma- tização” dos estudos da argumentação, que passaram a ser desenvolvidos na perspectiva das lógicas de conteúdo (lógica substancial, lógica não-formal, lógica natural, lógica cognitiva), lógicas que incluem a dimensão do diálogo (natural, formal, etc.) no tratamento da argumentação. Essa tendência concebe a argumentação como uma forma particu- lar de interação, considera que a argumentatividade caracteriza um tipo de interação verbal regida por uma distribuição específica dos papéis dis- cursivos, ideia antiga já formulada, de certa forma, pela Retórica e pela Dialética. A terceira tendência nos estudos da argumentação, segundo Plantin, surgiu a partir do início dos anos 1980, quando se desenvolveram teorias da interação verbal que articularam a análise conversacional à análise da argu- mentação. Nessa perspectiva, a argumentação foi associada, por exemplo, à questão da gestão das faces nas trocas conversacionais. Ao que nos parece, essas tendências se sustentam, cada uma a seu modo, sobre uma mesma concepção de sujeito: o sujeito do cogito, o res cogitans da ciência moderna. Acordo Ortográfico e a unidade imaginária da língua portuguesa Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 235 Isso nos coloca a questão fundamental da configuração do sujeito da ciência na Linguística. Como assinala Henry ([1977] 1992),2 a Linguística, tanto a estruturalista quanto a gerativista, instaurou seu domínio no campo da complementaridade da realidade psicológica e da realidade social. Essa inscrição da Linguística no campo da complementaridade confi- gura o sujeito da ciência, nos seus domínios, “pelo viés da hipótese de uma in- teriorização de um saber no indivíduo” ([1977] 1992, p. 124 – grifo do autor), sendo considerado como secundário o fato de que “esse saber esteja fora do alcance da consciência individual na atividade da linguagem ou na atividade em geral” ([1977] 1992, p. 124). Henry argumenta que essa configuração do sujeito da ciência, “sem- pre acompanhada por uma forma de redução do objeto de conhecimento ao objeto real” ([1977] 1992, p. 124), passa “ao largo da dimensão da história formulada pelo conceito de ‘luta de classes’” ([1977] 1992, p. 122). As tendências nos estudos da argumentação apontadas por Plantin (1996) se inscrevem, pensamos, nessa configuração do sujeito da ciência, produzindo o apagamento da historicidade do sujeito, dos sentidos, dos obje- tos de investigação. Por outro lado, a Semântica da Enunciação que vem sendo desenvolvi- da por Guimarães (1995, 2002, 2007) coloca sobre outras bases os estudos da argumentação. Ela desloca a questão da argumentação do campo do formalis- mo, do funcionalismo, do sociologismo e do psicologismo. Para compreendermos o deslocamento ao qual nos referimos, pre- cisamos lembrar que Guimarães (1989) define a enunciação como o acon- tecimento sócio-histórico da produção do enunciado. Para ele, a enuncia- ção não é um ato individual de utilização da língua, como foi proposto por Benveniste ([1970] 1989), bem como não é uma atividade de linguagem da ordem do irrepetível, como formulado por Anscombre e Ducrot (1976). Pelo contrário, “o repetível está na enunciação porque ela se dá no inte- rior de uma formação discursiva” (GUIMARÃES, 1989, p. 79). Sendo sócio-histórico, o acontecimento enunciativo está exposto tanto ao repetí- vel quanto ao novo. Como se verifica, nessa definição de enunciação, Guimarães se afasta da tendência, nas teorias da enunciação, de reproduzir em termos teóricos a ilusão do sujeito de ser origem do dizer e dos sentidos. Nota-se, por essa defi- 2 A data entre colchetes é a da primeira edição da obra; a outra data é a da edição consultada. José Simão da SILVA SOBRINHO 236 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 nição, que o autor não trabalha com a ideia de um sujeito enunciador portador de escolhas e intenções. Nisso, Guimarães se aproxima de Pêcheux, para quem, os processos de enunciação “consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que tem por característica co- locar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o ‘não-dito’” (PÊCHEUX; FUCHS, [1975] 1997, p. 175-6). Desse modo, a língua não é posta em funcionamento pelo indivíduo (pessoa que fala esta ou aquela língua), mas pelo interdiscurso dentro de es- paços de enunciação, definidos por Guimarães (2002) como espaços de fun- cionamento de línguas que dividem desigualmente os falantes em relação aos direitos ao dizer e aos modos de dizer. Por essa via, chegamos à noção de “forma material” (ORLANDI, 2001, p. 49), ou seja, ao entendimento de que a língua é posta em funciona- mento pela história. É pela relação da língua com a história que se diz uma coisa e não outra, que se diz de uma forma e não de outra. Há, nos termos de Guimarães (2007), um agenciamento político da enunciação. 2. Orientação argumentativa do acordo: o político na linguagem A argumentação é, como a estamos tomando, uma operação enunciati- va de articulação de enunciados pela qual se produz uma “injunção à interpre- tação” (ORLANDI, 1990, p. 36). Em outros termos, a argumentação é uma operação enunciativa de articulação que, ao operar um recorte do memorável, projeta sentidos para o texto, como veremos no Acordo Ortográfico da Lín- gua Portuguesa (1990): Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Considerando que o projecto de texto de ortografia unificada de língua por- tuguesa aprovado em Lisboa, em 12 de outubro de 1990, pela Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a ade- são da delegação de observadores da Galiza, constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional. Acordo Ortográfico e a unidade imaginária da língua portuguesa Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 237 Considerando que o texto do acordo que ora se aprova resulta de um apro- fundado debate nos Países signatários, a República Popular de Angola, a República Federativa do Brasil, a República de Cabo Verde, a República da Guiné-Bissau, a República de Moçambique, a República Portuguesa, a República Democrática de São Tomé e Príncipe, acordam no seguinte: Artigo 1 - É aprovado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que cons- ta como anexo I ao presente instrumento de aprovação [...] [...] Nos dois primeiros parágrafos do texto, estão formulados os três enunciados que integram o texto dando-lhe uma “orientação argumentativa” (GUIMARÃES, [1987] 2007, p. 25), estabelecendo o modo de interpretar o seu futuro. A introdução desses enunciados por meio da expressão linguística “considerando que” produz um efeito de sustentação que silencia o debate sobre o dizer, uma vez que o coloca como já-sabido do leitor: (A) Considerando que [o acordo] constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa. (B) [Considerando que o acordo] constitui um passo importante para o seu [da língua portuguesa] prestígio internacional. (C) Considerando que [o acordo] resulta de um aprofundado debate nos Países signatários. Esses enunciados constituem uma escala argumentativa (DUCROT, [1973] 1981) que pode ser representada como segue: José Simão da SILVA SOBRINHO 238 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 Os enunciados (B) e (C) inscrevem o acordo numa certa discursivida- de sobre a internacionalização da Língua Portuguesa e numa dada concepção de consenso que apaga o político, o litígio, o dissenso, produzindo efeitos de sentidos que inibem subjetivações contrárias a (r). Tendo em vista nosso interesse neste artigo, não examinaremos, po- rém, esses dois enunciados. Limitaremos nosso trabalho à compreensão de (A), enunciado que está na base da escala argumentativa projetando sentidos para (r). Analisaremos esse enunciado empregando a paráfrase como proce- dimento de análise. Buscamos, com esse procedimento, desfazer a ilusão da transparência da linguagem. Expondo o texto sob análise a sua opacidade, queremos dar visibilidade às filiações de sentidos que o constitui. Vamos, então, às paráfrases: (A) Considerando que [o acordo] constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa. (A’) Há unidade na língua portuguesa e o acordo é um passo importante para a defesa dessa unidade. (A’’) Os países da CPLP falam uma mesma língua e o acordo defenderá essa unidade. (A’’’) Há uma essência na língua portuguesa que lhe confere a unidade que o acordo defenderá. (A) Considerando que [o acordo] constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa. (B) [Considerando que o acordo] constitui um passo importante para o seu [da língua portuguesa] prestígio internacional. (C) Considerando que [o acordo] resulta de um aprofundado debate nos Países signatários. (r) É aprovado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Acordo Ortográfico e a unidade imaginária da língua portuguesa Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 239 Os parafraseamentos de (A) em (A’) e (A’’) nos permitem observar a filiação do acordo à discursividade segundo a qual a Língua Portuguesa fala- da em Portugal e em suas ex-colônias é uma única e mesma língua. Trata-se de uma discursividade que apaga as descontinuidades na história da língua. A Língua Portuguesa historicizou de formas diferentes em Portugal e nas colônias portuguesas, produzindo diferentes sítios de interpretação (ORLANDI, 1990). Esse desencontro histórico da língua com ela mesma é compreendido, nessa discursividade, como variação linguística ou dialetação. Lima Sobrinho ([1955] 2000), por exemplo, defende que não existe um Português brasileiro. As diferenças entre o Português daqui e o d’além mar são designadas, pelo autor, como “regionalismos”, “dialetos”, “linguaja- res”, “falares”, “provincianismos”, etc. Apesar das diferenças, argumenta ele, falamos a mesma língua de Camões. Para o autor, “há fenômenos de dialetação, mas não existe unidade e generalidade e extensão suficiente nesses fenômenos, para que possam cons- tituir um novo idioma” ([1955] 2000, p. 85). Diante disso, ele defende uma “política de unidade” semelhante a essa que está sendo impetrada por meio do acordo ortográfico de 1990. Esse imaginário de unidade linguística que percebemos funcionando em (A’) e (A’’) inscreve esse acordo na discursividade segundo a qual existe um “mundo português” nos trópicos, existe um “peculiar modo português de estar no mundo”, discursividade que sustentou os projetos coloniais de Portu- gal na primeira metade do século XX, como mostra Thomaz (2007). Essa discursividade apaga o “processo de descolonização linguística” (ORLANDI, 2007), processo iniciado à época da colonização e potencializa- do, no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, quando começou, de forma mais regular, a gramatização brasileira do Português. Trata-se de uma discursividade que, como apreendemos em (A’’’), (se) sustenta (n)uma concepção essencialista da língua. Haveria, na perspectiva assumida pelo acordo, uma essência na Língua Portuguesa que garantiria a “unidade na diversidade e a diversidade na unidade”, “ideia” reiteradamente proclamada em nossa história dos conhecimentos linguísticos e que nos man- têm na posição de colonizados. Produz-se, desse modo, a continuidade na descontinuidade da história da língua. José Simão da SILVA SOBRINHO 240 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 3. Considerações finais De fato, como vimos, o acordo ortográfico analisado não pretende uni- ficar a língua, ele toma a Língua Portuguesa como una. Ele (se) sustenta (n)o imaginário segundo o qual haveria uma essência na língua que seria responsá- vel por sua unidade nos vários países onde é falada sob diferentes condições. Nesse imaginário, a língua é descolada de suas condições materiais de produção, ela é tomada fora da história. Somente operando sobre uma tal representação abstrata da língua é que o acordo pode falar em “unidade es- sencial da Língua Portuguesa”. Desse modo, num gesto anacrônico, ele apaga a heterogeneidade da Língua Portuguesa, ou seja, apaga que essa língua se tornou outras ao se reterritorializar aqui e nos países africanos onde é falada. O acordo esquece, no sentido discursivo, que o funcionamento da Língua Portuguesa sob dife- rentes condições de produção engendrou diferentes “sítios de significação” (ORLANDI, 1990), produzindo clivagens em sua história. O fato é que esse desencontro da Língua Portuguesa com ela mesma não nos permite mais, como assinala Orlandi (2007, p. 18), falar em lusofo- nia: “já não cabe falar em lusofonia, mas em refletirmos sobre a situação da diversidade linguística com que se apresentam hoje os países de colonização portuguesa”. Em Moçambique, por exemplo, a Língua Portuguesa é a língua ofi- cial, mas há outras línguas nacionais (Cicopi, Cinyanja, Cinyungwe, Cisen- ga, Cishona, Ciyao, Enchuwabo, Ekoti, Elomwe, Gotonga, Maconde ou Shimakonde, Kimwani, Macua ou Emakhuwa, Memane, Suaíli ou Kiswahili, Suazi ou Swazi, Xichanga, Xironga, Xitswa e Zulu). Em muitos distritos mo- çambicanos, a maioria da população não fala a Língua Portuguesa. Quais serão os efeitos do acordo na divisão de línguas que constitui esse espaço de enunciação? SILVA SOBRINHO, José Simão da. Spelling agreement and the imaginary unity of portuguese language. Revista do Gel. São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009. ABSTRACT: There are several ways in which politics is present in the language, one of them is in the institutional practices about languages, such as the production of grammar books and dictionaries and, in the case we propose, in the decreeing of spelling agreements. In this Acordo Ortográfico e a unidade imaginária da língua portuguesa Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 232-242, 2009 241 paper, which was written in the perspective of the History of the Linguistic Ideas and is linked to the Semantics of Enunciation and Discourse Analysis, we try to understand the filiations of meanings in the document that approved the Portuguese Language Spelling Agreement (1990). The document that is about to start to rule unifying the spelling of the Portuguese Language spoken in Brazil, Portugal, Angola, Green Cape, Guinea-Bissau, Mozambique, East Timor and St Thomas and Prince. KEYWORDS: Portuguese Language Spelling Agreement. Linguistic Politics. History of Linguistic Ideas. 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Para isso, Greimas e colaboradores elaboraram um arcabouço conceitual que correspondeu, por um lado, a uma afamada economia conceitual, e, por outro, a algumas limitações que não se referiam apenas à organização do plano da expressão. Sendo uma das poucas herdeiras declaradas do patrimônio conceitu- al saussuriano e, principalmente, de seu refinamento, promovido por Louis Hjelmslev, a semiótica esbarrou nos limites impostos pelo edifício teórico que ela própria erigiu. Na década de 1980, alguns semioticistas já procuravam ampliar o escopo da teoria, retomando questões centrais anteriormente dei- xadas de lado, como os estados passionais dos sujeitos narrativos e o próprio plano de expressão. Não por acaso, após a morte de seu fundador, a semió- tica passou a conviver com diversas propostas conceituais e analíticas, cuja co-existência nem sempre é pacífica. Dentre essas propostas, a semiótica tensiva, que tem em Claude Zilberberg seu mais destacado proponente, sur- giu como o intuito de integrar a dimensão sensível, colocando assim o plano de expressão no centro dos interesses da teoria. Dessa feita, atualmente, di- versos semioticistas buscam investigar a organização do plano da expressão, enquanto instância produtora de significação; buscam, também, compreender como se define sua relação com o plano do conteúdo. O livro Elos de Melodia e Letra – Análise semiótica de seis canções, lançado em 2008, é o resultado do trabalho dos semioticistas brasileiros Luiz Tatit e Ivã Carlos Lopes, que apresentam recursos teóricos para se compre- 1 Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral. Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), São Paulo, SP, Brasil. alexandrembueno@gmail.com Alexandre Marcelo BUENO 244 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 243-248, 2009 ender melhor a relação entre os planos do conteúdo e da expressão a partir de um objeto privilegiado para isso: a canção. Na introdução do livro, os autores apresen- tam seus objetivos iniciais: não apenas examinar a letra e os elementos melódicos e rítmicos da música como componentes dotados de significação, mas compreen- der o elo que une esses dois planos constitutivos de seu objeto de análise. Os autores partem, assim, do pressuposto de que a melodia, enquanto plano de expressão, também tem sua parte na construção da significação total da canção. Dessa forma, eles delimitam o espaço de pertinência de seu traba- lho em relação a outras áreas, que frequentemente se detém apenas na análise da letra. Ao contrário, na perspectiva teórica adotada pelos autores, a canção é entendida como a junção entre melodia e letra e ganha, assim, contornos de um objeto complexo e rico de significações. Para essa empreitada, os autores utilizam os conceitos da semiótica tensiva, uma das principais linhas teóricas da semiótica, que serve muito bem ao propósito analítico do livro. As análises das canções não se restringem, assim, a apenas elencar o que há de específico em cada canção, como se fosse possível localizar as “reais intenções” dos compositores; elas apresentam os elementos invariantes que caracterizam o objeto canção. Por isso, conceitos como andamento, tonicidade, tempo, concentração, expansão, entre outros, caros à semiótica tensiva, são presenças constantes nas análises. Tatit e Lopes analisam canções de quatro conhecidos compositores/ cantores da MPB (Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes). As canções analisadas são: “Terra” e “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso; “Olê Olá” e “As Vitrines”, de Chico Buarque; e “Eu Sei que Vou te Amar” e “A Felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Cada análise apresenta seções separadas para a melodia e a letra. Pare- ce-nos que seria mais pertinente, nos epílogos que se seguem a cada final de capítulo, que os autores deixassem mais clara ou reforçassem a relação entre os dois planos, uma vez que esse é o objetivo proposto na introdução. Essa separação pode ocasionar, nos leitores desavisados, o equívoco de que se tra- ta, na teoria semiótica, de se analisar separadamente cada plano, sem que uma efetiva homologação entre ambos ocorra, o que efetivamente não procede. Para que essa falsa impressão não ocorra, os leitores precisam ficar atentos às hipóteses iniciais dos autores em relação aos três modelos propostos de integração entre melodia e letra. Descrevemos, abaixo, muito sucintamente, as características gerais de cada modelo: Elos de Melodia e Letra – Análise semiótica de seis canções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 243-248, 2009 245 1) o primeiro caracteriza-se pela adaptação da melodia aos acentos e recortes silábicos da letra, tal como se faz na fala. A canção que possui essas características constrói, por conseguinte, sua base melódica a partir daquilo que já é conhecido: nossa fala cotidiana. Por isso, nesse tipo de canção, ocorre o que os autores chamam de efeito figurativo de locução, no qual as curvas melódicas ascendentes e descendentes possuem elementos semelhantes aos que ocorrem na fala ordinária sem, exatamente, serem idênticos a ela (2008, p. 17-18). 2) no segundo, a canção apresenta um efeito de repetição melódica que os autores intitulam de tematização melódica. Esse tipo de canção ca- racteriza-se pela concentração e pela aceleração em seu plano da expressão, entre outros elementos. No entanto, segundo os autores, essa concentração e essa aceleração não perduram ao longo da canção, pois estão previstas nesse modelo algumas mudanças melódicas que refreiam a aceleração e desfazem, parcialmente, a concentração. Essas mudanças produtoras da suspensão tam- bém não duram muito tempo: uma vez previstas pelo modelo, sua função é a de preparar a melodia para o retorno ao núcleo melódico e, consequen- temente, à sua aceleração e concentração. Em termos narrativos (do plano do conteúdo), esse é o modelo em que ocorre a identificação do enunciador com os valores presentes nos objetos, que são então celebrados por ele. Por conseguinte, as semelhanças dos temas melódicos produzidos representam a conjunção do sujeito com seu objeto de valor (2008, p. 19-21). 3) o terceiro, chamado de disjunção temática, apresenta características opostas às do segundo modelo: há uma notável presença de saltos interva- lares (verticalização), desaceleração e transposições de registro na tessitura (de um segmento grave passa-se a um outro em que predomina o agudo, por exemplo). O que predomina nesse modelo é o conteúdo passional da canção, produzido pela disjunção, pela perda ou pela distância quase inalcançável de algo ou, mais comumente, de alguém. Por isso, segundo os autores, quanto menor a regularidade melódica, maior a distância do objeto de desejo do su- jeito passional. Portanto, os elementos mais marcantes desse tipo de canção são a desaceleração do andamento, a valorização das durações vocais e a desigualdade temática (2008, p. 21-23). Cada um desses modelos é facilmente identificado em determinados gêneros musicais. Os autores, contudo, mostram que mais de um desses mo- delos de integração entre melodia e fala pode estar presentes em uma única Alexandre Marcelo BUENO 246 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 243-248, 2009 canção, como é possível observar na análise de “Terra”. Nessa análise, no capítulo 1, os autores evidenciam como essa canção começa com elementos mais próximos da fala para passar, em seguida, para um aumento da tensão passional representada pela ascendência melódica, que produz a conjunção, ou ao menos a sua tentativa. Nessa canção, Tatit e Lopes apontam para o fato de haver tensão entre uma conjunção temporal (ou mesmo à distância, como se fosse um elo) entre o sujeito e seu objeto de desejo (no caso, a “Terra”) e sua disjunção efetiva, como se esse objeto fosse algo etéreo e inapreensível, o que o torna responsável pelos percursos passionais presentes nessa canção. Vale destacar, dentre os vários pontos altos das análises, o uso das no- ções de Paul Valery, desenvolvidas semioticamente por Zilberberg, para ex- plicar a concomitância do que é passado e do que parece ser ainda presente na canção “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso, no capítulo 02. As proposições de Valery (“O que [já] é, não é [ainda]” como elemento da surpresa e “O que não é [ainda], [já] é” como a espera) servem como ponto de partida para os autores elaborarem “ciclos aspectuais” para duas figuras da letra: a constru- ção e a ruína. Assim, com a chave aspectual e valeryana, os autores explicam a concomitância entre o parecer e o ser em jogo nessa canção e a imbricação progressiva dessas duas instâncias (2008, p. 57-60). Em “Olê, Olá” (capítulo 03), estão presentes valores aspectuais e tem- porais responsáveis pela “dinâmica emocional e intelectiva” da canção. As- sim, pode-se observar o refinamento das análises dos autores quando eles apontam para a relação entre a virtualização e a realização. Os semioticistas demonstram que essa relação é a responsável pelas expectativas e pela ansie- dade presentes no enunciador, já que ele sabe o que o espera, ao final da noite, mas faz o possível para que isso não se concretize, porque não faz parte do horizonte de seus desejos e de seus valores. Ao final da canção, o que preva- lece é justamente isso: é o fim produzido por uma disjunção, isto é, por uma descontinuidade disfórica figurativizada pelo dia que chega e que encerra a noite, tomada como o espaço e o tempo em que predominavam os valores figurativizados do samba e da boemia. Em termos de organização discursiva, algo semelhante ocorre na can- ção “As Vitrines” (no capítulo 04). Nessa análise, os autores mostram como há uma espécie de conjunção à distância e, ao mesmo tempo, uma tentativa de conjunção definitiva, ambas responsáveis pelo percurso passional. Há, junto ao andamento desacelerado, uma tendência à ascendência, que ocorre apenas Elos de Melodia e Letra – Análise semiótica de seis canções Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 243-248, 2009 247 discretamente, como se a paixão tratada pela letra não pudesse se expandir como em uma canção sobre o amor, mesmo porque essa conjunção final, na canção, acaba por não se realizar, ficando apenas no plano da contemplação e do desejo platônico. No penúltimo capítulo, a análise de “Eu sei que vou te amar” mostra uma refinada relação entre a emoção controlada e a ruptura passional produ- zida pela insatisfação do enunciador, que é maximizada pela mudança de re- gistro melódico referente a esse percurso na letra. Os autores mostram como a primeira parte da canção aproxima a emoção cantada da emoção falada, cuja situação é a da espera, ou seja, da disjunção conhecida, mas não admitida, do percurso passional. Assim, a mudança melódica representa a vontade do enunciador de eliminar essa disjunção, inserindo, assim, uma aceleração me- lódica em uma canção caracterizada, justamente, pela desaceleração. Outro ponto alto está na análise da canção “Felicidade” (capítulo 06), também de Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Nessa análise, os autores apre- sentam uma sofisticada correlação entre a leveza, característica da felicidade passageira, e o peso, representativo da tristeza perene (2008, p. 155-158). Essa canção é um bom exemplo da organização melódica da canção passio- nal, pois, em seu conjunto, o espectro da tessitura é quase totalmente preen- chido de um extremo a outro. Ainda no plano melódico, os autores mostram como os valores disfóricos da tristeza estão no ponto mais alto da tessitura, ao contrário da felicidade, que permanece quase em sua totalidade no meio ou na parte inferior da tessitura. Sem esquecermos que a canção é objeto de análise de outras áreas ou de outras perspectivas teóricas e que as seis análises apresentadas sob a forma de capítulos foram publicadas ou em periódicos especializados ou em forma- to de capítulo de livro, cabe apontar que alguns problemas — de ordem mais prática do que conceitual e analítica — aparecem nesse livro, tanto para os leitores não iniciados em semiótica quanto para eventuais e diletantes leito- res de trabalhos sobre a música popular brasileira em geral. Entendemos que um desses problemas é a falta de um capítulo introdutório, reservado para a apresentação dos conceitos semióticos mais trabalhados pelos autores, o que facilitaria a compreensão de determinadas passagens das análises. Também seria útil um glossário com termos técnicos da própria semiótica e da mú- sica. Além disso, dentre as poucas referências apresentadas, a indicação da obra de Greimas, mencionada no capítulo 04 (2008, p. 127), está ausente da Alexandre Marcelo BUENO 248 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 243-248, 2009 bibliografia, algo que pode ser facilmente corrigido em uma segunda edição. Consideramos ser um outro problema também o fato de os autores não men- cionarem a filiação teórica do conceito de interdiscursividade, recorrente nas análises das canções. A menção parece importante, de nosso ponto de vista, porque o conceito é utilizado por diferentes teorias do discurso (não apenas as derivadas ou herdeiras das ideias de Bakhtin) e, portanto, há diversas formas de se compreendê-lo nos dias de hoje. Os autores poderiam ainda indicar, em uma referência discográfica a ser feita, os álbuns de onde as canções foram extraídas, para dar oportunidade aos leitores de cotejar as análises com as respectivas canções, tornando a leitura, inclusive, mais prazerosa do que já é. Evidentemente, é desnecessário dizer que essas ressalvas, entendidas como observações e não como críticas, não invalidam, em hipótese alguma, o trabalho dos autores. As análises refinadas, escritas com esmero, fluidez e sem pedantismos, só contribuem para lançar novos olhares, entendimentos e fruições sobre um objeto caracterizado pela riqueza de sentidos e de sensa- ções — trabalho que os autores realizam com elegância. Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 249, 2009 249 ÍndiCe de Assuntos Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, p. 232 Koinização, p. 125 Análise acústica, p. 9 Língua inglesa, p. 175 Aquisição da linguagem, p. 61 Línguas modernas, p. 207 Arquitetura textual, p. 160 Manuel Bandeira, p. 140 Autotradução, p. 125 Manuel Puig, p. 125 Canção, p. 243 Mudança linguística, p. 61 Capacidades de linguagem, p. 160 Poesia, p. 140 Discurso, p. 104 Políticas linguísticas, p. 232 Educação brasileira, p. 207 Português brasileiro, p. 9, p. 61 Emoções, p. 104 Propriedades semânticas, p. 36 Encontros consonantais heterossilábicos, p. 9 Relativa cortadora, p. 61 Ensino de línguas estrangeiras, p. 207 Relativa resumptiva, p. 61 Espanhol, p. 125 Sangre de amor correspondido, p. 125 Experiências, p. 175 Semiótica, p. 140, p. 243 Filosofia da ciência, p. 85 Sentido, p. 104 Filosofia da linguística, p. 85 Sociolinguística, p. 85 Fonética experimental, p. 9 Teoria gerativa, p. 61 Gêneros textuais, p. 160 Transitividade, p. 36 Greimas, p. 140 Verbos alternantes, p. 36 Indisciplina, p. 175 Vogal epentética, p. 9 História das ideias linguísticas, p. 232 Voseo, p. 125 250 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 250, 2009 SubjeCt index Acoustical analysis, p. 9 Linguistic politics, p. 232 Alternating verbs, p. 36 Manuel Bandeira, p. 140 Brazilian education, p. 207 Manuel Puig, p. 125 Brazilian Portuguese, p. 9, p. 61 Meanings, p. 104 Consonant in different syllables, p. 9 Modern languages, p. 207 Emotions, p. 104 Poetry, p. 140 English language, p. 175 Portuguese language spelling agreement, p. 232 Epentectic vowel, p. 9 PP-chopping relatives, p. 61 Experiences, p. 175 Resumptive relatives, p. 61 Experimental phonetics, p. 9 Semantic properties, p. 36 Foreign language teaching, p. 175 Sangre de amor correspondido, p. 125 Generative theory, p. 61 Selftranslation, p. 125 Genres of texts, p. 160 Semiotics, p. 140, p. 243 Greimas, p. 140 Science philosophy, p. 85 History of linguistic ideas, p. 232 Sociolinguistics, p. 85 Indiscipline, p. 175 Song, p. 243 Koinization, p. 125 Spanish, p. 125 Language acquisition, p. 61 Speech, p. 104 Language capacities, p. 160 Textual architecture, p. 160 Linguistic change, p. 61 Transitivity, p. 36 Linguistic philosophy, p. 85 Voseo, p. 125 Revista do GEL, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 251, 2009 251 ÍndiCe de autores / Authors index ALMEIDA, Dayane Celestino, p. 140 BARBOSA, Marinalva Vieira, p. 104 BUENO, Alexandre Marcelo, p. 243 CIRÍACO, Larissa, p.36 HANNA, Vera Lucia Harabagi, p. 207 LOUSADA, Eliane Gouvêa, p. 160 MENEZES, Andreia dos Santos, p. 125 MICCOLI, Laura Stella, 175 OLIVEIRA, Adriana Stella C. 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