59Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 A Cinderela austeniana: uma análise sobre a intertextualidade em Mansfield Park1 Tânia Maria de Oliveira GOMES2 Resumo: Com este trabalho, propõe-se um estudo que se situe na interface entre a Linguística e a Literatura, por meio da análise de um material, a priori, literário, contemplado, nestas laudas, sob a égide dos preceitos linguísticos. Nesse sentido, objetiva-se (a) examinar a obra Mansfield Park, de Jane Austen (2012)3, à luz das noções de “intertextualidade” e “imaginários”, termos caros à Linguística do Texto e do Discurso, e, (b) investigar os possíveis pontos de contato entre a obra austeniana e o conto “Cinderela”, de Charles Perrault (1697). Com esse intuito, autores como Charaudeau (2007), Koch e Elias (2010) e Marcuschi (2008) fulguram no arcabouço teórico que aqui se elabora, viabilizando a construção de um artigo que carrega, entre os seus resultados, aquele que ratifica a aproximação entre o texto austeniano e o conto francês. Tal cotejo permite delinear uma conclusão que aponta para a importância da análise crítica sobre as produções intertextuais, uma vez que estas, por vezes, são manejadas a fim de perpetuar determinados imaginários estanques, sobretudo aqueles que cristalizam as imagens do homem e da mulher. Palavras-chave: intertextualidade; imaginários; literatura. Abstract: With this work, it is proposed a study which takes place at the interface between Linguistics and Literature, through the analysis of a material, a priori, literary, contemplated, in these pages, under the aegis of the linguistic precepts. In this sense, the objective is to a) examine the literary work Mansfield Park, by Jane Austen (2012), in the light of the notions of “intertextuality” and “imaginary”, important terms to the Text Linguistics and Discourse and b) investigate the possible points of contact between the austenian literary work and the romance “Cinderella”, written by Charles Perrault (1697). To that end, authors like Charaudeau (2007), Koch e Elias (2010) and Marcuschi (2008) blaze themselves in the theoretical framework that is elaborated here, enabling the construction of an article that carries, among its results, that one that ratifies the approximation of the austenian literary work and the French romance. Such a comparison allows us to draw a conclusion that points to the importance of the critical analysis about the intertextual productions, as these, sometimes, are managed in order to perpetuate certain tight imaginary, especially those that crystallize the images of the man and the woman. Keywords: intertextuality; imaginaries; literature. 1 Comunicação oral apresentada no VII Colóquio Mulheres em Letras: percursos da escrita de autoria feminina, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, em 14 de maio de 2015. 2 Doutoranda em Letras (Estudos Linguísticos/Bolsista CAPES/DS) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG. Correio eletrônico: tantan.maria@hotmail.com. 3 Neste artigo, tomou-se como referência a obra Mansfield Park, de Jane Austen (2012), traduzida por Alda Porto, pela Editora Martin Claret. 60 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 Mansfield Park: o palácio das ilusões4 Goza de notória familiaridade, nos imaginários discursivos, a história de uma jovem donzela que, ajudada por sua fada madrinha, comparece a um baile, calçando um sapato cuja perda desencadeia acontecimentos posteriores, na narrativa, que culminam no esperado final feliz, efetivado por meio do casamento entre a protagonista da ficção e o preclaro príncipe. Há incontáveis versões sobre esse mesmo enredo. “Na cultura ocidental, os textos escritos mais difundidos são os seguintes: a versão francesa intitulada Cinderela - O Sapatinho de Cristal, de Charles Perrault (1697), e a versão alemã, A Gata Borralheira, dos irmãos Grimm (1812)” (MARTINELLI, 2008, p.51, [grifos do autor]). Conhecidos como contos “de fadas”, apesar da inexistência de tais seres mágicos, em algumas adaptações, como a germânica supracitada, essas produções perenizam-se ao longo dos anos, traçando teias intertextuais com as narrações que as precedem e que as procedem, dentre as quais uma trama, a da Cinderela, parece tomar contornos mais voluptuosos, quando vislumbrada à luz da ótica austeniana. É, precisamente, a partir da análise da tessitura alinhavada na obra Mansfield Park, de Jane Austen, que se pretende examinar os pontos de cotejo entre tal romance e o conto em questão, na esteira da Análise do Discurso e da Linguística do Texto. No entanto, antes de avançar em direção aos balaústres teóricos, cabe, a este trabalho, contextualizar o leitor com relação à autora e a obra aqui contempladas. De acordo com Pereira e Rabelo (2012, p.46), “Jane Austen é, de forma indiscutível, um nome reconhecido mundialmente”, notoriedade inegável, segundo as estudiosas, posto que “uma busca rápida numa fonte de pesquisa on-line suscita mais de quarenta e dois milhões de resultados”; e não importa quanto tempo passe, “algumas de suas obras sempre possuem lugar de destaque nas livrarias por meio uma retradução”. Filha do Reverendo George Austen (1731-1805), patriarca responsável por uma família pertencente à “classe denominada gentry (classe média ou baixa aristocracia)”, Jane Austen envolveu-se com a literatura desde a infância, dando seguimento à sua paixão pelas letras na adolescência, período em que escreveu o seu primeiro livro 4 O título desta subseção faz alusão ao nome dado à adaptação cinematográfica, datada do ano de 1999, do livro Mansfield Park, de Jane Austen. Tal denominação, utilizada na película, já sugere um elemento intertextual entre os contos de fadas e a obra austeniana: o palácio. 61Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 (ZARDINI, 2011, p.04). Em suas produções literárias, encontram- se alguns eixos norteadores que se perpetuam ao longo de toda a sua obra escrita. A descrição do meio rural (interior da Inglaterra), a forte presença de figuras ligadas ao clérigo, o destaque conferido à imagem da irmã, em detrimento do apagamento da persona materna, a importância conferida à literatura, ao teatro, à música e à educação, a retratação da desigualdade entre camadas sociais e, sobretudo, o protagonismo de personagens femininas e a relevância do casamento, são algumas temáticas recorrentes nos textos austenianos. Todos os elementos sobreditos acham-se materializados no livro Mansfield Park, obra descrita por Pereira e Rabelo (2012), da seguinte forma: Mansfield Park foi a quarta obra de Jane Austen, e a terceira a ser publicada. Começou a escrevê-la em 1812 e terminou em 1814. Devido ao sucesso das publicações de Orgulho e preconceito e Razão e sensibilidade, Thomas Egerton decidiu apostar em Mansfield Park, cujos exemplares foram esgotados em menos de seis meses. Austen sempre quis manter o anonimato e não assinou nenhuma de suas obras; em sua primeira obra publicada, Razão e sensibilidade, dizia apenas “by a lady” – “por uma dama” – e Mansfield, dividida em três volumes como todas as demais, traz somente “by the author of Sense and Sensibility and Pride and Prejudice”. (PEREIRA, RABELO, 2012, p.51, [grifos do autor]). Ainda segundo as pesquisadoras supracitadas, “essa foi a segunda obra austeniana a atingir as mãos dos leitores brasileiros em sua língua materna. Mansfield Park recebeu em 1942 sua primeira publicação em português [...] traduzida por Rachel de Queiroz” (PEREIRA, RABELO, 2012, p.53). No enredo de tal produção, ambientada, predominantemente, na propriedade suntuosa que dá nome ao livro, Fanny Price, personagem principal, muda-se para a casa dos tios ricos, Lady Bertram e sir Thomas, aos dez anos, a fim de ser educada pelos parentes abastados. Desde a infância, Price sofre com as constantes humilhações provocadas pela outra tia, sra. Norris, personagem autoritária e mesquinha, que se contrapõe à indolência e docilidade de Lady Bertram. É, também, a partir desse período, que surge o amor de Fanny por seu primo Edmund, filho mais novo do casal sobredito. No desenvolvimento da história, há duas passagens temporais marcadas por alguma importância. A primeira, diz respeito à morte do sr. Norris, marido da tia despótica, quando Price possuía quinze anos, período cronológico próximo à época na qual há a viagem 62 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 do sir Thomas à Antígua, a fim de tratar de negócios. Essa data marca a chegada dos irmãos Mary e Henry Crawford à vizinhança de Mansfield Park, este, um sujeito galanteador que tentará seduzir Maria e Julia Bertram, e aquela, uma fascinante e despudorada jovem que se encantará por Edmund. A segunda, marca o intervalo de tempo no qual o tio encontra-se fora, culminando com o retorno deste ao lar, fase em que Fanny completa dezoito anos. Conforme anuncia Austen (2012, p.237), o regresso de sir Thomas a Mansfield Park “causou uma mudança impressionante nos hábitos da família”, provocando uma série de acontecimentos, como o casamento da filha mais velha, Maria Bertram, a ida da jovem, juntamente com a irmã mais nova, Julia, para a capital inglesa, e a posterior viagem do primogênito Tom Bertram. Nesse período, Fanny torna-se a única jovem em Mansfield Park, assumindo, de fato, o protagonismo da narrativa, em detrimento da afonia inerente à personagem até essa segunda fase do romance, como pode ser comprovado neste excerto: Com a partida das irmãs Bertram, a importância de Fanny aumentou. Ao se tornar a única jovem nas reuniões do salão de estar, a única ocupante daquela interessante divisão familiar na qual até então lhe coubera um tão humilde terceiro plano, era impossível que não a observassem mais, pensassem nela e lhe dessem maior atenção como nunca antes; e “Onde está Fanny?” tornou-se uma pergunta comum, mesmo quando alguém não precisava dela para alguma tarefa específica (AUSTEN, 2012, p.247). A partir daí, a sra. Price é apresentada à sociedade, por meio de um baile, no qual Henry Crawford evidencia o seu desejo de desposá-la. Desenrola-se, então, uma quadrangulação amorosa, na qual Edmund Bertram apaixona-se por Mary Crawford, irmã de Henry Crawford; este, por sua vez, declara-se para Price, que o nega, insistentemente, dado o amor por aquele primeiro. Tal problemática dissolve-se com a consumação do adultério de Maria Rushworth, agora já casada, com Henry Crawford. Este, em viagem à capital, amargurado pelas recusas de Fanny e impulsionado pelo prazer de seduzir, cede à beleza de Maria, ato que se torna notícia e passa a circular nos jornais locais, como expõe Austen (2012): ...era com infinito pesar ter de anunciar ao mundo social um desastre matrimonial ocorrido na família do sr R..., da Wimpole Street. A bela sra. R..., cujo nome ingressara fazia pouco tempo na lista das damas casadas, e que prometera tornar- 63Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 se uma líder tão brilhante no mundo elegante, abandonara o teto conjugal em companhia do conhecido e cativante sr. C..., amigo íntimo do sr. R. ... Ninguém sabia, nem o editor do jornal, o destino de ambos (AUSTEN, 2012, p.524-525). A esposa traidora é logo abandonada pelo amante, e a irmã deste, rechaçada por Edmund. Com a exclusão dos irmãos Crawford da vida da família Bertram e a partida da sra. Norris da localidade, com o propósito de dedicar-se à desafortunada sobrinha Maria, Mainsfield Park passa a fulgurar não mais como um palácio cercado de desencantos e desilusões, mas sim como lugar de equilíbrio e paz, que propicia, naturalmente, o encontro amoroso do casal Edmund e Fanny. Ocorre, desse modo, o casamento entre os primos, que selam um matrimônio marcado pelo “amor verdadeiro”. Vale salientar, que a irmã de Fanny, Susan Price, muda-se para Mansfield, ocupando o lugar da irmã na propriedade e na dinâmica social da família Bertram, sugerindo, assim, um final circular à história, no qual Susan parece estar destinada a repetir os passos, tortuosos, mas recompensantes, de Fanny Price. Feita esse célere contextualização com relação ao enredo da obra austeniana, faz-se necessário configurar o esboço teórico, sobre o qual este trabalho se edifica, com o intuito de demarcar sobre quais definições acadêmicas este estudo transita e como tais noções permitem a aproximação do romance de Jane Austen ao conto da Cinderela. Quem conta um conto, aumenta um ponto: a força dos imaginários e da intertextualidade na literatura austeniana Grosso modo, os contos de fadas remontam às tradições milenares, como bem sinaliza Abramovich (1997): [...] o maravilhoso universo dos contos de fadas se perpetua há milênios, havendo registros de que eram contados na China desde o século IX. Tal fato se justifica, de um lado, porque os contos estão envoltos no mundo da fantasia; de outro, porque partem sempre de uma situação real, de fácil compreensão para a criança. Isto porque as narrativas se passam em lugares idealizados e sem limites, mas que qualquer criança pode frequentar. As personagens são simples, passam por situações inusitadas, buscam respostas e convivem com entidades fantásticas, como bruxas, fadas, entre outros. O importante é que os contos de fadas mantêm uma estrutura fixa, partem de um conflito real, desenvolvem-se em mundo fantasioso com o auxílio de personagens mágicos e finalizam com a solução dos problemas no plano real, o que permite à criança a ideia de 64 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 que é possível abrir as portas para a fantasia, mas é preciso assumir o real (ABRAMOVICH, 1997, apud MARTINELLI, 2008, p.43). Diante de tal assertiva, observa-se a perpetuação dos contos fantasiosos entre diversas gerações, imortalidade garantida, mormente, graças à força dos imaginários sóciodiscursivos que mantêm viva a essência das histórias infantis. Frisa-se a vitalidade da “essência” narrativa, porque as distintas adaptações e versões, criadas a partir de uma diretriz basilar, alargam, acrescentam, reduzem, desvirtuam e modificam a obra original, produzindo textos outros que, em maior ou menor grau, guardam relação com a produção primeira, ainda que esta se encontre perdida no tempo. Com efeito, as noções de imaginário e de intertextualidade avultam-se como conceitos nucleares, neste estudo, uma vez que concatenam ideiais passíveis de aclarar a relação entre textos, a priori, distintos, mas que carregam, em si, uma base comum. No que concerne ao primeiro termo - imaginário -, toma-se a seguinte definição que adverte: No uso corrente, o termo imaginário é empregado no sentido disto “que existe somente na imaginação, que não é realidade”, como o diz o dicionário Robert (1990). Nesse sentido, é tomado, de preferência, em direção a uma pura invenção da mente que descreve alguma coisa que não tem correspondência na realidade e que, portanto, não é verdadeira. Nesse caso, damos-lhes como sinônimos os termos de mito, lenda, ficção, e bem frequentemente, ele é portador de um julgamento negativo como em “É uma doença imaginária”. Às vezes, o sentido básico é atraído em direção a uma construção idealizada, com, muitas vezes, o sentido de ilusão, mas não necessariamente negativa: “um mundo imaginário” que pode ser uma utopia ou um sonho não factível (CHARAUDEAU, 2007, p.52, [grifos do autor])5. Nesse sentido, o conceito estaria condicionado à raíz lexical que remete à imaginação, ao não real. Ainda que tal definição, popular no senso comum, circule de forma vigorosa no linguajar social, essa acepção não se aplica ao trabalho aqui edificado. A fim de desatar 5 Traduzido de: “Dans l’usage courant le terme d’imaginaire est employé dans le sens de ce “qui n’existe que dans l’imagination, qui est sans réalité” , comme le dit le dictionnaire Robert (1990). Et ce sens est tantôt tiré vers une pure invention de l’esprit qui décrit quelque chose qui n’a pas de correspondant dans la réalité et qui donc n’est pas vrai. Dans ce cas, on lui donne comme synonymes les termes de mythe, légende, fiction, et bien souvent il est porteur d’un jugement négatif comme dans “C’est un malade imaginaire” . Tantôt le sens de base est tiré vers une construction idéalisée, ayant parfois le sens d’illusion mais non nécessairement négatif : “un monde imaginaire” qui peut être une utopie ou un rêve non réalisable“. 65Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 uma possível ambiguização sobre o que se entende por “imaginário”, neste estudo, adota-se a conceituação charaudiana para o vocábulo, que explica: O imaginário é um modo de apreensão do mundo que nasce na mecânica das representações sociais, que é, como dito, construído da significação sobre os objetos do mundo, os fenômenos que se produzem, os seres humanos e seus comportamentos, transformando a realidade em real significante. Ele resulta de um processo de simbolização do mundo de ordem afetivo-racional por meio da intersubjetividade das relações humanas e se deposita na memória coletiva. Assim, o imaginário tem uma dupla função de criação de valores e de justificação de ação. (CHARAUDEAU, 2007, p.53)6. Nessa perspectiva, os imaginários corresponderiam a um modo de simbolização do mundo, calcado nas representações sociais, que transformam a realidade em real significante. Sobre essa transformação, Charaudeau (2007) sinaliza: Generalizando, podemos dizer que “a realidade” corresponde ao mundo empírico por meio de sua fenomenalidade, [...] por oposição, “o real” refere-se ao mundo tal qual ele é construído, estruturado, por atividade significante do homem através do exercício da linguagem em suas diversas operações de nomeação dos seres do mundo, de caracterização de suas propriedades, de descrição de suas ações no tempo e no espaço e de explicação da causalidade dessas ações (CHARAUDEAU, 2007, p.50-51)7. Nesse contexto, o real significante associar-se-ia ao uso da linguagem como ferramenta de semiotização do mundo, capaz de produzir imaginários cuja perenização se dá nas relações intersubjetivas, nas quais a memória exerce um papel fundamental. Assim, “os imaginários são engendrados por discursos que circulam nos grupos sociais, organizando-se em sistemas de pensamento coerentes”, 6 Traduzido de: “L’imaginaire est un mode d’appréhension du monde qui naît dans la mécanique des représentations sociales, laquelle, on l’a dit, construit de la signification sur les objets du monde, les phénomènes qui s’y produisent, les êtres humains et leurs comportements, transformant la réalité en réel signifiant. Il résulte d’un processus de symbolisation du monde d’ordre affectivo-rationnel à travers l’intersubjectivité des relations humaines, et se dépose dans la mémoire collective. Ainsi, l’imaginaire a une double fonction de création de valeurs et de justification de l’action“. 7 Traduzido de: “En généralisant le propos, on peut donc dire que “ la réalité” correspond au monde empirique à travers sa phénoménalité, [...] par opposition, “le “réel” réfère au monde tel qu’il est construit, structuré, par l’activité signifiante de l’homme à travers l’exercice du langage en ses diverses opérations de nomination des êtres du monde, de caractérisation de leurs propriétés, de description de leurs actions dans le temps et dans l’espace et d’explication de la causalité des ces actions”. 66 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 criadores de valores, “que tematizam o papel de justificação da ação social e se depositam na memória coletiva” (CHARAUDEAU, 2007, p.54)8. Nessa direção, tal dimensão teórica partilha com o conceito de “intertextualidade” a importância conferida à memória, como se vê: Todos nós já conhecemos o princípio segundo o qual todo texto remete sempre a outro ou a outros, constituindo-se como uma “resposta” ao que foi dito ou, em termos de potencialidade, ao que ainda será dito, considerando que a intertextualidade encontra-se na base de constituição de todo e qualquer dizer. Em sentido restrito, todo texto faz remissão a outro(s) efetivamente já produzido(s) e que faz(em) parte da memória social dos leitores (KOCH; ELIAS, 2010, p.101). Assim, os conceitos de “imaginários” e “intertextualidade” se aproximam na medida em que ambos se valem da memória. Além disso, de modo sintético, pode-se pensar a dinâmica entre os dois termos como algo baseado em uma trajetória circular, por meio da qual os imaginários viabilizam, em grante parte, a criação de textos intertextuais que, por sua vez, lançam mão dos imaginários na decodificação de seus sentidos. Esse processo pode ser vislumbrado na construção das diversas versões do conto “Cinderela”, como se observa: Yeh-hsien, Cendrillon, Cinderella, Ashenputtel, Rashin Coatie, Mossy Coat, Kattie Woodencloack, Cenerentola: estas são algumas das primas folclóricas de Cinderela. Se ela foi reinventada por praticamente todas as culturas conhecidas, também sua história tem sido perpetuamente reescrita no cinema. Alguns exemplos seriam as adaptações feitas por Walt Disney e, ainda, muitos filmes que, ambientados na contemporaneidade, retratam a trajetória de uma jovem sofredora que é, depois, recompensada: Uma secretária do futuro, com Melanie Griffith; Uma linda mulher, com Julia Roberts; Para sempre Cinderela, com Drew Barrymore; A nova Cinderela, com Hilary Duff. Esses filmes demonstram que, devido à sua perpetuidade, os temas ligados à corte (ascensão social) e ao casamento, abordados pelo conto Cinderela, fazem parte dos conflitos das sociedades de todos os tempos. Poucos contos de fadas gozaram de tão rica sobrevivência literária, cinematográfica e musical (MARTINELLI, 2008, p. 51). No trecho acima, constata-se a intertextualidade entre distintas adaptações do conto da Cinderela, todas encadeadas pela reiteração de imaginários ligados ao casamento e ao status social. Nesse caminho, o 8 Traduzido de: “les imaginaires sont engendrés par les discours qui circulent dans les groupes sociaux, s’organisant en systèmes de pensée cohérents créateur de valeurs, jouant le rôle de justification de l’action sociale et se déposant dans la mémoire collective”. 67Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 que se pode afirmar é que a intertextualidade, “mais que um simples critério de textualidade, é também um princípio constitutivo que trata o texto como uma comunhão de discursos e não como algo isolado”. E esse fato é relevante “porque dá margem a que se façam interconexões dos mais variados tipos” (MARCUSCHI, 2008, p.132), como as realizadas no excerto acima, todas atravessadas por imaginários sóciodiscursivos. Dessa forma, verifica-se que [...] o fato de os contos de fadas terem sido recontados de tempos em tempos os refinou cada vez mais e permitiu que tais textos transmitissem não apenas os significados neles incutidos, mas também os “encobertos”. Com isso, vemos que a perpetuidade dos contos é notória e sua atuação envolve não só a criança, mas também atinge os adultos, isto é, envolve todos os níveis da personalidade humana (MARTINELLI, 2008, p. 41). Destarte, a obra Mansfield Park, de Jane Austen, guardaria elementos intertextuais com a narrativa Cinderela, ainda que essa conexão não tenha sido explicitada pela autora inglesa. Tais correspondências entre o romance e o conto seriam passíveis de serem retomadas graças à memória dos leitores, funcionando, a obra austeniana, como um conto que tem um ponto (ou vários) acrescentado (s), mas que mantém, com aquela história infantil, os imaginários ligados ao papel da mulher, do homem, do matrimônio e do dinheiro, nas relações sociais. Nesse sentido, este trabalho se limitará à adaptação de Perrault (1697) do conto sobredito, por esta sinalizar mais índices comuns com o texto de Austen, ideia que será corroborada na análise para a qual este estudo agora se encaminha. O “era uma vez” na obra de Jane Austen Para que se possa estabelecer quais pontos intertextuais circundam as obras de Perrault (1697) e Austen (2012), reforçando determinados imaginários, faz-se necessário compreender como o escritor francês constrói a sua versão de Cinderela, o que se evindencia no seguinte trecho: A versão francesa relata a história de uma menina dócil e totalmente passiva que é maltratada pelas irmãs e pela madrasta, que nem chega a pedir para ir ao baile, apesar do seu desejo de estar lá. A fada madrinha chega para auxiliá-la e transforma seus trapos em lindos vestidos em ouro e prata, 68 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 assim como a abóbora em carruagem e o rato em cocheiro e a presenteia com um par de sapatinhos de cristal. No fim da história, após casar com o príncipe, Cinderela perdoa as irmãs e as casa com nobres da corte, ilustrando um modelo perfeito de comportamento feminino (CHRISTOFOLETTI, 2011, p.26). A partir de tal adaptação do conto, observa-se a composição de um enredo que encontra ressonância no texto austeniano. Pensando nisso, este trabalho recorre a Propp (1997, p. 29), estudioso renomado pela análise morfológica dos contos maravilhosos, quem explicita que, normalmente, um conto tem início com uma “atmosfera especial que se caracteriza pela tranquilidade épica”. De fato, a história narrada na obra Mansfield Park inaugura-se de forma calma e descritiva, como se vê: “Cerca de trinta anos atrás, a sra. Maria Ward, de Huntingdon, com apenas sete mil libras de dote, teve a sorte de conquistar o sir Thomas Bertram, proprietário de Mansfield Park, no condado de de Northampton [...] (AUSTEN, 2012, p.09, [grifo nosso]). Nesse trecho, verifica-se a relação entre os excertos sublinhados e expressões como “era uma vez...em um reino encantado”, estas encontradas nas versões de Perrault, que se aproximam, precisamente, daquelas pela marcação inicial de tempo e lugar. Com relação à protagonista, descrita pelo contista francês, constata-se que Fanny Price, heroína da obra de Jane Austen, apresenta a mesma docilidade e paciência de Cinderela, uma vez que, descrita como detentora de uma “voz meiga”, “Fanny “ era “sempre uma ouvinte muito amável e na maioria das vezes a única disponível,” sujeitando-se “às queixas e aflições de todos” (AUSTEN, 2012, p.204). Sobre os maus- tratos sofridos pela princesa perraultiana, no livro inglês, tais ações são cometidas pelas duas primas de Fanny, Maria e Julia, e, sobretudo, pela sua tia Norris, que atuam de forma semelhante, respectivamente, às irmãs e à madrasta de Cinderela. A respeito das jovens, o narrador salienta: “de fato, só dois anos separavam a mais nova de Fanny. [...] as primas mais velhas mortificavam-na com os comentários sobre o seu tamanho, e envergonhavam-na quando notavam sua timidez” (AUSTEN, 2012, p.22). Em seguida, acrescenta: “Maria e Julia eram maldosas intencionalmente, e, embora Fanny muitas vezes ficasse mortificada com a maneira como elas a tratavam, fazia um conceito demasiado baixo de seu próprio direito de sentir-se ofendida com isso” (AUSTEN, 69Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 2012, p.28). Sobre a tia, o narrador expõe: “A sra. Norris não tinha a menor afeição por Fanny, nem desejo algum de proporcionar-lhe qualquer momento de alegria” (AUSTEN, 2012, p.97), o que pode ser comprovado nos trechos seguintes, nos quais se observa como a tia tratava a sobrinha com humilhação e desprezo, sobrecarregando-a com os afazeres domésticos, assim como ocorre no conto de fadas: - Que artifício mais tolo, Fanny, esse de se afastar e ficar a noite toda sem fazer nada num sofá?! Que tal vir sentar-se aqui e fazer alguma coisa como nós? Se não tem trabalho próprio, posso lhe dar a cesta dos pobres agora mesmo. Todo o tecido novo comprado na semana passada continua intocado. Sei que quase morri de dor nas costas de tanto cortá-lo. Você precisa aprender a pensar nas outras pessoas, e acredite em mim: trata-se da coisa mais chocante do mundo uma jovem viver largada num sofá (AUSTEN, 2012, p.88).[...] - Francamente, Fanny, tem muita sorte por receber tal atenção e tolerância! Deve ficar muito grata à sra. Grant por pensar em você, e à sua tia por deixá-la ir. Deve considerar isso um acontecimento extraordinário, pois espero que saiba que não existe um verdadeiro motivo para frequentar a casa de pessoas desse nível, sobretudo um convite para jantar, e tenha certeza de que jamais se repetirá. E tampouco imagine que o convite se deva a alguma cortesia específica a você, mas se destina aos seus tios e a mim. A sra. Grant acha que nos deve uma delicadeza ao dar-lhe uma pequena atenção, do contrário, isso jamais passaria pela cabeça dela, e tenha absoluta certeza de que, se sua prima Julia estivesse em casa, você nem sequer seria convidada (AUSTEN, 2012, p.264-265). Acerca do baile, outras semelhanças surgem no cotejo entre a história francesa e a obra austeniana. No livro Mansfield Park, assim como em Cinderela, a protagonista não expressa a sua vontade de ir ao baile, querer explicitado pelo irmão de Fanny, como se constata: “O desejo manifestado por William, de ver Fanny dançar, causou mais que uma momentânea impressão no tio” [...] Ele “continuava com firme disposição de satisfazer a tão amável sentimento, satisfazer a todos os que talvez desejassem vê-la dançar” (AUSTEN, 2012, p.303). Nesse contexto, o baile simboliza um ritual de transformação, no qual tanto Fanny Price como Cinderela debutam na sociedade, ideia comprovada no trecho: “A sra. Price, conhecida pela maioria das pessoas convidadas apenas pelo nome de batismo, agora faria a primeira apresentação social e todos a encaravam como a rainha da festa” (AUSTEN, 2012, p.319). Para a efetivação do baile, no entanto, a figura da fada madrinha, com suas instruções, é essencial, como se constata: 70 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 A fada madrinha descrita por Perrault, apesar de toda a questão da magia e da fantasia, propõe uma transformação, de certa forma, coerente com seu objetivo final e os objetos e animais que pede à Borralheira. A abóbora deve ter o seu interior esvaziado a fim de que possa ser transformada em uma carruagem com um espaço interno onde sua afilhada pudesse se acomodar. Dentre os três ratos que estavam na ratoeira, o escolhido para ser o cocheiro era aquele que possuía características semelhantes àquelas que esperava que um cocheiro tivesse, o mais gordo e de maior bigode. Os lacaios deveriam apenas ficar parados para acompanhar Borralheira ao baile e os animais que possuíam essa característica eram os lagartos do jardim. Aqui, Cinderela somente executa as ordens que lhe foram dadas pela madrinha e, assim, recebe tudo o que lhe fora prometido (CHRISTOFOLETTI, 2011, p.44). No romance de Austen (2012), o papel que caberia a esse ser protetor é materializado pelo tio de Fanny, sir Thomas, figura paternal que trata a sobrinha com afeto e cuidado, como se observa no trecho: “Sir Thomas”, logo após a chegada de Antígua, “olhava em volta e perguntava:- Mas onde está Fanny? Como não vejo a minha pequena Fanny?” Ao vê-la, “adiantou-se com uma amabilidade que a surpreendeu e comoveu, chamou-a de sua querida Fanny, beijou-a afetuosamente e observou com visível prazer como ela crescera!” (AUSTEN, 2012, p.216). O tio é responsável por satisfazer os desejos de Fanny, ainda que estes não sejam verbalizados por esta, funcionando tal qual um ser divino que adivinha as vontades de suas protegidas donzelas, ideia corroborada nos excertos: “Sir Thomas, logo depois de abrir a porta, perguntou: “Fanny, a que horas quer que a carruagem passe para buscá-la?” (AUSTEN, 2012, p.266); “É o vestido novo que meu tio teve a bondade de me dar” (AUSTEN, 2012, p.267) e “impressionou-a, profundamente, quando, ao retornar do passeio e tornar a entrar na sala da ala leste, a primeira coisa que viu foi o fogo na lareira aceso e em chamas. Um fogo! Parecia-lhe demais [...] o fato de que concedesse semelhante favor” (AUSTEN, 2012, 382). Apesar do tratamento amável do tio, não é ele o responsável por brindar Fanny com o elemento mágico, essencial, no conto francês: o sapatinho de cristal. No livro de Austen (2012), o presente ganha outra forma e o ser doador é, também, uma figura masculina. Entretanto, antes de avançar nesse sentido, cabe esclarecer como tal objeto mágico é descrito no conto de fadas: O sapatinho de cristal de Perrault está relacionado à questão 71Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 do valor que o cristal representava para a sociedade da época, sendo muito apreciado na corte como um símbolo de poder aquisitivo (em contraste com sua situação de Borralheira). Também indicando o quanto a moça que o calçava era delicada e ajustada aos valores desejáveis para uma dama perfeita, pois até mesmo o seu jeito de andar era perfeito. Cinderela, para que possa ser devidamente reconhecida como a dona do sapatinho, tem sua imagem de moça esfarrapada prontamente transformada em a de uma mulher deslumbrante por sua fada madrinha, para então ser recebida pelo príncipe. A questão da aparência é ressaltada como fundamental para o seu sucesso (CHRISTOFOLETTI, 2011, p.44-45). No romance austeniano, assim como no conto Cinderela, a heroína martiriza-se por não saber se vestir, pois, como dito na citação anterior, a aparência diante da sociedade carrega consigo vários imaginários, dentre os quais aqueles que suscitam a importância do pertencimento a um grupo de prestígio, como se nota: [...] o “como deveria vestir-se” era um ponto de doloroso anseio; e o quase único ornamento que possuía, uma cruz de âmbar muito bonita que William lhe trouxera da Sicília, era a maior aflição de todas, pois tinha apenas um pedaço de fita para prendê-la ao pescoço; e embora a houvesse usado dessa maneira antes, seria isso admissível em tal ocasião, entre todos os ricos ornamentos com que supunha que se apresentariam as outras moças? Mas como não usá-la! (AUSTEN, 2012, p.306). Nesse contexto, é a corrente de ouro, comprada por Edmund para Fanny, que se materializa, no enredo austeniano, tal qual o sapatinho de cristal, no conto francês. Sobre o adorno, a protagonista é taxativa: “Oh, mas é linda mesmo!” [...] “Esta é exatamente como eu gostaria! É o único ornamento que desejava possuir e se ajusta com toda precisão à minha cruz. Devem ser e serão usadas juntas. Também chega num momento tão oportuno. Oh, primo, você não imagina como é bem-vinda”. (AUSTEN, 2012, p.314). Nota-se que, assim como o sapatinho ajusta-se perfeitamente ao pé de Cinderela, a corrente acomoda-se, com igual perfeição, à abertura contida na cruz. Vale ressaltar que Fanny havia experimentado tal adereço com outro colar, este presenteado pela sra. Crawford, mas esse cordão “de modo algum passava pelo aro da cruz” (AUSTEN, 2012, p.324). Além disso, o fato de o sapatinho ser “de cristal” e a corrente “de ouro” marcam o deslocamento das heroínas de uma estágio social inferior para uma ascensão à camada de prestígio. Nesse sentido, o poder mágico de tais 72 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 objetos resulta da capacidade do dinheiro em tornar as “mocinhas” adequadas para receber os seres amados, estes, homens que gozam de situação financeira superior à das protagonistas. Munidas destes objetos, Fanny Price e Cinderela puderam ir ao baile, puderam vivenciar um momento cercado de imaginários associados à distinção de classes e ao poder da riqueza. Após o baile, os enredos do romance e do conto caminham para o desfecho. No caso de ambos, os empecilhos são retirados do caminho do casal, que se vê livre para viver o seu “final feliz”, como afirma Christofoletti (2011): O final feliz, consagrado pelo casamento de Cinderela com o príncipe, é o desfecho das duas versões, entendido como a salvação e a recompensa da personagem por todo o sofrimento e a humilhação com que foi tratada por muito tempo. Em Perrault, Cinderela é tão amável e bondosa que acaba perdoando as irmãs de todo o coração e, ainda por cima, casa-as com dois ricos fidalgos da corte para mostrar que as ama e que não há ressentimento. Após o final da história vem a moralidade, que só reforça o quanto as moças devem cultivar as virtudes, os bons modos e a passividade, tal como Cinderela (CHRISTOFOLETTI, 2011, p.45). No caso de Fanny, esse desfecho é descrito da seguinte forma pelo narrador: “Com tanto e autêntico mérito, e verdadeiro amor, sem carência alguma de fortuna e amigos, a felicidade dos primos casados deve parecer-nos tão segura quanto é possível sê-lo a felicidade terrena” (AUSTEN, 2012, p.564). Nesse enlace, Fanny, assim como Cinderela, é recompensada com o casamento, após as amarguras e aviltamentos sofridos ao longo da narrativa. Nesse sentido, a efetivação do matrimônio é responsável por perpetuar o imaginário que associa a felicidade à união conjugal, tornando a figura de uma heroína solteira, como algo que ultraja a própria morfologia dos contos de fada, sejam estes atribuídos a Perrault ou a Jane Austen. Considerações finais: o esperado “felizes para sempre” em Mansfield Park Na obra Mansfield Park, o tom moralizante evindencia-se, especialmente, no desfecho da narrativa marcada pelo casamento entre Fanny Price e Edmund Bertram. Sobre essa temática, Christofoletti (2011) anuncia: 73Tânia Maria de Oliveira GOMES Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 A Cinderela da versão francesa é descrita segundo os moldes requisitados para as moças serem aceitáveis na corte e, consequentemente, desposáveis. O intuito da Cinderela de Perrault, assim como o que se prega com a moralité escrita ao final do conto para as moças da época, é que, para terem o tão almejado final feliz (casamento, algo que era extremamente importante na época), deveriam ser tais como a Borralheira, totalmente passivas, obedientes e atentas ao bons costumes (horário do baile limite como uma alusão à questão da pureza e da castidade), pois desse modo elas seriam merecedoras de um bom marido, o seu bem maior (CHRISTOFOLETTI, 2011, p.42-43). Tal qual ocorre em Cinderela, na história de Austen, Fanny Price também prova-se uma mocinha servil e aquiescente, como se vê: “Saiu logo como o tio recomendara e seguiu ao pé da letra os conselhos dele o máximo possível. Conteve as lágrimas, tentou acalmar os ânimos e fortalecer a mente. Queria provar que desejava ser-lhe obediente” (AUSTEN, 2012, p.381). Além disso, Price também posiciona-se como alguém que deve ser ensinada, adestrada, por um personagem masculino, no caso, seu tio, e, sobretudo, seu primo Edmund, como se constata, no trecho: “Ele recomendava os livros que encantavam as horas de lazer dela, incentivava-lhe o gosto e corrigia-lhe o julgamento” (AUSTEN, 2012, p.30). Esses exemplos fortalecem os imaginários que tonificam a superioridade do homem sobre a mulher, e que condicionam aquela ao papel de esposa e mãe. Além disso, no conto de Austen, o ser doador, aquele que fornece presentes e satisfaz os desejos da protagonista, não aleatoriamente, é personificado pelos mesmos personagens masculinos. Essa ideia reitera o imaginário de que cabe à mulher obedecer ao homem, sendo papel deste recompensá-la por tal postura subserviente. Esse caráter disciplinador, associado ao tio e ao primo de Fanny, próprio ao século XIX, ainda é vislumbrado, dois centenários depois, nos imaginários atuais. Há, na contemporaneidade, um série infindável de produções que se valem de mecanismos intertextuais produzindo narrativas que não apenas recriam enredos passados, baseados, por exemplo, nos contos de fadas, mas que são capazes, sobretudo, de perpetuar os imaginários ligados àquele tempo pretérito. Esse desajuste temporal, entre ideias e valores retrógados, acomodados na Pós-Modernidade, gera uma quantidade significativa de problemas comportamentais que remetem à frustração e à infelicidade. Prova 74 Entrepalavras - ISSN 2237-6321 Entrepalavras, Fortaleza - ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015 disso é a propagação do imaginário que associa o casamento a uma salvação. Essa ideia desemboca no “complexo”, não em vão, nomeado por Dowling (2002), “de Cinderela”, que preconiza que, assim como a protagonista de Austen, as mulheres contemporâneas, encontram-se à eterna espera do ser amado, tornando-se seres passivos, à mercê de um homem que lhes possa dirigir. Daí a necessidade de se pensar, criticamente, acerca dos pontos intertextuais entre textos passados e presentes, uma vez que uma leitura mais atenta é capaz de revelar não somente as semelhanças textuais, mas também a propagação, sintomática, de imaginários reacionários e altamente redutores. Referências CHARAUDEAU, Patrick. Les stéréotypes, c’est bien, les imaginaires, c’est mieux. In: BOYER, Henri. Stéréotypage, stéréotypes: foncionnements ordinnaires et mises en scène. Langue(s), discours. Vol. 4. Paris: Harmattan, 2007. p 49-63. CHRISTOFOLETTI, Camila Fontanetti. Análise comparativa de duas versões do conto de Cinderela: a de Charles Perrault e a dos Irmãos Grimm. 78f. Monografia (Licenciatura Plena em Pedagogia) - Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 2011. DOWLING, Collete. Complexo de Cinderela. 53 ed. São Paulo: Melhoramentos, 2002. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção de texto, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MARTINELLI, Marlise Maria Batista. Era uma vez... por onde anda Cinderela?Estudo de caso do conto de fadas Cinderela, na cidade de Maringá - PR. 2008. 144f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2008. PEREIRA, Germana Henriques; RABELO, Lorena Melo. O palácio das ilusões da tradução austeniana: “Orgulho e preconceito” no sistema literário. Belas Infiéis, v. 1, n. 2, p. 45-71, 2012. PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Trad. Rosemary Costhek Abílio e Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ZARDINI, Adriana. Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. Revista Em Tese - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários UFMG, Faculdade de Letras / UFMG, Belo Horizonte, v. 17, n.2, p. 1 - 14, ago. 2011. Recebido em 30 de dez. de 2014. Aceito em 14 de jun. de 2015.