195Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 O erotismo e o desejo na obra Salomé, de Oscar Wilde Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA1 Resumo: Oscar Wilde traz à tona uma nova mulher em sua versão de Salomé, peça teatral com foco central na personagem bíblica Salomé, que, aos olhos do autor, se mostra conduzida pelos seus desejos e pelo erotismo, que a embriaga e a leva as últimas consequências: beijar os lábios do profeta Iokanaan a qualquer preço. Para isso, a jovem princesa faz a dança dos setes véus para o rei Herodes e comprova que pode ter tudo com sua beleza e sensualidade, mesmo que isso possa lhe valer a vida. Esse artigo pretende mostrar de que forma o erotismo, o desejo, a morte e o corpo conduzem os rumos da versão de Wilde, baseado em obras teóricas como O erotismo, de George Bataille (1987), A dupla chama, de Octavio Paz (1994), O corpo perigoso de Linda Hutcheon. Pode-se perceber, que muitas vezes, para que o desejo possa ser correspondido são necessários grandes sacrifícios, mesmo que isso leve a morte, como consequência e consumação. Palavra-chaves: erotismo; análise literária; feminilidade; obra clássica. Abstract: Oscar Wilde brings out a new woman in his Salome version, theatrical piece with a central focus on the biblical character Salome, the author’s eyes shows performed by its desires and its eroticism, that intoxicates and brings the ultimate consequences : kiss the lips of the prophet Iokanaan at any price. For this, the young princess is the dance of the seven veils for King Herod and proves that you can have it all with her beauty and sensuality , even if it might be worth his life. This article aims to show how eroticism , desire, death and the body lead the direction of Wilde’s version , based on the works as Eroticism , George Bataille (1987 ) , The double flame, Octavio Paz (1994) , The dangerous body of Linda Hutcheon . Therefore, it can be seen that often , that desire can be matched is required great sacrifices , even if it takes death as a result and consummation. Keywords: eroticism; literary analysis; femininity; classic. “Não há melhor meio para se familiarizar com a morte do que associá-la a uma idéia libertina”.2 Marquês de Sade Wilde e Salomé: o início Oscar Wilde inicia sua carreira literária em Londres em 1879 após terminar os estudos na Universidade de Oxford. Inicia-se na poesia e no romance e sai do anonimato, alcançando enorme reconhecimento. Apesar de seu sucesso com a obra O retrato de Dorian Gray em 1890, Wilde não consegue ocultar seu interesse pela dramaturgia. Embora 1 Doutoranda da Pós-Graduação de Estudo da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). João Pessoa-PB. Correio eletrônico: anaclaudia.pinheirodias@gmail.com. 2 Citação mencionada no livro O erotismo, de George Bataille, 1987, p. 10. 196 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 tenha tentado – em vão – duas vezes escrever peças que não foram aceitas pela crítica e pelo público -, o escritor posicionou-se novamente como dramaturgo e se dedica ao ofício que tanto lhe causava fascínio. Ilustração de Aubrey Beardsley para a obra Salomé de Oscar Wilde, em 1892.3 Em Paris, Wilde concebe sua obra teatral intitulada Salomé. Baseado na história contada nas passagens bíblicas Mateus 14:1-11 e Marcos 6:17-28, o autor inspirou-se na figura emblemática da princesa que, ao dançar para o rei Herodes, pede em troca a cabeça do profeta João Batista em uma bandeja de prata. Tal personagem lhe despertou tamanho interesse, que o leva a fazer o seguinte comentário: “Estou a escrever uma peça acerca de uma mulher que dança descalça sobre o sangue de um homem que ela desejara e mandara matar. Quero que toque algo de acordo com os meus pensamentos” (BARBUDO, 2000, p.09). Seria uma afronta ao sagrado, uma reformulação para o profano, com ares de pureza juvenil? Publicada primeiramente em francês, em 1892, e posteriormente 3 Todas as ilustrações presentes no artigo pertencem ao ilustrador inglês Aubrey Beardsley para obra Salomé. Fonte: http://www.bl.uk/collection-items/aubrey-beardsley-illustrations- for-salome-by-oscar-wilde. Acesso em: 20 mar. de 2015. 197Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 em inglês (versão ilustrada belamente por Aubrey Beardsley), em 1893, Salomé chegou a ser encenada em Paris, porém não durou muito tempo. Considerada pela crítica como uma obra subversiva, Wilde foi impedido de difundir a história de sua heroína na época. Umas das críticas tecidas à obra naquela ocasião: “É uma combinação de sangue e ferocidade mórbida, bizarra, repulsiva e profundamente ofensiva, na sua adaptação de uma linguagem bíblica a situações que são o inverso do sagrado” (BARBUDO, 2000, p.10) Oscar Wilde expande suas concepções sobre a jovem personagem que lhe inspira escrever Salomé. Pretendia que sua personagem fosse ao mesmo tempo a incorporação da sensualidade e uma virgem casta. Linda Hutcheon descreve a moça como “A beleza demoníaca que poderia atrair os homens para a perdição e que, por isso, provocava naquele que a contemplava medo e atração, terror e desejo” (HUTCHEON, 2003, p.29) Diferente da personagem bíblica, que pede a cabeça do profeta João Batista para agradar a mãe Herodias, Salomé também pede a cabeça do profeta (por quem se apaixona) — que, na história wildeana, 198 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 chama-se Iokannan —, pela paixão e pelo prazer de possuir o seu amado a qualquer custo. É a representação feminina como figura que possui poder de sedução, dotada de seus próprios desejos e paixões, e que usa de seus atributos físicos para consegui-los. Não só a Wilde, a figura da princesa Salomé trouxe fascínio e inquietações. Outros escritores e artistas da época retrataram seus interesses e olhares particulares sobre a misteriosa moça: Flaubert escrevera Sallambô (1862) e Hérodias (1877) e Mallarmé publicaria, em 1898, o poema dramático Herodiade. O pintor simbolista Gustave Moreau tornara-se, entretanto, famoso pelo cunho simultaneamente místico e erótico conferido a Salomé, que pintara dançando ou admirando a cabeça decepada de S. João Baptista. Um dos seus quadros, Salomé dansant, exibido em 1876, inspirara nomeadamente Huysmans, autor do romance decadentista À Rebours. Des Esseintes, herói deste romance, ao descrever Salomé como uma deusa de perversa luxúria, afasta-se, tanto como Moreau, da imagem traçada no Novo Testamento (BARBUDO, 2000, p.11). Salomé, na visão de Wilde e de outros artistas mencionados acima, é a incorporação do desejo, do erotismo, da sensualidade. Nasce uma nova mulher, uma nova Salomé em plena era Vitoriana. Isso pode ser justificado na fala de Gelson Peres da Silva, em seu artigo “Salomé e Oscar Wilde: Questionamentos”: Rodeados por uma sociedade na qual a mulher buscava acima de tudo casar-se para ser considerada honrada e bem vista por seus pares, Jane Austen ironiza o casamento e Oscar Wilde evoca, assim como outros autores do Realismo inglês, o desejo feminino tão ensurdecido e proibido, levando indubitavelmente a platéia e o leitor a questionamentos que o mundo do final do século XIX soava (SILVA, 2001, p.54). Baseados nesses levantamentos, veremos o percurso que o autor construiu para mostrar a personalidade perspicaz e determinada de sua personagem Salomé. Durante a peça, constrói-se uma figura erótica feminina, que movida pelo desejo, usa sua dança considerada dionisíaca e de seu corpo para conseguir o que quer, mesmo que isso acarrete um fim trágico. O Enredo: Salomé de Wilde Recorrente na Era cristã, a história relata uma situação festiva 199Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 do tetrarca Herodes e sua família, constituída por sua esposa Herodias (vale ressaltar que Herodias era esposa do irmão de Herodes) e Salomé, filha de Herodias, sobrinha de Herodes. Herodes mantém em cativeiro o profeta Iokanaan (que na Bíblia é conhecido como João Batista), perante o qual Herodias alimenta pavor e ódio pelo fato de o profeta acusá-la como adultera, indigna de respeito e fadada à maldição. Durante uma festa, em noite enluarada no palácio do rei Herodes, Salomé vai ao terraço do castelo e questiona o jovem sírio (soldado da confiança do rei, que admira a beleza de Salomé e que está de sentinela na ocasião) sobre o homem que está em cativeiro na cisterna do castelo, que se põe a gritar. Ela exige conhecê-lo, porém o profeta recusa-se a ver sua face e o jovem sírio julga a vontade da moça inapropriada. Iokanaan a vê como outra mulher indigna de respeito e detentora da destruição moral. O profeta se posiciona da seguinte maneira diante da situação: Para trás! Filha da Babilônia! Não vos aproximeis do eleito do Senhor. A tua mãe encheu a terra com o vinho das suas iniquidades, e o clamor dos seus pecados chegou aos ouvidos de Deus. [...] Para trás, filha da Babilônia! Foi através da mulher que o mal entrou no mundo. Não faleis comigo. Não te quero ouvir. Eu só ouço as palavras do Senhor (WILDE, 2000, p.45-46). Com muita insistência, o jovem sírio se rende aos pedidos da princesa e a leva a cisterna do profeta. Salomé consegue ver brevemente a figura do homem encarcerado, que lhe desperta assombro, porém encantamento: Iokanaan! Estou enamorada do teu corpo. O teu corpo é branco como os lírios de um campo que nunca foi ceifado por um ceifeiro. O teu corpo é branco como as neves que cobrem as montanhas da Judéia e descem para os vales. As rosas do jardim da Rainha da Arábia não são tão brancas como o teu corpo. Nem as rosas do jardim da Rainha da Arábia, nem os pés da aurora que pisam as folhas, nem o seio da lua quando se reclina sobre o seio do mar... Não há nada no mundo tão branco como o teu corpo. Deixa-me tocar o teu corpo! (WILDE, 2000, p.47,). Ao invés de se chocar com as palavras de homem ditas anteriormente, quer a todo custo beijar seus lábios; apaixona-se pelo inatingível, diz “Hei de beijar a tua boca, Iokanaan. Hei de beijar a tua boca” (WILDE, 2000, p.49). 200 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 O profeta a amaldiçoa como amaldiçoa Herodias, e nega-se a beijá-la, dizendo “Não quero olhar para ti. Não olharei para ti. Tu estás amaldiçoada, Salomé, tu estás amaldiçoada”! (WILDE, 2000, p.53) Começa assim o desejo intenso de Salomé pelo profeta. Tudo que a jovem deseja, consegue com seus atributos femininos e delicados, porém, nesse caso, não conseguiu atrair sua atenção. Assim, ela se torna obstinada a conseguir um beijo de Iokanaan, mesmo que isso custe a vida do tão desejado homem de palavras ferinas e irredutível aos seus encantos femininos. Para ilustrar tal reação, Linda Hutcheon faz o seguinte comentário sobre a cena mencionada: Mas a Salomé da abertura é bela e jovem; é uma criança impulsiva e mimada que quer tudo a seu modo, uma princesa paparicada que vive em seu próprio mundo, como convém ao narcisismo dos jovens. [...] A resposta de Iokanaan a Salomé é um ataque (implicitamente sexuado) a todas as mulheres, por terem primeiro trazido a maldade ao mundo. A rejeição as suas investidas faz Salomé responder, desta vez, com uma série de imagens hediondas do corpo dele, que ela agora diz que odeia. (HUTCHEON, 2003, p.30) Para que isso fique esclarecido e justificado, em uma de suas falas, Iokanaan agride verbalmente Herodias, mãe de Salomé, e mostra sua posição em relação ao desejo e à figura feminina: “É assim que abolirei os crimes da face da terra, e as mulheres aprenderão a não imitar as suas abominações” (WILDE, 2000, p.74). 201Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 Durante a festa, Herodes pede para Salomé dançar para ele. No primeiro momento, a princesa se nega a dançar. Porém, Salomé vê a oportunidade de conseguir o que mais quer: beijar Iokanaan. Para isso, a jovem, tomada pelo desejo, pelo fascínio erótico, faz seu pedido insólito: em troca da dança, quer a cabeça de Iokanaan em uma bandeja de prata, o que se assemelha ao relato bíblico. A Dança dos Sete Véus é a parte mais conhecida da peça. O texto de Wilde, como a Bíblia, não descreve a dança, embora Wilde a nomeie. Vale ressaltar que Herodes promete tudo o que a jovem quiser em troca da dança, porém Salomé só faz o pedido depois de realizá- la. O rei não consegue conceber tal atrocidade e lhe oferece todo o bem material que possui; não consegue acreditar no pedido feito pela enteada; afinal a cabeça que lhe é pedida é considerada por ele de um homem santo. Herodes, a contragosto e se sentindo muito culpado, corresponde ao desejo de Salomé por se considerar um homem que cumpre com sua palavra. Mas ele tenta mudar a idéia da jovem, argumentando: No fundo, não acredito que estejais a falar a sério. A cabeça de um homem decapitado é algo muito feio, não é? Não é uma coisa que deva ser vista por uma virgem. Que prazer é que isso vos poderia dar? Nenhum (WILDE, 2000, p.93). Nada a convence e Salomé segue com seu pedido. A princesa, quando recebe a bandeja de prata com a cabeça de seu amado profeta, profere a seguinte fala: [...] Oh , como te amei! E ainda de amo, Iokanaan. Só te amo a ti... Tenho sede de sua beleza. Tenho fome do teu corpo. E nem o vinho nem a fruta podem apaziguar o meu desejo. Que hei de fazer agora, Iokanaan? Não há cheias nem chuvas que possam apagar a minha paixão. Eu era uma princesa, e tu desprezaste-me. Eu era virgem, e tu desfloraste-me. Eu era casta, e tu encheste-me as veias de fogo... Ah! Ah! Por que é que não olhaste para mim, Iokanaan? Se tivesses olhando para mim, ter-me-ias amado. Sei muito bem que me terias amado, e o mistério do amor é maior do que o mistério da morte. Só devíamos pensar no amor (WILDE, 2000, p.103). Após essa declaração, Salomé consume o desejo e o prometido, com tom caprichoso e demoníaco: Ah! Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca. Havia um sabor amargo nos teus lábios. Seria o sabor do sangue?... Mas talvez seja o sabor do amor... Dizem que o amor tem um sabor 202 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 amargo... Mas que importa? Eu beijei a tua boca, Iokanaan, eu beijei a tua boca. (WILDE, 2000, , p.103-104). O rei Herodes, ao presenciar Salomé com a cabeça de Iokanaan nas mãos e fazendo-lhe juras de amor e beijando-a, sente- se aterrorizado com a ação da princesa, e ordena que os soldados a matem também. Sela-se o final da versão da figura bíblica de Oscar Wilde, mostrando o poder repressor do homem diante dos desejos femininos. O erótico, a morte, a dança, o desejo, o corpo: a composição de Salomé O que leva uma mulher fazer tamanha atrocidade em nome da correspondência de um desejo altamente movido pelo erótico e pelo capricho de não ser admirada? Ao nos depararmos com o final da história, é possível questionar se há limites concretos e racionais quando se trata do ato de sentir e se envolver passionalmente com uma situação que lhe sai do controle. Quando estamos diante de uma obra erótica, é difícil não nos sentirmos perturbados. Afinal, o erotismo aciona outros temas, como violência, perda de si, animalidade, dor com prazer. Algo nele vai contra o pacto social. Como já sugeria Bataille (1987), o erotismo mexe com 203Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 o ser. Nas suas palavras: “O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo que, nele, põe o ser em questão” (BATAILLE, 1987, p.21). Mas como é composta essa eroticidade em Salomé? Segundo George Bataille. “Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação” (BATAILLE, 1987, p.13). E mais adiante: “O erotismo é, de forma geral, infração à regra dos interditos: é uma atividade humana. Mas, ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não deixa de ser o seu fundamento” (BATAILLE, 1987, p.21). Para Octavio Paz, o ato erótico, se desprende do ato sexual. Nas palavras do autor, ele “é sexo e é outra coisa” (PAZ, 1994, p.14). Assim, “o erotismo é invenção, variação incessante; enquanto que o sexo é sempre o mesmo” (PAZ, 1994, p.16). Em todo encontro erótico, há um personagem invisível e sempre ativo: a imaginação, o desejo. Segundo Paz, existe uma ambiguidade no erotismo: é repressão e permissão, sublimação e perversão. “O erotismo é a sexualidade transfigurada pela imaginação humana” (PAZ, 1994, p.24). Salomé foi tomada pela sua imaginação e pelo seu lado animalesco e instintivo. Não sabendo o que fazer para se satisfazer, ter acesso ao “corpo” do amado, viu na dança pedida, sua arma, seu poder manifestado. A jovem utiliza seu corpo dançante tanto sensualmente de forma dionisíaca quanto como um meio para um fim: a satisfação de seu obsessivo desejo e sua forte vontade infantil (HUTCHEON, 2003, p.39). O poder da dança traz a Salomé o controle que almeja para consumar seu desejo por Iokanaan. Hutcheon menciona essa perigosa relação dionisíaca entre a dança e o corpo, como uma ameaça: Relacionada, portanto, ao irracional assim como ao corpóreo, a dança é tida como algo que se apodera do dançarino, geralmente sem o consentimento da mente racional. Portanto, a dança era freqüentemente proibida porque tanto a religião quanto as autoridades profanas reconheciam e temiam seu poder (HUTCHEON, 2003, p. 23). A partir da dança, pode-se dizer que a peça discorre para o trágico. É a “moeda de troca” para consumação do desejo. Ao terminar 204 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 sua dança para o rei Herode, Salomé enuncia: “É para meu próprio prazer que peço a cabeça de Iokanaan numa bandeja de prata. Vós jurastes, Herodes. Não esqueçais que fizestes um juramento” (WILDE, 2000, p. 93). É uma figura feminina que se apresenta como ser com direito de expressar sua sexualidade. “Salomé viria a representar, mesmo em sua juventude, todas as mulheres” (HUTCHEON, 2003, p.31). A jovem princesa mostrou-se disposta a tudo, até matar a pessoa amada, como pagar com sua própria vida seu desejo erótico não consumado. Mas, na paixão, a imagem dessa fusão toma corpo, às vezes de maneira diferente para cada um dos amantes. “Para além de sua imagem, de seu projeto, a fusão precária que reserva a sobrevivência do egoísmo individual pode, por seu lado, entrar na realidade” (BATAILLE, 1987, p.16). Bataille defende que a posse do ser amado não significa a morte; ao contrário, a sua busca implica a morte. Se o amante não pode possuir o ser amado, algumas vezes pensa em matá-lo: muitas vezes ele preferiria matar a perdê-lo. Ele deseja em outros casos sua própria morte. O que está em jogo nessa fúria é o sentimento de uma continuidade possível percebida no ser amado. (BATAILLE, 1987, p.15). O erotismo abre para a morte. A morte abre para a negação da duração individual. Poderíamos, sem violência interior, assumir uma negação que nos leva ao limite de todo o possível? (BATAILLE, 1987, p. 18). O Erotismo vai provocar o campo do sagrado e das interdições, onde o lícito e o ilícito tornam-se a maneira dos sujeitos enquadrarem suas sexualidades. No final da peça, quando Salomé beija a boca de Iokanaan, [...] a violência, a morte e o desejo se reúnem e contrastam com a ênfase do texto na teimosia da virgem casta que aprendeu o significado do poder. Mesmo antes de sua famosa Dança dos Sete Véus, Salomé usou o conhecimento que tinha de seu poder, um poder inseparável de seu corpo físico. Aquela dança é parte do calculado jogo de trocas com Herodes – no qual ela oferece seu corpo como espetáculo sensual, sexual aos olhos dele, em troca da promessa de que vai satisfazer tanto sua teimosia letal quanto sua destrutiva obsessão sexual por beijar a boca do resistente profeta (HUTCHEON, 2003, p.36). Neste sentido, compreendemos o Erotismo, também, como uma forma de resistência do sujeito, por delinear caminhos transgressores, 205Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 escapando da vigilância e do poder disciplinador (no caso Herodes) que regulam os comportamentos dentro de uma moral, estabelecendo o permitido e o proibido (BARROS, 2007, p. 8). O corpo perde voz, porque está morto, porém seus atos continuam repercutindo na memória coletiva. Considerações finais Salomé de Oscar Wilde mostra a face oblíqua feminina. Silenciada pela morte, esse poder feminino suscita reflexão. Qual é o limite do corpo e do prazer? Sabendo de seus artifícios, a expressão do erótico e do desejo traz conflitos e pudores que ainda são mantidos trancados a sete chaves na sociedade. Salomé consegue construir uma figura de ternura e assombro, de inocência e dissimulação. Como a Lua, que tem suas fases — o que não a deixa menos bela e hipnotizante —, a jovem princesa transmuta para expressar suas intenções. Usa seu corpo, sua beleza e encantos para seduzir quem a contempla. Injuria-se por não ter a admiração de Iokanaan, o único homem que se nega a olhá-la. De fato, pode ser a reversão do poder do olhar que contribui para a ansiedade que Salomé consegue inspirar em que a vê. Sua paixão assassina nos leva a refletir sobre os limites do desejo: será que há algum? Na formulação de Susan McClary “a monstruosidade das transgressões sexuais e cromáticas de Salomé é tanta que a extrema violência parece justificada — até mesmo exigida — para salvar a ordem social e tonal” (apud HUTCHEON, 2003, p. 42). A morte de Salomé foi o preço pago por saciar o desejo da moça e de todos que a contemplavam. Salomé sacrificou seu próprio corpo. O mal foi eliminado pela raiz; o erotismo levou as últimas consequências e o poder maior (masculino, representado por Herodes) tomou posto, de forma passional também. A feminilidade foi castrada mais uma vez, porém nunca silenciada, o que perpassa e que nos atrai o olhar e causa incômodo até hoje. Pode-se dizer que Wilde consolidou o que pretendia: construir uma figura feminina que causasse repulsa e admiração; que causasse reflexões intimistas nos leitores/espectadores mais desavisados: o poder do corpo erótico que consuma e sacia o desejo. 206 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.esp., p. 195-206, ago/dez 2015 Referências BARBUDO, Isabel. Prefácio. In: Salomé. Trad. Isabel Barbudo. Lisboa: Ed. Estampa, 2000. BARROS, Lindinês Gomes de. Erotismo: uma resistência do sujeito às proibições. Revista Inter-legere. Rio Grande do Norte. Ano 1, n. 1, jan/jul de 2007, p. 1-8. BATAILLES, Georges. O Erotismo. tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre : L&PM, 1987. HUTCHEON, Linda; HUTCHEON, Michael. O corpo perigoso. Revista Estudos Femininos. Florianópolis, v. 11, n. 1, jan.-jun. 2003. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104026X2003000100003&lng=&nrm=iso&tlng >. Acesso em 20 mar.2015. PAZ, Octavio. (1994). A dupla chama. São Paulo: Siciliano, 1994. SILVA, Gelson Peres da. Salomé de Oscar Wilde: Questionamentos. Revista Textura, nº 4, 1º semestre de 2001, p. 53-57. WILDE, Oscar. Salomé. Trad. Isabel Barbudo. Lisboa : Ed. Estampa, 2000. Recebido em: 19 de set. de 2015. Aceito em: 26 de jun. de 2016.