00_RAIntro.pmd Aproveitar a vida, juventude e gravidez1 Helen Gonçalves & Daniela Riva Knauth Universidade Federal de Pelotas – UFPel Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS RESUMO: Este artigo propõe demonstrar que a concepção de aproveitar a vida tem significados importantes no universo investigado. A expressão sur- giu no contexto de uma pesquisa de abordagem qualitativa, realizada em Pelotas, durante os anos de 2001-2002, com 23 jovens de 18-19 anos que já tinham filho(s) e com 10 de suas mães. O objetivo inicial do estudo era compreender o contexto da gravidez na adolescência em jovens das camadas popular e média, pertencentes a um estudo de coorte de nascimento/1982. Durante o trabalho de campo, o conceito de aproveitar a vida ganhou gran- de destaque nas narrativas, ajudou a qualificar, classificar e, principalmente, justificar os comportamentos afetivo-sexuais juvenis. As análises demons- tram que a juventude deve se posicionar na vida de uma forma proveitosa, endossando positivamente os seus valores sociais. A gravidez das jovens, para as mães, é vista como um dos efeitos da inconseqüência e da modernidade e, para as jovens da camada popular, como algo que estava previsto, favorecen- do o menor controle parental. Para as jovens da camada média, a gravidez interrompe temporariamente ou inverte planos de trabalho e estudo, e afeta menos a sociabilidade das jovens, pois estas contam com maior estrutura econômica e familiar para seguir curtindo a vida. PALAVRAS-CHAVE: adolescentes, juventude, etnografia, gravidez na ado- lescência, aproveitar a vida, estudo qualitativo. - 626 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... Leva-se muito tempo para ser jovem. (Pablo Picasso) Introdução A avaliação social sobre o comportamento de um indivíduo no seu gru- po faz parte das regras sociais que perpassam todas as idades. A idade da pessoa é um referencial sociocultural importante, reflete comportamen- tos comuns e significativos para a compreensão da sociedade. De um modo ou de outro, as apreciações sociais sobre o comportamento estão relacionadas com as conseqüências que ele possa provocar. No que se refere especificamente aos jovens, parte da bibliografia socioantro- pológica tem demonstrado que a juventude atual possui um valor sim- bólico, um estilo de vida identificado ao consumo do bem viver no Oci- dente moderno – logo, pode ser consumida por outras idades e fases de vida (Groppo, 2000; Heilborn et al., 2002). Essa valorização da juven- tude realça a descronologização das fases de vida, relacionada às mudan- ças de eventos demográficos (Debert, 1998), e pode enfatizar e desvincular, em certa medida, a juventude/adolescência de alguns con- teúdos rebeldes ou disfuncionais. Os jovens “têm a vida pela frente”, “devem aproveitá-la”, “são no- vos”, “há tempo para mudar e aprender a ter limites” são falas abran- gentes e significantes do contexto juvenil. A coexistência entre a idéia de juventude valorizada e aquela das atitudes criticáveis (pela imaturida- de e inconseqüência) ressalta como são alguns comportamentos absor- vidos e adequados a cada contexto e tempo. As imagens, as representa- ções, as percepções e os preconceitos do que é ser jovem ou adolescente, ou das expectativas da juventude, podem ser encontradas em expressões de uso popular com significados múltiplos e exemplares para várias dis- REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 627 - cussões. No presente artigo, a idéia de aproveitar a vida serve-nos de ponto de referência para entender percepções e conceitos sobre a gravi- dez juvenil (antes dos 20 anos). Foram as jovens que engravidaram e suas mães que ressaltaram o valor dessa idéia a partir da juventude. Sabe-se que a gravidez na adolescência (10-20 anos incompletos) tem sido veiculada como um problema social e de saúde pública (WHO, 2001). As referências ao evento estão acompanhadas de adjetivos, do tipo “precoce” e “indesejada”, presentes nas visões biomédicas, ressal- tando o comportamento, as conseqüências sociais e biológicas negati- vas dos comportamentos afetivo-sexuais dos adolescentes e jovens. Os universos investigados Em 2001-2002, por meio do Sistema de Informações de Nascidos Vi- vos, foi possível identificar jovens pertencentes ao estudo de coorte de 1982, em Pelotas-RS (Victora et al., 2003), que já tiveram filhos até os 19 anos. Após a identificação de 446 jovens que engravidaram, teve iní- cio um estudo etnográfico, com um universo de 26 jovens com filho(s), selecionadas por serem moradoras de bairros populares (13 jovens) e de camada média (10 jovens), localizados em setores censitários onde ou- tros jovens sem filhos são também estudados. Os objetivos se propu- nham a entender se (e como) a gravidez afetaria, nessa etapa da vida, as trajetórias afetivo-sexuais, de trabalho e escolares das jovens. Do univer- so estudado, três jovens dificultaram os encontros no decorrer do tra- balho de campo, não sendo possível desenvolver com elas um trabalho mais aprofundado – o material de análise não levou em consideração seus depoimentos. Além das 23 jovens com filho(s) que compunham o universo final, foram entrevistadas 10 mães. Optou-se por incorporar o ponto de vista dos familiares nas análises para a compreensão dos con- - 628 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... flitos geracionais relativos à sexualidade e à vida juvenil. As entrevistas foram autorizadas pelas jovens e por suas mães, e foram gravadas e trans- critas respeitando o sigilo (nomes e informações). O projeto foi aprova- do pelo Comitê de Ética da Universidade. O que é ser jovem? Uma frase que, apesar das variações, surgia repetidas vezes nas conversas com as jovens e suas mães era “ser jovem é aproveitar a vida!”. Investigar o que era esse aproveitar tornou-se fundamental para abarcar parte dos objetivos do estudo e para entender o que era a juventude segundo o universo pesquisado. Explorar os significados da referida expressão trou- xe alguns esclarecimentos. Para as jovens, é a partir da juventude e em relação a essa fase que o verbo aproveitar toma de empréstimo certa co- notação sexual/sensual e temporal, embora outras formas de uso sejam aplicadas concomitantemente. Aproveitar a vida, em sua forma usual e corriqueira, significa inicialmente sair, namorar, ficar, divertir-se, pa- querar, dançar e curtir. Para as mães e as jovens, é ainda desfrutar a vita- lidade dos anos, a sensualidade dos corpos, dos olhares e a sedução – nem o corpo nem o trabalho de sedução precisam de muitos artifícios, pois faz parte da própria juventude/mocidade/adolescência ser atraente, sedutor em certa medida. Além dessas possibilidades, o verbo e a expressão aproveitar podem ser empregados com outros significados, tais como usar (consumir), in- vestir (em si ou em algo) e tirar vantagem de uma situação (emprego, ficar, beijo) ou de alguém (por exemplo, pela esperteza). São referências comuns ao aproveitar segundo o jeitinho brasileiro. Saber aproveitar a vida é reconhecer limites sociais e familiares, saber escolher até mesmo os parceiros, posicionar-se de modo mais aberto para o moderno e atual. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 629 - Sendo assim, a conotação sensual e temporal focalizada na juventude se destaca justamente por ser um tempo apropriado para aproveitar a vida com corpo (ativo, saudável) e/ou mente aberta. Portanto, ser ou estar jovem pressupõe inicialmente uma forma de se colocar diante das situa- ções e dos acontecimentos, diferente de outras etapas do ciclo da vida. Ser indica comportamento, aparência e idade. Estar pode ser mais do que ser, independe das idades: é estar com, ter espírito jovem – preser- vando a juventude, a leveza, o humor e a simplicidade com o avanço do tempo. Nesse sentido, o que está inscrito na idéia de aproveitar a vida é relevante para entender o processo de estar vivendo uma dada condição na juventude (ser nela) e de olhar para ela. Há marcadores sociais importantes que definem espaços de sociabili- dade e comportamentos. Em Pelotas, onde as jovens sempre moraram, a primeira quinzena de vida é um marco culturalmente importante para que o processo social de permissões para namorar e sair à noite se conso- lide – quando, na prática, o aproveitar ganha os sentidos apontados ante- riormente. Embora a idade etária possa ser questionada, é ao redor dos 15 anos que o reconhecimento familiar do aprendizado social, amadure- cimento emocional e desenvolvimento corporal se manifesta, mais forte- mente para as meninas, como a concordância dos pais com a ampliação dos locais, amigos e formas de lazer relacionados a elas. Esse processo dá continuidade e sentido a um ciclo mais amplo da vida e da sociedade, reproduzindo e reforçando mecanismos familiares de construção do indi- víduo, além de trazer consigo a preocupação parental de orientar e limi- tar as atuações dos filhos (Duarte, 1986; Parker, 1991; Heilborn, 1994). Entre jovens e mães, é comum o relato de uma sexualidade “à flor da pele” quando, em “plena juventude”, começam a sair à noite. Segundo as mães, é nesse momento que a família teme a ultrapassagem do limite entre o exercício sexual e a promiscuidade, haja vista a necessidade de impor limites e controles conforme as situações se apresentam. O poder - 630 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... coercitivo dos familiares tem forte relação com a necessidade de organi- zar e manter, estrutural e moralmente, às idades “adequadas”, trabalho, casamento, filhos, responsabilidade e prioridade em relações e partici- pações na sociedade. Portanto, no contexto mais amplo, o conteúdo do que se deve aproveitar na juventude também está inserido na própria discussão gerada nos meios público e científico sobre a precocidade da gravidez na adolescência, isto é, quando ela não deveria acontecer, quan- do os jovens precisariam ter “cuidados”, ter “evitado” – o que reforça a idéia de imaturos, impulsivos. Tudo é crítica e aponta para a noção de inconseqüência própria da juventude se não traz à discussão a educação sexual na família. Se aproveitar a juventude é também testar fronteiras valorativas e morais, que na atualidade estão mais fluidas, então, a gravidez adoles- cente enfatiza o lado oposto, de vinculação com compromissos: filho, companheiro, casa e cônjuge. Essa é uma forma com que se pode olhar para a gravidez diante de algumas concepções dissipadas de como ser nessa fase do ciclo da vida. O momento de rompimento criticado e moralizado está, em parte, aliado às qualidades positivas da vida juvenil. Um pano de fundo mais abrangente e que faz diferença nas concep- ções e nos modos de articular idéias sobre os jovens, a gravidez e a passa- gem para a vida adulta é o contexto sociocultural e valorativo onde vi- vem. Por exemplo, retomando a distinção por camadas sociais, nas classes populares, a gravidez na juventude/adolescência é mais visível e muitas vezes parece menos angustiante para a família do que para as de camada média/alta. Essa visão diferenciada, associada aos dados demo- gráficos (maiores índices de fecundidade), e a argumentação biomédica de que é um problema de saúde pública corroboram hoje para uma visão negativa da gravidez na adolescência – há décadas ela não era um pro- blema. Ambos os argumentos não consideram como os valores sobre a juventude podem estar relacionados à própria gravidez na adolescência. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 631 - Se a juventude deve ser aproveitada, então o jovem não deve assumir “compromissos” como gastos com filhos, aluguel, deveres com marido/ esposa, emprego, contas ou dívidas. Para a maioria das mães, idealmente, as filhas devem tentar perseguir outros objetivos – as aspirações incluem maior formação escolar e emprego fixo. Mas tal idéia não exclui os ensi- namentos domésticos (lavar, cozinhar, arrumar casa, cuidar de criança) como parte importante da formação feminina, vinculados a papéis mais tradicionais. Todavia, quando a jovem está, segundo a família, aprovei- tando mais do que “deveria” e a gravidez acontece nesse período, esta é avaliada como um evento que deu “um rumo” melhor à vida, pois a presença de um filho impõe a necessidade de uma nova conduta moral (“ela sossegou, se ajeitou”). Em geral, essas afirmativas são mais comuns depois que o pai do filho “assume” tanto a relação com a jovem como as despesas com o filho, ou quando a jovem realmente diminui o ritmo de suas saídas e namoros. Nesse sentido, por um lado, se a gravidez juvenil rompe com alguns projetos familiares, por outro, ela dá continuidade a eles, muitas vezes antes do desejado/previsto. Torná-la pública é fonte de preocupação moral, não implicando sempre tristeza ou decepção fa- miliar. Lidar, por meio da gravidez, com as críticas morais que unem idade e sexualidade traz outro ponto importante: a visão que se estabe- lece ou prevalece dos jovens diante da fase adulta. A vida adulta é vista como um período menos divertido, de compromissos com trabalho e família. É uma fase em que se dá início ao projeto constante de ascensão e independência (social, material e psicológica), por isso a sociabilidade seria, segundo elas, menos interessante que a juvenil – é um período menos individualizado. Como as normas de comportamento social e sexual são desiguais, as mulheres criam estratégias para superá-las e garantem sua atuação. Segundo as jovens, o discurso familiar sobre as diferenças entre o que homens e mulheres podem juntos ou separados prevalece como - 632 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... ensinamento mais enfático, principalmente no que poderá ocorrer a uma jovem caso ela engravide. Os comportamentos afetivo-sexuais e repro- dutivos são os mais visados pelos familiares, porque podem trazer con- seqüências posteriores ou criar laços de difícil dissolução. Ressalta-se que as expectativas associadas ao que as jovens podem ou devem fazer são distintas nas camadas médias e populares. Esses comportamentos tam- bém são focos de pesquisas em várias áreas da saúde, cujos resultados mostram um decréscimo na idade de iniciação sexual, um maior envol- vimento sexual nos namoros ou “ficares” e o uso irregular (ou não uso) de preservativos e/ou contraceptivos. Todavia, as expectativas, preocupações e idéias do que é ser jovem e de como usufruir a vida na juventude não descaracterizam um parado- xo: o da juventude como um período que se distingue pela curtição de sociabilidades e lazeres específicos e cujas regras sociais sinalizam que há um tempo finito, uma idade de se fazer, de ser de um jeito. Por um lado, exigem-se controle e sabedoria para experimentar/viver a juventu- de. Por outro, as cobranças se opõem diretamente a alguns mecanismos sociais que facilitam e estimulam as trocas, os erros e as experiências ju- venis. Essa ambigüidade tende a comprometer as concepções mais posi- tivas da juventude e a manter parte de sua conceituação negativa, como a de que a juventude/adolescência provoca instabilidades familiar, social e moral, que devem ser controladas para a continuidade dos valores fa- miliares. A sexualidade das jovens é um caminho proveitoso para as ava- liações juvenis e familiares. A mulher e o lar formam uma equação constantemente questionada e, muitas vezes, são apenas parte do discurso juvenil moderno. A pene- tração de valores igualitários nas camadas sociais não atinge todas as jo- vens na mesma proporção. A preleção de que “com estudo está difícil, sem estudo está pior ainda” destaca a desigualdade e dificuldade de ado- tar outra atitude, que, por sua vez, pode demandar esforços também da REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 633 - família. Portanto, inicialmente nos discursos, um filho não é bem-vin- do durante a adolescência, mas a gravidez poderá representar uma tran- sição positiva de status para a família e a jovem, amenizando parte da obrigação da jovem com a família e da sua dependência familiar, potencializando novos rumos. Embora a gravidez na adolescência/juventude também possa levar à interrupção (temporária ou não) dos estudos e à reprodução de papéis mais tradicionais de mãe-mulher, a exigência de maior escolaridade diante da menor oferta de trabalho faz que as famílias contatadas refor- cem alguns de seus valores. Nas camadas médias, nas quais há uma vin- culação e permanência mais longa dos filhos na casa dos pais por de- pendência econômica e/ou afetiva (Galland, 1997), a dependência material e residencial, devido à entrada postergada no mercado de tra- balho, pressupõe que deva haver um adiamento da formação de uma nova família. Nesse sentido, a gravidez na adolescência/juventude passa a ser decorrente da liberdade atual e do modo como os jovens aprovei- tam a vida na modernidade. Para as jovens da camada popular, a gravi- dez vai de encontro das poucas chances históricas e socioculturais às quais estão subjugadas – faz parte de um conjunto de valores, cuja cons- tituição de uma nova família pode se dar mais precocemente do que nas classes médias. Estudos socioantropológicos demonstram que nas camadas popula- res há uma maior valorização da fase adulta, justamente por ela confor- mar um indivíduo menos dependente financeiramente dos pais (Heilborn et al., 2002; Groppo, 2000; Duarte, 1986). Trabalhando mais cedo, os filhos podem ajudar nos gastos diários e nas responsabilidades familiares, que os pais já não comportam sozinhos por várias razões. Se, no universo das jovens da camada popular, o aprendizado do tra- balho doméstico também as orienta sobre como proceder no lar quan- do formarem suas famílias e, conseqüentemente, como incorporar e - 634 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... reproduzir uma grande parte do papel feminino no âmbito doméstico, as tensões entre os projetos de vida profissional e as possibilidades reais de ascensão juvenil estão também permeadas pelas alianças afetivo-se- xuais, as quais se estabelecem geralmente durante a adolescência e/ou juventude. Ou seja, segundo suas visões, os conhecimentos adquiridos com a escolarização não garantem ascensão social e penetração no mer- cado de trabalho mais estável. Parte da descrença na escolarização, se- gundo elas, é explicada por greves, maus professores, péssima estrutura escolar e exemplos da comunidade. A assertiva de que “tá ruim pra todo mundo, até pra quem tem estudo” é mais corriqueira nesse universo, uma vez que justifica outras manobras de vida. Em muitos casos, não há tempo para que a conclusão do ensino fundamental e médio se efetue e, então, elas possam buscar um trabalho – a ajuda à família é cobrada no período anterior à conclusão do ensino, concomitantemente com as alianças afetivo-sexuais. Ao ponderar as repetências e/ou evasões, a “aju- da” por meio do trabalho fora do lar se faz ainda mais preeminente. Se visualizarmos que o prolongamento da juventude está atrelado somente aos estudos e à inserção procrastinada no mercado de trabalho, de fato, nesse universo não há condições do prolongamento de a fase juvenil ocorrer. A gravidez seria uma das formas de ingresso feminino no mundo adulto, de maior liberdade, de ruptura com a própria adoles- cência, dependente e controlada socialmente. Além dos afazeres domés- ticos (Almeida, 2002), a maternidade (ou paternidade) é assinalada como uma forma de passagem da fase adolescente à vida adulta não pela capacidade biológica de fecundar e gestar, mas pela incorporação de res- ponsabilidades e pelas implicações geradas por esse acontecimento na vida dos jovens (Arrilha, 1998; Cabral, 2002; Brandão, 2003). No en- tanto, na prática, há um grande espaço para que a tomada para si das responsabilidades e de outras características da vida adulta se dê de for- ma menos abrupta para as jovens: “Eu acho que falta mais um pouco de REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 635 - seriedade, encarar mais um pouco. Encarar os assuntos. Eu ainda estou meio, ainda me sinto meio... meio saindo da adolescência ainda. Eu não me sinto ainda adulta” (casada, mãe de uma menina, 19 anos, da cama- da popular). Ao analisar as falas sobre a concepção de juventude, algumas especificidades do grupo entrevistado são percebidas. Em ambos uni- versos sociais, especialmente as jovens que mencionavam a necessidade de saírem da casa dos pais, antes de imaginarem ou “planejarem”/“dese- jarem” a gravidez, demandavam às famílias uma liberdade vinculada muito mais à vida afetiva do que à total independência e autonomia dos pais por conquistas escolares/profissionais. A idéia de aproveitar a vida, ligada à sexualidade/emoção das relações e à liberdade do lazer, explica parcialmente os comportamentos das jovens à família. Embora a gravidez seja um evento importante, para obter da família o reconhecimento de sua liberdade, são necessárias constantes confir- mações. Criam-se, então, um sentimento e um tempo dado pela família, bastante relativos e apropriados a cada caso, de adequação e de prolon- gamento de um aproveitar juvenil. Segundo Monteiro (1998, p. 146), “o que marca a passagem de uma fase para outra não é a celebração como rito, mas sim as experiências vividas no cotidiano, as exigências, os com- promissos, as responsabilidades”. Esse espaço faz que a família fique mais próxima, dando continuidade aos ensinamentos sobre os cuidados com a criança, com o companheiro (ou ex-companheiro) e com a vida social. Quando ainda não tinham filhos, a independência financeira estava mais atrelada à satisfação imediata de consumo de produtos da moda. O trabalho doméstico podia servir, caso necessário, como moeda na negociação com os pais para que no final de semana pudessem sair com as(os) amigas(os). A idéia de rebeldia (na defesa do lazer) e de inconse- qüência juvenil vem à tona e se confirma no momento em que os pais exemplificam que as filhas “acabaram” engravidando, logo, eles estavam - 636 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... certos ao aconselhá-las. Fica sempre a dúvida se a história não se repeti- rá. Isso também é válido quando as mães falam de suas vidas como exem- plo para que as filhas não repitam o que consideraram um erro: “Eles são fruto da liberdade demais que eu tive, da irresponsabilidade que eu tinha – aí nasceram eles [...]. Carmem, ela não é uma filha ruim, a gente dava muito conselho a ela, ela não ouviu, ficou grávida”. O sentimento de não surpresa da mãe para com a gravidez da filha vinha ao encontro das idéias modernas de juventude – isto é, natural que acontecesse com “os jovens de hoje”, visto que “está tudo mudado”. Não se constituiu em uma real surpresa, mesmo que ela tenha sido venti- lada nos primeiros contatos do trabalho de campo como algo inesperado. Manter ou prolongar a juventude Em relação ao período posterior à gravidez, houve alongamento do sen- timento de ser jovem nos casos em que a família, mais prontamente, pos- sibilitou que a jovem retomasse parte de seu lazer, ajudando-a a cuidar da criança. Tendo em mente que há exceções e que muitas jovens e suas famílias não fazem uma relação direta do fim da adolescência com a gra- videz, os pais corroboram para a manutenção de um sentimento e práti- ca juvenil (se possível resumir assim), permitindo uma continuação da adolescência na gravidez e na maternidade – fato que ocorreu mais visi- velmente com 10 jovens. Nesses casos, uma porção adolescente é mantida e uma mais adulta é cobrada quando a jovem dá sinais de certo retroces- so no processo de se tornar adulta. A passagem para a vida adulta em jovens adolescentes que engravidaram não é tão nítida, principalmente quando o filho é cuidado pela família e acaba por se tornar seu “meio- irmão” (Monteiro, 1999). Portanto, o alongamento pode ser relativizado de acordo com a idéia de juventude e com o comportamento das moças. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 637 - No entanto, aquelas jovens que tiveram mais de um filho até os 19 anos, todas da camada popular, têm menos regalias e apoio familiar, prin- cipalmente se a segunda gravidez ocorreu fora de uma união estável, com poucas condições econômicas e apesar dos avisos da família. Tal fato é avaliado como uma falta de cabeça, isto é, não se deve ter outras expec- tativas com essa jovem. No contexto social das camadas médias (com predominância de va- lores mais individualistas), a gravidez é pensada como muito precoce no sentido de deslocada da idade e do momento de vida certo. Ela ocor- re justamente em um período em que há mais o que fazer por si e me- nos o que se responsabilizar pelo(s) outro(s). Poder-se-ia pensar que, por ser assim, na concepção de curtir a vida, a gravidez adolescente é vista como uma forma de abreviar a juventude. Porém, em um nível, ela for- talece uma dada aliança afetiva e material familiar, que dá suporte à jo- vem – de acordo com as condições materiais e estruturais – para seguir com os projetos de estudo, trabalho e sociabilidade, embora pontuando sempre a necessidade de se responsabilizar pelo(a) filho(a). As jovens que não coabitam com o pai da criança encontram mais facilidades e apoio familiar para deixar seus filhos sob os cuidados de parentes enquanto saem com amigos para lazer. Por sua vez, elas demonstram que, além de se divertir, querem retornar ao mercado matrimonial e for- mar uma aliança afetivo-sexual com alguém “que (desta vez) dê certo”. Quando não encontram apoio familiar, geralmente em situações de conflito, acionam convenientemente seus direitos como adulta-mãe-mu- lher – ganhos com a maternidade, mas que procuram não ativar em outros momentos. Com as moças da camada média, o sentimento de que deveriam apro- veitar a vida se alonga por mais tempo do que para as jovens da camada popular, visto que as condições materiais já estão de algum modo ga- rantidas. Aquelas buscam também uma identificação feminina mais - 638 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... restrita ao casal e ao lar, tendem a se limitar menos ao papel de mães e esposas, mas não deixam de pensar e fazer algo por seus estudos e por um futuro profissional, embora com certa restrição. No universo popular, o sentimento de que a juventude deve ser des- frutada, ainda que semelhante ao das camadas médias, apresenta algu- mas diferenciações. Essas estão postas na forma como a família articula as responsabilidades da jovem advindas com a maternidade. Embora com exceções, as jovens desse universo tendem a ser mais cobradas pe- los pais e assumem os papéis femininos restritos ao lar e ao filho, sobre- tudo se coabitam com o pai do filho ou com um novo parceiro: “a gente queria aproveitar mas, como veio filho, a gente tem que assumir as conseqüências”. Elas se sentem mais presas à maternidade (às atividades respectivas) e ficam cada vez mais restritas ao âmbito do lar ou do bairro. O fato de 16 jovens (das 23 entrevistadas) de ambos universos sociais morarem atualmente com algum familiar do pai da criança ou dela não só as coloca em situação de dependência familiar, mas permite aos pais dela um convívio maior com o jovem e um aprendizado do que este é atualmente. Se na prática moderna a redução do poder das idades está coligada à crescente valorização da juventude, questiona-se se esse com- portamento também não estaria sendo influenciado pela permanên- cia cada vez mais alongada dos jovens na casa dos pais. O que permiti- ria, em caso afirmativo, o maior consumo do que a juventude representa, ou seja, como ela pode ser aproveitada em outras fases do ciclo da vida. Todavia, é importante ater-se que o aproveitar fala principalmente de uma representação sensual, sexual e valorizada, de experimentação de novas relações, que se coadunam com uma noção mais moderna da juventude. Também diz muito sobre as fronteiras valorativas e morais que um jovem deve ou pode transpor para se constituir como indivíduo, para se separar de sua família e construir suas particularidades. Ao unir as concepções de juventude e a forma de aproveitar a vida, percebe-se REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2006, V. 49 Nº 2. - 639 - muito sobre o modo como alguns familiares se colocam diante dos va- lores modernos atuais, também em relação à gravidez de uma filha jo- vem, cuja sexualidade foi publicada socialmente pela barriga. Considerações finais O espaço de experimentação e de valorização social que é dado de modo geral à juventude, percebido por meio de expressões como aproveitar a vida, ressalta as associações entre práticas e valores alocados no modo de vida jovem. Se existem representações e percepções sociais da juventude vinculadas às conceituações de um período difícil, conflituoso e preocupante, há ainda as que destacam a juventude como uma filosofia de vida para outras fases do ciclo da vida. Comportamentos juvenis que rompem uma trajetória e expectativa futura padrão são facilmente localizáveis nos programas de saúde e na literatura sobre adolescência e juventude como qualificações pouco valorizadas. Tais juízos corrobo- ram ainda para que o adjetivo de “epidemia” social, utilizado para a gra- videz na adolescência, seja usado amplamente por trabalhos que não relativizam as vivências da condição juvenil nos universos sociais e, por conseguinte, a pluralidade da idéia de juventude nesses meios. A gravidez na adolescência/juventude é um bom exemplo para exer- citar os modelos juvenis de vida valorizados na modernidade e as defini- ções presentes de saúde e futuro. As concepções do que é ser jovem es- tão baseadas na construção histórica e sociocultural, e no modo como os jovens/adolescentes devem aproveitar a vida. Ressalta-se a existência de um aproveitar amplamente idealizado – como a entrada no mercado de trabalho, a escolarização ascendente e a posterior união –, porém nem sempre os estilos e modos juvenis de viver podem concordar com tal padrão e valorizá-lo. A própria gravidez torna-se um contraponto e um - 640 - HELEN GONÇALVES & DANIELA RIVA KNAUTH. APROVEITAR A VIDA... reforço negativo às idéias vigentes de uma vida que deve ser aproveitada, curtida no sentido com que as jovens associam primeiramente. Ao se considerar que há uma tensão entre aproveitar a vida e se preocupar com o futuro, deve-se ater como esse conflito se expressa e está implícito em muitos dos comportamentos e valores juvenis e familiares. Nota 1 Este estudo é financiado pelas instituições Wellcome Trust (Inglaterra) e Programa Nacional de Núcleos de Excelência (PRONEX) e pelo Ministério da Saúde (Bra- sil). As fases iniciais do estudo de coorte foram financiadas por International Development Research Center, Organização Mundial da Saúde e Overseas Development Administration (Reino Unido). O estudo também contou com o programa de bolsas da Capes. Bibliografia ALMEIDA, M. 2002 Treze meninas e suas histórias... (um estudo sobre gravidez adolescente), XIII En- contro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, nov 4-8, Minas Ge- rais, Brasil. ALVIM, R. & PAIM, E. 2000 “Os jovens suburbanos e a mídia: conceitos e preconceitos”, in ALVIM, R. & GOUVEIA, P. 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ABSTRACT: This manuscript demonstrates how important is the concept of enjoying life for the subjects studied. It was part of a qualitative study car- ried out in Pelotas during 2001-2002, including 23 adolescent mothers aged 18-19 years, and 10 of their mothers. The aim of the study was to under- stand the context of adolescent pregnancy among youngsters belonging to poor or medium socioeconomic level families, who are part of a birth co- hort study/1982. During the field work, the concept of enjoying life was high- lighted in the narratives. This concept helped qualifying, classifying, and justifying youth’s behavior. The analyses show that the youngsters should live in an enjoyable way of living, acting positively or negatively according to the context and to the social values. Pregnancy is seen as a consequence of this behavior, after transposing socio-cultural limits in adolescence. The- refore, enjoying life highlights how do they feel, and explains why some behaviors are more criticized in this period of life course. KEY-WORDS: qualitative study, enjoying life, ethnography, adolescent, adolescent pregnancy, young. Aceito em dezembro de 2006.