10 resenhas ARCHETTI, Eduardo P. 1999. Masculin- ities. Football, Polo and the Tango in Argentina. Oxford/New York: Berg. 212 pp. Simoni Lahud Guedes Profa de Antropologia, Departamento de Antropologia, PPGACP-UFF Em busca das imagens de homens e masculinidades atuantes na Argentina atual, investigadas a partir da reconstru- ção de um poderoso sistema de repre- sentações coletivas, Eduardo Archetti toma como pano de fundo o contexto histórico da modernização de Buenos Aires nas primeiras décadas do século XX. Na efervescência da cidade dese- nhada em tintas vivas, no interior de um multifacetado processo de produção cultural, os argentinos começam tam- bém a exportar corpos, desempenhos, música, dançarinos, jogadores de pólo, cavalos híbridos e, sobretudo, jogado- res de futebol. A avassaladora entrada de imigran- tes europeus, a maioria italianos e es- panhóis e a forte presença dos britâni- cos, não é o aspecto menos relevante desse processo. É esta cidade, percebi- da como locus da nação, vista pelos ar- gentinos como “uma típica cidade eu- ropéia” (:4), habitada por brancos, uma reprodução da Paris da belle époque, que percorremos em todo o livro. Insta- la-se ali o palco da construção comple- xa de uma essência criolla, capaz de fertilizar a essência européia, transfor- mando-a e produzindo novos seres masculinos através da dinâmica da con- trastação, símbolos de uma nação que se define pelos homens que produz, construtos específicos e peculiares, mas não unívocos. Dessa perspectiva, a ci- dade é recuperada em suas contradições e ambigüidades, nas suas míticas áreas sombrias e marginais, desde suas aca- demias de bailes, seus cafés de camare- ras, seus cabarets, passando pelos cam- pos de futebol improvisados nos bairros pobres, chamados potreros, até as pla- nícies dos pampas, reconstruídas no meio urbano pelas ideologias eruditas e populares como fonte da especificidade nacional. Desenhando os espaços sim- bólicos nos quais transitam e são sele- cionados os complexos valores morais que atuam como “modelos e espelhos” para os homens argentinos (:XVIII, pas- sim) e delineando seus míticos persona- gens – o gaucho, o compadrito, a milon- guita, o pibe –, o autor conjuga refle- xões teóricas acerca da construção da masculinidade, da moralidade e das identidades nacionais nas “culturas hí- bridas”. Escolher trabalhar essas questões mediante a análise do futebol, do pólo e do tango embute algumas opções me- todológicas. O autor opta por uma com- paração intracultural que lhe permite a complexificação das imagens de mas- culinidades em atuação, a análise da RESENHAS MANA 6(1):175-197, 2000 forma como transitam de uma arena a outra e, ainda, uma mais nítida identifi- cação dos “outros” relevantes que são chamados a atuar em tais sistemas sim- bólicos: os europeus, em geral, com sig- nificados e posições relativas substanti- vamente diferentes para os ingleses, de um lado, e os latinos, de outro, isto é, italianos e espanhóis. Uma comparação com outros países da América Latina é ensaiada no epílogo, tomando o traba- lho de Roberto DaMatta sobre carnaval e futebol no Brasil como referência. Em- bora sugestiva de uma continuidade potencialmente reveladora, em nenhum momento, já que não é esta a opção me- todológica de Archetti, tal comparação é levada adiante. Do mesmo modo, é inspirando-se explicitamente no traba- lho do antropólogo brasileiro e na teoria do ritual de Victor Turner, que o autor opta por estas específicas criações cul- turais, por considerá-las como “zonas livres”, contextos definidos como dota- dos “das propriedades antiestruturais da liminaridade e sacra híbridos no tra- balho de Turner, [os quais] permitem a articulação de linguagens e práticas que podem desafiar um domínio públi- co oficial e puritano. ‘Zonas livres’ são também espaços para misturas, para o aparecimento de híbridos, para a se- xualidade e exaltação de performances corporais. Nas sociedades modernas, esportes, jogos e dança são loci privile- giados para a análise da ‘liberdade’ e criatividade cultural.” (:18) E como apreender essas “zonas li- vres”? De que modo registrar atuações e performances corporais, danças e jo- gos que misturam homens com homens, homens com mulheres e homens e ca- valos? Como inscrever paixões? O livro combina “trabalho de campo tradicio- nal e oralidade – estórias e histórias contadas pelos informantes – com aná- lise textual – ensaios históricos, escri- tos ideológicos dos autores nacionalis- tas, jornais, revistas e letras de tango.” (:XII), em um trabalho que se estendeu irregularmente ao longo de dez anos. Se essa multiplicidade é um dos vários motivos da sua fecundidade é, também, fonte de uma certa descontinuidade que, se não compromete a unidade do livro, traz algumas dúvidas em relação à comparabilidade das construções ela- boradas. Por exemplo, ao mesmo tempo que se dispõe de uma minuciosa elabo- ração das narrativas que constroem o desempenho no futebol, comparáveis às que, embora um pouco menos traba- lhadas, são fornecidas acerca do pólo, o desempenho no tango não recebe o mesmo tratamento. Na verdade, é o pró- prio trabalho de Archetti que sugere que as narrativas prototípicas sobre o desempenho cumprem papel funda- mental como marcadores simbólicos nesse sistema. Apesar de o material reunido ser muito diversificado, de haver uma níti- da predominância das reflexões sugeri- das pelo futebol, e da peculiaridade que cerca cada um dos campos empíri- cos pelos quais o autor optou para re- construir as concepções de masculini- dade na cultura argentina, a unidade do livro é evidente, estabelecendo uma forma de argumentação reiterativa em que cada novo material acrescentado reforça os achados anteriores. Essa uni- dade pode ser buscada, igualmente, no cenário que é amplamente fornecido pela Buenos Aires do início do século, mas jaz, sobretudo, na confluência das problemáticas que intitulam as duas partes em que se organiza o livro, res- pectivamente, “hibridação” e “morali- dades masculinas”. São estes os dois grandes eixos de debate teórico em cu- jo entrecruzamento se coloca o autor, ambos recuperados a cada momento, sob ângulos diversos, permitindo a cons- RESENHAS176 RESENHAS 177 trução dos modelos de masculinidade atualizados na cultura argentina. A primeira dessas problemáticas re- mete a um antigo, extenso e complexo campo de debates nas ciências sociais, particularmente quando referido à Amé- rica Latina. Archetti posiciona-se nesse campo, na discussão sobre a “hibrida- ção”, em três capítulos na primeira par- te. Assume a proposta de Canclini, em- bora vá debater e trabalhar com vários outros autores, incorporando a hetero- geneidade como característica da Amé- rica Latina atual, produzida por uma história em que a modernidade dificil- mente se instala substituindo o tradicio- nal e o antigo. Busca, entretanto, pro- blematizá-la, pressupondo a existência de diversos modelos de “hibridação”, inquirindo sobre os atores concretos que produz e os espaços e tempos em que ocorre (:24). E é isto que se propõe a fa- zer, percorrendo as concepções que per- meiam o futebol, o pólo e o tango na Ar- gentina. É sob esse prisma teórico que a figura do gaucho – forte, corajoso, ho- nesto e livre – emerge dos míticos pam- pas e assoma com todo o vigor, encar- nando as melhores e mais heróicas qua- lidades da nação (:39), meticulosamen- te examinada no capítulo 1, mediante análise da literatura e das construções nacionalistas de intelectuais urbanos premidos pela ameaça que a imigração maciça representa (:30, 35). Alguns des- ses autores, em suas formulações mais radicais, colocam em questão até mes- mo o suposto caráter civilizatório da imigração e o próprio valor da mestiça- gem. Mas é através da construção de “machos híbridos” no futebol (capítulo 2) e no pólo (capítulo 3) que a operação simbólica assume seu formato, conti- nuamente reiterado e recriado em es- paços e momentos posteriores. É funda- mental, para a compreensão da concep- ção produzida – “o estilo crioulo no fu- tebol e no pólo”, cuja cristalização ocor- re, em ambos os casos, na década de 10 –, o fato de que são esportes concebidos como de origem britânica, partes do grande processo civilizatório que é vis- to, positivamente, como modernizador da Argentina. É em confronto com esse modelo construído do inglês, do gentle- man (:51), cuja característica mais mar- cante é a ética do fair play (:49), que se constrói o “estilo crioulo”, baseado no toque, no virtuosismo e no drible (:60, passim), incorporando às qualidades fí- sico-morais dos gauchos as dos descen- dentes de italianos e espanhóis (:52). Opõe-se, desse modo, à disciplina e for- ça de vontade dos ingleses, o desempe- nho argentino, representado como indi- vidualista, sensível, artístico e baseado na improvisação (:72). O material sobre o pólo, no capítulo 3, é extremamente interessante pois, além da reiteração desse “estilo crioulo” incorporado nos homens, nos jogadores, neste caso mais facilmente dando vida aos instintos atá- vicos dos gaúchos, seus valores e suas qualidades morais (:92, passim), enfati- zando-se seu extraordinário senso de sacrifício e sua força física (:106), o pro- cesso configura-se igualmente na cria- ção dos cavalos com a mistura de puros- sangues e animais crioulos, estes dota- dos de liberdade, heroísmo e força, qua- lidades que se supõe manter-se no novo híbrido (:98). Na segunda parte do livro, a discus- são teórica sobre as formas da masculi- nidade em relação às moralidades é es- tendida, explanando-se recentes abor- dagens sobre a masculinidade. Ali é enfatizada a diversidade das formas as- sumidas pelas concepções de homem, acentuando-se, inclusive, em consonân- cia com as tendências recentes das teo- rias sociais, a recusa dos constructos fe- chados e a necessidade de enfrentar as contradições e as fragmentações (:113). É curioso que seja, possivelmente, nas letras dos tangos analisadas (capítulo 5), que as distintas possibilidades de construção da masculinidade se apre- sentem mais claramente, evidenciando as diferenças internas, as porosidades e aberturas do constructo do macho que se alimenta da figura do gaucho. A aná- lise de narrativas sugeridas pela pai- xão, a tematização das perdas e do so- frimento, expõem as “tensões, dúvidas, paradoxos e ambigüidades” (:159) que cercam esses seres masculinos, apre- sentados em sua força e em sua fragili- dade na relação com as mulheres. Mas os dilemas masculinos ali, perspectiva- dos como “escolhas morais”, presos nos terrenos da cognição mas também da emoção e do desejo, são da mesma or- dem simbólica que os que são retoma- dos no texto sobre as virtudes masculi- nas nacionais e a moralidade no fute- bol (capítulo 6)? Essas narrativas não estariam recuperando, como sombra das femmes fatales e das milonguitas, um outro mundo e não este em que “não há lugar para a família, o trabalho e a pa- ternidade” (:189)? No caso do futebol, as narrativas pa- radigmáticas centram-se claramente nos desempenhos, por meio dos quais se debatem arte e disciplina, elegância e força, improvisação e tática, o predo- mínio do desejo da vitória ou da alegria de fazer e ver o jogo bonito, categorias em oposição que, metaforicamente, ex- põem a ambigüidade da atuação dos atores híbridos. Nesse caso, não se po- de deixar de registrar, mesmo en pas- sant, que estes são dilemas por demais conhecidos dos antropólogos que estu- dam o futebol brasileiro, reforçando a necessidade de comparações sistemáti- cas. Mas deve-se também observar que, por maiores que sejam as similari- dades, não é possível, após a decisiva demonstração de Archetti, ignorar que esse “estilo crioulo” de futebol, la nues- tra, como dizem, se constitua como par- te do conjunto de transformações do modelo do gaucho fecundado, como os garanhões puro-sangue fizeram com as éguas crioulas, pelas qualidades físico- morais dos imigrantes europeus de ori- gem latina. No Brasil, recuperamos nos- sa hibridação também de modo bastan- te peculiar, pelo mito das três raças, e, por meio do futebol, atribuímos particu- larmente aos negros – simbolicamente ausentes do modelo argentino – nossas potencialidades e limites. São também muito similares as con- cepções sobre os nossos campos de pe- lada e os potreros argentinos, espaço onde os pibes, os garotos pobres, são li- vres, onde se aprende e se exercita uma criatividade específica, sem mestre, na rua, na vida. É dali que surge Marado- na, el pibe de oro (:182, passim), anali- sado em um sensível capítulo 7 como uma personagem arquetípica (:186) que materializa de modo perfeito esse “esti- lo crioulo”, cuja “criatividade é uma vi- tória contra a disciplina e o treinamen- to” (:187). Mas, como afirmei acima, apenas a comparação sistemática que Archetti sugere ao final do livro será capaz de nos levar mais longe na compreensão dessas diversas formas de criatividade cultural que se expressam nas “zonas livres” da vida social. Essa comparação é tanto mais interessante porque eles, como nós, brasileiros, supõem ser os “melhores do mundo” no futebol (:169). RESENHAS178 RESENHAS 179 BARREIRA, Irlys e PALMEIRA, Moacir (orgs.). 1998. Candidatos e Candidatu- ras: Enredos de Campanha Eleitoral no Brasil. São Paulo: Annablume. 292 pp. Ana Rosato Doutora em Antropologia, Universidade de Buenos Aires Candidatos e Candidaturas tem o obje- tivo explícito de mostrar a multiplicida- de de leituras que as ciências sociais são capazes de produzir sobre as cam- panhas eleitorais no Brasil. Cada um dos artigos expressa a busca dos estu- diosos por novos modos de explicar – novas teorias? – essa realidade. Um es- forço que se vê recompensado, tornan- do interessante a sua leitura, tanto para o meio acadêmico, quanto para aqueles preocupados com o tema da “política”. O livro está organizado em três se- ções, que consideram os diversos olha- res sobre as campanhas eleitorais: “Di- ferentes modos de fazer campanha”, “Valores sociais e atributos de gênero: as divisões como marcas” e “Profissões, carreiras e vocações: operadores de en- trada na política”. A seção inicial compreende três ar- tigos. O primeiro deles, de M. Goldman e A. Cruz da Silva, “Por Que se Perde uma Eleição?”, está centrado na análise das eleições para vereador em um mu- nicípio do Estado do Rio de Janeiro. O trabalho procura demonstrar que as concepções sobre a política se modifi- cam em função de contextos sociais e culturais específicos e que, para com- preendê-las, é necessário “estabelecer a conexão, sempre particular, entre as várias dimensões que compõem ‘a po- lítica’” (:28). Ao mesmo tempo, mostra a importância da “crença” daquele que deve explicar uma derrota ou uma vitó- ria, “crença” que é analisada em fun- ção dos resultados dos “trabalhos reali- zados” e das relações estabelecidas pe- los atores. O segundo artigo, “A Campanha Eleitoral na TV em Eleições Locais: Es- tratégias e Resultados”, de K. Kuschnir, L. Piquet Carneiro e R. Schmitt, trata também das eleições para vereador em 1996, no Rio de Janeiro. A ênfase, aqui, é posta na articulação entre política lo- cal e nacional, através do vínculo que se estabelece entre candidatos e parti- dos. Examinando as diferentes estraté- gias de campanha, em função dos re- sultados eleitorais, e utilizando a distin- ção entre reputação pessoal e partidá- ria, os autores concluem que “os parti- dos têm tido uma importância decisiva para a dinâmica dos resultados eleito- rais no Brasil” (:76). A conclusão, que refuta a idéia generalizada de que ocor- re o contrário, ilustra a importância que os partidos (e suas frações) adquiriram no processo de legitimação da repre- sentação política. O artigo de O. Luiz Coradini, “Ori- gens Sociais, Mediação e Processo Elei- toral em um Município de Imigração Italiana”, examina as eleições para pre- feito e vereador em um município do Estado do Rio Grande do Sul, em 1996. Sua análise mostra as transformações das “bases eleitorais” dos diferentes candidatos, chegando à conclusão de que, na atualidade, “os princípios de classificação que as definem e circuns- crevem remetem às mais diferentes ló- gicas e campos sociais, sendo que o próprio processo eleitoral pode ser visto como a sua interseção e reconversão naquilo que é definido como ‘política’” (:100, ênfases minhas). Nos três artigos, encontramos temas e perguntas recorrentes, relativos à ati- vidade política: o trabalho de reconver- são, o uso de relações sociais e de tra- balho, a importância tanto do contato personalizado durante as campanhas locais, quanto de quem é o candidato e que partido representa, enfim, a relação entre candidato e eleitor. O eixo que ar- ticula essas questões é o da representa- tividade, cabendo perguntar-se se basta ter sido o “mais votado” para ter direito a denominar-se representante de ou- tros, a falar e agir em nome de outrem. A segunda seção está composta por três artigos que discutem as candidatu- ras de mulheres nas campanhas eleito- rais. O primeiro, de C. Jardim Pinto, in- titulado “Afinal, o que Querem as Mu- lheres na Política?”, baseia-se em tra- balho realizado em Porto Alegre duran- te as eleições para vereador em 1996. Formula a seguinte questão: existe uma forma específica de as mulheres faze- rem política? A resposta, que se faz evi- dente também nos outros dois artigos, é que “existe, na maioria das vezes, mui- to mais por força das características da luta política do que por um posiciona- mento dessas mulheres” (:129). Para dar conta dessa resposta, a autora reto- ma os pontos centrais levantados na primeira seção: os partidos políticos e a representatividade. Em relação aos par- tidos, demonstra, por um lado, que es- tes constituem a via de acesso à ativida- de política, tanto da mulher quanto do homem, e que a diferença de gênero se expressa na posição que cada um ocu- pa nas estruturas partidárias. Por outro lado, é no seio do partido que são, prio- ritariamente, criadas as novas identida- des políticas. O tema da representação é tratado também em sua relação com os partidos, já que o “fato de ser mu- lher” tem uma forte presença na busca por um espaço institucional, ao mesmo tempo que a inserção da mulher se le- gitima pelo fato de existirem temas que dizem respeito exclusivamente a ela. O trabalho de I. Firmo Barreira, “Entre Mulheres: Jogo de Identifica- ções e Diferenças em Campanhas Elei- torais”, que também aborda essa forma de legitimação, analisa as candidaturas a prefeito nas cidades de Fortaleza, Na- tal e Maceió. Observa que a condição de gênero aparece como um elemento destacado nas atividades das candida- tas mulheres durante as campanhas, expressando-se em suas “interpelações discursivas” e em suas afirmações de valores considerados femininos. Apelar a essa condição, por um lado, não seria nada mais do que cumprir o “enigma” da legitimação: o de “transformar inte- resses partidários em identificações am- plas geralmente justificadas a partir de valores que são colocados como repre- sentativos de ‘interesses gerais’” (:133); por outro, pode condicionar a “constru- ção de um espaço de reconhecimento que demanda provas de competência” (:164), através do qual se perfilam estra- tégias de valorização que transformam o “negativo” em “positivo” (por exem- plo, a mulher é menos eficaz que o ho- mem em questões de governo). Esse processo de “conversão”, que como assegura Firmo Barreira não é apenas uma prática das candidatas fe- mininas, está amplamente documenta- do no terceiro artigo dessa seção, “A ‘Modernidade’ como Emblema Políti- co”. Nele, A. Lemenhe examina as cam- panhas eleitorais de dois candidatos a prefeito da cidade de Fortaleza que cen- traram suas estratégias na oposição tra- dicional/moderno da atividade política, oposição que subsume a condição de gênero. A última parte do livro é onde se aborda, de modo mais explícito, os no- vos modos de fazer política. Está com- posta por três artigos: “Os Sindicatos no Poder. Que Poder?”, de M. Palmeira, que analisa a candidatura de “sindica- listas” nas eleições municipais de 1996, em Pernambuco; “Lugar de Policial é RESENHAS180 RESENHAS 181 na Política? Estratégias Simbólicas de Afirmação e Negação”, de C. Barreira, sobre candidatos “policiais” a prefeito e vereador no Estado do Ceará; e, final- mente, “O Jeito Cristão de Fazer Políti- ca: Representações, Rituais e Discursos nas Candidaturas Pentecostais e Caris- máticas”, de J. Miranda, que trata das candidaturas de pessoas provenientes das igrejas pentecostal e carismática. Mediante a análise de campanhas de candidatos oriundos de esferas coti- dianas que não faziam parte da ativida- de político-eleitoral – sindicalistas, poli- ciais, carismáticos ou pentecostalistas –, os três artigos mostram claramente a passagem ou a transformação de um modo “anterior” para um modo “novo” de fazer política. O estudo desses “no- vos” candidatos, bem como de suas es- tratégias de campanha, aponta para mudanças tanto nos contextos social, econômico e político, quanto na relação entre essas esferas. Assim, o exame do trabalho de reconversão de um tipo de capital em outro, denota uma nova re- lação entre política e sociedade. O ofí- cio/profissão do político se faz possível porque os novos candidatos recorrem a uma “habilidade” e a um capital adqui- ridos em outro espaço. Ainda na terceira parte do livro, o tema da representatividade é retoma- do. Nesse sentido, a conclusão é ex- pressa por M. Palmeira, quando susten- ta que, para além da intenção político- sindical de definir as relações adequa- das entre os dois âmbitos, os casos ana- lisados “ajudam a pensar a questão da conversão de uma espécie de autorida- de em outra.” (:214). Em síntese, os artigos aqui reunidos têm como ponto de partida as eleições municipais de 1996 e analisam tanto o processo eleitoral, quanto as candidatu- ras, os partidos e as bases eleitorais. De- finitivamente, o tema central do livro é o da representatividade. Todos os tra- balhos, de alguma forma, dão conta da importância dos diferentes tipos de ca- pital na configuração do que se enten- de por “capital político”. Assim, nas eleições municipais de 1996, a distância entre esferas diferentes, claramente de- limitadas, parece ter se apagado, dando lugar – através da conversão de um “capital não político” em outro “políti- co” e ao uso desse capital agora político em outros campos – a uma nova relação entre campos e, portanto, a novas for- mas de fazer política. A leitura do livro contribui ainda pa- ra uma reflexão sobre as transforma- ções que se produziram, nos últimos anos do século XX, no Brasil na esfera política. Da mesma forma, permite per- guntar-se sobre os motivos dessas trans- formações e, em que medida, estas – produzidas nos planos municipal, das bases políticas/sociais e das trajetórias dos candidatos – estariam relacionadas a mudanças estruturais. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1998. O Trabalho do Antropólogo. Brasília/ São Paulo: Paralelo Quinze/Editora da Unesp. 220 pp. Regina M. de Carvalho Erthal Pesquisadora do CNPq – Convênio Museu Nacional – UFRJ/Museu Amazônico – UA A unidade deste livro pode ser encon- trada na explicitação, pelo próprio au- tor, de uma “história de vida” marcada pela disposição de buscar o conheci- mento em seu sentido mais geral e, ao mesmo tempo, no seu encontro com a antropologia, buscar o “conhecimento produzido na prática profissional”. O exercício da antropologia é referencia- do por uma epistemologia que se reali- menta da sua prática, ambas se consti- tuindo a partir de uma relação dialógi- ca, no encontro de culturas. Os artigos que compõem o livro fo- ram escritos no período de 1992 a 1997. São textos produzidos, na sua versão original, para apresentações em “Aula Inaugural”, “Seminário”, “Conferên- cia”, “Comunicação”, em diferentes ins- tituições de ensino e pesquisa ou ainda em congressos promovidos no Brasil e no exterior. Alguns trabalhos já haviam sido publicados anteriormente, caso dos capítulos 2, 3, 5, 7 e 9. As revisões e/ou ampliações ocorridas em alguns ensaios para a presente publicação foram, no entanto, realizadas sob a condição de não descaracterizá-los em relação aos contextos originais em que foram pro- duzidos e apresentados. O livro divide-se em três partes que remetem a uma obra anterior do autor, de significado especial para a temática enfocada. A primeira parte, sob o título “O Conhecimento Antropológico”, que abrange os cinco capítulos iniciais, está especialmente referida ao livro Sobre o Pensamento Antropológico, que reúne artigos produzidos durante a década de 80. Tomando esta obra como referência para a discussão sobre a formação da “matriz disciplinar” – expressão cara ao autor, e que aponta para a articulação “tensa” de um conjunto de paradigmas constitutivos de uma antropologia mo- derna –, Cardoso de Oliveira sublinha a necessidade de compatibilizar o mo- mento metódico e o não metódico (ex- plicar e compreender) na construção do conhecimento. A segunda parte do livro, constituí- da pelos capítulos 6, 7 e 8, trata das “Tradições Intelectuais”. A questão da constituição da antropologia em regiões “periféricas”, transplantada a partir dos países centrais onde se dá o seu desen- volvimento original, já está anunciada pelo autor em trabalhos anteriores, reu- nidos no livro Estilos de Antropologia (1995), que serve de referência para es- sa seção. Organizado em conjunto com o antropólogo Guillermo R. Ruben, este livro é uma compilação dos trabalhos apresentados no “Seminário sobre Esti- los de Antropologia” (Unicamp, 1990), resultado das pesquisas propostas ao “Programa de Pesquisa sobre Estilos de Antropologia”, coordenado por Cardo- so de Oliveira. Esses trabalhos tiveram como referência a antropologia realiza- da em países como Índia, Austrália, Ar- gentina, Venezuela, Canadá e Brasil, países “periféricos” em relação aos cen- tros “fundadores” da disciplina (Fran- ça, Inglaterra e Estados Unidos), onde a antropologia pôde se desenvolver e “flo- rescer com um estilo próprio”. Cardoso de Oliveira localiza na década de 70 o início de seu interesse pela constituição da “singularidade” da antropologia na “periferia”, e sua relação com a “uni- versalidade” expressa na matriz disci- plinar. Esse tema é, ainda hoje, o “prin- cipal foco” de suas preocupações de caráter epistemológico e histórico. Na terceira parte, sobre “Eticidade e Moralidade”, desenvolvida nos capí- tulos 9 e 10, a referência é o livro En- saios Antropológicos sobre Moral e Éti- ca” (1996) publicado com Luiz Roberto Cardoso de Oliveira. Este livro é tam- bém constituído por ensaios produzidos para o cumprimento de diferentes com- promissos acadêmicos. O propósito dos autores é discutir questões de moral e ética a partir do olhar antropológico, no que chamam de “consórcio cognitivo” estabelecido pelo convívio interdiscipli- nar com a filosofia, o direito, a história, a ciência política e a sociologia. Essa forma de organizar O Trabalho do Antropólogo, um tanto temporal, um tanto temática, parece sugerir uma es- tratégia do autor, mais uma vez peda- RESENHAS182 RESENHAS 183 gógica, de apresentar suas preocupa- ções fundamentais, apontadas como questões seminais para a constituição da própria antropologia enquanto ciên- cia, e o posicionamento do antropólogo nos seus compromissos com as socieda- des que estuda e sua constituição en- quanto sujeito político: primeiro, a cons- trução do conhecimento unificada atra- vés do olhar/ouvir/escrever, atos cogni- tivos disciplinados “pela disciplina”, in- vocando sua natureza epistêmica; se- gundo, a renúncia a um objetivismo “perverso”, mediante o questionamen- to da posição de poder do investigador e da historicização do “encontro etno- gráfico” indicada pelo paradigma her- menêutico; e terceiro, ainda o desenvol- vimento da antropologia nos países “pe- riféricos”, seu sentido político e ético, indicando a constituição de um “estilo” próprio no fazer antropológico. Desse modo, nos capítulos 1, 3, 4 e 5, Cardoso de Oliveira retoma e amplia o tema da antropologia enquanto mo- dalidade de conhecimento, recusando- se, por esta via, a diagnosticar um mo- mento de “crise” da antropologia mo- derna, localizada como crise de perda de objeto. A antropologia estaria, ao contrário, sendo constantemente revi- gorada pela tensão existente, em sua matriz disciplinar, entre os diferentes paradigmas que a compõem e suas pos- sibilidades de articulação/complemen- taridade. O conhecimento antropológico tem se realizado historicamente através de diferentes “escolas” representantes dos paradigmas racionalista, estrutural-fun- cionalista, culturalista e hermenêutico, com os quais Cardoso de Oliveira estru- tura a matriz disciplinar. Os três primei- ros, “paradigmas da ordem”, que reali- zam uma “exclusão metódica” da sub- jetividade, do indivíduo e da história, puderam ser questionados a partir de um posicionamento crítico desenvolvi- do por uma “antropologia interpretati- va”, implementada pelo paradigma her- menêutico. A intensificação de uma tensão en- tre os paradigmas que compõem a ma- triz disciplinar com a introdução do pa- radigma hermenêutico se fez tanto por meio da atualização dos temas da rela- ção sujeito/objeto, no que diz respeito ao condicionamento histórico desse en- contro – fato que se desdobra, conse- qüentemente, na necessidade de se questionar a posição de poder que nes- sa relação se estabelece –, como também pela discussão sobre os limites da razão científica. Nesse sentido, o autor chama a atenção para o lugar central da rela- ção sujeito cognoscente/objeto cognos- cível na constituição do conhecimento. Se as disciplinas e os seus paradig- mas condicionam o nosso ouvir e olhar (cap. 1:22), então não somente há que se discutir o “verdadeiro encontro etno- gráfico”, que capta o “excedente de sentido” que escapa àquelas metodolo- gias de cunho positivista, explicativas da realidade que se observa e se pode controlar; há também que se estar aten- to para a qualidade do encontro inter- disciplinar que se tem realizado, cada vez com mais freqüência, nos estudos junto a comunidades indígenas sobre problemas colocados pela perda de qua- lidade do meio ambiente e da saúde, estruturados, via de regra, a partir de uma profunda descontinuidade entre o “saber científico” e os “saberes locais”. As ciências naturais, em especial as ciências da saúde, têm procurado par- cerias com a antropologia exatamente por intermédio das escolas com as quais se identificam na busca primordial pela objetividade, descrevendo o funciona- mento do fenômeno observável, desvin- culando-o de suas condições de produ- ção e reprodução, em que a noção de “doença” se coaduna com a de “des- vio”, a ser submetido a mecanismos de controle, preservando a integridade do sistema. Nesse esquema, trabalha-se com categorias universais de classifica- ção de doença, o que pode ser estatisti- camente anotado e comparado, impos- sibilitando então aos “cientistas” o “ou- vir” e entender os fenômenos expressos a partir dos conhecimentos locais, que são tratados como pertencentes ao pen- samento “mágico” e/ou “irracional”, ou são simplesmente ignorados. Apontando caminhos para o enri- quecimento da questão esboçada aci- ma (parte das minhas preocupações), o autor indica a necessidade de uma vinculação entre o “explicar” e o “com- preender”, no sentido da construção de “empreendimentos cognitivos específi- cos” (:69), eliminando ilusões objetivis- tas, “revelando uma instância não-me- tódica, porém provedora de conheci- mentos igualmente tangíveis” (:92). Es- sa postura, a qual Cardoso de Oliveira denomina “hermenêutica moderna, ou dialética”, não tendo por objetivo a eli- minação de nenhum outro modo de in- terpretação, propõe-se a exercer uma “dupla interpretação”, reconhecendo a “explicação” (nomológica/busca da ob- jetividade) e a “compreensão” (herme- nêutica/busca do sentido) como fases do processo de conhecimento. Nos capítulos 6, 7 e 8, Cardoso de Oliveira trata das formas singulares que assume a antropologia nos países “peri- féricos”, a partir de uma “abordagem estilística” que destaca as suas preten- sões à universalidade, e o seu exercício em contextos socioculturais específicos. Já no capítulo 2, acompanhando o “mo- vimento dos conceitos”, Cardoso de Oliveira indica uma constituição espe- cífica da disciplina na América Latina, um “deslocamento crítico” em face das abordagens correntes, solidárias a con- ceitos elaborados no interior dos “para- digmas da ordem” inscritos na matriz disciplinar. Essa constituição crítica da disciplina é localizada, em especial, nos estudos indígenas, não ocorrendo de forma tão evidente nas pesquisas que têm por objeto a sociedade nacional. Assim, os conceitos de fricção interétni- ca e etnodesenvolvimento (trabalhados por Cardoso de Oliveira e Rodolfo Sta- venhagen) implicam propostas que: (1) levam em consideração as relações de conflito/poder estabelecidas no contato interétnico; e (2) propõem um desenvol- vimento “alternativo” que atenda às necessidades da população alvo e que por ela seja definido e controlado. É es- te compromisso político e ético, impres- so no fazer científico, que especifica a antropologia realizada na América La- tina, que constrói seu objeto em um ce- nário de relações assimétricas entre po- pulações indígenas e Estados nacionais. Nos capítulos finais, o autor nos conduz a fechar o circuito do aprendi- zado, reforçando a importância da an- tropologia enquanto disciplina por ex- celência, propiciadora das “condições de possibilidades de diálogo” entre in- divíduos inseridos em campos semânti- cos diversos. O “diálogo interétnico” deve instaurar-se tendo por base o re- conhecimento e neutralização das ques- tões de poder envolvidas no encontro de etnias no qual, no entanto, o discur- so ocidental é hegemônico e impõe sua estrutura e suas normas de comunica- ção. Nesse sentido, Cardoso de Oliveira propõe posturas, o olhar antropológico informando a necessidade do estabele- cimento de uma “nova normatividade” (:194), construída por um processo de- mocrático, ancorado em um “imperati- vo moral” em que a negociação do con- senso se dá como questão de direito. Vale destacar, finalmente, na dis- cussão sobre questões éticas, a impor- RESENHAS184 RESENHAS 185 tância e a atualidade de temas que en- volvem as práticas intervencionistas, ou seja, temas que envolvem a “aceitação voluntária” e, por conseguinte, partici- pação da comunidade e controle social das (nem sempre) novas propostas de ação junto a populações indígenas. Todas essas questões, enfrentadas de forma magistral por Roberto Cardoso de Oliveira, fazem do livro um instru- mento indispensável tanto para aqueles que se iniciam nas lides antropológi- cas, ressaltando o compromisso do au- tor com o exercício da docência, quanto para os que se vêem cada vez mais en- volvidos em trabalhos com abrangência interdisciplinar (antropólogos, médicos, enfermeiros, engenheiros sanitaristas e florestais, zootécnicos etc.), nas suas di- ferentes esferas de atuação junto a po- pulações indígenas. CARRARA, Sérgio. 1998. Crime e Lou- cura: O Aparecimento do Manicômio Judiciário na Passagem do Século. Rio de Janeiro/São Paulo: EDUERJ/EDUSP. 227 pp. Adriana R. B. Vianna Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ Os dez anos que separam a escrita de Crime e Loucura, originalmente uma dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antro- pologia Social do Museu Nacional, e sua publicação integral não tornaram a pesquisa de Carrara defasada ou obso- leta. Sua atualidade pode ser atestada tanto pelo pequeno número de títulos publicados desde então que se dedicam a discutir a tensa (e às vezes tênue) fronteira entre transgressão e insanida- de, quanto pelas reflexões mais amplas que ela suscita. Acrescido de um posfácio de 1997, em que o autor faz um balanço da bi- bliografia produzida simultânea ou pos- teriormente ao seu próprio trabalho, o texto original praticamente não foi alte- rado, mas ganhou, com o tempo, a pos- sibilidade de ser contextualizado em re- lação às preocupações intelectuais e políticas da época em que foi produzi- do. Desse modo, o próprio autor chama a atenção, no posfácio em questão, para a conexão existente entre trabalhos co- mo o seu, produzidos na segunda meta- de dos anos 80, e a preocupação com a medicalização dos comportamentos des- viantes, tema presente na produção in- telectual da década anterior. Nessa li- nha, o trabalho de Carrara estabelece diálogo direto, por um lado, com as pro- posições de Goffman acerca das rela- ções sociais estabelecidas em “institui- ções totais” e, por outro, com as formu- lações de Foucault sobre o universo do “biopoder”. A influência de Foucault, por sinal, é decisiva não apenas em ter- mos conceituais, mas também metodo- lógicos, já que o objeto construído ao longo do texto é evidentemente tributá- rio da discussão genealógica por ele es- tabelecida. Em termos políticos, por sua vez, o trabalho foi beneficiado pelos contextos de abertura política e do primeiro go- verno Brizola no Rio de Janeiro, o que suscitou, como lembram o autor e tam- bém seu orientador, Peter Fry, um qua- dro de discussões fecundas sobre a de- mocratização das instituições em geral e das psiquiátricas em particular. A en- trada do pesquisador no universo do Manicômio Judiciário do Rio de Janei- ro, onde se desenrolou parte da pesqui- sa, deu-se em um contexto de debate interno entre terapeutas da instituição sobre a viabilidade de mudança das re- lações ali estabelecidas com os internos e com outros profissionais da mesma instituição (guardas, sobretudo). Com isso, criou-se para Carrara uma situa- ção especialmente favorável para a ob- servação das contradições internas da instituição, tornando ainda mais evi- dente a ambigüidade que sempre per- meou um local criado ao mesmo tempo para lidar com o universo da loucura e o da criminalidade. Esse contexto de observações é re- cuperado ao longo do primeiro capítulo do livro, “O Objeto da Investigação e sua Construção”. Partindo do universo palpável do Manicômio Judiciário e de seus dilemas contemporâneos (o anta- gonismo entre guardas e terapeutas, as classificações locais, a difícil localização simbólica e institucional das “persona- lidades psicopáticas” etc.), Carrara ini- cia sua arqueologia da instituição, que o leva, novamente fazendo jus à heran- ça foucaultiana, à genealogia da figura do “louco criminoso”, razão da criação do Manicômio Judiciário. Desse modo, Carrara estabelece pontes importantes entre passado e presente, bem como entre etnografia e história, restituindo à análise histórica incômodos analíticos e éticos fundamentais. Carrara focaliza os primeiros deba- tes em torno da necessidade e do cará- ter da instituição, demarcando como período privilegiado para sua pesquisa os anos entre 1890 e 1920, este último o ano de criação do Manicômio. O seu surgimento e de seu objeto privilegia- do, o “louco criminoso”, são persegui- dos pelo autor através tanto dos deba- tes teóricos que têm lugar a partir da metade do século XIX, quanto de pro- cessos judiciais em que tais debates são materializados como projetos concretos de intervenção sobre o tecido social. Do diálogo constante entre os textos cientí- ficos e a dinâmica dos julgamentos e sua repercussão pública resta a sensação nem sempre confortável do papel social que a “ciência” desempenha na regu- lação de comportamentos e na criação de mecanismos de estigmatização. No segundo capítulo, “Loucos e Cri- minosos”, o autor procura rastrear os debates científicos que permitem a “pa- tologização do crime”. Desse processo, emergem três categorias privilegiadas, cada qual comportando subdivisões e variações: a dos monomaníacos, a dos degenerados e a dos criminosos natos. Através da complementaridade e do confronto entre elas tornou-se possível estabelecer a compreensão dos atos cri- minosos como fruto de anomalias, taras, heranças genéticas malignas, enfim, como território não mais do livre-arbí- trio individual, mas da doença e, por- tanto, da medicina. Nessa trajetória, a migração de princípios presentes na no- ção de monomania para a de degenera- ção desempenhou papel decisivo, uma vez que esta última categoria permi- tia um diálogo intenso e circular entre doença e transgressão, ao supor que, ao mesmo tempo que a hereditariedade de- terminava a transgressão, a opção por uma vida desregrada podia inscrever- se como uma patologia nos indivíduos e, pior ainda, perpetuar-se em seus des- cendentes por intermédio da transmis- são hereditária. Por outro lado, ao cons- tituir-se como conceito extremamente dinâmico, a degeneração permitia o es- tabelecimento de um variado quadro de gradações entre normalidade e anor- malidade e, conseqüentemente, entre crime e loucura, necessitando para sua identificação e qualificação correta um universo diversificado de peritos. Com a emergência da categoria dos “criminosos natos”, cuja fronteira com os degenerados era bastante tênue, es- se universo de peritos se complexificou ainda mais, sendo possível perceber ci- sões entre antropólogos criminais, ins- pirados em Lombroso, psiquiatras de RESENHAS186 RESENHAS 187 diferentes orientações e juristas. Em jo- go, estava não apenas a construção de categorias identificadoras e normati- vas dos indivíduos, mas sobretudo a autoridade de intervir sobre eles, e, con- seqüentemente, sobre o tecido social co- mo um todo. É esse embate, em algumas de suas variações, que vem à tona com a análise do caso de Custódio Serrão, no terceiro e último capítulo do livro. Preso por matar o comendador Be- larmino Brasilense, amigo de seu faleci- do pai e tutor legal de sua irmã e de seu irmão, este último por se encontrar in- ternado no Hospício Nacional, Serrão busca desesperadamente provar que não é louco e que o crime, em verdade, só havia sido cometido como uma for- ma de defesa diante da intenção do co- mendador de interná-lo, tal como fizera com seu irmão. Em uma trama kafkia- na, porém, quanto mais procurava pro- var que cometera o ato lucidamente, tanto mais se enredava Custódio Serrão em diagnósticos que patologizavam seus atos, sobretudo sua obsessão em pro- var-se sadio. Todo o processo de avalia- ção pericial do acusado, a produção de notícias jornalísticas sobre o fato, o jul- gamento propriamente dito e os recursos apresentados após o julgamento trans- formam o drama de Custódio Serrão em uma situação privilegiada para observa- ção e desdobramento dos arranjos teó- ricos explorados no capítulo anterior. O seu julgamento, em especial, transformou-se, nos dizeres de Carrara, em um “julgamento de atos e de doutri- nas” (:168), a partir do qual se defini- ram ou realinharam posições e ganha- ram mais clareza e visibilidade proje- tos específicos de intervenção. A linha mestra que dividia os médicos chama- dos a diagnosticar o caso de Serrão e, com isso, ditar as diretrizes de sua sen- tença, opunha, de um lado, os médicos- legistas da polícia, partidários da tese da loucura e conseqüente irresponsabi- lidade do acusado, e, de outro, os médi- cos ligados à Assistência Médico-Legal a Alienados do Distrito Federal e à Fa- culdade de Medicina do Rio de Janeiro, partidários da tese de que Custódio Serrão era em verdade um degenerado e que deveria ter sua responsabilidade penal reconhecida. O principal expoen- te desse grupo, por sua vez, era o psi- quiatra Teixeira Brandão que, uma vez vendo sua posição derrotada em julga- mento, recorre da sentença e trava uma batalha doutrinal com Nina Rodrigues. Dessa nova fase da trajetória do ca- so Serrão o que mais chama a atenção é o fato de que, partilhando diagnósti- cos bastante próximos – tanto Teixeira Brandão como Nina Rodrigues identifi- cam em Custódio os sinais da degene- ração –, os debatedores chegam a con- clusões absolutamente opostas sobre o destino a ser dado ao criminoso, eviden- ciando que o conflito de posições podia ser tão intenso no âmbito das discussões psiquiátricas e antropológicas quanto entre estas e a produção jurídica. Por fim, além do caso Serrão, Carra- ra utiliza de forma menos intensa outros processos que reforçam, na virada do século e nas duas primeiras décadas do século XX, a necessidade de um mani- cômio criminal, evidenciando como es- sa opção institucional vai ganhando materialidade através dos embates ju- diciais. Nesse processo, o assassinato de Clarice Índio do Brasil, em 1919, e a rebelião ocorrida em 1920 na Seção Lombroso do Hospício Nacional tive- ram papel decisivo. Não escapa ao au- tor também a importância de este ter si- do construído nos fundos da Casa de Correção da rua Frei Caneca, eviden- ciando seu compromisso com o comple- xo penitenciário como um todo, mas também a ambigüidade que é a base de sua constituição. Erguido a partir do im- passe entre concepções antagônicas de pessoa, o Manicômio Judiciário busca- va uma espécie de “solução de compro- misso”: ao apresentar-se como prisão, respeitava a noção do indivíduo que, responsável por seus atos, deveria pa- gar pelos crimes cometidos; ao identifi- car-se com os hospitais e asilos, porém, satisfazia as interpretações patologi- zantes e biodeterministas do indivíduo. Criava, portanto, um lugar social espe- cífico para o encontro entre crime e lou- cura. As cobranças que podem ser feitas ao texto de Crime e Loucura dizem me- nos respeito a lacunas ou falhas inter- nas ao trabalho e mais às possibilidades que ele levanta em relação aos proces- sos de normatização, tutelarização e marginalização social. Investindo em dissecar o processo social de construção dos loucos criminosos, Carrara abre-nos possibilidades de perguntar que outras “figuras” poderiam fazer par com eles, bem como que indicações esse proces- so pode fornecer acerca de práticas bu- rocráticas e científicas de invenção de “outros” nas sociedades contemporâ- neas. Recuperando, desse modo, for- mulações foucaultianas tão presentes na construção do objeto do livro, cabe perguntar quais as fronteiras sociais que o “biopoder” alcança e constitui, de forma que se torne possível estabe- lecer a relação entre dispositivos sociais aparentemente dispersos. Assim, situa- ções e processos analisados em sua es- pecificidade, do modo como feito por Carrara, podem ser compreendidos co- mo facetas singulares de um mesmo es- forço social de criação e controle de “bárbaros internos”. COMERFORD, John Cunha. 1999. Fa- zendo a Luta: Sociabilidade, Falas e Ri- tuais na Construção de Organizações Camponesas. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política (Coleção Antropologia da Po- lítica, 5). 154 pp. Sérgio Pereira Leite Professor do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, UFRRJ O leitor acostumado aos trabalhos vol- tados para a análise do meio agrário brasileiro, especialmente aqueles cen- trados na organização social e política dos trabalhadores rurais, certamente no- tará a originalidade e o esforço bem-su- cedido da iniciativa de John Comerford neste seu novo livro. Quinto número da série Coleção Antropologia da Política, a obra constitui-se de cinco capítulos versando sobre diferentes questões re- lativas a sociabilidade, organização, ri- tuais, processos sociais, lutas políticas comuns a um determinado conjunto de trabalhadores rurais, quer na condição de assentados ou de pequenos agricul- tores familiares, em distintas regiões do país. Na realidade, como indica o autor na Introdução, neste estudo são resgatados, em primeiro plano, aspec- tos geralmente percebidos como “irre- levantes”, “banais” ou “caricatos” que conformam o processo de organização social de comunidades camponesas. Longe de prender-se às explicações centradas nos esquemas formais sobre as regras do jogo político e social no ambiente rural, e sem negligenciar a importância de estudos dessa natureza, o autor envereda por um caminho dife- rente, buscando em situações aparente- mente sem importância, como a brinca- deira, por exemplo, uma compreensão RESENHAS188 RESENHAS 189 das formas de “sociação” propriamente dita desses sujeitos tratados no livro, permitindo que as considerações resul- tantes dessa observação contribuam, também, para a reflexão em torno das possibilidades de atuação de movimen- tos sociais e organizações políticas no quadro nacional recente. Vale destacar que, apesar de tratar do lúdico como perspectiva de abordagem, a tarefa da qual se incumbe Comerford é extrema- mente desafiadora e complexa, tratan- do de retirar o “sério” do “lúdico” e o “lúdico” do “sério”, como coloca Moa- cir Palmeira na apresentação do livro. Dessa forma Fazendo a Luta embu- te uma amálgama thompsoniana, no sentido de refletir a “construção” de di- ferentes processos sociais, posiciona- mentos políticos e definição de identi- dades, recolhidos a partir de uma abor- dagem fina e perspicaz, mesmo quando os objetivos do autor não incluíam ne- cessariamente uma visão voltada à “efi- ciência” das instituições ou ao compor- tamento dos “atores políticos”. Na rea- lidade, a obra desfia uma série de ge- rúndios da questão agrária: fazendo a luta; lutando; reunindo; brincando; dis- cursando e ocupando, palavras que in- titulam o livro e os respectivos capítulos e que permitem ao leitor vislumbrar o texto como um caleidoscópio: quando se olha a partir de determinada perspecti- va tem-se a impressão de que o traba- lho é composto por cinco capítulos autô- nomos (e, em certas passagens, suficien- temente abstratos com relação ao mate- rial etnográfico pesquisado); mudando o foco e tornando a ver o conjunto, obser- va-se coerência entre as diferentes par- tes do livro, costuradas pela preocupa- ção do autor em tratar em profundidade (e, em certos casos, de maneira bastante detalhista e elucidativa) essas situações não convencionais, mas bastante reve- ladoras da sociabilidade camponesa. No primeiro capítulo, que trata dos múltiplos significados do termo luta no cotidiano dos trabalhadores rurais, fun- damentalmente pequenos agricultores do oeste baiano, “falar que se está (ou se esteve) lutando, e lutando apesar da impossibilidade de ‘vencer’ (‘lutando até morrer’, ‘a gente luta, luta e fica tu- do do mesmo jeito’), é sempre uma afir- mação de seu valor, de sua dignidade e respeitabilidade, um testemunho do seu sofrimento, uma forma de negar que nessa situação haja motivo de ver- gonha” (:29). Igualmente, ao se referi- rem à luta, os informantes destacam o pertencimento a determinadas organi- zações e/ou situações sociais, que, co- mo coloca Comerford, dão sentido à existência de uma comunidade. Nesse garimpo no campo simbólico, a luta também refletirá um projeto político, uma estratégia de atuação que extrapo- la o conflito localizado ou o sofrimento da população pobre do campo. Assim, da moral à religião, da comunidade às organizações sociais, da situação de po- breza à definição de categorias atuan- tes no universo rural (assalariados, mu- lheres, pequenos produtores, latifundiá- rios etc.), emergem representações e oposições em que nem sempre é preci- so existir o conflito efetivo para se estar “lutando”, ou ainda, para retornarmos a Thompson, é justamente na luta que se configuram situações de classe. A seção seguinte, que tem como ba- se a dissertação do autor sobre um as- sentamento rural na região norte do Es- tado do Rio de Janeiro, volta-se para as reuniões no contexto da associação de produtores residentes nesse projeto. Em vez de tratar da forma da organização social em si, ou seja, a própria Associa- ção (ou o Sindicato em outras circuns- tâncias), o autor busca nas reuniões um momento privilegiado para tratar de questões relativas à participação políti- ca, à sociabilidade entre as famílias e moradores da comunidade, aos limites e alcance das resoluções obtidas em as- sembléias, aos rituais praticados e even- tos promovidos durante a realização das reuniões. Como atento observador, Comerford descreve competentemente o “decálogo” de uma reunião (em suas diferentes etapas, da abertura ao encer- ramento), analisando situações referen- tes à pauta, à coordenação, à discussão em si, ao público participante (aliás, ou- tro bom momento dessa “análise ilustra- da” promovida pelo autor pode ser en- contrado na sua “crônica de uma ocupa- ção”, no último capítulo). Destacaríamos aqui uma passagem que nos pareceu central: “as dificuldades para promover a participação nas discussões, por exem- plo, são vistas recorrentemente como um problema. É relativamente comum ver essas dificuldades atribuídas a algu- ma espécie de ‘carência’ do público que comparece a esses eventos (apatia, fal- ta de consciência, falta de informações) ou à falta de técnicas ou métodos ade- quados para encorajar a fala dos partici- pantes menos acostumados com discus- sões. Mas o que procuro mostrar aqui é que o que aparece como dificuldade de participação pode ser encarado, de ou- tro ponto de vista, como algo congruen- te com a dinâmica que as reuniões [...] podem acabar assumindo, e congruen- te também com uma série de concep- ções através das quais os participantes percebem as reuniões: concepções de autoridade, de ordem pública, do caráter de eventos coletivos, da forma adequa- da de ‘participar’ desses eventos, da na- tureza do grupo que é celebrado e do ca- ráter da união que é simbolizada” (:72). É justamente essa capacidade de subverter o viés da análise que permite a Comerford sistematizar oposições que emergem das reuniões (a “equipe de frente”, cunhada pelo autor a partir de Goffman, e o público assistente), bem como a busca e a necessidade de con- sensos que preservem o grau de unida- de e representação da organização. Es- se movimento, nada linear, é extraído pelo autor das falas e intervenções rea- lizadas dentro e fora das reuniões. O terceiro capítulo trata da constru- ção social da amizade por meio das brincadeiras estabelecidas entre traba- lhadores rurais, em boa parte observa- das a partir do assentamento acima mencionado. Tratando dos diferentes ti- pos de brincadeiras – na realidade pro- vocações que não redundam em ofen- sas dada a cumplicidade dos partici- pantes desse “jogo” –, o autor traduz sua capacidade de fortalecer laços de amizade e a constituição de um todo in- dissociável, análogo à mesma capaci- dade demonstrada pela magia. Não se trata necessariamente de uma relação diádica, mas do estabelecimento de si- tuação prazerosa, mesmo quando o as- sunto é sério: “A brincadeira, encena- ção da falta de respeito que simboliza o respeito real entre os que brincam, as- sume seu lugar no discurso da Associa- ção: ali todos são amigos e, portanto, to- dos se respeitam e respeitam o conjun- to, por isso mesmo todos brincam” (:87), o que inclui uma certa dissimulação en- tre situações de trabalho e entreteni- mento. Há aqui um sentido adicional, ressaltado pelo autor, que reporta ao “uso” da brincadeira em situações com maior grau de formalização. Nesses ca- sos, mantida a distância entre os partici- pantes e a preservação de seus respecti- vos espaços, a brincadeira torna-se um veículo para o controle de situações im- portantes (do ponto de vista social, polí- tico, econômico, moral etc.) e seu domí- nio constitui-se em um trunfo para a ca- nalização e a geração de energia social. Os dois últimos capítulos do livro, com fôlego um pouco mais curto do que RESENHAS190 RESENHAS 191 os anteriores, estão voltados à análise do discurso e ao processo de ocupações (no caso, um prédio público em um mu- nicípio próximo ao assentamento referi- do anteriormente). Na quarta parte do livro o autor dedica-se à interpretação dos discursos proferidos em clima de eleições sindicais (local/nacional), mas o tema volta a aparecer no quinto capí- tulo, na análise das intervenções reali- zadas na ocupação em pauta. No tocan- te à retórica e à capacidade de moldar a fala e a própria interpretação que deve ser feita coletivamente da mesma, Co- merford oferece quatro felizes momen- tos nos quais questões como a dicoto- mia nós (trabalhadores, sindicalistas comprometidos etc.) versus eles (gover- no, proprietários, “pelegos” etc.) apare- cem freqüentemente, transfiguradas ainda na intenção do portador da fala de unir-se ao público ao qual se dirige diretamente, anulando o binômio eu/ vocês através da construção sublimada de um nós homogeneizador. Finalmen- te, no entendimento das ocupações si- tua um leque de possibilidades, que abrange desde a entrada em proprieda- des rurais privadas ou públicas que não cumprem com sua função social, até festas comemorativas, passando por ro- marias, caminhadas, passeatas, acam- pamentos etc. Na raiz desse processo está a capacidade de visibilidade e o grau de centralidade dessas manifesta- ções, que, bem-sucedidas ou não, con- tribuem para a construção de uma de- terminada noção de pertencimento e identidade dos personagens envolvi- dos, para a problematização do papel dos mediadores e para a interlocução direta com outros segmentos (Estado, proprietário de terras etc.). Em um rápido balanço da obra em tela é possível admitir a importância da leitura do trabalho de John Comerford, que mescla competência no manejo da literatura antropológica (especialmente da antropologia política) com a expe- riência com pesquisas no ambiente agrá- rio e suas especificidades. Certamente contribui, justamente por caminhos me- nos percorridos, para apurar o entendi- mento dessa realidade complexa e “tei- mosa” quando se trata de pensar os ru- mos da chamada “modernização agrí- cola brasileira”. Por outro lado, agrega interpretações oportunas sobre deter- minados processos sociais, que contra- postas à literatura “convencional”, per- mitem uma problematização desta últi- ma, depurando-a e complementando-a. LOSONCZY, Anne-Marie. 1997. Les Saints et la Forêt: Rituel, Société et Figures de l’Échange entre Noirs et In- diens Emberá. Paris: L’Harmattan. 419 pp. José Maurício Andion Arruti Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ O livro de Anne-Marie Losonczy anali- sa as relações interétnicas de negros e índios, em especial os Emberá, localiza- dos na região colombiana do Chocó, onde partilham o território e significati- va parcela de um mesmo universo ri- tual, econômico e de parentesco. Resul- tado de estudos desenvolvidos entre 1975 e 1988, que somam 24 meses de trabalho de campo, o texto tem por refe- renciais teóricos principais Lévi-Strauss (fonte de uma perspectiva mais geral) e R. Bastide (fonte de seus principais marcos e instrumentais analíticos). É a partir da distinção estabelecida por este último entre três tipos de “civilização” formadas pelos descendentes de escra- vos africanos na América, que a autora define a região do Chocó colombiano como “negro-colombiana” e assume um programa de investigações que é oferecido à etnologia americanista já estabelecida – restrita aos grupos indí- genas – como um novo e promissor campo de investimentos. Losonczy parte da crítica às aborda- gens correntes sobre as sociedades “ne- gro-americanas” que ou pretendem re- pertoriar traços culturais africanos ou insistem no lugar socioeconômico mar- ginal dessas populações. Em lugar des- tas, que são explicações externas à ló- gica daquela cultura, a autora se pro- põe a abordar os “negro-colombianos” como conjunto social e étnico dotado de uma organização social própria, cuja explicação passa pela análise genética das suas diversas fontes culturais. Tra- ta-se de estabelecer a legitimidade das “culturas negro-americanas” enquanto objetos dignos da etnologia estrutura- lista, vinculada a problemas teóricos próprios das “terras baixas”. Uma legi- timidade que, no entanto, não é incon- dicional – como se poderia esperar, ca- so o argumento enfrentasse diretamen- te a dualidade substantiva índios/ne- gros – mas que se justifica em termos de área cultural e estrutura social. Primei- ro, porque a organização social negro- americana se aproximaria substantiva- mente da organização social ameríndia das “terras baixas”; segundo, porque entre ambas as sociedades existe todo um campo de trocas lingüísticas, rituais e econômicas; terceiro, porque, con- forme o próprio programa de Bastide, a análise da herança das etnias africanas na América não deveria prender-se à descrição da sua distribuição demográ- fica, cultural e lingüística, mas à análise da estrutura de seus cultos. A única crítica da autora ao progra- ma originalmente desenhado por Basti- de está no seu emprego da noção de sincretismo. Losonczy não descarta a noção, pelo contrário, a recupera e am- plia, ao concebê-la como uma modali- dade de relacionamento simbólico com o “outro”, engendrada em situações de contato e conflito potencial, capaz de revelar virtualidades latentes à lógica dos sistemas de representações impli- cadas no contato. Situa o sincretismo em termos de dominação e violência, relativas não apenas à dominância do catolicismo, mas sobretudo aos conflitos que marcam o encontro entre as heran- ças negras e indígenas. Nesse caso, o sincretismo serve como uma solução cultural para o conflito social iminente. Se faz guerra simbólica, decorrente do desequilíbrio imposto entre eles pelo sistema colonial escravista e, atual- mente, pelo tenso partilhamento de um território comum, que ambos conside- ram seu. Uma questão central à investigação é como compreender o desaparecimen- to da herança africana e a construção da nova identidade que caracteriza as comunidades afro-americanas. Como o sistema de representações negro-co- lombiano não possui um referente mito- lógico rico, nem oficiantes religiosos possuidores de um conhecimento exe- gético acima do comum – de que Lo- sonczy, como “americanista”, sente fal- ta –, sua interpretação da realidade cul- tural busca restituir a ordem de inteligi- bilidade subjacente às práticas. Suas principais hipóteses são, primeiro, que na formação da cultura negro-colom- biana, a maior influência não foi do ca- tolicismo, mas do xamanismo indígena; e que, segundo, a sensibilidade que es- sa cultura negra demonstrou no contato com o xamanismo indígena, aponta pa- ra a origem étnica banto dos negros da região do Chocó. A autora segue a su- gestão de Luc de Heusch, para quem o sistema ritual banto participaria do mesmo “fundo xamânico” que as cren- ças do catolicismo popular europeu, re- RESENHAS192 RESENHAS 193 lativas ao pacto com o diabo, formando com ele um campo de transformações estruturais. Para isso, a autora apresenta-nos a região do Chocó e seus habitantes, sua demografia, a histórica do seu “povoa- mento biétnico” e das formas de resis- tência que foram impostas à sua coloni- zação pela rebeldia escrava e indígena. Descreve as transformações trazidas com o fim do período colonial e com as guerras de Independência, que manti- veram a colonização da região incom- pleta, o que faz dela ainda hoje, no ima- ginário nacional colombiano, um terri- tório selvagem e misterioso. Ainda que baseada em um esboço histórico muito geral, a autora procura fornecer um qua- dro dos paralelos, em geral contrastan- tes, que caracterizaram o tratamento das autoridades com relação a essas popu- lações, assim como dos seus mecanismos de adaptação às mudanças de contexto. Partindo da forma de colonização da região, caracterizada por uma explora- ção aurífera dispersa e relativamente autônoma, apesar de escravista, dado o absenteísmo dos proprietários, a orga- nização das comunidades negro-colom- bianas se dá em agrupamentos familia- res multicentrados, fluidos e dispersos pelos diferentes afluentes do rio Capá. Esse traço básico só seria atenuado nos últimos trinta anos quando, por influên- cia da catequese, surgiram os primeiros agrupamentos residenciais em torno das capelas e escolas, sem no entanto alterar o lugar central ocupado pelos rios e seus afluentes (diz-se que se “per- tence” a uma “comunidade” de um rio) na sua organização social. A população local usa o termo “chocoense” para uma adscrição étnica que abarca todos os negros originários da região, excluindo índios e brancos, mas incluindo aqueles “morenos” que migraram para a perife- ria da capital Quibdó, onde os bairros reproduzem, em miniatura, a organiza- ção espacial dos rios de onde as famí- lias se originam. A organização social das “comunidades” negras do Chocó não conta com grupos formais perma- nentes e suas unidades locais estão su- bordinadas a “chefes” apenas por im- posição das relações com o Estado. In- tegra-as uma vasta rede de parentesco, demarcada pela consangüinidade ou pela afiliação ritual, estabelecida pelo compadrio, que dá coerência aos gru- pos locais e ao conjunto multicomunal chocoano. É também por meio dos “ritos de compadrio” que uma família Emberá pode escolher um casal negro para apa- drinhar seus filhos, como forma de es- tender tais alianças por sobre as fron- teiras étnicas, mas o inverso nunca acontece. Isso revela uma das assime- trias dessas trocas sociais, e também a diferença de significado que tal ritual assume para cada grupo. Para os ne- gros do Chocó, seu apadrinhamento completaria a pessoa indígena, tanto em termos espirituais, quanto civis, já que, de um lado, a nominação de um indivíduo é a materialização de sua “sombra” (alma que todo ser adquire no momento do nascimento) e, de ou- tro, eles se assumem como intermediá- rios entre os selvagens e as instituições nacionais. Para o indígena, por outro la- do, o nome cristão é uma espécie de “nome-tampão”, que esconde o verda- deiro nome indígena, preservando-o dos ataques de espíritos maléficos. Essa relação se traduz ainda em uma topografia simbólica que, do lado negro, opõe o espaço civilizado dos san- tos católicos ao espaço selvagem dos espíritos xamânicos e, do lado indíge- na, permite aos Emberá, reconhecidos “mestres da floresta”, se pensarem co- mo donos naturais da terra, que esta- riam emprestando aos negros. Residiria aí o núcleo do que a autora interpreta como mal-entendidos das trocas lin- güísticas interétnicas, que ocupam um lugar de destaque em sua análise. Tais trocas estão submetidas a uma série de restrições: sociais, por serem possíveis apenas em situações bem definidas; le- xicais, por utilizarem um espanhol re- duzido ao essencial; e gramaticais, por utilizarem apenas o gerúndio, que en- fatiza seu aspecto impessoal. Mesmo na época das festas, quando os negros re- cebem em suas casas as famílias indí- genas com as quais têm laços de com- padrio, os grupos convivem sem rom- per esse claro limite, enfatizado pelo contraste entre o alegre falatório dos negros e o silêncio impenetrável dos Emberá. Além disso, as trocas matrimoniais são veementemente recusadas por am- bas as partes. Para os Emberá, isso sig- nificaria perder sua força vital; para os negros, isso contaminaria sua “som- bra” e tornaria selvagens seus sonhos. Neste último caso, trata-se da inversão de uma estratégia histórica: os escravos casavam com índios para livrarem seus filhos da servidão, hoje, autodenomina- dos livres, eles recusam tais casamen- tos pelo mesmo motivo. O espaço de troca estabelecido em meio a essa descontinuidade é aberto pelo exercício ritual, do qual tratam os capítulos 5, 6 e 7. Losonczy descreve sucessivamente o campo religioso e ri- tual dos negros, o sistema terapêutico, relativamente partilhado por ambos os grupos, e o sistema xamânico emberá. Instrumentalizados pelos recursos dos brancos, os negros podem curar as doen- ças infecciosas dos Emberá, enquanto estes, por meio do seu xamanismo, se fazem responsáveis por restabelecer o equilíbrio entre o mundo dos homens e dos seres da floresta, que também mo- lestam os negros. A autora, dessa for- ma, trabalha com a noção de campo interétnico, mas de um modo que o aproxima do modelo malinowskiano da terceira cultura: dois conjuntos culturais autônomos e em grande medida encer- rados em si mesmos que se abrem para as trocas apenas em um espaço funcio- nal de mediação cultural, o campo in- terseção (:395-396). Isso pode ser per- cebido na própria distribuição da maté- ria pelos capítulos, cujo arranjo simula a imagem de dois conjuntos estanques, integrados pelo sincretismo estritamen- te terapêutico, cuidadosamente conti- do por regras impressionantemente in- flexíveis, que o impedem de contami- nar as outras dimensões do cotidiano daquelas populações. O último capítulo é justamente aquele que tenta dar uma visão geral e sintética do campo interétnico, abor- dando as representações acerca das tro- cas realizadas entre negros e índios. Nele, a autora destaca a questão pro- blemática dos limites dos grupos sociais chocoenses, cujos laços de parentesco ritual e de troca simbólicas se tornam interdependentes, localizando a lógica cultural de uma sociedade no coração da outra, ainda que sua integração seja barrada por esses diversos mecanismos sociológicos e lingüísticos. Tal sistema de trocas restritas traz o outro para o in- terior do seu próprio campo social de uma forma instrumental. Em ambas as sociedades, a presença do outro teria a função de neutralizar as ameaças, exter- nas, no caso negro – ao situá-lo na pró- pria periferia social – e, no caso indíge- na, internas – quando a imagem ou no- me serve para mascarar os componen- tes imateriais constituintes da pessoa. Assim, como resultado da mescla de uma plasticidade banto não com outras tradições de possessão africanas, mas com o xamanismo indígena de um lado e, de outro, com o catolicismo rural eu- RESENHAS194 RESENHAS 195 ropeu, cuja humanização das divinda- des está ligada a um modelo contratual de relacionamento com o sobrenatural, a cultura negro-colombiana do Chocó teria dado origem a um “xamanismo atenuado”, de onde se exclui o transe possessório. Para Losonczy, seria justa- mente nessa solução sincrética, que compõe elementos de heranças cultu- rais distintas, de forma ao mesmo tempo funcional e conflituosa, que estaria a ori- ginalidade e a própria condição de se fa- lar em uma “cultura negro-colombiana”. MILLER, Elmer S. 1995. Nurturing Doubt: From Mennonite Missionary to Anthropologist in the Argentine Chaco. Chicago: University of Illinois Press. 225 pp. Rosana Guber Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones (Conicet) e do Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES) Pretendo examinar o alcance da reflexi- vidade na construção da pessoa do in- vestigador-autor, analisando a autobio- grafia de um antropólogo norte-ameri- cano que, entre 1959 e 1988, realizou seus trabalhos de campo como missio- nário menonita e etnólogo junto ao po- vo Toba (Qom), nas províncias de Cha- co e Formosa (Argentina). Como antro- póloga argentina, esperava que essa história fosse uma via de conhecimento crítico aos mundos institucionais, cultu- rais e políticos da Argentina, Chaco e EUA. Esta resenha trata do que encon- trei no livro. Nurturing Doubt segue a ordem dramática de uma ouverture, três atos divididos em cenas e um epílogo. A ou- verture apresenta cinco episódios que ilustram a recíproca perplexidade entre os nativos e o autor-missionário-investi- gador. O primeiro ato, “Discurso Étnico, Sementes de Dúvida”, apresenta a vida de Miller desde a sua infância, no Esta- do da Pensilvânia, até o seu treinamen- to para ser missionário no Chaco argen- tino. O segundo ato, “Primeira Expe- riência de Campo, Maturação da Dúvi- da”, dá conta de sua presença e de suas reflexões na Argentina chaquenha, en- quanto missionário menonita. No ter- ceiro ato, “Discursos Profissionais e o Processo da Dúvida”, o autor reconstitui o seu trabalho antropológico de campo e as etapas de sua teorização do mundo toba. No epílogo, intitulado Denoue- ment, Miller compara os alcances e li- mitações da comunicação intercultural nos três segmentos de sua trajetória. O eixo do livro é a certeza da qual os povos necessitam para viver, os mis- sionários para evangelizar e os antropó- logos para desconstruir. O título, Nutrir a Dúvida, assinala não apenas um as- pecto da tarefa acadêmica, mas uma di- mensão crucial do estar-no-mundo de Miller, um processo que abarca toda a sua trajetória pessoal, uma razão de vi- da desde que abandonou sua comuni- dade de origem, para a qual duvidar é questionar a verdade de Deus (:viii). No entanto, a dúvida não é apenas teológi- ca. Nessa trajetória, expressa como uma épica de combate à certeza, duvidar é também um desafio ao dogmatismo teó- rico. Por isso, o autor apresenta um per- curso simétrico, em que a dúvida origi- nal se sistematiza e recria, recaindo so- bre a disciplina acadêmica que mais profundamente interrogou a verdade universal: a antropologia. O etnógrafo termina em uma solidão similar à expe- rimentada nos seus questionamentos teológicos de juventude (:197-ss). Se duvidar era anátema para os me- nonitas, o segundo sentido, que estru- tura a autobiografia para Miller, está mais próximo à sua origem etnorreligio- sa: “ser peregrino”, não pertencer ao aqui-e-agora, estar de passagem para um mundo verdadeiro e transcendente. Segregação e transitoriedade definem os menonitas, assim como os antropólo- gos, que não costumam pertencer aos mundos que estudam. Entre a Universi- dade de Temple, na Filadélfia, e suas prolongadas estadias no Chaco, Miller transita por mundos familiares e exóti- cos, povoados por Toba, menonitas e antropólogos, mas não se converte em nenhum deles. A simetria entre o antropólogo e o missionário, expressa na quase reversi- bilidade dos três atos, é o acerto e a ar- madilha de Nurturing Doubt. Seu po- tencial reside em permitir questionar a racionalidade científica ocidental como única fonte de explicação do cultural, neste caso, da obstinação etnorreligiosa toba. Como outras coletividades, os me- nonitas têm sua própria racionalidade científica, suas universidades, publica- ções, professores, corpos teóricos e ex- periências de campo. Quanto de missio- nário tem um antropólogo, e quanto de antropólogo tem um missionário, é a grande questão dessa autobiografia. No entanto, a postura adotada pelo autor para analisar essa relação não é subme- tida à crítica reflexiva. Miller provê o contexto menonita no qual floresceu sua dúvida e se expan- diu sua peregrinação, e explica o que significou para este ex-missionário me- nonita “converter-se à antropologia”, mas não abandona completamente seu duplo pertencimento. Da mesma forma, não discute explicitamente a relação conflituosa entre quem duvida sempre – propriedade do sujeito racional – e quem não duvida em seu peregrinar – propriedade do sujeito dogmático-reli- gioso. Em vez disso, mantém a tensão e conclui que a dúvida obriga a peregri- nar por povos e teorias, e que essa pere- grinação consolida a dúvida porque in- valida todo pertencimento: “Ao revisar os processos de desenvolvimento impli- cados nesses escritos, o que me chama a atenção como talvez mais significati- vo foi meu esforço consistente em evitar a adesão a um determinado discurso por extensos períodos de tempo” (:196). Compelido a duvidar e peregrinar, Miller produz-se enquanto uma pessoa individual, despolitizada e masculina, perdendo a oportunidade de usar sua reflexividade para examinar suas certe- zas. Isto fica evidente em relação à aca- demia antropológica argentina, ao con- texto político que a permeou e às condi- ções de produção masculina de seu tra- balho. Do contexto acadêmico argentino, Miller cita os nomes daqueles antropó- logos com quem conversou – etnólogos da Universidade de Buenos Aires, an- tropólogos sociais reunidos no Claso etc. – mas não os incorpora como interlocu- tores e inspiradores de seu percurso in- telectual. A única ocasião possível se vê frustrada sob a acusação de mau uso (plágio?) de sua tese de doutoramento e, no início dos anos 70, na sua decep- ção por ter sido tachado de “antropólo- go yankee”. A réplica de Miller é sem- pre individual e defensiva. Diante da necessidade de se afirmar como indiví- duo-investigador, não chega a mostrar que na academia argentina de então “a dúvida” equivalia à traição, os grupos de pesquisa a camarilhas que margina- lizavam os dissidentes, e as teorias ope- ravam menos como instrumentos de co- nhecimento e mais como profissão de fé política. Concomitantemente, a anulação da dúvida teórica foi parte da dramática intrusão da política nacional no meio acadêmico. Miller, no entanto, não men- ciona o fato. É difícil aceitar seu silêncio RESENHAS196 RESENHAS 197 sobre os estragos da violência política no âmbito universitário, assim como so- bre a politização das ciências sociais, já que o autor se encontrava na Argentina em 1966, quando a “Revolução Argen- tina” interveio militarmente na Univer- sidade. Da mesma forma, deixou de via- jar a este país quando, em 1975-1976, se intensificava a repressão aos simpa- tizantes e ativistas chaquenhos das Li- gas Agrárias, retornando somente com a democracia, em 1983. O que é passí- vel de objeção aqui não é seu registro incompleto dos fatos do passado, mas o sentido despolitizado de uma realidade que a maioria dos argentinos lia a partir de uma chave política. Mais ainda, a forma pela qual os Toba expressaram a opressão militar dos anos 70, se nesta ou noutra chave, permanece obscura. Este silêncio revela o lugar do nati- vo na imagem especular do autor. “A constante através dos meus anos de adulto como missionário e antropólogo tem sido a imagem de um si mesmo es- treitamente identificado com as expe- riências de campo entre os Toba” (:199). Para Miller, o nativo é o Outro constitu- tivo da pessoa do antropólogo. Mas, em se tratando dos Toba, apresentados por ele como os que mais reagiram à intru- são branca, essa caracterização reforça a identificação do autor com um Outro alheio aos avatares do mundo terrenal- ocidental (imagem matizada até o fim do livro com a crescente presença do estado provincial na vida nativa). As- sim, suas extensas seções ilustradas com notas de campo confirmam a afini- dade entre o peregrinar toba e o do Mil- ler-missionário e antropólogo, assim co- mo a oposição entre o indivíduo Miller e o coletivo indígena. “Os Toba”, ainda que com seus “indivíduos” xamãs, caci- ques etc., são o principal termo de con- traste e confirmação da pessoa indivi- dual de Miller. Esse individualismo se ratifica em um outro aspecto. Sem superar a ainda existente divisão sexual do trabalho (de campo) entre ele (por exemplo, predi- cando, curando, caçando) e sua esposa Lois (cozinhando, conversando com mu- lheres toba, acompanhando), esta não alcança o status de interlocutora na aventura intelectual do marido. Apesar de ter recebido seu próprio nome toba (:61), Lois é um pano de fundo que pre- serva em silêncio o mundo familiar pri- vado menonita e norte-americano em meio a Tobas e chaquenhos. Nem a pa- ternidade de Miller, que tem duas filhas mulheres, parece demandar-lhe uma reelaboração a respeito. O peregrino menonita dos EUA e do Chaco renasce no peregrino-antro- pólogo que viaja sem pertencimento... nem étnico, nem teórico. É certo que a ficção do pensador como ave solitária, ainda que não por isso desinteressado das necessidades deste mundo, faz com que o peregrino, o menonita e o et- nógrafo apareçam como três condições de uma mesma postura: o individualis- mo masculino sem sujeição ao império do Estado e à política. Mas Nurturing Doubt oferece material para reexami- nar o quanto dessa lógica individualista já estava na prédica menonita, e quan- to o próprio Miller retomou disto para dar sentido à sua experiência de ser an- tropólogo na Argentina. Talvez, isso se deva ao fato de esta autobiografia inte- lectual e de campo de nova geração ser uma peça aberta a outras interpreta- ções; ou talvez, à dedicação e franque- za com que Miller resenhou sua apai- xonante passagem por este mundo; e talvez, ainda, ao fato de ter tentado tra- duzir sua experiência de pertencimento a uma minoria religiosa no Norte, para a experiência de pertencer a uma mi- noria étnica no Sul.