Production Note Cornell University Library pro- duced this volume to replace the irreparably deteriorated original. It was scanned using Xerox soft- ware and equipment at 600 dots per inch resolution and com- pressed prior to storage using CCITT Group 4 compression. The digital data were used to create Cornell's replacement volume on paper that meets the ANSI Stand- ard Z39.48-1984. The production of this volume was supported in part by the Commission on Pres- ervation and Access and the Xerox Corporation. Digital file copy- right by Cornell University Library 1991.®onwll Unimsitg fpitacg Herbert 91. Collection OF BOOKS ON SOUTH AMERICA PURCHASED FROM THE Sage fnboioment fnttb 1896M1AG^ D’EVRE^•vi-A-Goem -A.O NORTE DO BRASIL FEITA NOS ANNOS DE 1613 A 1614, PELO PADRE IVO HEVREUX KELIGIOSO GAPUCHINHO N BLICADA CONFORMS 0 EXEMPLAR, UN1C0, CONSERVADO NA BIBLIOTHECA IMPERIAL »)G C03VE X3STTDROr>TJCCp AO *E NOTAS POR MR FERDINAND DINIZ, CONSERVADOR DA BIBLIOTHECA SANTA 6EN0VEVA ^ Traduzida pelo DR. CEZAR AUGUSTO MARQUES Gavalleiro da Real e Militar Ordem Portuguese de Nosso Senhor Jesus Christo, Gavalleiro e Official da Imperial Ordem da Rosa, Membro do Insti- tute Historico, Geographico, e Ethnographico do Brazil, da Sociedade Geographica de Pariz, e socio corres- pondente.. effective, honorario e benemerito de muitas outras sociedades litterarias e scien- tificas, nacionaes e estrangeiras. MARtNHiO—1874,Maranhao.—Tvp. do Frias, r. da Palma 6.A SADDOSISSIMA MEMORIA m m BO* PAE E YERDADEIRO AMIGO 0 JllVu. s^c. 0Lu cju.Uo tJo,>e ^ITfoaxcjtte,). A vos. 6 inco querido Pae, levanto, dedico e consagro esle pequeno, porem sincero monumento de minha saudade sem- pre viva, de meo extremecido amor, de meo eterno reconhe- oimento, e de minha dor pungente pela vossa auseneia d’este Mundo. Bern sei que Deos, querendo recompensar vossas virtudes, eedo vos tirou do seio dcs que muito vos extremeciam; mas essa ideia pode sim consolar-me, nunca porem mitigar as vi- vas saudades, que me pungem a alma. Aceitae, 6 meo bom Pae, estas flores que, ainda uma vpz banhadas com minhas lagrymas, espalho sobre vosso tumulo, e la do Geo, onde vos collocaram vossas virtudes e a Miseri- cord ia Divina, abencoae o vosso filho '&erxczi.AO LEITOR. A introduced, que se vae ler, escripta pela habil penna de Mr. Ferdinand Diniz dispensa-me de escrever um prologo, e fe- lizmente sou substituido de maneira muito vantajosa para os meos leitores. Realisei ainda uma vez um dos meos raais ardentes desejos, traduzindo e entregando a publicidade uma das obras raras a respeito da historia primitiva do Maranhao, que me tern mere- cido muitas investigacoes e aturado estudo. Dou-me por satisfeito d’esta e de outras fadigas, si d’ellas re- sultar algum proveito ao publico menos, lido para quern fiz esta traduccao. Maranhao. 20 de oulubro de 1874. Dr. Cesar Augusta Marques.m THQDUCqAD 0 Padre Ivo de Evreuz e as primeiras missoes do Maranhao. § No tempo de Luiz XU1, o magnifico Convenlo dos Capu- chinhos da rua de Santo Hoaorato conlava entre seos Mon- ges dois religiosos com o mesmo nome—o Padre Ivo de Paris e o Padre Ivo de Evreux. 0 primeiro, advogado anti- go, verboso, ardente na discussao, muito versadonas ideias do seu seculo, gosava pela cidade de alta reputapao, e as biographias modernas conflrmao ainda sua fama passada: o segundo, amigo reconcentrado do estudo, e mais ainda da bumanidade, espirito observador, alma apaixonada pelas bellezas da naturesa, prompto a acudir onde o chamava seo zelo, nao se importando da curiosidade qne podia desper- tar, foi completamente esquecido, e de tal forma, que, ape- zar de seo reconhecido merito, decorreram 250 annos sobre seo humilde tumnlo sem que uma voz amiga tenha para elle despertado a altenpao publica. Para que se fallasse n’este obscuro Monge foram neceB- sarias duas cousas, com que nao se contava durante sua vida: a transformapao em poderoso Imperio dos desertos, i[ue elle percorreo, e o amor apaixonado por cerlos livrosII velhos, que se rehabilitam e com razao, pels dies, por si so, narram faclos que, sendo desconhecidos, fariam com que a civilisagao crescente de certos paizes caminhasse ua igno- rancia de sua origem. Tiuha entao o grande Convento de Pariz muitos homens condemnados a injusto esquecimento. Fundado em 1575 por Catharina de Medicis, 1 havia em pouco tempo adquerido fama de conter monges doutos em theologia, zelosos, cheios de abnegnapao e caritativos nas epidemias, a qua), quasi intacta, conservou durante o decimo sexto seculo. Era irelle, que o partido, favoravel aos religiosos regula- res, vinha procurar espiritos activos para luctar com o Bispo de Belley. Era sobre estes vastos terrenos, possuidos apenas pela Casa de Tremouille, que existia essa immensa oflicina bem conhecitft pelo Corpo medico de Pariz, onde os cortesaos, assim como os mais humildes burguezes vinham prover-se de medicamentos, que so ahi encontravam, ou que se pre- paravam com incuria notavel nos outros lugares de tao grande cidade. 2 Falleraos francamente: nao era nem a sciencia, entao in- contestavel, d’esse-s Religiosos, nem os resultados positivos de sua cuidadosa administrapao, nem mesmo os beneficios diarios, pelos quaes eram tao uteis as classes necessitadas, que lhes grangearam o credito unisono, que gosavam em Pariz, pois o deviam sobre tudo as brilhantes conversoes, realisadas recentemente no Mosteiro de Santo Honorato. 1 A ordem constitutiva do Mosteiro tem a data de 28 de No- vembro. 0 lugar da esc-olba foi concedido no anno precedente por Catharina de Medicis aos Capuchinhos, vindos da Italia, e a doacao foi contirmada por Henrique III em 24 de setembro de 1574. Vide Boverio, Annali di Fra’ti minori. 2 0 Mercure-Galant deo a luz uma deseripcao, muito curiosa, da grande botica do Convento.in Foi n'este Couvento, que uin dos maiores senhores do ultimo reinado, o conde de Bouchage, mais conhecido depois pelo Padre Angelo de Joveuse, veio trocar as gran- dezas da Cdrte, onde voluntariamente demittio*se dos sens cargos miiitares, pela vida pobre e obscura que ahi so pas- sava. Foi n’este sombrio asylo que urn dos ramos mais illustres da familia de Pembroke veio abjurar o calvinismo, e, re- nunciando vida mais brilhante, sugeitou-se as humildes fun- Cfoes, que desde o principio do seeulo ihes foram impostos, obrigando-se a proseguir sem descanfo na missao a que vo- luntariamente se impozera. Facil nos seria abundar agora na citayao de nomes cele- bres, e de causar talvez admira^ao fazendo sobresahir os es- queeidos: para ser breve devemos porem cingir-nos ao ob- ecto em questao. 1 0 Padre Ivo d’Evreux e o Padre Ivo de Pariz appare'eeram, como dissemos, quase ao mesmo tempo; porem a fama, sem- pre crescente de urn. eclypsou completamente a lembran^a mui fugitiva, que o outro deixou. e at6 em bons escriplos sao elles confundidos. Tiveram, comtndo, bom e repetir, des- tino bem differente. Ivo de Evreux, como dissemos, fugia em geral do bulicio politico, e somente tomava parte nas luctas do seeulo quan- do tinha de sustentar algum ponto de doutrina religiosa: o segundo, muito mais mopo na Ordem, que o seo homonymo, sempre prompto a entrar nos combates, que as Ordens Re- gulares sustentavam algumas vezes contra o poder ecclesi- astico, tinha por isto adquirido muita fama, com que bas- tante se gloriava o Mosteiro. Era notado nao so como orador eloquente, mas tambem como urn dos mais fecundos do sen tempo. 1 Em 1617 contavam-se 655 Religiosos nas duas Custodias de Pariz e de Roao, e entre elles 209 clcrigos. Em 1685 haviam em Franca 5:681 Capuchinhos.rv A hyperbole do elogio monastics chegou ate o ponto de consideral-o como o eogenbo mais poderoso de sua Or- el em. Foi sempre elle quern representou unieamente seos Supe- riores: eram d’elle os muitos livros, escriptos quase todos em latim, que foram oppostos, e victoriosamente^ as publi- capoes violentas atiradas contra as Ordens mendicantes. Da sua antiga occupapao de advogado se reeordava e se aproveitava das tricas e desordens, proprias da epocha, e ate langava mao da astrologia judiciaria, pelo que se Ihe attribuio a authoria do Fatum Mundi, livro absurdo, mas que durante algum tempo preoccupou a attenpao pu- blica. Declarado por unanimidade o oraculo do seu Convento, nem se quer por um momento houve a ideia de associar-se a sua lembranga o nome d’um Religioso, igual ao seo, e que apenas sabia sacrificar-se com o fim de ganhar algumas al- mas para Deos ! 0 que fazia o nosso modesto amante da na- tureza diante de tal personagem, tao cercada de gloria, di- ante da Phenix dos theologos francezes, como £ntao por gosto o appelidavam ? 1 Mas, quern e que se recorda hoje do Padre Ivo de Pariz? Quern cuida hoje nas discussoes, cuja vehemencia Ihe attri- buiram tao viva admira^ao ? Golloquemos os homens e os factos nos lugares, que de- vem occupar. 1 Nao inventamos: lira dos seos mais ardentes admiradores, tambem Capuchinho, falla d’elle nestes termos: Tantarum segete scientiarum, factus est dives ut Gallic? Pheenix hac nostra estate communiter sit appelatus. Vide o vasto Repertorio de Diniz de Genes. Bibliothecascriptortm ordinis minonm Sancti Francisci mpucinorum. Wading, mais moderado, contenta-se em chamar o Padre Ivo de Pariz—egregius concinnator, msignis Capuccmus. 0 autor anonymo dos elogios manuscriptos dos Capuchinhos da Cidade de Pariz nao poz limites ao seu enthusiasmo, qifando disse: , tremendo de medo, dizia: «.Che assequegai seta, ypocku Tupinambo, ypocku decatugue: giriragoy Topinamho giriragoy seta atupaud: ypock a ianuira vaete, ypocku decatugM giriragoy ianu- ara vaeU giriragoy seta atupaue. Ah! que medo tenho, oh ! quanto sao malvados os Tupi- nambas perfcitos malvados: menliram os Tupinambds, menliram muito e muito: o Cdo grande, e urn mdvudo, mat- vado complete: mentio o Cdo-grande, mentio tambem muito e muito, etc. Nada dislo eu disse, nao causei a morte doPadre, nao disse quo queria fazer murrero Pad re* grande, e nem que lhe dei molestias. Tambem nao disse, que quero atormenlar os Frances, e fazer seccar suas plantas, porque nao sou e nem fui feili- ceiro, e assim quero ser fllho dos Padres, quero voltaretra- balhar para elles, e si os deixei foi para colher meo milho: quero ir ja onde esta o Padre-Grande, levar-lhe o meo mi- lho. o meo peixe, e a minha ca$a, e dar-lhe um dos m^os escravos para apaziguar o chefe dos francezes afim delle nao crer no Cdo grande, que sempre me quer mal embora eu seja seo irmao: muitas vezes me quiz matar, e si o Mum- uichaue, quer dizer o «Principal dos Francezes» lhe der uma vez ordem de prender-me, elle me matara sem duvida al- guma.» Por estas palavras conhecereis a indole-d’estes selvagens, que nao dizem a verdade quando necessitam defender-se. . Este miseravel Capitdo, fugio e escondeo-se nos mattos. e depois foi para uma aldeia ehamada Giroparieta, quer dizer aldeia de todos os diabosy ao p6 da praia, e d’ahi en- viou-me um dos seos parentes pedir-me paz, e que obtivesse do Maioral o seu perdao. Mandou-me um seu escravo forte e robuslo, bom pesca- dor, e cafador: elle, sua mulher e mais pessoasda familia, me vieram ver, trazendo-me milho, peixe, e capa, e tanto elle como sua mulher muito fallarara para me persuadir de que eu nao devia crer o que se dissesse d’elle, chamando os Tupinambds e o Cdo-grande,—mentirosos e outros no- mes feios, asseverando que era bom amigo, que desejava ser christao, e que si o Maioral, e eu tambem nos esqueces* semos de tudo, elle e sua mulher regressariam contentes.31 CAFITULD X Da chegada de uma barca portugueza a MaranhAo. Quando monos pensavamos, achando-se a Iiha seen indios ' . e som francezes, por terem aquelles ido viajar pelo Ama- zonas, e estes pela segunda vez ao Miary; de que brrve- monte trataremos, por espa£o de um moz fomos incommo- dados com mil noticias, ora de selvagens residentes perto do mar, ora de francezes moradores nos fortes, que diziam ter ouvido tiros de pepa para o lado da costa da pequena IUia de Santa Anna, e da de Tabucuru,24 e ter visto tres navios velejando ao redor da Ilha, eis que se apresentou uma barca, cqmmandada por um capilao portuguez, chama- do Martin Soares. Vinha da Iiha de Santa Anna, onde tinha desembarcado, tornado posse d’ella para o Rei Catholico, plantado uma grande Cruz, e levantado um marco com uma inscrippao, de que logo fallaremos. Andou este navio por todo o porto de Caurs, sailando sua tripula^ao sempre que Ihe approuve para ver e escolher lugares proprios a plantapao de canas e ao fabrico do as- sucar, especialmente no lugar chamado Ianuarapin, onde foi erguida uma Cruz com o fim de crear-se uma bella habi- ta^ao de porluguezes, e construir-se muitos engenhos de assnear. Approximaram-se depots da enseiada de Caurs, uma das entradas da Iiha, onde depois da sua vinda, se edificaram dois beilos fortes aQm de impedir o desembarque. Elies davam alguns tiros de pe£a para chamar os selva- gens da Iiha: nonhum la foi, menos o Principal de Itaparis, suspeito por Iraidor: perguntaram lhe muita coisa, e ignora- se o que respondeo: deram-lhe machados e fouces, e depois veio para a Iiha. Os porluguezes traziam comsigo os indios Canibaes, 23 moradores em Mocuru, e parentes de outros do mesmo14 norne refugiados em, Matanhao. os quaes dies mandaraih a terra para lomar conhecimento, e infbrmagoes, si na Ilha haviam muitos francezes; si estavam fortiflcados, e si tinbam canhoes. Felizmenle dirigiram-se aos Tupinambas, qae lh.ps dis- serara nao haver na Ilha um so francez, urn so forte, ura s6 navio, barca, nem canhao, e com tal seguranga princi- piaram a comer, e os Tupinambas mandaram immediata- mente ao forte de S. Luiz contar tudo isto. Expedio-se logo uni a barca, bein esquipada, com o lim de prender os portuguezes; porem aconteceo, quo urn trai- dor Canibal, inimigo rancoroso dos francezes, e a quern ja so tinha muitas vezes perdoado castigos, em que havia incorrido, sabendo da noticia da vinda dos outros, foi pro- cural-os furtivamenle, e em segredo Ihes disse—«que fazeis aqui, fugi depressa para o mar, regressae ao vosso navio, porque os francezes tern na Ilha urn beilo forte, canbas, na- vios, e canhoes.)) Mai ouviram isto, levantaram-se as pressas, e disseram aos, seos hospedes Tupinambas, que os divertiam—Ah! maus, enganaes vossos camaradas—e assim dizendo a pas- sos apressados foram com o traidor para a sua canba, e e em breve chegaram a barca, ancorada n.’uma enseiada urn pouco adiante. Vendo.isto os portuguezes, desconfiaram logo que os fran- cezes estavam na Ilha, e que nao Jeixariam de os perse- guir, e apenas tinham levantado ancoras.* descobrirara a barca dos francezes, e estes a d’eiles, apressaram-se a tor mar a dianteira dos portuguezes, navegando a bolina, muito bem, quebraqdo os rolos a'agoa, p< ms bancos d’area, pouco pensando em encalhar comtanto que conn tuarn, discooperi Immerum, revela crura, transit flumina, torna a mo, e moe a farinha, desco-* bre tua torpesa e tua espadua, mostra tuas coxas e passa o rio. Tomam estes selvagens a mo, e a farinha, nao tendo fer- ramenta alguma para trabalhar, quer nos bosques quer nas ropas, servem-se unicamente de machados de pedra para cortar arvores, fazer suas casas e canoas, agupar paus cub44 tivar a terra, semeiar, plantar raizes, e por unica recom- pensa de seos trabalhos sd comem farinha, e raizes passa- das por um rallador, feito de pedrinhas agudas, engastadas n’uma taboa da largura de meio p6. Cosinham a farinba n’uma grande paneJla de barro, ao fogo, como amplamente esta escripto na Historia do R. Pa- dre Claudio d’Abbeville. fi lao patente sua torpesa, que suas mulheres e fllhas, embora honestas, sentem repugnancia de se vestirem. Tra- zem o hombro descuberto, sujeito a este grande captiveiro, commum a todas as napoes. Mostram suas coxas, e a falta de castidade esta em uso entre elles sem reprovapao, me- nos o adulterio. Passam rios buscando ilhas incognitas atraz de segu- ranpa. capitolo xv Leis do Captiveiro. Ja que estamos fallando dos escravos bom e tratar das leis do captiveiro, isto 6, das que devem guardar os escra- vos. Primeiramente nao devem tocar na mulher do seo senhor, sob pena de serem flexados logo, e a mulher morta ou pelo menos bem apoitada, e entregue a seos Paes, resultando-lhe muita vergonha de ser comoanheira de um dos seos servos. Notae, que as raparigas nao sao despresadas por se entre- garem a quem muito bem lhes parece em quanto solteiras, logo porem que recebem um marido, si se entregam a45 outro, alem da injuria de serem charaadas Patakeres, quer dizer, prostitutas, tem seos maridos o poder de matal-as, apoital-as e repudial-as. bera verdade terem os francezes abrandado esta lei tao rude, nao dando permissao aos maridos de matar tanto o es- cravo como a mulher adultera, ordenando que fossem con- duzidos ao Forle de Sao Luiz para ver punil-as, ou elle mesmo infringir-ihes o castigo, como vi acontecer, entre outros factos, no adulterio commettido entre a mulher do Principal Uyra- pyran, e um escravo, bonito rapaz. Tinba o referido escravo muito amor a esta mulher, e de- pois de ter cogitado todos os meios de gosal-a, vio-a ir um dia a fonte, muito longe da aldeia, foi logo atraz expor-lbe sua vontade, e depois agarrando-a com violencia entranhou- se com ella n’um bosque, onde saciou seos desejos, e como ella era de boa familia nao quiz gritar para nao ser diffa- mada, e ainda em cima pedio segredo ao escravo. Enfadado o marido com a grande demora da mulher, e desconfiando de alguma cousa por ser bonita e agradavel, foi a fonte, onde encontrou junto a borda o pote de sua mulher' cheio d’agoa, e lanpando a vista ao redor, como costumam a praticar os homens ciumentos, vio sahir sua mu- lher de um lado do bosque e o escravo de outro. Agarrou o escravo pelo colleirinho, e confiou-o a guarda dos seos amigos, e levou sua mulher para casa de seos paes, que se comprometteram a entregal-a quando pedisse. Na manha seguinte, em companhia dos seos, levou este escravo a minha casa, expondo-me o facto como acima re- fer!, acrescentando que si nao fosse o respeito as recom- mendapdes dos Padres e dos Francezes, elle teria matado o escravo, perdoando comtudo a sua mulher visto ter sido forpada, a qual ja havia entregado a seos parentes com in- tenpao de repudial-a. Louvei a sua obediencia e respeito: era na verdade um homem bem feito. de bonito rosto, e bom corpo, fallandobem e em boos termos, mostrando tanto nas maneiras cornu no corpo, generosidade e nobresa de corageui. Mandei-o a presenpa do senhor de Pezieux, loco-tenepte de Sua Magestade na ausencia do Sr. de la Ravardiere, que tendo ouvido a queixa, mandou carregar de ferros os pes do escravo, proroettendo ao Principal fazer a justipa, que elle quizesse. Rephcou-lhe o Principal que desejava vel-o morto como era costume: respondeo o senhor de Pezieux, que Deos ti- nha ordenado em sua lei, que deviam morrer Unto o homem como a mulher adultera. Sim, disse o Principal, porem ella foi constrangida. «Nao, respondeo o senhor de Pezieux, a mulher nao pode ser forpada por um so homem, ou rpelo menos deve gritar, e nao pedir segredo ao selvagem, o que e tacito consenti- mento:» dizia ludo isto para salvar o escravo da morte, por que muilo bem sabia nao concordat' o Principal na morte de sua mulher visto os muitos parenles que elia tjnha. Conseguio-o logo, porque elle pedio ao Sr. de Pezieux, que nao matasse o escravo, mas sim que o prendesse na golilba, e que lhe fosse permitlido apoilal-o a vontade. «Sim, disse-lhe o Sr. de Pezieux, com tanto que dfe qua- tro apoites com cord as em tua mulher, diaate de todas as mulheres, que se acharem no Forte, e ao som da cor- neta.» Acordes n’isto, na manha seguinle, foi a mulher condu- zida e confrontada com o escravo, reconbeceo-se que o facto deo-se como ja referi, foram ambos conduzidos a prapa pu- blica do Forte, onde se flncou o esteio e a golilha: ahi o marido representou o papel de verdugo, escolheo tres ou quatro cordas bem duras, que enrolou em seo brapo, e vol- tou em sua mao direita, e eora ellas apoitou sua mulher por quatro vezes, deixando-lhes vergoes bem grosses e cumpri- dos, impressos sobre sees rins, ventre e costas, nao sem derramar muitas lagrimas, que lhe corriam ao longo dasfaces, e sem exhaiar profundos suspiros: sua mulher tarabem gemia, com a vista baixa, envergonhada de assim se ver rodeiada por tantas mulheres, que, como ella, tambem cho- ravam taato por compaixao, como apprehensivas de que para o fnturo nao Ihes acontecesse o mesmo. Os homens ao contrario mostravam-se alegres diante de tao boa justipa, e gracejando diziam a suas mulheres—ah ! se te -pit ho ! Durante todo o dia estiveram tristes as mulheres dos Ta- bajares. Depois de haver apoitado sua mulher, este bom marido Hie disse «eu nao tinha desejos de castigar-te, fiz o que pude perante o Maioral dos Francezes para salvar-te, porem vae, eochuga tuas lagrimas, e tornar te-hei a tomar por mu- lher, e te levarei para casa quando acabar de eastigar este escravo.» Sabe Deos, se o pesar que elle teve pelos apoites, que deo a mulher, melhorou a sorte do pobre escravo, porque pondo-o na prapa ou no largo, fez um circulo do tamanho dp seo chicote, separado todos, um por um. Tinha o escravo ferros nos pes, estava era pe, nu como a palma da mao, e assim soffreu o castigo, sem dizer uma palavra e sem mecher-se: por tres vezes cansado e sem poder respirar descanpou, depois de fortalecido recom- mepou e de tal maneira, que nao poupou uma so parte do corpo. Comepou pelos p6s, seguio pelas pernas, coxas, partes naturaes, rins, ventre, espaduas, peito, e acabou pelo rosto e testa. Esteve muito tempo doente por este castigo, sempre com ferros nos p6s, conforme pedio o Principal, porem passado algum tempo consentio que lhos tirassem, a pedido do se- nhor de Pezieux, que desejava satisfazer os desejos dos seos Principues para melhor obrigal-os a serem fieis aos Fran- cezes48 Acabado isto, tomou conta da mulher, que ja nao cho- rava, e sim principiava a rir-se, e assim voltaram para casa como se nada tivesse acontecido. eompadeci- dos, e nos amam e aos nossos filhos. e pelos seos interpre- les soube one aqui vieram para salvarmos. Ja ouvi dizer, n’uma reuuiao a um dos nossos similhan- tes, que os antecessores dos Padres baptisaram antigamente em quanto com dies estiveram, e que vio os Canibaes se abrigarem #em suas Igrejas, quando fazim alguma maldade. por lerem eertesa de que ahi ninguem Ihes faria mal.Faze o mesmo, quando anoitecer vae com meo Pae pro* curar o Padre na sua cabana de Yviret, pede para te por na casa de Deos, que e defronte da residencia d’eile, e ahi fica, ate que meo Pae, conjuotamente com os Principaes, intercedam por ti, e consigarn o teo perdao do Maioral dos francezes. Para mais facilidade, tu sabes que os Francezes neeessi- tam de canoas e de escravos, offeree,a pois meo Pae ao ehefe tua canoa e teos escravos, para que nao morras. Tudo isto foi cumprido pontualmente, porque este velho, Pae dos dois rapazes, foi procurar-me, rogou-me e instou- me para que recebesse seo fllho na casa de Deos, e inter- cedesse para ser perdoado pelo Maioral dos Francezes, bus- cando convencer-me, entre outras, com estas razoes. «V6s outros Padres fazeis regorgitar de povo as nossas Ca- sas Grandes, quando quereis, desejando ver ahi grandes e pequenos, afim de ouvirem a causa, que vos obrigou a dei- xar vossas casas e terras, muito melhores do que estas. para nos ensinarem a naturesa de Deos, que e, como dizeis, bom, misericordioso, amante da vida e inimigo da morte, e por isso nao quer que ninguem morra assirn como ellemor- reo n’um madeiro para fazer viver os mortos. «Dizeis ainda, que nossos flibos nao sao mais nossos, e sim vossos, que Deos vol-os deo, e que d’elles tomaes cuidados ate a morte: mostrae-me hoje, que vossa palavra e verda- deira. «Estou velho, perdi todos os meos filhos, so me resta um, que fez esta casa, que vos estima muito, e a todos os Padres e quer ser christao. «Matou seo irmao sem querer, ou meihor, foi seo ir mao quern se matou a si proprio com as flechas, que trazia. Rogo-te o recebas na casa de Deos, e vem com migo fallar ao chefe, porque elle nada te recusara viste> estimar-te muito. «Quiz trazer com migo o fliho, a favor do quern inturcr;-, porem elle term* muito a ira dos Francezes: act-uaimeiuv56 anda orrante e fugitive pelos m alios, como si fosse um ja- valy: quantlo ouve o ramalhar das arvores suspeita ser os Franceses, quo armados andam em busca d’elle para pren- del-o e conduzilo a YvireL onde sera amarrado a bocca de uma pe$a.)> Respondi pelo meo interprets, asseverando-lhe que em- pregaria os rrieos esforpos, que tinha esporanpa de obter o que elle desejava porque o cliefe me eslimava; mas que era bom, que elle fosse pessoalmente fazer seo pedido. e que eu iria depois delle. Foi immediatamenle ao Forte em companhia de uin dos p'rincipaes interprctes da Colonia, chamado Migan,35 e expoz suas razoes e rogos ao senhor de Pezieux, por esta forma. ((Sou um Pae muito infeliz, e acabarei minha velbice como os javalys, vivendo so, comendo raizes amargas e cruas, se de rnim nao liveres piedade. ((A misericordia muito eonvem aos grandes, e maiores* nao podem ser, quando usam d’ella e de clemencia. «F teu rei o maior do Mundo, como nos contam os nossos, que estiveram, em Franpa. uijile para aqui te mandou como um dos Principles da sua curie aflm de nos livrares do captiveiro dos Peros: ora como es grande, e misericordioso, usa de misericordia para com os infelizes. que sfio desgracados por acaso e nao por malieia. «Bem conhepo, que e precise ser juste, r* iudagar o mo- tive para se fazer a escolha, e proceder-se a vinganpu sobre os maus, o que mui restriclamente observances cnlre nos, desde os nossos paes, mas quando a falta nao e originada por maldade n6s perdoamos. «Tenho dois Filhos, como sabes, os quaes tom vindo tta- balhar no tee Forte, um matou o outre por acaso e serri maldade, ou para melbor dizer, suicidou-se o mais velho nas fleebas do mais mono, que esta vivo, e te pepo que nao o persigas e sim o perdues.57 «E elle, que me hade sustontar na velhice: sempre foi amigo dos francezes, e quando algum vae a minha aldeia, chama logo os seos caes, e vae cafar cotias e as pacas para elle comer. «Fez a c&sa dos Padres, (3 assevera-rnme que elles o pro* legem. «Sempre foi muito obediente a sua maclrasta, que o ama como si fosse seo proprio filho: sen irmao, que sem querer, elle rnatou, era mau, nao eslimava os Francezes, nunca Ihes deo coisa alguma, nao ia a capa para el!esr aborrecia sua madrasta, e muitas vezes a zangava: quando morreo, esta- va bebado, e veio tornar a mulher do seo irmao, e arran- cando o filho, que cdla India ao collo, atirou o menino para um lado e. a mao para outre, dando-lhe bofetadas, embora estivesse gravida, na mirlia presenpa e a vista do seo ma- rido, e tudo soffremos corn paciencia; porem vindo agarrar seo irmao para espancal-o, ferio-sc no ventre com as fle- chas, que elle trasia na mao e assim morreo. «Porque perderei eu meos dois filhos. de uma so vez, e ja na minha velhice ? «Si queres mandar matar o unico que tenho, mata-rne primeiro, e depois a elle. Elle te da sua canoa para a pes- caria e seos escravos para te servirem.» Adrnirou o Sr. de Pezieux este discurso, como depois me disse e por muitas vezes, e o referio a diversas pessoas, admirando-se de ver tao bella Rhetoriea na bocca de um sel- vage m. Previno-vos, qne rep"-sento todos estes discursos e suppli- eas o mais sinceraaieute que me foi possivel, sem o empre- go de arlifici^ algum. Respondeo o Sr. de Pezieux dizendo ser grande crime urn irmao malar outro, mas como elle asseverava ter sido antes por culpa do fallecido do que pela do vivo, perdoava a rogo dos Padres, a quern nada queria recusar, e assegurou-lhe logo cue seo filho nada soffreria, que acceitava a canoa c os escravos, porem que tudo isto Ihe offerecia para o arri- 145& mo de sua velhice visto ser elle amigo dos Padres e dos Francezes. Alegrou-se muito o bom velho com este acto de miseri- cordia e liberalidade, e nao foi ingrato, nao so fazendo co- nhecido por toda a Ilha o facto, como tambem offerecendo ao dito Sr. e a n6s tudo quanto etle e seu filho capavnm. GAFITULO XVXII Quanto 6 facil civilizar os selvagens A maneira dos francezes, e ensinar-lhes os officios, que temos em Franga. No Liv. 2/', Cap. l.°, dos Machabeos, lemos, que o fogo sagrado do altar foi escondido no popo de Nephtar durante o captiveiro do povo e se transformou em limo. Quando o povo regressou, ja livre, os Sacerdotes apanha- ram este limo, e o deitaram na madeira do altar, levantado para os sacriQcios. Apenas o sol, la de cirna, comepou a lanpar seos raios sobre o limo, este se transformou em fogo, e devorou os holocaustos. Desejo servir-me d’esta flgura para explicar o que tenho a dizer n’este e nos seguintes Capitulos. Convem notar, que por este fogo se deve entender o es- pirito humano imitando a naturesa do fogo por sua activi- dade, ligeiresa, calor e claridade, o qual se torna lodo e limo, escondido n’um centre dilferente do seo proprio, de- vido isto a sua alma captiva pela infidelidade.59 Quero dizer, que sendo o espirito do homein creado para conhecer a Deos, e aprender arles e sciencias, torna-se en- torpecido e obscurecido entre as immundicies, quando sua alma esta presa nas cadeias da infidelidade, sob a tyrannia de Salanaz, mas quando sua alma desprende-se do capti veiro pela intenpao e guia dos Prophetas de Deos, sahe o espirito d’esse popo lamacenlo, e animado pela luz, e co- nhecimento de Deos, da? artes, e das boas sciencias, torna- se apto e prompto para executar o que percebe e aprende, o que farei ver, e tocar com o dedo a respeito dos nossos selvagens, e mni principalmente quando de suas perguntas » mais comesinhas nasce a esperanpa d’elles se civilisarem, e viverem reunidos n’uma cidade, negociando, aprendendo officios, esturtando, escrevendo e adquirindo sciencia. Tenho para mim, que sao mais faceis de serem civilisa- dos, do que os ald.eoes de Franpa, por ter a novidade nao sei quo influencia sobre o espirito afim de excital-o a apren- der o que elle ve de novo, e lhe agrada. Os nossos Tvpinambds nunea tiveram ideia alguma de civilisapao ate hoje; eis a razao porque elles se esforpao, por toda a forma, de imitar os nossos francezes, como depois direi. Ao contrario os aldeoes da nossa Franpa estao de tal sorte enraisados em sua rusticidade, que, em qualquer conversa- pao, embora nas cidades entre pessoas distinctas, sempre mostram signaes de camponezes. Aos Tupinambds, depois de dois annos de convivencia com os francezes, estes Ihes ensinararn a tirar o chapeu, a sandar a tod os, a beijar as maos, a comprimentar, a dar os bons dias. a.dizr * adeos, a ir a Igreja, a tomar agua benta, a a.ioelhar-se, a oor as maos, a fazer o signal da Cruz na testa e no peito, a no peito diante de Deos, a ouvir missa e sermao, ainda que nada d’isto comprehendarn, a levar o Agnus Dei, a ajudar o sacerdote a missa, a assentar- se a mesa, a estender a toalha diante de si, a lavar suas inaos, a pegar na carne com tres dedos, a cortaba no prato60 e a beber em commum, e breve farao todos os actos de civilidade e delicadesa, que se costuma a praticar entre nOs, e ja se acham tao adiantados a ponto de parecerem ter sempre vivido entre os francezes. Ninguem pois podera conlestar-me, que nao sejam estes factos bastante para eonvencer-uos do que devemos esperar e acreditar ser esta napao, coni o andar dos tempos, civi- lisada, honesla e, muito aproveitada. Como os exemplos provam mais que oulra qualquer es- pecie de argumeiUapao, vou contar-vos o caso de alguns selvageus educados em easa de nebies, Actuaimente ha em Maranhao uma mulher selvagem, de uma das boas rapas da Ilha, que foi antigamente, quando bem pequena, tomada pejos portuguezes, e vendida como escrava a D. Catharina do Albuquerque, sobrinha do grande Albuquerque, Viee-Rei das Indias Orientaes, sob o doroinio do Rei de Portugal, a qual reside presentemente em Per- nambuco, e 6 Marqueza de Fernando de Noronha, ilha muito bella e fertil, segundo diz o Revd. Padre Claudio d’Abbe- ville na sua Historia. Esta rapariga fez-se christa, e se a vestissem a portu- gueza nao se poderia facilmente dizer qual a sua origem, se portugueza ou selvagem, mostrando sempre a vergonha e o pudor, inseparaveis de uma mulher, e occultando com cuidado a imperfei^ao do seo sexo. Poderia dizer outro tauto de muitos selvagens, educados entre os portuguezes, e dos quaes alguns foram a Franpa, e conservam ainda hoje o que aprenderam, e o praticam quan-, do se acham entre os francezes. £ novo entre elles o uso da barba e dos bigodes, poiem como veera esse uso entre os Francezes, tambem deixarn crescer tanto uma como oulra coisa. Tem incomparavel aptidao para as artes e officios. Conhepo um selvagem do Miary, chamado Ferrador, por, causa do officio, que aprendeo, vendo somente trabalhar um ferrador francez que nada Ihe e.xplicou.61 Sabia muito bem malhar com os outros uma barra de ferro eueandecida, como se tivesse longa pratica, apesar de ser coisa muito sabida entre os officiaes do mesmo officio, que 6 necessario muito tempo para aprender-se a musica dos rhaftelios na bigorna do ferrador. Achando-se este mesmo selvagem nosdesertos do Mi ary com sees semelhantes, sem bigorna e rfiartello, limas e tor- nos, trabalhava comtudo muito bem fazendo pontas ou lan- fas para flechas, harpoes e anzoes. Por bigorna tinha uma pedra muito dura, por marteilo outra de menor consistencia, e depois aquecendo ao fogo o ferro, dava-lhe a forma que quefia. Os officios mais necessaries entre elles sao os de ferreiro, tanoeiro, carpinteiro, marcineiro, cordoeiro, alfaiate, sapa- teiro, tecelao, oleiro, iadrilhador, e agricultor. Para todos estes officios sao aptos e inciinados pela natu- reza.. Para o de ferreiro ou de ferrador ja referimos urn exem- plo. Quanto ao officio de tecelao seria a sua especialidade se aprendessem; tecem seos leitos muito bem, frabalham em la tao perfeitamente corno os francezes, embora nao ernpre- guem a lanfadeira, e nem a aguiha de ferro, e sim peque- nos pausinhos. Contarei ainda uma bonita historia. Fui um dia visitar o grande Tkion, principal dos Pedras- verdes, Tabajares; quando cheguei a sua casa, e porque ihe pedisse, uma de suas mulheres me levou para debaixo de uma bella arvore no iim da sua cabana, que a abrigava (los ardores do sol, onde estava arrnado um teiar de faser redes de algodao, em que elie trabalhava. Gostei muito de ver este grande Capitao, velho Coronel de sua napao, enobrecido por tantas cicatrises, entregando- se com praser a este officio, e nao podendo conter-me, per guntei-lhe a razao d’istq, esperando aprender alguma coisa de novo n’este facto tao particular, que estava vendo.Pdo meu interprete Itie perguntei a razao, porque se dava a esse mister. Hespondeo-me, «porque os rapases observam minhas ac- poes e praticam o que eu fapo; se eu fieasse deitado na rede e a fumar, elles nao quereriam fazer outra coisa: quando me vem ir para o campo com o machado no hombro e a fouce na mao, ou tecer rede, elles se se envergonham de nada fazer.» Eu e os que comigo entao se i. -havam, sentiram muito prazer ouvindo estas palavras, e desejaria iei-as praticadas por todos os christaos, porque entao a oci >sidade, mae de todos os vicios, nao eslaria em Franpa, como actualmente se ve. 0 officio de carpinteiro nao lhes e muito difficil, porque os vi fazendo suas casas, e as dos Francezes, assenlando seo machado, e repelindo o golpe no mesmo lugar, quatro ou cinco vezes, com tanta firmeza, como faria qualquer car- pinteiro bem habit. A arte de marcineria lhes 6 facii, porque com suas fouces aplainam urn pedapo de pau, tao liso e tao igual, como se tivesse passado o raspador por cima d’elle. Com o auxilio de suas facas somente, fazem macaquinhos o outras figuras de madeira. Nao precisam de serra, e nem de outro qualquer instru- mento para fazer seos arcos, remos e espada de guerra, pois basta-lhes uma simples machadinha. Cavam, arranjam suas canoas. o dao-lbes a forma, que lhes apraz. Brevemente tractarei de outros officios, nos quaes os vi trabalbar com tal industria a ponto de parecer-me que, com pouco tempo de ensino, chegaram a perfeipao. Alem d’islo fazem muito bem vestidos, cubertas de cama, sobre-ceos, sanefas e cortinados de cama, pennas de diver- sas cores, que por sua perfeipao se pensa terem vindo de f6ra.63 Nao fallarei da propeosao natural, que eJles tern para pin- tar, fazer diversas folhageus, e figuras, servindo-se ap^nas de uma pequena lasca de pau, ou ponteiro, ao passo que os nossos pintores necessitam de tantos pinceis, compassos, re- goas, e Japis. n a H fV"TV’ Quanto s§o aptos os selvagens para aprenderem sciencias e virtudes. Quando regressei das Indias para a Franga, pelas frequen- quentes e constantes perguntas, feitas pelas pessoas, que me vinham visitar, reconheci quanto e diflicil acreditarem os Francezes, que os selvagens sejam aptos para aprende- rem sciencia e virtude, e nao sei se alguns chogam a ponto de julgar estes povos antes do genero dos macacos, do que dos home ns. Em quanto a mim elles sao homens, e provarei. e por tanto capazes de obterem sciencia e virtude. Seneca na sua epistola 110 disse «Omnibus natura dedit fundamenta semenque virtutum.» A natura deo a tod as as creaturas, sem excepcao de uma so, as raizes e as semen- tes das virtudes,» paiavras mui notaveis: assim como as rai- zes e as sementes sao lanpadas na terra e por conseguinte enterradas em suas entranhas, assim tambem Deos langou naturalmente no espirito do homem as raizes e as sementes da virtude: com taes alicerces pode o homem, ajudado por Deos, ediflcar um predio, e extrahir da serriente uma bella arvore earregada de Acres e de fructos, doutrina esta muito64 bem provada por S. Joao Chrisostomo, na Homilia 55, ao povo do Antiochia, e na Homilia 15 a respeito da Epistola ta a Thimotheo moralisando esta passagem do Genesis:— Germinet terra, herbam virentem, e omne lignum pomife- rumy *«produsa a terra herva verdejante ou arvore fructi- fera:» acrescentou ainda—Die ut producat ipse terra fruc~ turn proprium el exibit quiequid fa-cere veils, «dize e or- dena a tua propria terra, que prqduza seo'fruclo natural, e veras ella produzir logo o que pedires.» Sao Bernardo, no Tractado da vida solitaria, dis^e—virtus vis est queedam ex natura, «a virtude e irnia certa forga, que sahe da natureza.» Se assim nao for, quero provar por muitos exempios, comegando peias sciencias, para cujo ensino concorrern as ires faculdades da alma—vontade, intelligencia, e rnemoria: a vontade da ao hornem o desejo de aprender, e por ella vencemos toda a sorte de.trabalhos e dilficuldades: a intel- ligencia da vivacidade para comprehender, e a memoria guarda e conserva o que conheceo e aprendeo. Sao mui curiosos os selvagens de saber novidades e para satisfazer tal desejo, os camintios e a distaneia das terras, por maiores, que sejam, lhes parecem curtos, nao sentem a fome, porque passam, e os trabalhos como que sao dese.an- go para elles: prestam-vos toda a sua altengao, escutam o que disserdes durante o tempo que vos parecer, sera. enfa- do e em silencio, a respeito de Deos, ou de qualquer as- sumpta, e se tiverdes paciencia, elles vos farao milbares de> perguntas. Lembra-me, que entre as praticas, que eu lhes fazia ordi- nariamente por interrnedio do meo interprete, eu lhes disse que apenas chegassem de Franga os Padres, elles manda- riam edificar casas de pedra ou de madeira, onde seriam recolbidos sees filhos, aos quaes os Padres ensinariam tudo o que sabem os Caraibas. Responderam-me: oh! quanto sao felizes nossos filhos por aprenderern tao bellas coisas, oh! quanto fomos infejizes nbs65 e os nossos antepassados por nao haverem Principaes n’esse tempo. E viva sua iatelligencia como reconhecereis pelo seguinte facto. Nao ha estrellas no Ceo, que elles nao conhepam e calcu- 'lara pouco mais ou menos a vinda das chuvas e as outras estapoes do anno. Pela phisionomia distinguem um Francez de uni Portu- guez, um Tapuyo de um Tupinamba, e assim por diante. Nada fazem antes de pensar, e pezam em seu juiso uma coisa antes de emittir sua opiniao. Ficam series e pensali- vos, porem nao se precipitam em fallar. Mas, dizeis vos, como e possivel que estas pessoas tenbam tal juiso fazendo o que fazem ? Porque elles dao por uma faca cera escudos de ambar gris, ou qualquer outra coisa, que apreciamos, como sejam: ouro, prata e pedras preciosas. Eu vos direi a opiniao que elles fazem de nos, muito con- traria n’este ponto: julgam-nos loucos e pouco judiciosos em apreciar mais as coisas, que nao servem para o sustento da vida do que aquellas, que nos proporcionam o viver com- modamente. Na verdade, quern deixara de confessar, ser uma faca mais necessaria a vida do homem, do que um diamante de cem mil escudos, comparando um objecto com outro, e pon- do de parte, a estima que se Ihe da? Para provar que nao lhes falta juiso afim de avaliar a es- tima que fazem os Francezes das coisas existenles em sua terra, basta dizer, que elles sabem altear muito o prepo das coisas, que julgam ser apreciadas pelos francezes. Um dia disseram-me aiguns, que era preciso haver muita falta de madeira em Franpa, e que experimentassemos muito frio para mandarmos navios de tao longe, a merce de tantos perigos, carregarem de paus. 36 Respondi-lhes que nao era para queimar e sim para tingir de cores. lii66 Heplicaram-me: porque nos compraes o que cresce em nosso paiz a troco de vestidos vermelhos, amarellos e verr de-gaios? Eu os satisfiz dizendo ser necessario misturar ou- tras cores com as do sso paiz para tingir panos. Si me disserdes, que elles fazem acpoes inteiramente brutaes, como as de comer seos inimigos, e praticar tudo que os offenda, como seja expol-os em lugares onde ha pio- lhos, vermes, espinhos, etc., eu vos responderei nao provir isto de falta de juiso, porem sim de um erro hereditario, sempre existente entre elles, por pensarem, que sua honra depende de vinganpa: parece-me, que tambem nao 6 des- culpavel o erro dos nossos francezes de se matarem em duello, e comtudo vernos os mais bellos espiritos, e os pri- meiros da nobreza concordarem com este erro, despresando a Lei de Deos, e arriscando a eternidade de sua salvapao. Quanto a memoria elles a possuem muito feliz, porque lembram-se sempre do que viram e ouviram com todas as circumstancias do lugar, do tempo, das pessoas, quando o caso se disse ou se executou, fazendo uraa geographia ou descrippao natural com a ponta de seos dedos na areia, do que estao conlando. 0 que inais me admirou foi vel-os narrar tudo quanto se ha passado desde tempos immemoriaes, somente por tradi- cpao, porque tem por costume os velhos contar diante dos mopos quern foram seos avos e antepassados, e o que se passou no tempo d’elles: fazem isto na casa grande, algu- mas vezes nas suas residencias particulares, acordando mui- to cedo, e convidando gente para ouvil-os, e o mesmo fa- zem quando se vesitam, porque abrapando-se com amisade, e chorando, contam um ao outro, palavra por palavra quem foram seos avos e ante-passados, e o que se passou no tem- po em que viveram.67 3APITULQ XX Continuagao do objecto antecedente. Concorde que sejam estes povos inclinados pela naturesa a muitos vicios, porem e necessario lembrar-nos, que elles sao captives por infidelidade d’estes espiritos rebeldes a Lei de Dees, e instigadores da sua transgressao. Sao Joao na sua Epistola l.a chama iniquidade ou des- igualdade o desvio ou a digressao do direito, come muito bem explica o texto tirego * , assim traduzido Peccatum est exorbitatio d lege. Esta Lei 6 divina ou humana: aquella dada por escripto a Moysds, e depois por Jesus Christo aos christaos, e esta acha-se gravada no intimo d’alma. Transgredindo-se estas duas Leis commettem-se dois pec- cados, uni contra os mandamentos de Deos, e outro contra a lei natural: por elles serao accusados e condemnados os incredulos, cada urn de per si, alem do peccado commum da infidelidade. Entre todos os vicios a qne estao sugeitos estes barbaros, sobresahe a vinganpa, que nunca perdoam, e a praticam logo que podem, embora as boas apparencias com que tratarn seos inimigos reconciliados. Nao ha a menor duvida que retirando-se os francezes do * Maranhao, todas as napoes, antes inimigas, que ahi residem promiscuamente, por lerem a nossa allianpa, devorar-se-hao umas as outras, embora, o que 6 para admirar, vivam ago- ra muito bem sob o dominio dos francezes, e ate contrahin- do-se casamentos entre ellas. Gostam tanto de vinho a ponto de ser considerada a em- briaguez por elles, e ate mesmoj)elas mulheres, como uma grande honra. * Por falta de typos proprios deixamos em claro este espaco. Do Traductor.G8 Sao impudicos extraordinariamenle, mais as raparigas do que qualquer outros inventores; de noticias falsas, nienti- rosos, levianos e iaconstantes, vicjos mui communs a todos os incredulos, e por ultimo sao extreraamente preguiposos a pouto de nao quererem trabalhar, embora vivam na miseria, antes do que na opulencia por meio do trabalho. Se elles quizessem, nao era necessario muito cansapo para terem em poucas boras muita carne e peixe. 0 que acabo de dizer, refere-se especialmente aos Tu- pinambds, porque as outras napoes, como sejam os Taba- jares, Cabellos-compridos, Tremembes, Canibaes, Pacajares, Camarapins, e Pinarienses, e outros trabalham muito para viver, ajuntar generos, ter boa casa, e todas as commodi- dades. Vou dar-vos urn exemplo bem notavel da preguipa dos nossos Tupinambds. Obtendo alguns Francezes do Forte licenpa para irem pas- sear as aldeias, foram a do chefe Vsaap. Na entrada da primeira cboupana encontraram urn grande fumeiro cheio de capa, e ao lado d’elle urn indio, dono da casa, deitado n’uma rede de algodao, que gemia muito como se estivesse bastante doenle. Os nossos Francezes alegres e promptos a festejarem esta mesa tao bem preparada, lhe perguntaram com brandura e carinho De omano Chetuasap, «esta doente meo compa- dre?» Sim, respondeo elle. Que tendes, replicaram os Fran- , cezes, quern vos fez mal ? Minha mulher, disse elle. Foi para ropa desde pela manha, e eu ainda nao corai. A farinha e a carne esta tao perlo de vos, porque nao vos levantaes, para comer, disseram os francezes ? Sou preguiposo, nao sei ievantar-me. Quereis, tornaram os francezes, que vos leve- raos a farinha e a carne, comeremos comvosco ? Quero, respondeo elle logo. Comeparam todos a aliviar o fumeiro, pozeram tudo di- ante d’elle, e assentando-se em roda, como e de costume, excitaram-lhe o apetite pela boa vontade que mostravam, e69 o trabaiho, que elles tiverara Ue tirar a comida de cirna do fumeiro, em dislancia de tres p6s, foi o unico pagamento de tal corapanhia na mesa. Apesar de suas perversas inelinapoes, elles tern outras muito boas, louvaveis e virtuosas. Vivem pacificamente com os outros, dividem com elles o resultado de sua pescaria, capada e lavoura, e nao comem as escondidas. Um dia na aldeia de Januaran s6 tinhain farinha para comer. Appareceu um rapaz Irazendo uma perdiz morta ha pouco; sua mae depennou-a ao fogo, cozinhou-a, deitou-a n’um pilao, reduzio-a a pd, e juntando-lbe follias de man- dioca, cujo goslo 6 similhante ao da chicoria selvagem, fez ferver tudo, e depois de bem picado ou corlado em peda- cinhos, d’esta mistura fez pequenos bolos, do tamanho de uma balla, e mandou distribuil-os pela aldeia, um para cada choupana. Vi ainda uma coisa mais admiravel, embora comesinha, e sem consequencia. Appareceram em minha casa muitos selvagens esfaimados. vindos da pescaria, onde somente apanharam um carangueijo, que assaram sobre carvoes, e pedindo-me farinha, o come- ram todos, fazendo roda, cada um o seo pedacinho: eram doze ou treze. Bem podeis iraaginar o que toearia a cada um, sendo o carangueijo do tamanho de um ovo de galinha. muito grande a liberalidade entre elles, e desconhecida a avaresa. Si algum delies tiver desejos de possuir uma coisa, que perlenpa a outro, elle o diz francamente, e e precise que o objecto seja muito estimado para nao ser dado logo, embora o que a pedio fique na obrigapao de dar ao oulijo tambem o que elle desejar. Tornam-se mais liberaes para com os eslrangeiros do quo para com sees patricios.70 Ficain reduzidos a pobresa com tan lo quc bem hospedem os estrangeiros, que vao visilal-os, julgando-se bem recom- pensados com a fama de liberaes, espalhada pelos que nao sao de sua terra, e julgam chegar ella at6 aos paizes estran- geiros, undo serao tides por grandes e ricos. Com taes ideias muilas vezes vao fazer visitas a cem, du- zentas e l resen (as legoas atirn de serem apreciados por suas liberaiidades. Nunca roubarn uns aos outros; o que possuern esta a vista, pendurado nas vigas e barrotes de suas casas. E bem verdade, que dentro da Ilha actualmente, era Ta- puytapera, e Coma, dies tern cofres, que (ties deram os Francezes, onde guardam o quo tern de meihor, e, ou exci- lados por isle, ou pelo exemplo dos Francezes, muitos cl'ci- tes ja aprenderam a arte de furtar. Elies charnam furtar—Mondd, ao ladrao Monday on, e este nome e enlre eiles grande injuria a ponto de rnudatem de cor quando o pronunciam: chamar lima mulher ladra, e duas vezes prostituta, com o nome de Menondere para dif- ference de prostituta simples—Patakuerc, e aquelle primeiro t nilheto o mais afrontoso, que se Ihe pode dizer. iomareis uma boa vinganpa chamando-os Iadroes, quando dies vos atirarem ao rosto um bem claro, e expressivo Gi- riragoy, que quer dizer mentiste, sem exceptuar pessoa al- guma, e por islo bem podeis avaliar quanto este vic-io e detestado por elles, pois nao podem lolerar a injuria. Guardam reciproca equidade, nao se enganam nem se illudem: si um olTende a outre, segue-se logo a pena de Talido: sao mui tolerantes. respeitam-se reciprocamente. especialmente os veibos. Sao muito soffredores ein suas rniserias e fome cbegando ale a comer terra,37 ao que acoslurnam sees (tlhos, o que vi muitas vezes. Vi muitos meriinos tendo nas maos uma bolla de terra, que ha era sua aideia corno terra su/illada, a qual apreciam71 e comem corno fazem as crianpas. era Franpa com as ma~ pans. as peras, e outros fructos qae se Hies da. Nao se esmeram no prepare da comida, como n6s, pur que ou a cozinham ao fogo, on a fazem ferver n’uma pa- nella sem sal, ou assam-n’a no fumeiro. n a "nrrnryr pr LiJuiLi Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, obser- vada inviolavelmente pela mocidade. 0 que mais me impressionou e admirou durante os dois annos, que estive entre os selvagens, foi a ordem e respeito observado inviolavelmente pelos mogos para com os seos parentes mais velhos, ou entre elles, fazendo cada urn o que permitte a sua idade sem cuidar do que se aeha no mais alto ou no menor grau. Ninguem deixara de admirar-se commigo vendo a natu- resa somente ter n’estes barbaros o poder de fazel-os guar- dar o respeito, que os meninos devem a seos maiores, e fazer conter a estes no que e exigido pela diversidade das idades. Quern nao se hade adrnirar vendo a naturesa somente ter mais forpa para fazer observar estas coisas, do que a Lei e a grapa de Jesus-Ghristo sobre os Christaos, entre os quars raras vezes se contem a mocidade nos seos deveres, apesar de todos os bons ensinos, mestres e pedagogos, apparocendo sempre confusao e grande presumppao. Muito p^aser terei si o caso seguinte nos der algum r medio.72 Distinguem os selvagens suas idades por cerlos graus, e cada grau lem no frontespicio de sua enlrada, seu nome proprio, que ensina ao que pretende entrar em seo palacio os sees jardins e alamedas, a sua oceupapao, e isto por enigmas, como erarn outr’ora os Hierogliphos dos Egypcios. 0 primeiro grau e destinado as crianpas do sexo mascu- lino e legitimes e dao-lhe em sua lingua o nome de Peitan, isto e, «menino sahindo do ventre de sua mae.» A este primeiro grau da idade do menino e inteiramente cheio de ignorancia, de fraqueza e de lagrimas, base de to- dos os outros graus. A natureza, boa mae d’estes selvagens, quiz que o ine- nino sahindo do ventre de sua mae, se achasse em estado de receber em si as primeiras sementes do natural commum d’estes selvagens, porque naoe afagado, pensado, aquecido, bem nutrido, bem tratado, nem confiado aos cuidados de alguma ama, e sim apenas lavado em algum riacho ou n’al- guma vasilha com agua, deitado n’uraa redezinha de algo- dao, com todos os seos membros em plena liberdade, nus inteiramente, tendo por unico alimenlo o leite de sua mae, e g:uos de milho assados, mastigados por ella ate flcarem reduzidos a farinha, amassados com saliva em forma de caldo, e postos em sua boquinha como costuinam a fazer os passaros com a sua prole, isto e, passando de bocca para boeca. E bem verdade, que quando o menino 6 urn pouco forte, por conhecimento e inclinapao natural, ri-se, brinca e salla, nos brapos de sua mae, pensando estar mastigando sua co- mida, levando seo bracinho a bocca d’ella, recebendo no cou- cavo de sua maosinha este repasto natural, que leva a bocca e come: quando se sente farto, bota fora o resto, e virando a cara, e batendo com as maos na bocca da mae, Ihe da a entender quo nao quer mais. Obedece a mae promptamente nao forpando seo apelite e nem llte dando occasiao de chorar.73 Si o menino tern st$de, por geslos sabe pedir o peito de sua mae. Em tao tenra idade mostram o respeilo e o dever, que a natureza lhes da, porque nao sao gritadores, comtanto que vejam suas maes, e fleam no lugar onde os deixam. Quando vao trabalbar nas ropas ellas as assentam nuasi- nhas na areia ou na terra, onde fleam caladinhas, ainda que o ardor do sol lhes de no roslo ou no corpo. Quai seria de nos, que hoje poderia viver soffrendona pri- meira idade tantos encommodos ? Esperam os nossos paes a relribuipao e dever, que prin- cipiamos a pagar-lhes desde a primeira idade, si nao estao cegos pelo amor que nos tern; o mesmo devem esperar nas outras idades, sendo mais reconhecidos os nossos deveres para com dies, custe o que custar-nos. Comepa a seguoda idade, quando o menino anima-se a andar sosinho, e apezar de haver alguma confusao da-se-lhe o mesmo nome. Observei differenpa na maneira de criar os meninos, que nao sabem andar, e os que se esforpam para o fazer, o que nos leva a formar outra classe, e dar-lhe nome proprio: chama-se Kmiumy-miry, <(rapazinho» 38 e abrange ale 7 a 8 annos. Durante este tempo nao se separam de suas maes, e nem acoropanham seos Paes, e o que e mais, deixam-nos mainar at6 que por si mesmo aborrepam o peito, habiluando-se pouco a pouco as comidas grosseiras como os grandes e adultos. Dao lhes pequenos arcos e flexas proporcionaes as suas forpas, reunindo-se uns aos outros plantam e juntam algu^ mas cabapas, nas quaes fazem alvo para o tiro das suas fle- chas adextrando assim bem cedo seos brapos. Nao apoitam, e nem castigam seos fllhos, que obedecem a seos paes e respeitam os mais velhos E muito agradavel esla idade dos meninos, e n’ella pode- reisr descobrir a differenpa existente entre nos pela natnresa its74 e pela grapa: sem fazer comparapao, achu-os mimosos, do- ceis e affaveis corao os meninos francezes, nao esquecendo antes tornando bem saliente a grapa do Espirito Santo con- cedida pelo baptismo aos filhos dos Christaos. Si acontece morrerem os meninos n’esta idade, tern-os paes pesar profundo, e sera pro se recordam d’elles, espeei- almente nas cerimonias de lagrimas e lamenlapoes, reeorda- poes que fazem uns aos outros, lastimando esta perda e a morte dos seos filhinhos, dando-lhes o nome de Ykunumir- mee-seon «o menino raorto na infancia.» Vi maes, quase loucas, no meio de snas ropas, ou nas niatas sosinhas, era pe ou agachadas, chorando amargamente, e quando lhes perguntava para que faziam isto, respoudiam- me «0b! recordo-me da morte de meos filhinhos, Che Ku- numirmee-seon, (cainda na infancia» e depois continuavam a cborar e muito. E na verdade mui natural o ter pesar da perda e morte d’estes meninos, que ja haviam custado tantos trabalhos a ^ seos paes, e que estavam na edade de dardhes alguma ale- gria. Acha-se a terceira classe entre estas duas priraeiras— infancia e puericia, e as da adolescencia e virilidade, en- tre os 8 a 15 annos, a que cbaraaraos mocidade: appel- lidam-nos os selvagens simplesmento por Knnumy sendo a infancia chamada Kunumy-miry} e a adolescenpia Kimumy- uacu. * Estes Kunumys, ou rapazes, na idade do 8 a 15 annos, nao ficarn mais em casa e nem ao redor de sua mae, e sim acompanham seos paes, tomam parte no trabalbo d’elles imitando o que veem fazer: empregam-se em busear comida para a familia, vao as matas capar aves, e ao mar flecbar peixes e admira ver a industria com que flecham as vezes tres a Ires peixes juntos, ou agarram em linha feita de tucu ou em pussars, especie de rede de pescar, que enchem de ostras e outros mariscos, e ievam para casa. Nao se lhes manda fazer isto. porerri elles o fazem por instincto proprio,como dever tie sua idade, e ja teilo lambent per sees ante- passados. Este trabalho e exercicio mais agradavel du que penoso, e proportional a sua idade, os isenla do audios vicios, aos quaes a naturesa corrompida costuma a preslar attenpao, e a ter predileccao por elles. Eis a razao porque se facilita a moeidade diversos exer- cicios liberaes e mecanicos, para distrahil-a e desvial-a da ma incliaapao de cad a um, reforpada pelo ocio mormcnle n’aquella idade. A quarta classe e para os que os selvageus charnarn Kto- numy-uacu, «mancebos»: abrange a idade de 15 a 25 an- nos, por nos chamada «adolescencia.» Tem outro modo de vida, entregam-se com lodo o esfor- po ao trabalho, acostumarn se a re mar, e por isso sao esco- Ihidos para tripularem as canbas quando vao a guerra. Applicam-se especialmente a fazer flexas para a guerra, a caparem corn cans, a flechar e arpoar peixes grandes, nao usam ainda de Karac6h.es, isto e, de um pedapo de pane atado na frente para eucobrir suas vergonhas, como fazern os homeus casados. e sim de uma foSha de Palmeira. Tern o poder de dividir o que possuem com os mais ve- llios, reunidos na Casa-grande, onde conversam, e servem tambem os mais velhos. E n’este tempo, diga-se a verdade, que elles mais ajudam a sees paes e maes, trabalhando, pescando e caeando, an- tes de se casarem, e portanto sem obrigapao de susteutarem mulher: eis porque sentem muito seos paes quando elles morrera n’esla idade, dando-lhes em signal de sua dor o uome de Ykunimiy-uaeU’Vemee-seQn, que quer dizer «o man- cebo morto) ou «o mancebo morto na sua adofeseencia.» Abrauge a quinta classe desde 25 at6 40 an nos, e se cha- ma Aua o individuo n’ella comprehendido, vocabulo aplica- do a todas as idades, assim como usamos com o nome ho- mem.76 Apesar d’isto deve ser privative d’esta idade, assim como o homem e pelos Latinos chamado vir, d virtute, e em Francez idade viril, de virilidade, quer dizer—a forpa, que no homem chegou a seu termo: n’esta mesma lingua de sel- vagens a palavra Aua, de que precede Auate, quer dizer «forte, robusto, valente,audacioso», para significar a 5a idade dos seos filhos. N’essa occasiao como guerreiros sao bous para combater, nunea porem para commandar: buscani casar-se, o que nao 6 difficil por consistir o enxoval da noiva apenas de algu- mas cabapas, que lhes da sua mao para principiar sua casa, vestidos, e roupas, ao conlrario em nosso paiz as maes for- necem enfeites e pedras brancas a suas filhas. Os paes dao por dote aos maridos de suas filhas 30 ou 40 tores de pau de tamanho proprio a poderem ser levados a casa do noivo, os quaes servem para com elles se accender o fogo das bodas: o individuo casado de novo nao se chama Aw, e sim Mendar-amo. Embora sejam casados o homem e a mulber nao fleam li- vres da obrigapao natural de protegee seos paes e ajudal-os a fazer suas ropas. Soube d’isto em minha casa, vendo a filha de Japy-acu, baptisada e casada a face da Igreja, dizer a urn outre sel- vagem, seo marido, tambem christao, quando pretendia ir a Tapuitapera ajudar o Rvd. Padre Arsenio no baptismo de muilos selvagens, «Onde queres ir ? Tu bem sabes que ain- da nao se fizeram as ropas de meo Pae, e que ha falta de mantimentos: nao sabes, que si elle me deo a ti foi com a obrigapao de o auxiliares na velhice ? Si queres abandonal-o entao volto para a casa d’elle.» Adverliram-na a respeito d’eslas ultimas palavras, fazen- do-a reconhecer o juramento que dera, de nunca abando- nal-o ou separar-se d’elle, louvando-se comtudo muito os outros sentimentos, que manifestou a favor de seo Pae, e praza a Deos que todos os christaos a imitassem dando ver-dadeira inlelligencia a estas palavras formaos do casa- mento que o homem e a mulher deixaram seos paes para viverem juntos—porque de outra form a seria Deos autho- risar a ingratidao dos filbos casados sob pretexto de terera flihos, ou poder tel-os e precisar cuidar do seo sustento, quando ao contrario Deos condemna, eomo reprobo, o que abandona seos paes, sem os quaes, nao fallando na von- tade de Deos, nao viriam ao mundo nem elies, e nem seos (ilhos, embora por essas palavras mostre a grande uniao, que pelo casaraento se faz entre o corpo e o espirito dos casados. Comprehende a 6a classe os annos de 40 ate a morle: 6 a mais honrosa de todas, e cercada de respeito e venerapao, os soldados valentes, e os capitaes prudentes. Assim como o mez da a colheita dos trabalbos e a re- compensa da paciencia, com que o lavrador supportou o in- verno e a primavera, lavrando com a sua charrua o campo em todos os sentidos, sem ser ajudado pela terra, assim lambem quando chega a estapao da velhice sao honrados pelos que lem menos idade. 0 que occupa esta classe chama-se Tliuyuae, quer dizer, «anciao ou velho.» Nao pdde, como os outros, ser assiduo ao trabalho: tra- balba quando quer, e bem a sua vontade, mais para exem- plo da mocidade, respeilando tradicpoes da sua Napao, do que por necessidade: e ouvido com todo o silencio na casa- grcmde, falla grave e pausadamente usando de gestos, que bem explicam o que elle quer dizer e o sentimeuio, com que falla. . Todos lhe respondem com brandura e respeito, e ouvem- nos os mancebos com attenpao: quando vae a festa das Cauinagens e o primeiro, que se assenta e e servido; entre as mopas, que distribuem o vinho pelos convidados, as de mais considerapao o servem, e sao as parentas mais pro- ximas do que fez o convite.No moio das danpas ontoam os cantos; dam* ihe a nota, principiando pel a mais baixa ale a mais grave, crescendo gradualmente ate chegar a forpa da nossa musica. Suas mulheres cuidam n’elles, lavam-lhes os pes, aprom- ptam e trazem-lhe a comida, e se ha alguma difflculdade na carne, no peixe ou nos mariscos, ellas a dram, accornmo- dando-a as suas forpas. Quando morrem alguns d’elles os velhos Ihe prestam hon- ras, e o choram como as mulheres, e Ihe dam o neme do thuy-uae-pee-secm: quando morrem na gu'erra, chamamno marate-kucipee-seon, ccvelho morto no meio das armas», o que ennobrece lanto seos lilhos e parentes, como entre nos qualquer velho Coronel, que occupou sua vida inteira no servipo do exercito pelo Rei e pela Patria, e que por corfla de gloria morreo com as armas na mao, com a frenfce para os inimigos, no meio de renhido combate, coisa nunca es- quecida por seos filhos antes considerada como grande he- ranpa, e de que se aproveifam apresentandoos ao Principe como bons servipos de seo Pae, e pedindo por elles uma rocompensa. Nao fazendo estes selvagens caso algum de recompensas humanas, porem empenhando todas as suas forpas para con- seguirem essas honras, provam com isto o quanto apreciam nao so os actos de heroismo de seos paes, mas tambem a serein estimados por causa d’elles. Os que morrem nos seos leilos nao deixam de ser hon- rados, conforme o seo merito, e chamam-no theon-suyee- seon, «o bom velho que morreo na cama». Por isto podeis avaliar como a! naturesa por si so nos en- sina a respeitar, a ajudar, e a soccorrer os velhos e ancioes e a refrear com violencia a temeridade e presumppao dos mopos, que sem preverem o futuro, nao se recordam de que na sua velhiee, se Ihes fara justamente o que elles, quando jovens, fizeram aos mais velhos, dando esse exemplo a seos filhos, e ensinando-os a serem fngratos.79 *"» A #DTrT*TTT O 'U**v*rr nJL *rw^lx A niesma ordem e respeito e observada entre as raparigas e as mulheres. Encontram-se n’estes selvagens vesligios da naturesa, como as pedras preciosas se acham nas encostas das montanhas. Seria am louco o que quizesse encontrar em seos jazigos os diamantes tao claros e brilhantes, como quando lapidados e engastados n’um anel. Provem esta differenga de se acharem tao ricas pedras cubertas de jaga sem mostrar o seo valor de tal sorte, que muitos passam e tornam a passar por cima d’ellas sem le- vantal-as visto nao as conhecerem. Acontece a mesma coisa na conversagao d’estes pobres selvagens: muilos ignoram e ignor;arao ainda o que tenho narrado e narrarei, e embora tenham conversado com eiles por muilo tempo, por faita de conhecimento ou de obser- vagao da boa conducta natural d’estas pessoas fora da graga de Deos, passaram por elias, a similhanga das pedras pre- ciosas, sem tirar o menor proveito, e olhando-as com indif- ferenga. A mesma ordem de classes de idade tenho observado en- tre as raparigas e as mulheres, como entre os homens. A primeira c-lasse- e commum a ambos os sexos, cujos in- dividuos, sahindo iramediatamente do ventre de suas rnaes, se chama Peitan} como ja dissemos no art. antecedente. A segunda classe estabelece distincgao de idade, de sexo, e de dever: d’idade de moga para moga, de sexo de moga para rapaz, e de dever de mais moga para mais velha. Comprehende esta classe os sete primeiros annos, e a rapariga d’esse tempo se chama kugnantin-myri, quer dizer rapariguinha. . Reside com sua mae, mama mais um anno do que os ra- pazes, e vi meninas com seis annos d’idade ainda mamando, embora comam bern, fallem, e corram como as outras.80 Em quanlo os rapazes d’esta idade carregam arcos e fle- xas, as raparigas se empregam em ajudar suas maes, fiando algodao como podem, e fazeudo uma especie de redesinha como costumam par brinquedo, e amassando o barro com que imitam as mais habeis no fabrico de potes e panellas. Expliquemos o amor, que o pae e a mae dedicam a seos fithos e filhas. Pae e mae consagram todo o seo amor aos filhos, e as raparigas apenas accidentalmente, e n’isto acho-lhes mao natural, nossa luz commum, a qual nos torna mais affei- coados aos filhos do que as filbas, porque aquelles conser- vam o tronco e estas o despedacam. Abrange a terceira classe desde 7 atd 15 annos, e a moga n’esta idade se cbama kugnantin, «raparlga»: n’este tempo ordinariamente perdem, por suas loucas phantasias, o que este sexo tern de mais charo, e sem o que nao podem ser estimadas nem diante de Deos, nem dos homens; perdoem- me se digo, que n’esta idade nao sao prudentes, erobora a honra e a lei de Deos as convidasse a immortalidade da candura, porque estas pobres raparigas selvageus pensam, e muito mal, aconselhadas pela aulor de todas as desgragas, que nao devem ser mais puras quando chega esse tempo. Nada mais direi para nao offender o leitor: basta tocar ape- nas o fio do meo discurso. N'essa idade aprendem todos os deveres de uma mulher: fiam algodao, tecem redes, trabalham em embiras, seineam e planlao nas rogas, fabricam farinha, fazem vinhos, pre- param a comida, guardam completo silencio quando se acham em quaesquer reunioes onde ha homens, e em geral fallam pouco se nao estao com oulras da mesma idade. A quarla classe esla entre 15 a 25 annos, e araparigan’ella comprehendida chama-se kuynammucu, «moga ou mulher completa», o que nos dizemos por «moga boa para casaF.» Passaremos em silencio o abuso, que se pralica n’estes annos, devido aos enganos de sua Nagao, reputados como lei por elles.81 Sjio ellas, qpe cqidapi da casa a|Uivjando spas mats, e tra^aQjdQ das coisas necessarias a vida da familiar cedo sao pedfdas em casamento, si seos pties nao as destinam para ajgpifl frapcez apm de terem muitos geperos, e no caso cqptyacia sap cppcedidas, e eptaq se phamam ktignammucu- poare,39 njplher casada, ou no vigor da idade.» P’ajii ep) diante acqmpanha seo marido carregando na cflpesa ft as costas todps os ptencjiios necessaries ao pre- p^|-o da coinida. as vezes a propria cpraida, ou os viveres necessarios a jorpada, como fazem ps burros de carga com a b^gpgem e alimentacao dos seos senhores. $ Qccajsiap de djzer, que ambiciosos como os grandes da ljtyyflRa, qpe desejam ostentar sua grppdesa apresentapdo grande numero de bprros, estes selvagens tambem desejam ter tpuitps mulheres paya acompanhal-os, e levar suas ba- gpgeps, Ktonnenle bavepdo entre dies o costume de serem estiiaados e apreciados pelo grande numero de mulheres a $eo caygd. Quando gravidas, apos o casamento, sao chamadas purua- bo$e, «mulher prenhe», e apezar d'este eslado nao deixam dp trabalhar atp a bora do parto, eppio si nada tivessem. Apyeseutym grande volume, porque ordinariamente parem meninos grandes e corpolentos. Talvez se pense que n’este estado cuidam ellas em cobrir sua nudez, porem nao sofl'rem a menor alterapao o seo modo de viver. Chegado o tempo do parto, si assirn se p6de chamar, nao procura para esse fim a cama, si as dores nao sao forces: em qualquer dos casos seata-se, e rodeada por suas vysinbas convidadas para pssislil-as, pouco antes do appa- recimento das dores, por meio d’estas palavras chemen- bviirare-kuritim «eu vou ja parir, ou estou quase a parir»: cprre. velpz o bpato de casa era casa, que tai e lai mulher v_a,e parir, dizendo com o nome proprio da parturiente estas palft^ytts ymen-buirare, que significa «tal mulher pario, ou esta pjjra, parir.» 4782 Acha-se ahi o marido com.as visinhas, e si ha demora no parto, elle aperta-Ihe o ventre para fazer sahir o me- nino, o que acontecido, deita-se para observar o resguardo cm lugar de sua inulher,40 a qual continua a fazer o ser- vipo do costume, e entao e vesitado em sua cama por to- das as mulheres da aldeia, que lhe dirigem palavras cheias de consolapao pelo trabalho e dor, que teve de fazer o me- nino, sendo tratado como gravemente doente e muito can- pado, a maneira do que se pratica em identicas circumstan- cias com as mulheres de paizes civilisados. Comprehende a quinta classe desde 25 ate 40 anntis, quando o homem e a mulher attingem ao se6 maior vigor. Dam-lhe geral e commummente o nome de kugnan, «uma mulher, ou uma mulher em todo o seo vigor». N’essa idade conservam ainda as indias alguns trapos de sua mocidade, e principiam a declinar sensivelmente, sendo feias e porcas, trazendo as mamas pendenles a similhanpa dos caes oe capa, o que causa horror: quando jovens, sao bonitas e asseiadas, e tern os peitos em pe. Nao quero demorar-me muito n’esta materia, e concluo dizendo, que a recompensa dada n’este mundo a puresa 6 a incorruptibilidade e inteiresa acompanhada de bom cheiro, mui bem representada nas letras santas pela flor do lyrio puro, inteiro e cheiroso—sicut lilium inter spinas, sic arnia mea inter fdias. A sexta e ultima classe esta entre os 40 annos e o resto da vida, e entao a mulher se chama Uainuy: n’este tempo ainda parem. Gosam do privilegio da mae de familia: presidem ao fa- brico dos cauins, e de todas as outras bebidas fermen- tadas. Occupam lugar distincto na casa-grande quando ahi vao as mulheres conversar, e quando ainda se achava em pleno vigor o poder de comerem os escravos, eram ellas as incum- bidas de assar bem o corpo d’elles, de guardar a gordura* que nao queriam, para fazer o mingau, de cozinhar as tri-pas, e outros inlestinos em grandes panellas de barro, de n’ellas misturar farinha e couves, e dividil-as depois por es- cudellas de pau, que raandavam distribuir pelas raparigas. Dam principio as lagrymas e lamentos pelos defunelos, on pel& boa chegada de suas amigas. Ensinam as mopas o que aprenderam. Usam de mas palavras, e sao mais descaradas do que as raparigas e as mopas, e nem me atrevo a dizer o que ellas sao, o que vi e observei, sendo tambem verdade que vi e conheci muitas boas, honestas e caridosas. Existiam no Forte de Sao Luiz duas boas mulheres Ta- bajares, que nao se cansavam de l;razer-me presentesinhos, e quando me os offereciam, sempre choravam e desculpa- vam-se de nao poderem dar melhores. Nao espero muito d’estas velhas: e o superior nada tem a fazer senao esperar que a morte o livre d’ellas: quando morrem nao sao muito ehoradas e nem lamentadas, porque os'selvagens gostam muito de ter mulheres mopas. Os selvagens creem supersticiosamente terem as mulhe- res, depois de mortas, muita difficuldade de deparar com o lugar onde, alem das montanhas, danpam seos ante-passa- dos, e que muitas fleam pelos caminbos, se e que la che- gam. Nao guardam asseio algum quando atingem a idade da decrepitude, e entre os velhos e velhas nota-se a diffe- renpa de serem os velhos veneraveis e apresentarem gra- vidade e autoridade, e as velhas encolhidas e enrugadas como pergaminho exposto ao fogo: com tudo isto sao res- peitadas por seos maridos e fllhos, especialmente pelas mopas e meninas.84 PA'PTTTTTn PT^TTTT X mi Lji JLt Ld «^<*wJULX Da consaguinidade entre os selvagens. Como entre nos, a consaguinidade entre estes 4>arbaros tem muitos graus e ramos, e se observa entre todas as fa- milias com tanto cuidado como fazemos, excepto porem a castimonia, que tem alguns embarapos entre elies, raeaos no primeiro grau—de pae para filha. Entre os irmaos e irmans nao ha casamentos, mas duvido, e nao sem razao, da regularidade da vida d’elleis, e nem isto merece ser escripto. Biota o primeiro ramo do tronco de seos avos, que elies. chamam Tamoin,41 e debaixo desta denominapao cornpre- hendem todos os seos ante-passados desde Noe at6 o ultimo dos seos avos, e admira como se lembram e contam de avq em avo, seos ante-passados, o que diflicilmente fazemos na Europa podendo remontar-nos, sem esquecer-nos, ate o. ta- lar avo. 0 segundo ramo nasce e cresce do primeiro e cbama-se Time, «pae», e e o que os gera em legitimo casamento, como acontece entre nos, porque para os bastardos ha ou- tra Lei, de que fallarei em lugar proprio. Este ramo paterno da outro, que se chama Taire, «filho», o qual se cbrta e divide-se em diversos galhos, a que cha- mam cheircure, (cmeo irmao mais velho», um dia—a cumi- eira da casa e da familia, e cheubuire, «meo irmaosinho», que so cuidara da casa, si fallecer seo irmao mais velho. Tendo filhos um destes irmaos, qualquer que seja o sexo, deve chamar o irmao de seo pae chetuteure, «meo tio» e sua mulher cheache, «minha tia». Da mesma forma si seo pae liver irmans elle as chama cheache, «minha tia», como tambem os maridos d’estas chetuteure, «meo tio». Os tios e lias chamam os'^ninos de seos irmaos e ir- mans cheyeure «meo sobrinho», e as meninas reindeure ou chereindeure, «minha sobrinha».85 Os filhos de dois irmaos, isto e, de um irmao e os de outra irman se chamam os homens rieure ou cherieure, «meo primo». e as-mopas yeipere ou cheilipere «minha prima.» Quanto a deseendencia do Jado das mulheres, a avo e o Ironco, seja paterna ou materna, e chama-se ariy ou cke- ariy, mintia avo.» A mae e o segundo ramo, e chama-se Ai} «mae». ou cheat, «minhamae». Seguem-se gradualmente a fil-ha, cujo nome e tagyre, filha, ou cheagijre, «minha filha», a irrnan teindure, «irman», ou chereindure, «minha irman», a tia yache, «tia», ou cheache, «minha tia», a sobrinha reindure ou chereindiore, «miuhu sot>rinha», ou «minha pequena irman», modo de fallar en- tre elles, a prima yetipene, «prima», ou cheytipere. «minha prima.» Eis os ramos de consaguinidade entre elles. Para os homens. Avo. Pae. Filho. Irmao. Tio. Sobrinho. Primo. Traduzido em sua lingua e Cheramoin ou tamoin. Tune ou cheru. Tayre ou cheayre. Cheircure ou cheubuvre. Tuteure ou chetuteure. Yeure ou cheyev re. Rieure ou cherieure. Para as mulheres. Avo. Mae.86 Filha. Irman. Tia. Sobrinha. Prima. Em sua linguagem. Ariy on Che Ariy. Ai ou Cheai. Tagyre ou Cheagyre. Theindeure ou Chereindeure. Yache ou Cheache. Reindure ou Ch&reindure. Yetipere ou Che-yetipere. Aiem cTestas consaguinidades existem mais duas por con- tractos de allianpa; uma quando se da sua filha a um iodi- viduo, ou quando se recebe uma mopa para casar-se com seo filho, e outra quando, por contracto d’allianpa com os francezes, lhes dam Suas filbas para concubinas. Aos que dam suas filhas charnam taiuuen «genro», ou Cheraiuuen «meo genro». A mulher de seo filho charnam Tauitateu, «nora», ou Che ra : r;cuy «minha nora». Charnam os Francezes seos alliados por hospitalidade Tu- asapy «compadre» ou che-tuasap. «meo compadre» e as vezes Cheaire, «meo filho,» ou Cheraiuuen. a 'nTniTTT nr VVTTTTT u*ciJrJL <1 u. JUL1 V ULi Do caidado que do seo corpo tem os selvagens. Platao chamava o corpo um privilegio da Naturesa, e Cra- tes, o philosopho, um reino solitario. Mereceriam estas duas sentenpas amplo desenvolvimento, si nao nos occupassemos de uma historia, que exige estylo conciso, sem superfluidade de palavras ou digressoes f6ra de proposito. Applicamos comtudo o dizer d’estes dois philosophos ao nosso assumpto para notar, que tendo a naturesa,' por lon- gos annos, recusado vestidos aos corpos dos indios, os com- pensara formando-os bellos e agradaveis, sem o menor au- xilio de suas maes, que apenas os lavam e carregam como si fosse qualquer pedapo de pau. Assenta-lhes muito bem a opiniao de Crates chamando o corpo um reino solitario e deserlo, porque assim como os animaes do deserto crescem e fleam vigorosos, em quanto residem ahi, isto e, em sua plena liberdade, assim tambem quando sob o dominio do hornern e presos, einbora no Pa- lacio dos Pieis e principes da terra, para serem vistos e ob- servados como novidade, principiam logo a emagrecer, a enlristecer-se, a perder o desejo da propagapao e de conser- vatism da espec-ie, somente por terem perdido a liberdade que outr’ora gosavam no seu reino solitario. Negando a natureza a estes selvagens viveres bem pre- parados, bebidas bem feitas, vestidos pomposos, leitos ma- cios, soberbas casas e palacios, compensou-os porem, dan- do Ihes plena liberdade como aos passarinhos no ar, e as bestas no campo, sem laslimarem-se, como fazem outros quando comparam as pretendidas commodidades d’este Mundo. Se o diabo com o flm de roubar-lhes o bem da salvapao, nao se metesse entreelles, levantando novas discordias aflm de se matarem e comerern reciprocamente, nao haveriampor certo homggs. afcli&es qo iquudo por causa de sua natural franqueza e liberdade, que, adubando as suas carnes as transformam em perfeita e saudavel nutripao, e d’abi provem a beliesa de seos corpos. Espero a ofyjeppao para responder—isto p, de se tej$m visto muitos indios sordidos, e horriveis. Respondo: naa e no rosto, onde se deve observar a forma e a beliesa de um homem, e eis a razao porque Demostenes zombou, qqagdo os em.baixadores de Athenas regressando de sua commj$$ao junto a Philippe, Rei de Macedonia, gabavam muitq a for- mosura (Telle: nap, nao, disse Demostenes, nao e digna de louvor a belleza do rosto de um homem, tao commum entrp os Cortezaos, porem merece encomios a sua estalura, a pro- porcao de seos menibros, e a sua figura e elegancia. Fallo de haver a uaturesa dado ordinariarnente aos selVi- gens, e espeeialmente aos Tupinambds, corpo bem feitQ, hem proportional e elegante, e quando estragam seos rostos por incisoes, fendas, e extravagancias de pinturas e de ossos, o fazem pela ideia erronea, quo tern, de serem por isto re- putj^dos valentes. Tern inuito cuidado na limpesa de seos corpos: lavam-se muiias vezes, e nao se passa um so dia, em que nao dei- tem muita agua sobre si, em que se nao esfreguem com as maos por todos os lad os para tirar o po e outras immun- dicies. Penteiam-se as mulheres muitas vezes. Receiam emrnagrecer, o que chamam em sua linguagem angaiuare, c lastimam-se diante dos seos semelhantes di- zendo Che-angaiuare, «estou‘raagro,» e todos sg comp ad e- cem mormente quando chegam de qualquer viagem abati- dos pelo trabalho: todos o lastimam e o deploram, dizep.dp Deangoiuare seta, wah! quanto esta magro, so tern ossq$,» Eis a causa unica por que nao podiam residir comnpgpp os rapazes baptisados, visto temerem muito as maes, que nao emagrecessem em podpr dos Francezes, os quaes sug- punham ter falta de tudo.97 Nao consenliam que seos maridos trouxessem comsigo os filiios para v<*r os Padres e as Capellas de Deos, senao a forpa, e com vivas, recommendapoes para que voltassera, e quando se iembravam d’elles grande era a sua tristesa, e choravam. Conservei em minha companhia um rapaz de Tapuila- pera chamado Miguel, ja baptisado, e que muilo bem sabia a doulrina christa, aQm de ensinal-a aos meos es- cravos. Residio cornigo por alguns mezes, porem nao poude Bear mais por causa das importunapoes de sua mae, e a dor que mdstrava chorando e lamentando-se constantemente, de ma- neira que veio seo pae de proposito para leval-o, dizendo- Ihe que sua mae o esperava cheia de piedade (modo de fal- lar para mostrar compaixao): veio pedir-me licenpa para o seo regresso chorando por deixar-me (tanlo amam e esli- mam seos paes!), dizendo que sua mae estava magra, e cheia de tristesa por sua ausencia e pensando tambem que elle deflnhava estando comigo, asseverando-me que contaria 4 sua mae o bom tratamento que eu Ihe dava, e a licenpa que lhe concedi de voltar a sua casa. Um de nossos escravos commetteo uma falta, pela qual ia ser castigado: mal soube elle desta resolupao, e quando ia ser preso, disse que estava magro, e que nao o apoitas- sem como si fosse gordo, porque a gordura cobre os ossos, apara os apoites e impede que a dor Ihes chegue. «Si me apoitaes com forpa me quebraes as veias apenas cobertas pela pelle», e assim dizia por ser inuito magro. Para engordarem reuniam-se muitos indios, embarcavam- se n’uma canoa grande, muniam-se de farinha, de flechas e de caes, iam a terra firme, onde matavam a capa, que ape- teciam, como veados, onpas, capivaras, vaccas bravas, ta- tus, e muitos passaros, e ahi se demorando em quanto ha- via farinha, engordavam a farta com estas comidas, e vol- tavam depois para a Uha trasendo muita capa assada. 19Quando a Ilha regressou da guerra do Para o iadio Brasil julgando-se magro, pedio licenpa achSr. de Ravardiere para ir a terra firme levando comsigoalgunsFrancezQ3.afini.de engordar, o que llie foi permittido. Embrenharam-se muito pclo sertao, e quando a felipidade os encheo de capa, aconteceo-Ihes uma desgrapa—acabou-se- Ihes a farinha: viram se obrigados a comer palrnito, como si fosse pao, com a came que linham, o que contrariou muito os Francezes nao habituados a esta especie de pao, sentindo ruuito que a festa nao fosse completa, havendo tanta carne, sem pao e sem sal. Aconteceo-lhes o mesmo, que a Midas, possuidor de muito ouro, quando sua mulher Ihe apresentou na meza muitas. iguarias, todas porern de ouro, ou entao a'Tantalo rnorren- do de sede apezar de cercado d’agoa: o mesmo Jhes acon- teceo, emagreciam em vez de engordarem por nao levarem a farinha necessaria. t N’este ponto os Francezes imitam os selvagens, e por isso estes os estimam. Os Francezes residentes no Forte pedera licenpa para pas- seiar e refazerem-se de forpas. • ■ . Quando os selvagens sabem d’isto, vao a capa, e mediante a troca de alguns generos offerecem a estes passeiadores dels ou tres banquetes: undos estes regressam a sua terra, e assirn vao continuando ora n’uma aldeia, ora n’outra, gi- rando por toda a llha, ou provincia de Tapuitapem e Coma diverlindo-se e engor-dando. . , , , . Os Francezes liospedados por seos com pad res n’estas a! deias nao sao muito felizes em seos passeios, porque se ha entao alguma coisa boa nao 6 para elles, e sim para os vi andantes. Coslumam os selvagens dar o melhor, que possuem aos hospedes, por dois ou tres dias, findos os quaes Iratam-nos com o uso cornmum e trivial. Admire-se, eu vos pepo, aiuda que ligeiramente, o grartde amor de Does para com os hornens, dando-lhes o sentimen-v)9 to natural da caridade para com o proximo. 0 que fazem de melhor os christaos, ou observam os Religiosos, do que a caridade puramente natural dos selvagens, que nao podem alcangar a gloria, bem differente do que acontece a carida- de sobre natural dos christaos, que espera a recompensa da vida eterna ? 0 aceio do corpo faz-se por muitas maneiras, e entre ellas contam-se estas. Trazem sempre na bocca a herva do Petun, (tabaco ou fumo) cujo fumo expellem pela bocca e narinas com inten- pao de seccar as humidades do cerebro e as vezes o engo- lem para limpar o estomago de miezas que saliem por meio do arroto. Apenas acabam de comer fumam o Petun, e o mesmo praticam pela manhan e a noite, quando se levantam e dei- tam-se. A iproposito de Petum devo conlar a ideia supersticiosa, que* formam desta herva e do £eo fumo. Creem, que esta herva os torna discretos, judiciosos, e eloquentes, de forma que antes de comeparem algum dis- c^rso^usam jd’ella: nao me parece, que seja comtudo muito supehsticiosa, porque ha nisto nma razao natural: eu mesmo a experimented e reconheci, que a sua fnmapa exclarece o enten&rmento dissipando os vapores dos orgaos do cerebro, fortalece a voz seccando a humidade e escarros da bocca, permil-tindo assim facilidade a lingua para bem exereer suas funopoes. faci! experimentar-se isto usando-se d’ella com parci- roonla e em occasiao propria, porque o abuso coutinuado d’ella nao me parece bom e saudavel aos que se alimentam de bebidas e carnes quentes, porem e util aos que sentem fries e humidos o estomago e o cerebro. Ei4 a razao porque o selvagem, habitante (Testa zona humida, e que bebe de ordinario somente agoa, uza eonstantemente d’este fumo afnn de descarregar o cere- bro de humidades e frialdade, e o estomago de cruezas, o100 que tarnbem praticam os marinheiros e os habitantes das praias. Pondo-se de infusao por espapo de 24 horas esta herva, presta-se muito para purificar o corpo de infecpoes. Usa-se somente do vinho. Creem tambem que, engolindo o fumo, fleam alegres, jo- via.es e previnidos contra a tristesa e melancolia. : Tou referir-vos alguns casos que me contaram: Ilm selvagemque foi morto na bocca de uma pepa, e de quern hei-de fallar no Tratailo do Spiritual, antes de se enc. iminhar para o supplicio pedio um macinho de Pelvm,, com o ultima eonsolapao d’esta vida afim de morrer com enei 'gia e alegria. Apenas alcanpou o que desejava mostrou- se a Jegre e sempre canlando ate o fim. Q uando seos companheiros o ataram a bocca da pepa, elle pedi< o para que nao amarrassem o brapo direilo de fOrma que o embarapasse de levar a bocca o Pelun: quando a bala divid lio o seo corpo em duas partes, uma foi para o riiar, e a ou tra cahio na base do rochedo, e n’esta achou-se ainda segu. ro pela mao direita o molho de Petorn. Os selvagens sentenciados a morte nay soffrem a pena sem i asarem antes do Pelun, conforme o costume da terra, e na< > deixavam este habito nem mesmo os doentes. Os feiticeiros do paiz servem-se d’esta planta com pro- veito. , o que agora nao refiro, e sim guardo para o fazer mais adian te, si nao me esquecer. , Em ipregam ainda outro meio para a conservapao da saude. Coi Bern muitas vezes e pouco de cada uma: depots,que comei m iavam muito bem a bocca, e se tem sdde quando co- mem, bebem pouco apenas para apagar a sede, gargarejam bem t i agua na bocca para aplacar o ardor do paladian Coz inham muito bem suas comidas, e nao usam d’ellas rneias coizdas ou aferventadas, sendo n’isto mais cuidadosos do qu e os Francezes. Unt am-se com azeite de palmas, de urucii, e de geni- papo. 14 o que tem sempre em abundancia.101 Estou certo que os roeos leitores, pouco conbecedores da disposipao do corpo humano e do regimem necessario a sua conservapao, julgarao que a uatureza ensinou a esles bo- mens o mesmo que a sciencia e a experiencia ensinaratn h outros. GAPXTULD XXIX De algumas indisposipoes naturaes, a que os selvagens se acham sugeitos, e quaes os nomes, que dSo aos membros do corpo. Sao os selvagens, ua verdade, dotados pela naturesa com boa saude, feliz e agradavel disposipao. Raras vezes, ha proporpao de um para cem, encontram- se entre elles eorpos mal feitos e monstruosos. Nao vi um s6 cego, apesar de existirem, porque elles o chamam Thessa-um. «cego,» Cheressa-um, «estou cego,» e Ressa-um «tu 6s cego.» Notei porem terem alguns a vista curta, especialrnente o; l[ ;:contram-se poucos coxos Farm, poucos manotas^iftiw- asuc, e poucos mudos Gneen-eum, alguns gottosos -fyruq* rebore, de Karuare «tua ahna» dean. «nossas almas» orean, «vossas almas» pean, «suas almas» yan, em quanto a alma esta unida ao corpo, porque quando esta separada chamam-na anguere.A cabepa.- Acan, Minha cabepa. Cheacaa. Caspa. Kua. Cabellos. Aue. Meos cabellos. Cheaue. Cerebro. Aputuon. Rosto. Suna. Palpebra. Taupe pyre. * Cara. , Tova. Meo rosto. Cherova. Teo rosto. Derova. Seo rosto: Sova. Olho. Tessa. Lagrymas. Thessau. Meo olho. Cheressa. Mancha no olho. Tessaton. Vi urna mancha no olho, Cheressaton. Piscar os olhos. < Sapwmi. Pisco os olhos. Assapumi. Ouvido. Apuissa. Oavir. S endup. Oupo. Assendup. Orelha. Nemby. Minha orelha. Chenemby. Nariz. Tin. Monco. Embuue. Narinas. Apoin—nave. Paladar da bocca, ou v6o do i „ paladar. \Konqutre. Bdcca. Giuru. Beipo superior. Apuan. Beipo inferior. Teube. Garganta. YasseoK. Escarrar. Gnciomon. Eu escarro. Auendeumon. Tn escarras. Eveuendeumon.104 Saliva. Th en d ue. Lingua. Apckon. Minha lingua. Che-ape kon. Fallar. Gneern. Hu ?allo. Aigneem. Bom fallador. Gneemporam. Halito. Puitu. Denies. Taira. Doe-rne os denies. Chereuassu. Meo dente. Cheraim. Teo dente. Deraim. Seo dente. Saim. Dente maxillar. Taiuue. Mastigar. Chuu. Eu mastigo. Achuu. Face. Tovape. Beijar. tieurupuitare. Eu beijo. Aigeurupuitare. Bochechudo. Tovape-uacu. Queixo. Tendeuua. Barba. TendeV'Ua-aue. Barlndo. Tendeuuaaue- re Knave, Cachapo. Aiure. Collo. Amripui. Estrangular. Iubuic. Peito. Potia. Espaduas. Bragos. fuua. Gotuvello. Tenuvangan. Punho. Pap ue. Palma da mao. Papuitare. Mao. Pd. Minha mao. Cfiepo. Mao direita. Ekatua. Mao esquerda. Acu. Dedos. Puan.105 Unha. Minha unha. Mama. Corafao. Veias. Sangue. Ba£o. Tripa. Figado. Fel. Barriga. Ventre. Embigo. ,, Dorso. Rins. Ubarga'j • Minba ilharga. Costella. Minba eostella. Quadril. Madre. Testiculos. Nadegas. Curva da perna. Coxas* Joelhos. Pernas. Pe. Calcanhaiv Plaala de pe. Dedo do pe. Corpo. a. Me^cprpo. Pelt©. Suoiv Gordura. P-uamp6. Chepuampe. Cam. tinaen. Tame. Tahiti. Perep. Thyepuy. Paya. - Puy4M*pmiie . ^Thuye-iiacu. Titeic. Pwytm+.i. Alppupe^ , Puiacoo. Ke. ' Ch&ke. - . >A$U ham Che-aru ham ' Tenambuik. Amia. Pere-kelim Temre. Ananguire. Urn. Temupuian. Tuma.. Pm. Puita. ■ Puipuitare. Puissam Tele. Clwrete. Pyre. Time. Katie. 09106 Osso, Cam. ^ 1 Meo osso. Checam. ^ n: Tutano. CamaptUmn, .-..r: ^ I WWTT n VW juiaJCTJLJL LiJmLl De algumas molestias particulares a estes paizes : rll:'' de indios, e de seos remedios. 0 Genesis nos ensina, como explicam os doutores haver ■ Deos dado aos homens coDtra todos os males o irufilosde i' uma arvore, a maueira da Theriaga. t,U • Este mesmo Deos, sempre bom para com todas as,erode!'?, luras, embora pequenas e lodge d’eile, preveudo quo esto'V infeliz rapa de selvagens viveria, por longos annos, vagsLwU bunda e nua pelas grandes floreslas do Brasil, Ihes deomuki'1 tas especies de arvores e herva? para o curativo deiBipjai,/ feridas e moleslias. ; ,, , i v i i ) Tem este paiz muitas arvores medicinaes, gommas sate* * tiferas, e excelJentes 'bervas, tomo nao ha em parte oak ! guma. . * . t :v' 0 tempo e o esludo hao de fazel-as conhcddas,45 Vi ti- rar-se da casca de certa arvore uma especie de almeeegay similhanle a que cresce nos jardins da Europa, e dizem os '! selvagens que serve para- toda a molestia, e assim a enk pregam. Conlam mais, que todos os animaes femes quando se sentem feridos ou doentes, recorrem a esta arvore para- curarem-se, e por isso raras vezes se encontra uma sd com toda a sua casca, por ser roida constantemente por todos os bixos. -•107 Encontra-se lambem crescida nas folbas das arvores uma Papeete de gomma bianca, de cor prateada, e que dizem ser muito boa para cerlas chagas. Ha outra gomma, tambem brapca, optima para limpar cbagas e fazer suppurar os abcessos profuudos fazendo seo ' effeito em 24 boras. Vi oseo emprego n’um mogo francez, que estava commigo o qual tinha, por causa dos bixos, os pes e as pernas tao cstragados e inchados a ponto de receiarmos que as per- desse: coisa horrivel e impossivel de narrar-se bem: fez-se applicagao de emplastos d'esta gomma nas pernas e p6s, e no dia seguinte estava sao como si antes uao tivesse coisa alguina, porque pucbapdo os bixos do interior das carnes onde se,acbavam a superflcie das feridas, ahi pela.cabega se grudarara os emplaslos, e assim morreram todos em nu- mero coasideravel, limpando muito bem a cbaga e deixan- do-a viva e vermelba. . . fiau fallarei, d ; outras hervas e baisamos, e nemd’um mi- lhao.de heryaSj, das quaes se podem destillar espirilos e es- seucias, porque desejo faliar de certas moleslias, reinantes n’este paiz, dos remedies, que contra ellas se appiicam, nao porque seja a terra doentia e iiisalubre, antes muito boa e saudavel, especiaimente de junho a Janeiro: durante este tempo brisas, isto d, os. ventos de Este ou do Oriente sopram constantemente, livrando o paixde vapores pestil- lenciaes; e por isso raras vezes adoecem os selvagens, e a faliar averdade, elles so tem uma molestia, de que mor- row- . Sao os francezes muito mais sujeilos a doengas, porno a experiencia fez conbecer a mim e a outros, porem creio ser islo devido as necessidades e miserias, porque passamos no prinpipio do estabelecimento ou da fundagao e nao a outra causa. Tinbam entao os francezes poucas commodidades, porem ja comegavam a gozal-as quando deixei a Ilha.108 Nao desejo a pessoa alguma taes necessidades e moles- tias, porem fiquem todos certos e convencidos de que nao soffrerao a centesima parte do que soffremos. Das suas molestias a primeira chama-se Plan, que vem da palavra Pe, que quer dizer «caminho», ou, se quereis, «p6,» por originar esta molestia do escarro, ou da sanie. espalhado no cbao, por onde se caminha: comepa ordinaria- mente debaixo dos dedos dos p6s, do tamanho de um Hard, * de cor negra: os indios chamam esta mancha Aipian, isto 6, a «Mae Pian,» 47 porque d’ella descendem todas as oulras chagas e postemas, que esta horrivel molestia espalha por todo o corpo a maneira de uma herva ou arbusto, que sa- , hindo d’esta Mae Pian, como de uma raiz, fosse sempre crescendo, subindo, e espalhando, pelo corpo ramos, folhas e olhos, que encbesse interna e externamente o doente de crueis d'ores, e de incrivel putrefacpao, das quaes muitos morrem. Dura pouco mais ou menos dois annos. Si um francez soffrer esta molestia deve curar-se perfei- tamente antes de regressar ao seo paiz, porque nao ha re- medio no mundo, excepto no Brasil, que a cure, a nao ser o rhuibarbo comraum, isto e, a morte, que cura todos os males. Ja disse como esta molestia cbega accidentalmente: veja- mos agora sua origem e fonte ordinaria e natural afim de prevenir os francezes, que la forem. Esta molestia ataca os francezes, como o mal de Napoles, por excessiva communicapao com as raparigas indigenas: para evital-a convem a vida casta, ou entao que tragam suas mulheres, ou que se casern com as indias christas, visto ser o casamento poderoso antidoto contra tal veneno, o que se observa mesmo no casamento natural dos indios, os quaes nao soffrem o grande mal, se nao o tem adquirido algures, * Quarts parte de um soldo de Franpa. Do traductor109 e sim o pequeno, quo todos soffrem oa vida, similhante a syphilis e a variola na Europa- Esta brnba grande excede em dor e sordidez, sem com- parapao, ao mal de Napoles, e com razao, porque merece ser punido n’esta vida o peccado, que commettem os fran* cezes com as Indias, arrebalando de nossas maos, estas in felizes almas quando pretendiamos salval-as, si com seos maus exemplos nao as conduzissem as fornalbas da lubri- cidade. Meditem bem os que sao capazes de commetterern taes crimes, na conta que darao a Deos por haverem causado o damno e a perda d’estas pobres almas indigenas. Si a vida eterna d soraente concedida aos que buscam a salvapao de outrem, que lugar esperarao os que, para sa- tisfapao de brutaes desejos, seduzem essas pobres creaturas a ponto de fazel-as despresar as prddicas do Evangelho e a sua propria salvapao ? Tempo e paciencia sao os principaes remedios para esta molestia; os suores aproveitam muito, mitigam e encurtam o tempo, bem como as dietas e o regimen de vida. A experiencia tern mostrado, que para estas molestias a carne raais propria e a do tubarao (nao usada pelos saos, por dies fazer vomitar ate s.angue, e produzir-lhes grandes molestias) cozida com. hervas duras e amargas, que se en- contram em todo o paiz. Por um momento, de praz«r soffrem mil dores, e o qua para os bons e veneno para dies 6 carne saudavel, embora de mau; goslo. E costume d’este astuto Bodicario Satanaz untar o bordo do copo com mel ou assucar para se beber de um so trago o veneno, que depois vae roer e encher de dor as entra- nhas: quero dizer, que ao peccador apresenta o prazer, e nao o seo castigo, e bem depressa experimentao desgrapa- do, que o prazer vda, porem a dor 6 eterna. 0 Sr.jle Ravardiere, outros francezes, e eu sobre todos, soffremos intensas febrrts quartans, terpans, e incerlas, asquaes depois de haverem mortificadomuito.o corpo, deixam dores nos rins, produzem colicas insuportaveis com vomitos continuos, sempre debilUando o corpo, resfriando e conlra- hindo o estomago, acompanhada por continua fluxao do ce- rebro, que se espalha pelos brapos, coxas, e pernas, tornan- do-as sem acpao, a similbanpa do uma estatua ou pedra immovel. Parece-me que e a molestia, que ceifa maior aumero de selvagens lornmdo-os elhicos e paralylicos. Os remedies para estas moleslias sao—o beber menos agua que for possivel, porque o sabor das aguas alterado com o calor da febre, faz beber muita agua. perdendo o es- tomago seo calor proprio, adquirindo grande crueza e fra- queza, de que resulta nao so a sua constricgao, mas lambent a pituita e outros humores corrompidos: presentemente como ha cerveja espero que nao sejam frequentes eslas moleslias e que nao chegarao ao excesso, que vi, ecujas conseqiven- cias ainda sinto. 0 vinho e a agnardenle sao bons para aquecer o esto- mago, e por is$o aconselho aos que la forem, que poupem muito o seo vinho e agnardente para essa e outras necessi- dades, e nao os gastem prodigamenle ern deboches, m6rmente sendo a cerveja, ahi feita com milho' bom, muito mais sa- borosa e saudavel, por causa do conlinuo calor, do que o vinho e a aguardente. As boas bebidas sao o unico remedio, e as aves e ovos alii em abundancia sao o alimento d’esses doentes. As outras molestias sao o defluxo e violentas dores de dentes por causa da humidade da noilo nesta Zona torrida, como bem notou o jesuita Acosta, na sua Historia clos In- dios, a qual pode recorrer o leitor, vista que nada quern dizer ou escrever sem sciencia propria. B tao forte a humidade da noite, que produz ferrugem nas espadas, mosquetes, facas, machados e machadinhos, que corroe e deslroe nao havendo cuidado do os limpar.Sao raui friaS as fluxoes do cerebro, pois descendo a raiz dps dentes apodrecem-noa e as fazera cahir. ; Sao remedios espeeiaes a esles males aapplicapao de cau- tflrios no ptescopo e bracos, e cobrir bem a cabepa durante aaoite. ... . Todos os auues reina doenpade olhos, das quaes poucos eseapain-especialmente os Franceses, porquc dura apenas .oitPidias, sendo por sua vehemencia antes furor do que mo- lestia, e si se nao atacar logo corre-se o risco de ver-se so- menle metade do mau tempo. ; • ;,!iE facil p remedio: iome-se um pouco de vilriolo, deite-se Mpina garrafa cheia d’agoa bem limpa, e d’ella; se derrame umepouco -nos oilios bem abertos e fixos, abstendo-se de to- cal-os, tendo-os sempre cobertos, enao os expondo ao venlo e.nenttvao. soi, porqne sen&o o Inal redobra vislo que sendo foraaada esta jnolestia de uma fluxao quente e acrimoniosa., si. esfregardes os oilios e vos expordes a acpdo do vento e do sol. mais exacerbaren o vosso ma!.- . , . \ - ■ • i ■ '' i CAFITtlLD 1X232 Da morte e dos funeraes dos Indios. Jacob despresou duas irmans Lya e Rachel, o que e di- versamente explicado por Padres e Doutores. Tomarei so- mente o que convem a historia, isto e, que Deos tem duas i.(Uba3 3 Naturesa e a Grapa, -que da por esposa aos seos es- cqlbidos. i A, .Naluresa e iraperfeita, porem fecuuda como Lya: a Gra- pa e de formosura inexcedivei, porem esteril como Rachel.112 Ambas sao irmans: basta vel-as para reconhecer-se, e corao laes sao seos lilhos-uimaos gerroanos, differenpando-se ape- nas por linbas diversas; isle 6* -mlnn* ponto^fe cereraOnia, lias ultimafe homenagens pirestadasa scos parentes, recontae- ceraos faciimente a verdadeira religiao e os seos herdefros. AchaiBejisto laQ aaiuralnieate gravado no fundoda&lma das napoes as roais barbaras, que serve de argumenlo&ui positiyo para provar acharem-se em verdadeira grapa os que prestara horaeaagem aos seos defunctos. Era caso contrario prova-se que estao em poder do gen- tilismo, e era opposipao ao instincto puramente natural, imi- tando n’este caso os brulos, nao fazendo caso dos seos ami- gos fallecidos, fespecialmente da sua alma, melhor parte de sua composipao. E a maldipao, dada por Job, no cap. 18—Memoria iMus per eat de terra> eb non celebretur nomem ejus in plateis, «desapparepa da terra a sua raeraoria, e nem seja seo nome pronunciado na rua.» ; Symmachus explieando diz Non erit nomem ejus in fa- ciem fori—nao chegara seo nome ai furo dos senadores, e mais claramente Policronius Nec in amicorum versabitur memoria «nem seos amigos?e recordarao d’ellesT» grande maldipao, visto que os povos os mais selvagens do Universo que sao os babitantes do Brasil nada mais receiam, apOs a morte, do que nao serem cborados e laraentados, isto 6, que para elles, nff rrffirte, nao hajam da parte dos seos pa- rentes, lagrymas, lamentapoes, e oulras cereraonias erabora supersticiosas. Quando se achatn muito doentes estes selvagensr e por seos parentes julgados era perigo de vida, perguntam-lbes o que desejam comer antes da morte, e saciam-Ihes o tle- sejo. - - * Em quanto doentes aiimenlam-se com farinha de mao’dioca e ionker «pimenta da india,» misturada com sal, julgtando com tal dieta, abuso inaudito entre elles, recobrarSo .i an- tiga saude. • /113 Vi um homem e uma mulher da naciio dos Tabaja?-es, que tinharn s<3 pelle e ossos, parecendo-me terem apenas vida por dois dias, e por isso os baptisei logo, apenas me pedi- ram, e escaparem da morte tomando taes caldos. Quando chega a hora da morle, reunem-se todos os seos parentes, e geralmente todos os seos concidadaos, cercam- lhe o leito do moribundo, os parentes mais perto, depois os velhos e as velhas, e assim de idade em idade: nao dizem uma s6 palavra, olham-no com toda a attenpao, banham-se de lagrymas constantemente; mas apenas a pobre creatura exbala o ultimo suspiro, dao berros e gritos, fazem lamenta- poes compostas por uma musica da vozes fortes, agudas, baixas, infanlis, emfim de todo o genero, que infallivelmente enternece todos os eorapoes, embora sejam naturaes todas essas dores e lagrymas, sem conhecimento do bem e do mal, que podera gozar esse espirito desprendido do corpo morto. Depois de muitas lamentapoes, o Principal da aldeia ou o Principal dos amigos fazia um grande discurso muito commo- vente, batendo muitas vezes no peito e nas coxas, e entao contava as fapanhas e proesas do morto, dizendonofim—Ha quem d'elle se queixe ? Nao fez em sua vida o que faz um homem forte e valente ? Conto isto porque presenciei-o tres ou quatro vezes, lem- brando-me de haver lido e notado em Polybio, Livro 6°, e em Deodoro da Sicilia, Livro 2°, cap. 3°, terem os anligos Romanos o costume de levarem seos defunctos a Prapa pu- blica, e abi o fllho mais velho da casa, ou o principal her- deiro em falta de iilhos machos e de maior idade, subia a uma especie de theatro, e desfiando todos os louvores, que podia fazer ao morto, seo parente, desafiava todos os assis- tentes para que o accusassem, si podessem, afim d’elle de- fendel-o, e depois convidava-os a acompanharem o corpo atd a sepultura. Voltemos aos nossos selvagens. Acabado que seja o choro e o discurso tomam o corpo, ja cheio de pennas na cabepa sio nos brapos, uns o vestem com um capote, outros lhe dao um chapeo, si o ha, trasem-lhe o massinho de petum 48 , seo arco, frexas, machados, foices, Togo, agoa, farinha, car- iie e peixe e o que em vida elle mais apreciava. Faziam depois um buraco fundo e redondo em forma de popo: assentavam o morto sobre seos calcanhares conforme era o seo costume, e a cova desciam-no de mansinho49 ac- commodaudo ao redor d’elle a farinha, a agoa, a carne, o peixe e ao lado de sua mao direita afim de poder pegar em tudo com facilidade e na esquerda arrumavam os machados. as foices, os arcos e as flexas. Ao lado d’elle faziam um buraco, onde accendiam fogo com lenha bem secca afim de nao apagar-se, e despedindo- se d’elle o incumbiam de dar muitas lembranpas a seos paes, avos e amigos, que danfavam nas montanhas, alem dos An- des, onde julgam ir todos depois de mortos. Uns dao-lhe presentes para levarem a seos amigos, e ou- tros lhe lecommendam, entre varias coisas, muito animo no decorrer da viagem, que nao deixem o fogo apagar-se, que nao passem pela terra dos inimigos, e que nunca se esque- £am de seos machados e foices quando dormirem n’algum lugar. Cobrem-no depois pouco a pouco com terra, e fleam ain- da por algum tempo junto a cova, chorando-o muito e di- zendo-lhe adeos: de vez em quando ahi voltam as mulheres ora de dia ora de noite, choram muito e perguntam a sepul- tura, se elle ja partio. A proposito contarei tres historias interessantes. Enterraram um bom velho em distancia de 50 passos de ininha casa. Dia e noite consumiam-me as velhas com seos choros. Para adquirir socego lembrei-me de mandar esconder n’uma moita em caminho, perto da cova, dois rapazes fran- cezes, que commigo moravam. Maisadiante raandei tambem esconder dois escravos nossos, a quern ensinei o que deviam fazer.A noite lodos occuparam as suas posipoes, e no fim de urn quarto de hora quando vieram as velhas, todas juntas, e quo principiaram a gritar na cova, responderatn os franceses, imitando Jeropary, e ellas cheias de susto despararam a cor- rer, e quando no caminho encontraram outros dois Jeropary, redobraram de esforfos, e saltando por abrolhos e espinhei- ros chegaram a casa mais mortas do que vivas, e ahi sobre- saltando a todos mandaram fechar as portas para que nao entrasse o tal Jeropary. Estava eu perto e muito gostei d?esta comedia por alcan- $ar socego, visto nao regressarem mais as velhas. Morreo urn selvagem, e foi enterrado na estrada perto de Sdo Francisco, lugar no Forte de Sdo Luiz. Fora baplisado antes da sua morte, e com tudo, sem sei- encia nossa, enterraram-no ahi e com as ceremonias que ja descrevi. Mortiflquei-me muito com isto, ralhei bastante, po- rem nao pude descobrir o culpado por ja haver decorrido tres ou quatro dias. Passando por ahi achei sua mulher, que voltava da roga, assentada sobre a sepultura, chorando amargamente. e es- palhando n’ella algumas espigas de milho. Indagando-lhe o que fazia, respondeo-me estar pergun- tando a seo marido si elle ja tinha partido, porque receiava haverem amarrado muito as suas pernas, e nao lhe terem dado a sua faca, pois havia levado comsigo apenas o seo machado e sua foice, e que lhe trasia o milho para comer e pariir no caso de ja nao ter mais provisoes. Fil-a sahir, moslrando como pude, a sua ignorancia e su- perstifao. FaHeceo um menino com doenga no ventre, de dois an- nos de idade, e duas horas depois de baptisado. Eu, o Sr. de Pezieux, e outros franceses fomos amorta- Ihul-o n’um lenfol d’algodao. Encontramos o corpo cercado por muitas velhas, fazendo algasarra capaz de quebrar uma cabefa de a^o, carregado de missangas, que trasem para ahi os francezes, e de mui-116 tos busios, de que usam nos seos adornos e enfeites para as grandes festas. Nao podemos convencer as velhas afim de serem tirados taes enfeites, e sendo assim mesmo conduzido n’uma pran- cha por um francez, fizemos o seo funeral a maneira da Eu- ropa, levando o seo corpo a capella do Forte de Sao Luiz, onde recitamos as orapoes prescriptas pela Igreja para esse fim. Seguiram-nos as velhas de bem perto, e nao se animando a entrar, comeparam a entoar uma musica lao alta e forte, que nao nos entendiamos dentro da Igreja. Imposemos silencio, e foi o corpo enterrado no ceraiterio junto a capella. As velhas se metteram entre os francezes, umas trazendo fogo, agoa, farinha, e outras o mais que ja dissemos parao caminho, o que mandei deitar fora fa/endo-lhes ver a as- neira por intermedio do interprete. Recolberam-se as suas casas, onde se fartaram de chorar. P A TDT^TTT H VWTT Do regresso 4 Ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns Principaes, que o seguiram. Com a chegada da barca portugueza o Sr. de Pezieux es- creveo ao Sr. de la Ravardiere e expedio uma canoa para tal fim, descrevendo o estado em que nos achavamos e prestes a sermos sitiados em breve tempo. Gastou a canoa tres mezes na viagem, e sciente destas eoisas partio logo que poude em direcpao da Ilha, afrontan-do perigos, que muitos sao n’estes mares; porem de coisa alguma nos serviria sua actividade, porque se n’esse inter- vallo soffressemos o cerco seriamos ja entao vencedores ou vencidos. Esta interruppao da viagem do Amazonas eausou muilo mal a Colonia, porque se teria colhido muitos generos pe- las margens dos rios, muito mais povoados de selvagens de diversas napdes do que a Ilha, Tapuitapera, Coma e Caietb.50 Sao mais pacificos, e bem provides de algodao. Quanto mais pobres e necessitados de machados, Ibices, facas e vestidos, tanto mais facil b a troco de qualquer d’es- tes objectos alcanpar grandes riquezas. Outro prejuiso soffreo a Colonia dos t'rancezes, porque achando-se muitas napoes resolvidas a aproximarem-se da Ilha, por ahi residirem e fazerem suas ropas, vindo com o Sr. de la Ravardiere, ao saberem taes nolicias dos porlugue- zes, resolveram suspender a execupao do seo piano, e es- perar o resultado dos negocios. Chegando o Sr. de la Ravardiere proseguio-se activamente nas obras dos Fortes das avenidas da Ilha, montando-se-lhes artilharia e dando-se-lhes guarnipao. Passados alguns dias achou-se acompanhado por muitos guerreiros selvagens, que vieram para a Ilha, e entre elles estava o Arraia grande dos Caietbs, selvagem pelos seos muilo estimado, valente, bom conselheiro, e de tal influen- cia, que os seos companheiros o seguem, trabalham e abra- pam inteiramente as suas ideias, o que foi muito util aos francezes visto assim terem muitos homens dedicados, e oc- cupados no servipo. Pouco antes da viagem do Amazonas alguns bregeiros es- palharam entre os Ciietes do Pard, que sob o pretexto dessa viagem iam os francezes captival-os. Esta noticia aterrou-os de tal forma, que muitos ja esta- vam resolvidos a deixar suas casas, e a buscar outro lugat quando o Arraia grande por seos discursos Ihes fez ver118 quanto era infundado o seo receio, dizendo entao muito bem dos francezes. Elle, sua mulher, e alguns parentes acompanharam uma barca, que ia da Illia para o Para em busca dos generosdo paiz, alii mui preciosos. Quiz a infelieidade que, no regresso para a Iiha, naufra- gasse a canoa por estar muito pesada duas legoas longe da terra. Despresaram todas as riquezas. procurando salvaremse agarrados a um pedago da escotilha, a uma taboa, ou ao bote. Esperou o Arraia grande, que tod os procurassem rneios de salvarem-se, e afmal elle, sua mulher, e um interprete francez si puzeram a nadar animando elle a todos com es- tas paiavras—«a morte e invejosa, vede como alira estas ondas sobre a nos*a cabepa afim de nos arremepar no abys- mo, mostremos-lhe que somos ainda fortes e valentes, e que nao e chegado o tempo de nos ievar.» Salvaram-se todos em varias ilhas nao habitadas, excepto um francez, viclima de lubaroes.51 Vendo o Arraia grande os francezes nus e famintos, em lugares eslereis e cercados de mar, atirou-se as ondas, a nado atravessou grande espago clieio de mangue desemba- rapando-se a muito custo das raizes destas arvores, e do tu- ju . unde as vezes se enterrava ale o pescogo. Chegando a aldeia dos seos similhantes animou-os a vi- rem com algumas canoas, vestidos e viveres, e depois que todos regressaram as aldeias defronte do lugar do naufra- gio, elle lhes entregou tudo quanto haviarn perdido, e que o mar linha atirado as praias. Outrora este indio, irum navio tie Sao Malo, veio a Fran- <;a, onde se demorou um anno pouco mais ou memos, e em tao pouco tempo aprendeo a failar francez, e ainda hoje se fazia untender bem, erabora ja se houvessem passado mui- tos ulinos, e tern tao bom juiso e memoria que ainda hoje coiita varias particularidades, que ia existem.119 Nao trato do estado espiritual, e nem do que me disse relativamente ao Christianismo, porque deixo isso para o seo lugar proprio, mas quanto ao temporal muitas vezes o ouvi dizer aos seos similhantes, e especialmente aos Ta- bajares do Forte de Sao Luiz, «que os francezes eram for- tes, que habitavam um paiz grande, abundante de boas co- midas, de muito vinho, de pao, de boi, de carneiro, de ga- linhas, de muitas especies de ovos, e de grande variedade de peixes: que suas casas eram construidas de pedras, cer- cadas de grossos muros, onde estava assestada grossa arti- lharia, batendo o mar na base da muralha, ou entao sendo esta circulada de fossos cbeios cl’agoa. «Pelas ruas estao lojas de todos os generos. Aodam a ea- vallo, e os Grandes, ou melhor os Principaes sao acompa- nhados por muitas pessoas, como o Sr. de la Ravardiere, residente perto da cidade, onde cheguei. «0 Rei de Franga mora no centro do seo reino, li'uma ci- dade chamada Pariz. Os francezes aborrecem, como nos. os Peros, e lhes fazem guerra por terra e por mar, e sempre com vantagem, porque sao fracos os Peros, valentes e ani- mosos os francezes como nenhuma outra nagao, e eis a ra- zao porque nao devemos temer aquelles visto estes nosde- fenderem. Alguns maldizentes de nossa gente espalharam nao terem os francezes podido tomar os Camarapins, po- rem isto e falso. Cumpriram seo dever e si os Tupinambas tivessem querido ajudar-nos, seriam agarrados, porem o chefe dos franceses condoeo-se d'elles, e nao quiz que todos fossem queimados como aconteceo em parte.)) Fez este e outros discursos similhantes, e depois percor- rendo a llha, em cada aldeia os repetia nas reunioes na caza grancle. Procurando imitar a maneira porque entrou na grande praga de Sao Luiz, nao so para saudar os Tabajaras, como tambem para ajudar os francezes, dispoz elle a sua gente. em numero de cem a cento e vinte, urn a um. ou um atraz do outro, e assim por diante.120 A uns deo cabalas, panellas, e rodela, e a outros espa- das e punhaes, a estes arcos e flexas, a aquelles differentes instrumentos, dividindo os tocadores de Maraca52 pelas de- senas, e assim percorreram a habita^ao dos Tabajaras, e depois foram a prapa grande do Forte, onde estavamos. c ahi acabaram suas danfas, muito similhantes a dos Panta- lons, andando e fazendo mesuras, batendo todos ao mesmo tempo com o pe em terra, ao som da voz e do Maraca, cujo compasso todos observavam entoando sempre louvores aos francezes. Mechiam em todos os sentidos a cabepa e as maos, com taes gestos que faziam rir as pedras. Chamam os Tupinambas a esta danpa Porass&u-tapui} quer dizer, danca dos Tapuias, porque era outra a danpa dos Tupinambas, sempre em roda e nunca mudando de lugar. Acabada a danpa, veio saudar-nos, e foi comer e descan- $ar na casa, que se lhe havia preparado. n A 'OTTTT Hf Viagem do capitao Maillar,53 pela terra firme A casa de um grande feiticeiro Descripgao d’esta terra e das zombarias d’elle. E verdade, reconhecida por todos que hao liabilado o Brasil, nao ser a terra Firme tao bonita e tao fertil como as llhas. Sao as ilhas formadas por areia preta e (ina, queimada e ardente pelo continue caior, e por isso sao ellas mais su-121 jeitas n’esta Zona t6rrida aos calores e ardores, porque o mar redobra pela reflexao e poder da luz do Sol sobre a ca- pacidade proxima e concentriea da terra, o que se prova por meio dos espelhos ardentes, cujos centros sendo opacos, e mais elevados do que suas circumferencias e bordas, os raios do s61 se reunem e concentram ahi, produzindo fogo e chama, e assim queimando os objectos convenientemente dispostos n’esses lugares. Ouvindo o Sr. de la Ravardiere os indios fallarem muitas vezes de uma localidade muito boa, distante 100 ou 150 le- goas do Maranhao, na terra firme para as bandas do rio Mearim e longe d’elle 4C ou 50 legoas, mandou uma barca e canoas com o capitao Maillar de Sao Maid, alguns france- zes, e um cirurgiao, todos muito conhecedores da natureza das hervas e arvores preciosas. Ahi vivia, vindo do Maranhao, um dos seos principaes fei- ticeiros, com 40 ou 50 seivagens, entre homens e mulhe- res, n’uma aldeia, que editicara, cultivando a terra, que tudo lhe produzia em abundancia, e por isso abusando da credu lidade dos Tupinambas este miseravel Ihes dizia possuir um espirito com o poder de fazer a terra dar-lhe o que qui zesse. Ahi chegou o capitao com muitas difficuldades, passando vasta e comprida planide de juncos e canipos, atravessando agoa pela cii tura, e depois de alguma demora regressou contando-nos o seguinte. A terra d’esta localidade 6 dura, gorda e negra, boa para a cultura da canna do assucar, e muito melhor que a de Pernambuco, o que hem podia avaliar por ter residido por muitos annos ahi e em outros lugares possuidos pelos por- tuguezes. A terra 6 cortada por muitos riachos capazes de movorem engenhos para o fabrico do assucar. Ha abundancia de peixes d’agoa doce, grandes e de va- rias qualidades; sao innumeraveis as tartarugas; existe toda a qualidade, e em quantidade inexprimivel, de capa, como 33in sejam viados, corpas, javalis, vacas-bravas, e diversas espe- cies de tatiis, muitos coelhos e lebres, iguaes as de Franca, porem mais pequenas, immensa variedade de passaros, como sejam perdizes, faisoes, mutuns,54 porabas bravas, trocazes, rolas, garpas-reaes, e outras admiraveis. A terra produz raizes tao grossas como a coxa: o labaco petum ahi cresce forte e optimo, e dizem que da duas co- Iheitas por anno. 0 rnilho cresce forte, cheio, e da muitas espigas. Ha fruetas muito melhores, e em maior quantidade do que na Ilha, em Tapuitapera, e Coma, papagaios de va- rias cores e diversos tamanhos, notando-se entre elles os Turns, 55 do tamanho de pardaes, os quaes aprendem com facilidade a fallar, porem morrem de mal quando sao leva- dos para a llha: vi entre muitos salvarem-se apenas seis, os quaes comendo, cantando, e danpando em suas gaiolas, sem apparencia de molestia, davam duas ou tres voltas e morriam logo. Ha tambem muitos macacos e monos barbados, bonitos e raros, e que seriam muito apreciados em Franpa, se la che- gassem. Ahi residia urn barbeiro on feiticeiro muito bem arranjado e com todas as commodidades. Tinha vindo, um pouco antes d’esla viagem. fazer suas friiipaiias e nigromancias para ganhar o vestuario e a fer- ramenta dos selvagens do Marauhao e leval-os comsigo quando fosse para a sua terra. Estas feitiparias eram di- versas. Tinha nma grande boneca, quo com artificio se movia, espeeialmente com o maxilar inferior; dizia elle as mulheres dos selvagens, que si desejavam ver quadruplieada a sua colheita de graos e legumes trouxessem e dessern a ella alguns d’estes generos, afim de serem mastigados tres ou quatro vezes, e por esta forma recebendo a forpa de multi- plicapao do seo espiriio, que estava na boneca, podiam de-pois serem plantados em suas ropas, pois ja comsigo leva- vam a forpa da multiplicapao. Gozou de muita inlluencia por onde passou, muitas foram as dadivas das mulheres, e mal satisfazia o que promettia, guardavara ellas com todo o cuidado os legumes e graos masligados. Estabeleceo uma dansa ou procissao geral fazendo com que todos os selvagens levassein na mao urn ramo tie pal- meira espinbosa,55 chamada tiicum, e assirn andavam ao redor das casas, canlando e dansando, para animar, dizia elle, o seo espirito a mandar chuvas, entao n’esse anno mui tardias: depois da procissao cauinavam (bebiam cauim) ate cahir.37 Mandou encher d’ago'a muilas vasiihas do barro, e ros- nando em cirna d’ella nao sei que palavras, ensopava urn ramo de palmeira, e com ella aspergia a cabepa de cada urn d’elles, dizendo «sede limpos e puros afim de meo es- pirito enviar-vos chuva em abundancia.» Tomava uma grande taboca de bambu, encbia-a de pe- turn, deitava-ihe fogo n’uma das extremidades, e depois soprava a fumapa sobre os selvagens dizendo «recebei a forpa do meo espirito,58 e por elie gozareis sempre saude, e sereis valente contra vossos inimigos.» Planlou no centre d’aldeia uma arvore de maio, carre- gou-a de algodao, e depois de haver dado muitas voltas e. vira-voltas em redor, Hies prognosticou grande colheita n’esse anno. Apezar de tudo isto nao vindo a chuva, dia e noite fa- zia elle danpar e cantar os selvagens, gritando com quanta forpa tinham afim de despertar seo espirito, como faziam ou- tr’ora os sacrificadores de Baal. Com tudo isto nao choveo. Fez acreditar a estes selvagens, que elie bem via o seo espirito, carregado de chuvas, do lado do mar, porem que nao se animava a vir por causa da Cruz, erguida no centre da prapa, fronteira a Capella de N. S. d’Vsaap, e que se qui-124 zessem ter chuva nao havia mais do que deital-a por terra, e teriam concordado n’isto facilmente, pondo-o logo em ex- ecupao se ahi nao estivessem os Francezes, e si nao teraes- sem o castigo. Chegando estas noticias ao Forte, mandou-se immediata- mente o Cao-grande e alguns Francezes para irem buscar o feiticeiro afim de ver si elle poderia danpar no meio d’uma sala, contra sua vontade, e teria sido preso si, advertido como foi, nao pr^parasse sua bagagem, e com sua equipa- gem nao se salvasse n’uma canoa, mandando desculpar-se, d’ahi ha pouco tempo, por um seo parente trazendo muitos presentes com o fim de fazer pazes. Fez crer aos selvagens da Ilha, que tinha um espirito muito bom, que era muito amigo de Deos, que nao era mau, e que por tanto so podia fazer bem. Dizia elle: cccome commigo, dorme, caminha diante de mim, e muitas vczes voa diante dos meos oihos, e quando e tempo de fazer minhas hortas, so tenho o trabalho de marcal-as com um pau a sua extensao, e no dia seguinte acho tudo prompto.» Sabendo alguns selvagens chrislaos, que pretendiamos cas- tigar seo companheiro que d’elles tanto abusou, me pediram, que me condoesse d’elle e que nada soffresse por nao ter sido mau e nem o seo espirito, visto terem ambos feito crescer os bens da terra. Ensinei-lhes a este respeito o que deviam crer. Vede, meos leitores, quanto Satanaz e astucioso: simi- lbante a um mac-ico imita as ceremonias da Igreja para el war sua supeist'pao, e conservar sob seo dominio as al- mas dos infieis por essa procissao de palmas, essa asper- sao d’agoa, esse sopro de fumo para communicar o espi- rito, de que fallaremos mais simplesmente no Tratado do espirituai125 uAFITHLQ ZXZ1Y Da vinda dos Tremembes, como foram perseguidos, suas habitagoes, e procedimento. N’esse tempo a nagao dos Tremembes, moradora alem da montanha de Camussy, e nas planicies e areiaes da banda do rio Tury, nao rnuito distante das Arvores Seccas, das A^eias Brancas, e da pequena Ilha de Santa Anna, sa- hio, sem esperar-se, para a floresta, onde se aninham os passaros vermelhos, e para os areiaes onde se enconlra o ambar gris, e se pesca grande quantidade de peixes, com intengao, de surprehender os Tupinambjs, seos inirnigos irreconciliaveis, o que malogrou se, visto que muitos Tupi- nambds da Ilha tendo ido ahi com o flm especial de pes- car, foram accommettidos pelos Tremembes, 59 sendo uns mortos immediatamente, outros capiivos sem saber-se o que d’elles fizeram, e finalmente alguns embarcados n’uma ca- noa poderam salvar-se regressando a Ilha do Maranhao, onde contaram tao tristes cases causando nas aldeias, a que per- tenciam os mortos, tanta indignagao, que todos, voz em grita e chorando, especialmente as maes e as mulheres, in- sistiram pela vinganga, ao que acquiesceram os Principaes, vindo pedir aos francezes urn chefe e alguns soldados, no que foram satisfeitos. Japxj-acu foi o conductor d’este exercito60 composto de grande numero de selvagens, e acompanhado por alguns francezes. Atravessaram o mar entre a ilha e as areias brancas, sal- taram em terra para descangar e passar a noite pescando uns, cagando outros, e as mulheres e as filhas procurando agoa pelos areiaes, a qual nao podia ser senao salobra, isto 6, meia doce e meia salgada, armando as redes, fazendo fogo e preparando a comida. Os mancebos Tupinambds fizeram Ampuues, (choupanas) tanto para os Principaes como para os Francezes: na melhorauipcme alojou-se o Coronel, e os Capitaes armaram suas redes ao redor da do Coronel, ceremonia que observam em lodas as suas guerras, especialmente quando se acham perto do inimigo. Escondem o fogo com receio de nao serem a noiie des- cubertos pelos inimigos, por ser costume geral d’elles o fa- zer subir no curne de arvores muito alias suas senlinellas afim de descubrirem fogo ou luz dos inimigos. Na manha seguinte puzeram-se em marcha ale um grande areial cercado de mato por tres lados, e de mar pelo ulti- mo: alii encontraram as choupanas dos Tremembes, uma pa- nella portugueza, e combiuando isto com o que ja sabiamos anteriormente, ficamos sabendo, quo os Portuguezes estavam na Tartaruga, na serra de Camussy7 unities aos Tremem- bes, aos Montagnars, l an to de Ybuapap como de Mocuru, priricipalmente com Jeropary-uani, isto e, com o Grande- dicibo, principe e rei de uma grande napao de Cambaes,61 muito amigo dos francezes, e inimigo naiural dos portugue- zes, podendo afianpar-se com certesa, que si os francezes ahi fossem, elle trahiria os portuguezes e unindo-se a elles, por ser mulato-franeez, isto e, filho de um francez e de uma india. Voltemos ao nosso proposito. Encontraram os nossos selvagens ainda vivo um dos seus, que fugio para o mato, e escondeo-se no concavo de uma arvore; porem ouvindo o som das trompas de guerra, que cram feilas de um grosso madeiro cavado, tendo as abertu- ras superior e inferior similhantes a uma trombeta, sahio muito magro, e quase que sem figura iiumana por nao ter comido durante oito dias senao folhas da arvore, onde es- condeo-se: ensinou, como the permittiram suas forpas, o lu- gar onde jaziam mortos seos companheiros, que foram en- contrados com as cabepas rachadas, e sobre seos corpos os rnachados de pedras, instrumentos d’essas atrocidades, por ser costume entre elles nunca se servirem d’uma arma com que ja mataram um inimigo.Caruatapyran, um clos Principaes cle Coma, trouxe-me urn d’esses machados de pedra, ainda tinto de sangue, com alguns cabellos adherentes, e com um pouco do cerebro do Principal ianuaran, que com die foi morto, o que so soube por set* encontrado sobre seo corpo. Caruatapyran pegando um d’esses machados, foito em forma de crescente, ensinou-me o que eu nao sabia, dizen- do-me terem os Tremembes o costume mensal do vellar tod a a noite fazendo seos machados ate licarom peif. it os, em virtude da superstipao, que nutriam, de que indo para a guerra armados com taes instrumentos nuuca seriam ven- cidos, e sim sempre vencedores. Em quanto os homens e as mulheres se entregavam a este trabalho danpavam as mopas e os meninos a frente das choupanas ao luar do crescente. Sao valentes os Tremembes e temidos pelos Tupinan- bds; destatura regular mais vagamundos do que eslaveis em suas moradias: alimentarn-se ordinariamente de peixes, porem vao a capa quando lhes apraz: nao gostam de fazer hortas, e nem casas: moram debaixo das choupanas; prefe- rem as planicies as florestas porque com um simples olhar descobrem tudo quanto esta as suas vistas. Nao conduzem apos si muita bagagem, pois contentam-se com seos arcos, flexas, machados, um pouco de ca-m, al- gumas cabapas 62 para guardar agoa, e umas panellas para cozinhar a comida: com mais destresa que os Tupinambas pescam a flexa: sao tao robustos a pontu de segurarem pelo brapo um dos seos inimigos e atirarem-no ao chao, comn so fosse um capao. Dormem n’areia ordinariamente. Servem-se d’este lugar de areias brancas, e de arvores seccas para agarrar os Tapinambds, como ratoeira para pilhar ratos, e isto por tres razoes. A primeira, por causa da pesca, ahi abundante e va- riada. A segunda, por causa de uma floresta, onde os passaros vermelhos de todas as partes vem fazer ninho para des-ovar. Nao deixam de ir ahi em certo tempo os Tapi nambds para tirar do nmlio os filhotes ) os ovos meios ehocos, haven1o abundaucia irnpossivel de descrever-se, le- vando, quando regressao a villa, provisao para dois mezes, preparando antecedentemente uns assados, e outros seecos e duros como paus, o que nunca me agradou, e a fallar ver- dade, nunca pude comel-os, embora sejam para os selva- gens o primeiro prato, e bem delicioso. Logo contarei al~ guns uzos particulares, e bem notaveis, d’estes passaros. 0 terceiro motivo e para colher o ambar-gris, chamado pelos Tupinambas Piraputy «excremento de peixes,» 63 por que elles pensam ser o ambar-gris o excremento das ba- leias, ou de outros peixes iguaes em corpulencia, o qual vindo a tona d’agoa, 6 pelas ondas atirado a essas praias. Dizem alguns francezes nao ser o ambar-gris outra coisa mais do que a «flor do mar,» a que os selvagens chamam Paranampoture, ou uma certa gomma do mar, Parana- mussuk. Decida o leitor como lhe aprouver. N’estas areias encontra-se o ambar-gris em massa, mais n’um tempo do que n’outro, e algumas vezes chega a massa a tal tamanho e grossura, que merece ser guardada n’algum gabinete real, nao podendo ser justamente aprepada e ven- dida. Acontece as vezes virein posar sobre ellas todos os bixos, passaros, carangueijos, lagartos, e outros reptis d'ahi, das circumvisinhanpas, e do mar, e com elles as v6em pro- curando-as com cuidado, e por isso sao essas grandes mas- sas partidas em varios pedapos. Aconselhei a elles, que ahi fizessem um Forte nao so para impedirem as correrias dos Tremembes, como para tapar a entrada aos navios, que buscam a llha de Sant’Anna afim de colherem o ambar-gris; nao ha duvida, que o mar atira muitas vezes sobre estas areias o ambar, que por ahi espa- lhado e comido por animaes, passaros e reptis, pois os sel- vagens da llha ahi vao apenas duas ou tres vezes durante o anno.129 Tenho certesa, que a colheita do ambar chegaria para pagar as despezas do Forte, da sua guarnicao, e do mais que fosse necessario. Os nossos selvagens e francezes depois de muitas indaga- poes por varios Iugares somente achararn os corpos mortos dos seos, as choupanas, e vestigios de inimigos, e assim re- gressaram a Ilha mais famintos do que feridos. Da chegada dos Cabellos-compridos a Tapuitapera e da viagem ao Uarpy. La para o lado do Oeste havia uma napao, de que nunca se fallou, desconhecida por todos os Tupinambds, mora- dora nos mattos na distancia de mais de 400 a 500 legoas da Ilha, sem conhecer a vantagem dos machados e das foices, pois apenas se serviam dos machados de pedra, e assim viviam em segredo nas florestas d’essa localidade sob a obeaiencia de um Rei. Souberam por alguos selvagens, que apresionaram no mar, da vinda dos francezes a Maranhao, da sua residencia ahi, trazendo comsigo Padres, que ensinavam qual era o verda- deiro Deos, e absolviam os selvagens dos seos peccados. Levando taes noticias ao seo rei mandou este logo algu- mas canoas, e n’uma d'ellas foi o governador, abaixo d'elie, d’esta napao, acompanhado por duzentos mancebos fortes e valentes, ageis na natapao e no uso da flecha, com instru- cpao de chegarem a Ilha, porem nao podendo por pe em terra, limitando-se apenas a fallar com os interpretes dos 23130 francezes, e regressando depois a sua terra tomando todo o cuidado para nao ser descoberto o caminho que se- guiam. Chegaram defronte de Tapuitapera, onde entao se acha- va o interprete Migam, que apenas soube da chegada d’el- les foi ao seo encontro no mar, e com o seo Principal fallou por muito tempo. Interrogou-o o Principal acerca dos Padres, quern eram, o que faziam e ensinavam: a respeito dos. francezes, quaes suas formas, e mercadorias, si era certo terem conciliado os Tupinambds com os Tabajares, e si viviam em paz na Ilha. Respondendo o interprete a tudo isto, como devia, flcou satisfeito e assim o disse, asseverando que o mesmo acon- teceria a seo Rei e a sua Nafao, porque todos desejavam aproximarem-se dos francezes para conhecerem a Deos, te- rem machados e foices de ferro, com que cultivassem suas ro£as, e estivessem sempre em guarda contra os seos inimi- gos, plantando muito algodao e outros generos para offere- cerem, como recompensa, aos francezes, aos quaes apenas pediam allian^a e protecfao. Perguntou-lhes o interprete, si era grande sua na^ao, e si estava muito longe, ao que respondeo affirmativamenle, marcando a distancia por legoas pouco mais on menos, que podiam haver da Ilha a sua terra, mostrando com os dedos o numero de luas, isto 6, de mezes, que eram necessarios para regressarem ao seo paiz, e accrescentou «nao te posso dizer o logar da nossa habitapao, porque meo Rei assim me prohibio, e tambem porque receiamos, que si nos fapa guer- ra. D’aqui ha seis mezes regressarei para te dar certas no- ticias, e podes dizer ao teo chefe, que sendo verdadeiras as tuas informafoes viremos morar por aqui perto.» 0 interprete respondeo—«vem, te rogo, ver o Forte, que flzemos, as grandes pe^as, que montamos sobre suas mura- lhas, e os francezes, que as guarnecem para de tudo dares noticias a teo Rei.»«Nao, disse elle, eu e os meos recebemos ordem de nao sallar em terra». Tanto porem instaram com elle, quase re- cebendo refens, consentio alguns dos seos saltar em Tapui- tapera, onde foram muito bem tratados, e ahi adquirindo. em troca de generos, que levaram, alguns machados e foi- ces, regressaram mui contentes. Durante essa visita, conservaram-se a nado as canoas, os remos armados, e tudo prestes se houvesse alguma traipao. Tinham os outros as flechas e os arcos promptos, tanto des- confiam estas napoes timas das outras! Apenas chegaram os seos, restituiram os refens, e foram- se em paz. Deos os guie e os traga ao seo grernio. Quanto a viagem ao Uarpy,64 * rio e regiao, em dis- tancia para mais de 120 legoas da Iiha, la para as ban- das dos Caietes, foi emprehendida pelo Sr. de Pezieux, com alguns francezes, e duzentos solvagens pelos seguintes motivos. Primeiro: para descobrir uma mina de oiro e prata na dis- tancia de 100 legoas acima do rio, d’onde os selvagens nos trouxeram enxofre mineral, muito bom, e por tanto havia esperanga de serem as minas boas e abundantes. Tern me esquecido dizer, que ha em tod a esta terra gran- de numero de minas de oiro, misturado com eobre, de prata misturada com chumbo,65 o que provam as agoas mineraes que descem dos montes. Segundo: para traser comsigo uma napao de Tabajares, habilante das margens do Rio. Terceiro: para procurar uma napao de cabellos compridos por ahi errante, os quaes sao doceis, faceis de serem civi- lisados, e que negociam com os Tupinambas. Si se realisarem estas coisas, como creio, a Ilha sera em pouco tempo rica de generos cultivados por todos estes sel- vagens reunidos, e tornar-se-ha forte contra a invasao dos por- * Gurupy. Do traducior.tuguezes, e descanpando n’esta esperanpa vou fallar de al- gumas raridades, que notei ahi, cortando as difficuldades que se apresentam a primeira vista por raeio de razoes boas e naturaes. CAFXTULD XX2OT Dos astros e do sol. £ bello e magnifico o Geo, n’esta zona torrida, embora parepa muito menos estrellado do que na Europa, isto e, nao apparecem tantas estrellinhas fixadas na abobadaazuladad'a- quelle como acontece na do nosso, pois no Maranhao ha es- trellas maiores e brilhantes, e mais luzentes do que aqui. Nao me convenpo de la nao haverem inenos estrellas do que aqui, antes esta falta, que noto, attribuo a rninha vista, e por mais esta razao. Todos os que habitam fora dos dois soisticios, Cancer e Capricornio, olham obliquamente o centro do ceo, que e a linha ecliptica ou zona torrida, onde passa o sol, e por tanto tern maior horisonte, ou maior espapo do ceo a contemplar, e menos numero de estrellas a contar. E pela experiencia confirmada esta razao, porque nasce e deita-se o sol, sem preceder aurora, e assim acaba o dia e eomepa a noite, e si ha tarde ou manha e quasi nada. Na Europa acontece o contrario, pois algumas vezes te- mos mais de duas horas de tarde, e outras tantas de ma- nha, antes do nascimento e do occaso do sol, porque os ha- bitantes da zona torrida estao na esphera direita e nos ou- tros na obliqua.Ainda acrescento outra experiencia. Quando regressamos de Maranhao para ca, no Polo Sep- tentrional, descubrimos mais depressa a estrella d’este Polo, do que quando na nossa viagem para la descobrimos a es- trella do Cruzeiro embora mais elevada do que o Polo An- tarctico ou Austral. Ainda fiz outra observapao n este planela do Sol, e que mostra dois meios-dias diversos entre os dois termos do anno, de sorte que n’uma metade do anno, olhando o Este esta a direita, isto e, na parte austral, e no resto do anno a es- querda, isto e, na parte septentrional, e em ambos elles lia pouca sombra. 0 sol no zenith somente duas vezes no anno olha para esta terra, como succede a todas as regioes con- tidas nos dois solslicios: algumas vezes esta tao perlo da es- phera direita, que pouco fa!ta para chegar ao meio dia, e ferir-vos a prumo o cume da cabepa. Comtudo isto destinguem-se perfeitamente ambos estes meios-dias. Explica-se isto por ser preciso cortar duas vezes, annual- mente, o sol quando no zenith, a zona torrida, como ja disse, para fazer os solslicios de Cancer e Capricornio, e por tanto os habitantes da zona torrida o veem fazer o seo meio-dia ora de urn lado, ora de outro: por exemplo: quan- do sahe do Capricornio atim de encaminhar-se para Cancer, os brasileiros habitantes da zona torrida observam o seo meio-dia a direita e quando deixa Cancer com direcpao a Capricornio veem-no a esquerda. Abre-se-me vasto campo para descobrir a sabedoria de Deos na organisapao do mundo, tendo por fim apenas escre- ver succintamenle uma historia, entrego a considerapao do leitor chamando a sua attenpao para a maneira como Deos dividio o curso do sol em duas extremidades e urn meio, re- cebendo os habitantes de todas estas tres partes a mesma luz durante o anno, tanto uns como outros, excepto os habi- tantes de Cancer, que apenas tern durante o anno tres dias e algumas horas de sol mais do que os de Capricornio ori-134 ginando-se por isso os annos bissextos e a reforma do ca- lendars, c-omo vamos explicar. Principiemos pelo meio-dia, e acabemos pelas extremi- dades. 0 meio e compos to de duas extremidades, equidistantes uma da outra, porque de outra forma nao seria meio. 0 curso do Sol se faz em 24 boras, dia natural, e em 12 mezes por anno. Ora sendo a zona lorrida o meio do curso diario e annual do sol, e indispensavel, que na sua terceira parte e porgao mostre diaria e annualmente a luz do sol igual a que se apresenta nas duas extremidades, o que nao poderia fazer; si os dias nao fossem iguaes, tendo cada urn 12 boras de Sol, porque, si excedessem ainda que pouco, nao seria o meio do curso do sol, e sim cahiria mais para uma das duas extremidades, tendo, durante 12 mezes, uns dias maiores do que outros, compensando n’uns o que rroutros perdia, e convindo por isso marcar-se outra zona de ceo, que fosse o meio e o centre d’essc curso, sendo o meio a essencia e a base das duas extremidades. E impossivei imaginar-se dois extremes sem meio: come ja disse, o meio e composto de duas extremidades, e por isso sendo a zona lorrida o meio da carreira do sol, deve ter sua porgao de luz a custa das duas extremidades, que sa-j Jose e dose, que da o sol igualmente para os dois sol- sticios, entre as duas partes do auno, recompensando n’um tempo o que noutro perdeo. Consideremos agora uma terceira porgao para servir de meio d’estas duas extremidades, dose a dose. Convem tornar 12 de uma parte e 12 de outra para ser o todo igual: eompreheudereis assim facilrnente como esta zona torrida gosa igualmente com as outras partes do mun- do da luz do sol sem mudar seo numero de seis a seis em tempo algum, porque partecipa igualmente das duas extre- midades, quer va o sol visitar Cancer e seos habitantes dan- do-lbe com a sua boa chegada mais largura e liberalidade135 de luz, quer va fazer outro tanto ao Capricornio, nao the sendo por isso de forma alguma importuna a zona torrida, e nem alteando o seo imposto ordinario, fazendo-lhe pagar somente, seis horas da manha, e seis depois do meio dia, a luz e calor para a sua passagem da travessia da terra, e pelo trabalho dos seos habitantes durante a sua vinda. Quanto as terras e aos habitantes inter e extra-tropicaes dividem entre si igualmente, pouco mais ou menos, em di- versos tempos, a luz do sol, e por compensapao mais n’um tempo do que em outro: no flm do anno acham que cada um teve 12 horas de luz para urn dia natural, e dose me- zes por anno. Ja disse que os habitantes de Cancer, dentro e fora do seo Tropico, gosam mais tres dias do sol do que os outros. Dar a razao natural d’isto, e o que dizem os aslrologos, e o mesmo que nada, por ser segredo, que em si guardou a divina Providencia, e uma honra que deo ao mundo anti- go, composto d’Asia, Africa e Europa, e si basta uma razao allegorica, sou de opiniao que e para fazer sobresahir tres privilegios especiaes, que sobre o mundo velho alcanpou o novo, e que sao—a primeira habitapao do homem expellido do Paraiso Terrestre; dadiva da lei escripta a Moysfe; e a redemppao do mundo por Jesus Christo. CAPITULD ZZZYI1 Ventos, chuvas, trovoes, e relampagos em Maranhao e suas circumvisinhancas. Alem do que a este respeito disse em sua Historia o pa- dre Claudio d’Abbeville acrescentarei para satisfapao do lei tor o que me fez conhecer a experiencia:1. ° Fallando dos ventos, entre os quaes o do Oriente tem o sceptro e occupa o reino do Brasil, aiem das razoes dadas por esse Reverendo Padre, dou outra, qae devo aos mathe- maticos, que por la andararn e escreveram sobre a materia. Dizem elles, que a conslancia d’esse vento soprando por ahi e aevida a disposipao das costas do Brasil, em linha recta de Este a Oeste, porque tendo o sol levantado os va- pores da terra e da agoa e atirando-os apossi, peia violen- cia do seo curso diario encontram as costas do Brasil do Oriente ao Ocidente sem inflexao ou curva alguma e por isso seguem por ahi. Praticamente observa-se isto coiu o fumo, que espalha-se no primeiro corpo solido, que encontra como sustentaculo de sua fraqueza, e sem elle derrama-se a feipao do vento, que ahi sopra. Com quanto o vento das outras tres partes do mundo, a saber, Oeste, Norte e Sul nao reinem no Maranhao e suas circumvisinhanpas em comparapao com o de Este, nao se- pode comtudo dizer, que nao soprem algumas vezes ventos do Norte e do Sul, e raras vezes o de Oeste. Em Maranhao os ventos vao sempre augmentando desde Agosto ate Janeiro, que 6 propriamente o estio d’esta terra, e quando o tempo e sempre sereno. Explica-se isto pelo curso do sol que regressando do sol- stice de Cancer para o de Capricornio surgem debaixo da zona torrida grandes vapores, aquosos e humidos, e quanto mais se aproxima d’essas terras mais se levanta, e por tanto mais se reforpam esses ventos, que nao sao outra coisa senao esses vapores misturados corn o ar. 2. ° A razao porque comepam as chuvas em Janeiro ou em Fevereiro, e vao sempre augmentando ate principio de Junho ou tins de Abril, e porque o Sol volta do solsticio de Capricornio para o de Cancer, e attrahindo muita humidade expande-a no ar, e d’ahi cahem os chuvas: quanto mais o Sol se aproxima do seo terrno, mais augmenta sua humi- dade, e torna a queda das agoas mais expessa, forte, e ra~pida, e por isso vemos no Brazil ser ditte rente a epocha c a forpa das chuvas, isto e, mais depressa e mais abundante n’urna terra do que cm outra. De ordinario sao as chuvas abundantes e frequentes, du- radouras e continuas, mais a noite do que de dia: e o tempo proprio para semeiar-se, porque tudo nasce, eresce, pro- duz, e da colheitas. Quando a terra e arenosa, e que esta secca peia proxi- midade do Sol, ao caliir das chuvas continuas e abundan- tes, ella absorve admiravelmente as agoas, muda a sua se- cura para uma temperatura humida, que e a mae das ge- rapoes. Sao diversas estas chuvas do orvalho da noite no estio, porque tern este bom cheiro e aquellas mau, visto que pro- vindo as chuvas do choque de expessos vapores aerios, tra- zem portanto comsigo a qualidade de seos agentes e a sua causa efficiente: acrescente-se aiuda que a queda impetuosa das agoas sobre a terra, coberta de iolhas em putrefacgao ou de cinzas de pans queimados, revoive-a, e d’ella faz despren- der-se, com o seo estado constante de calor natural, mau cheiro provcniente de taes objectos. 0 orvalho cahindo doce e brandamente em noite serena, mais fria do que calicla, exhala cheiro agradavel, especia!- mente quando se derrama sobre plantas odoriforas. E mais doentio o tempo das chuvas do que o das brisas, ou ventos de Este, porque em primeiro logar nao sopram mais os ventos, e por conseguinte nao purilicam o ar, e d’elle nao expellem vapores intensos, maritimos e aquosos, e por isso mui doentios: em segundo logar chocando-se as nuvens e cahindo as chuvas, apparecem molezas no corpo, doenpas de corapao, desarranjos do estomago, enfraquecen- do-se os nervos, e infiltrando-se os ossos de humidade o que nao apparece no tempo das ventanias, que limpam o ar, o mar, e a terra. :E° Os trovoes e relainpagos sao, sem comparapao aigu- ma, mais fortes e frequentes no Brasil do que no mundo ve-138 Iho, especialmente no tempo das chuvas, sao horriveis os trovoes, parecendo abalar-se a terra, e um relarnpago dura mais do que dose na Europa. Durante esse tempo nao saliem de casa os selvagens, e nem o mais valente se atreve a por o nariz fora da porta, e eu mesmo, sein ser dos mais timoratos, fartei-me de medo, embcra ninguem visse a queda do raio. Eis a razao. Emquanto e brando o calor de Agosto a Fevereiro raras vezes ha trovoes; mas quando surge a guerra do frio e do calor, que e de Fevereiro a Junho, entao e necessario que appare^am escorvas e pepas, isto e, raios e trovoes. N'este tempo reina o calor na zona torrida com todo o seo vigor, e o frio entao se fortifica pelo regresso do Sol de Capricornio para Cancer, cheio de humidades do ar, o por isso e grande o combate, mais frequences os trovoes, e mais meuonhos os relampagos. Nao se descobre a queda dos raios porque sao altas e vigorosas as arvores do Brazil, e ordinariamente e n’eilas, como aconlece em toda a parte, onde cahern os raios. C'»mo e o paiz coberto de florestas, e repleto de arvores de admiravel aitura, e bera facil cahir o raio desapercebi- damente. Pruva-se isto todos os dias com arvores cahidas e quei- madas, que se encontram nas florestas.139 uAFXTULO ZXZ71XI Mar, agoas, e fontes do Maranhao. 0 mar, pelas suas mards, nao 6 o mesmo que o do res- tante do Mundo. Embora o Oeceano acompanhe infallivelm?nte o cres- cente, o plenilunio, e o minguante da Laa, comtudo no- taram nossos niarinheiros em um ou dois dias, e algumas vezes mais, differenpa e falta de igualdade do que se ob- serva n’outras mards do Dniverso. Explica-se isto observando-se, que o Brazil esta cercado de milhares de inflexoes ou voltas, formadas umas por ban- cos e comas de areia. e outras por voltas de pontas de terra e bahias. Accrescente-se ainda terem toclas estas terras as sahidas mui relaihadas, que impossibilitam o desembocar da mare com toda a sua forpa para os rios salgados e portos e bar- ras, como acontece n’outras partes. Reparae por exemplo o fluxo e reflnxo do mar no rio Sena, pois quando o mar no Havre da Grapa principia a re- fluir ja a onda ehegou a Ponte de Arche. Reparei tambem na seguinle coisa commum as outras ma- res, porem nao tanto como as antecedentes. 0 mar no seo fluxo, batendo nas pontas das rochas, deixa no meio um canal ou rego, que mostra a sua corrente prin- cipal, forrado de excrecencias maritimas, que ahi se amon- toam, e si passar-se uma corda pelo seo nivel podera ser- vir de marca aos pilotos para reconhecer o canal no meio dos recifes. Parece-me explicar-se isto pela propriedade da forma cir- cular, que tem os elementos, a qual Ihes permitte expandir- se at6 a circumferencia: em virtude d’isto o mar faz no meio do centro do seo fluxo o rego, ou fio de sua carreira, depois dispersa-se, e da a cada ponta de rochedo a sahida para a mare, e por isso tenho observado algumas vezesrnuitos pedagos de pau serem arremegados era diversos sentidos contra os rochedos pela violencia e corrente d’es- sas differentes mards. As agoas do Maranhao sao incorruptiveis, e iriuito me- Ihores do que as da Europa, como tive occasiao de veri- ficar por espago de dez semanas na viagem do meo regresso: eis a razao: quanto mais sugeito esta urn corpo a transform magao e mudangas de qualidade, mais susceptivel se torna de ser corrompido e mau por causa das alteragoes, que sof- fre, ora as agoas do Maranhao achando-se sempre no mesmo estado, sao por tanto incorruptiveis e optimas. As agoas da Europa sao polo contrario ora quentes, ora Mas, e por con- seguinte corrompidas e mas. Nao sao frias como as da Europa as fontes do Maranhao, porque sendo haixas as terras do Brazil nao pode operar-se a anteperistase em suas entranhas, especialmente pela pro- ximidade do s6l, que penetra muito bem e com todo o vi- gor na terra, que 6 arenosa e mui susceptivel de calor. As agoas da Europa sao Mas no Estio por causa da grande anliperistase das terras, d’onde cahem as agoas, que sao alias, muitas vezes fortes e densas. e por isso resistem ao sol. Gonservam. as fontes do Brazil sempre a mesma tempera- turn, porque o sol derrama-se igualmente por cima d’ellas, que nada tern, que Hies possa imprimir alguma qualidade fria. Enlre as fontes do Maranhao umas sao melhores do que ontras, e tern ate cores diversas: a que nasce da terra e ciivtrsa em gosto e cor, porque sendo a terra baixa, e ha- ve;, !e muitas arvores, umas com bom gosto e outras corn man, estendem por ahi suas raizes, e d’ellas os olhos d’agoa, ou os veios das fontes recebem qualidade boa ou ma, tanto da terra como das arvores. Notei n'estas fonles o seccarem umas em setembro, e ou- tras minguarem muito, porque sendo o terreno do Maranhao quente, secco, e arenoso consome facilmente as agoas das141 chuvas, que por elle corre, e que serve de alimento as di~ tas fontes: achando-se pois os mezes de setembro, outubro, novembro e dezembro muito longe das chuvas, 6 natural, que as fontes acontega o que ja dissemos. Quern quizer beber agoa muito fria, deve expol-a ao se- reno, e na manba seguinte esta tao fria como gelo, o que nao lhe succedera se rnessa bora for buscal-a a fonte, porque sendo as noites em Maranhao muito frias, ellas tem muito mais forga sobre uma porgao d’agoa guardada n’uma vasi- lha, eercada de ar por todos os iados, do que sobre agoas sempre em rnovimento pela corrente, contidas em ieitos bai- xos, cobertas e sombrias por todos os lados. e tendo a su~ perficie apenas a visla. Facilmente observa-se islo na Europa, durante o inverno, nas fontes e pogos situados em lugares retirados e som- brios, pois nunca suas agoas se gelam, ou pelo menos se esfriam. Singularidades de algumas arvores do Maranhao.66 As arvores do Maranhao, em sua maior parte, sao duras e pesadas, porque a solidez nas coisas mixtas provem da boa cocgao da humidade. N’este paiz existe em igual abundancia tanto a humidade como o calor, cada um durante a sua estapao: as chuvas tem seo tempo proprio para alagar a terra, e o calor tambem o tem para coser e digerir esta humidade, que 6 nutricgao dos vegetaes, especialmente das arvores, que estendendo142 suas raizes denlro e fora da terra por ahi chupam muita agoa e sobreviodo o calor transforma a humidade em corpo solido. As arvores estao sempre verdejantes por successao diaria e continua de folhas novas as velhas, de forma que, sahindo aquellas dos olhos dos ramos vao logo por forpa propria at- trahindo a seiva, ficando d’ella privada as velhas, que por isso defmham e cahem. Observamos isto no nosso corpo quando uma unha nova vem substituir a velha. Por esta renovapao de folhas couservam-se as arvores no mesmo estado, o que nao vemos na Europa porque o in- verno retem no interior das arvores o calor natural d’ellas: 6 necessario que caiam as folhas antes da ausencia do ca- lor, ficando so a humidade, que apodrece o pd da folha em vez de Ihe dar vigor como acontecia no tempo do calor, e por tan to assirn se faz a queda das folhas. No Brazil acontece o contrario porque vivendo o calor e a humidade em boa e perpetua companhia, novas folhas nas- cem ao mesmo tempo que as velhas cahem: geralmente, em todas as coisas notarise tres estados: l.° Grescer. 2.° Permanecer. 3.° Decrescer e assirn sempre ate morrer: eis o que observamos nas folhas—teem tempo para crescerem, fi; ire in perfeitas, e depois irem definhando at£ cahirem Entre estas arvores merecem especial menpao em primeiro lugar os mangues, arvores, que crescem nas barreiras do mar, e espalham seos ramos, e flbras sobre as areias do mar, ou entre as pedras que cobrem o limo, ahi se fortifi- cam, engrossam, e chegando ao seo estado completo, come- pam elles mesmos a deitar novas fibras, que tem igual des- envolvimento, e assirn se reproduzem infmitamente, nao pelas raizes, como as outras arvores, e sim pelos seos ramos. Nao sei o que mais admirar, si a successao perpetua de pae a filho. ou a gerapao inteiramente diversa das outras arvores.143 A razao, porque assim produzem estas arvores, prov6m de serem alias, pesadas e em seo prineipio fmas e delgadas para a raiz, e grossas no centro: se nasciam da raiz de seo pae, nunca poderiam subir por causa da fraqueza e delica- desa de seo pe, da grossura e peso do seo meio, e assim ficam deitadas e rastejando pela areia, a que deo a natu- reza o encargo de dar dois nascimentos; urn do ramo de seo pae, onde ficam perpetuamenle encorporadas e por conse- guinlebemsustentadas, outro da origem da enseiada do mar, na qual ellas aprofundam e estendem suas raizes, e d’alii extrahem segunda nutrigao, e assim sustentadas e nutridas por cima e por baixo com facilidade crescem. Notan de passagem esta bella particularidade de terem dois nascimentos e duas nutrigoes: a primeira de cima con- substantial com o seo gerador, que com elle faz uma mes- ma essentia. sendo gerado, sahido d'elle, e sempre com rile e inseparavelmente vivendode sua nutrigao. 0 segundo cimento e nutrigao e dehaixo do seio da areia do mar, nu- trindo-se do mesmo mar, chamando para cima esta nulrigao para unil-a com a que recebe de seo Pae: por estas duas nutrigoes cresce, estende seos ramos, d<>s quaes, de novo, por outro nascimento produz seos fios, que adquirem raizes dentro do mesmo mar, que o produz. D’esta comparagao eu me servia para fazer comprehcn- der aos selvagenso Mysterio da Encarnagao do Filho de Dens dizendo ter elie dois nascimentos, um de cima, eterno e di- vino, sahindo de seo Pae sem d’elle sahir, dislincto de seo pae por hypostase como o ramo de mangue, com o filho ge- rado d’elle, unico comtudo na essencia e na substancia com seo gerador, como a fibra com seo ramo, vivendo de uma mesma nutrigao divina e celeste, a saber, o amor do Espi- rito Santo, que constilue a terceira pessoa da Trim lade: o outro nascimento e de baixo, temporal e humano, sahido do seio da Virgem Maria, nutrido com o seo leite sagrado, foi crescendo homem e Deos ao mesmo tempo, vivendo interi- ormente da nutrigao divina, e exteriormente da nutrigao cor-144 poral, e quando chegou aidade de 33 annos e meio, depois de haver communicadosuadoutrina celeste aos homens, con- firmada por seos milagres, estendeo seos brapos, consenliado que fossem pregados na arvore da Cruz e do meio de suas chagas sahiram seos escolhidos, que depois tomaram raizes na Santa Igreja, regenerados pela agoa do baptismo, e nu- tridos pelos Sanctos Sacramentos. Diziam-me os selvagens, que comprehendiam isto muito bem e sem a manor difficuldade, porque si Deos.deo tal po- der as arvores, que nao sentem, porque nao poderia elle (azer o mesmo a si ? N’esse paiz existem arvores, que se mostram exteriorraente seccas, sem folha alguma, e comludo quando chega o tempo proprio brotam d’ellas em quantidade (lores muito bellas e em cachopas, porem sao de diversas cores e ordinariamente amarellas. Encontra-se a razao (Testa particularidade no logar esco- lhido pela naturesa para lerminar a sua acpao: por exemplo; quando 6 liberal dando a qualquer membro um excesso de nutripao, e a custa dos outros: quando estas arvores dao sua seiva para formar uma casca grossa, verdejante e humida e cobrir de lindas folhas os seos ramos, nao produzem bellas (lores, as quaes naturalmente, em todos os vegetaes, for- mam-se de uma seiva bem digerida e subtil, e por tanto podendo subir facilmente ate as extremidades dos ramos, nao cuidando das outras partes da arvore para lhes dar qual- quer nutripao. Reconheci isto em Franpa, onde se podam as cerejeiras para nao dar fructo, afim de com toda a sua seiva produ- zirem {lores largas e dobradas, como rosas almiscaradas du- plas. Tambem existem outras arvores, que fecham suas folhas, e as dobram sobre si, quando o sol esta no seo occaso, e apenas se levanta ellas desdobram-se e expandem, como acontece em Franpa, ao Girasol.145 Este phenomeno e devido a humidade ou sereno na noito, que as aperta e fecha porque o frio tem essa qualidade, e o calor do dia as abre e as expande por ter essa proprie- dade. Com bastante difficuldade pude deparar com as razoes naturaes de muitas singularidades, que vi em Maranhao, po- rem confesso com franqueza, que nunca acbei a causa natu- ral: certas arvores d’aquelle paiz, apenas se toca com a mao o seo tronco, immediatamente fecbam todas as suas folhas: por certo havera n’estas arvores alguma propriedade sensi- tiva, como ha na esponja, a qual apenas sente a mao do homem, que a pretende cortar, ella se aperta, e occulta-se no concavo e na fenda da pedra do mar, que a forma. Os cajueiros, que produzem uma fructa propria para fa- zer vinho, nascem espontaneamente pela costa do mar, e por isso vivem da seiva maritima e salgada, resultando d’isto ser o vinho de caju picante e acre, e produzir no futuro do- res nos rins, e ser prejudicial aos pulmoes. Por experiencia coei este vinho, e d'elle tirei muito sal. Ha espinhos, que dirieis serern creados por Deos para re- presentar o mysterio da paixao de Jesus Christo, 67 porque crescem formando ramilhetes quatro em cima, equidistantes a maneira de uma Cruz, e um no cume com a ponta virada para o Ceo, ornado de nove folhas, dispostas como tres ra- minhos, cada um com tres espinhos, que em tempo proprio se transformam em tres flores, ficando o espinho maior no centro. Sao estes cinco espinhos os instruments das cinco chagas de Jesus-Christo. Cercando a coroa de espinhos seo Chefe, como o espinho de cima e cercado de folhas, isto e, de pec- cados e de vaidades das tres idades do mundo, na lei da natureza, escripta e de fd, cujos peccados e imperfeipoes se transformam, pelo merecimento do sangue de Jesus Christo, em {lores da Grapa, em boas obras. e na recompensa da gloria.CAFITULQ XL Dos peixes, passaros e lagartos, que se encontram n’esses paizes. Eis uma questao nao pequena, de phisica ou de philoso- phia natural—«como pode um animal, vivo e perfeito na sua e-specie, formar-se sern progenitores.» Alberto, o grande escriptor, vio peixes vivos no meio de urna grande pedra inarmore, tirada da rocha, e rachada no centro. Nao e novidade para os que leram este autor, porque eu vi em Maranhao, nos regatos formados pelas chuvas, e que pouco duram, muito bons peixes, iguaes em tamanho e cor aos que vivem em rios permanentes, e que nasc^m de ovas. Como e possivel, que sem haver ovas, possam estes pei- xes nascer, crescer e morrer, com a queda, augmentoeau- sencia das chuvas ? A razao d’ist-o esta na forpa e influencia dos planetas pre- dominantes em janeiro e fevereiro, quando nascem estes peixes, e na eonjunepao forte da humidade e do calor e na disposipao do terreno, tudo isto combinado de tal forma, que da origem a taes e taes peixes de preferencia aqui do que em qualquer outra parte; como vemos na Europa em que a diversidade das terras, por onde passam as chuvas, produz differentes varied ades de peixes. Entre os passaros do Maranhao, dos quaes eu diria mara- vilhas, si outros ja o nao tivessem feito, notei uma especie singular de aves aquaticas vermelhas, 68 cuja penna e car- ne sao de cor escarlate, dando-se a particularidade de serem brancas quando sahem do ovo, depois com o tempo, quan- do podem voar; sao pretos, e assim fleam ate chegarem a sua grandesa e grossura natural, d’ahi vao se tornando meio pardos e meio vermelhos, e finalmente totalmente rubros, passando assim por quatro mudanpas.Nao digo isto por ouvir dizer, porem observei nos que so criam em casa presos. Esle phenomeno nao se da sem uma razao profunda, e fundada na naturesa, e me parece str esta: a cor da pelle e das pennas e devida a disposipao e qualidade do alimento, que nutre a ave, porque diz o phi- losopho, a pelle e as pennas nascem, crescem e se nutrem com a superfluidade dos alimentos: ora a cor branca faz sup- por alimenta^ao leve e delicada, e por isso a avesinha ao sahir da casca do ovo, vivendo somente a custa do moscas e mosquitos, que voam ao redor d’elle, e natural que suas plumas, originadas de tao fraca comida, tenham a cor branca. A cor negra porem faz crer em abundancia e superflui- dade de alimentapao, porque a intensidade do calor natural vae sempre excitando o apelite, e cmpurrando-o para o pasto e por isso notei, que quando esta ave tern as pennas pro- tas e glutao e come constantemente. A cor parda e meia vermelha mostra uma tendencia, ou uma regra, nascida expontaneamente da naturesa para aco- lher uma certa alimentapao, que Ihe e propria, e entao ob- servei escolher esta ave uma comida singular e especial, isto e —os carangueijos, os quaes consummidos no estorria- go, ahi se transformam em chylo vermelho corno escarlate, e este cahindo no figado, se d'elle nao receber alguma cor, corno acontece com os outros anirpaes, tinge-o com suacor, e sempre assim passa para as veias, das veias para a carne, da carne para as pennas, e tao perfeitamente, que si fosse urn mettido dentro de uma panella para cozinhar, podia di- zer-se que havia dentro uma porpao de vermelhao. Eotrc milhares de lagartos e reptis do mar, appliqud mi- nba attengao para uma especie bem monstruosa. E urn animal que vive umas vezes n’agoa, outras em ter- ra, e tambem nas arvores, contendo em si as ires espheras com que vivem todos os animaes do mundo. Com os peixes partilha o elemento d'agoa, com os ho- mens e os quadrupedes o da terra, e com os passaros ani- nha-se e repousa nas arvores. Direi ainda que s6 parece148 lerem os astros Hie dado sobre os rins, desde a cabepa ate o fim da cauda um reflexo de seos raios e brilhos, porque notareis no dorso uma bella facha de raios do sol e das es- trellas, similhantes aos que fazem os nossos pintores ao re- dor do globo do sol e das estrellas. Tem a pelle esmaltada de cor prateiada e azulada, como a abobada celeste quando serena. Quando este animal sente a intensidade do Sol, sahe do mar, sobe as arvores visinhas, e escolhendo um ramo para deitar-se, ahi se estende e descanpa. Poe seos ovos nas arvores maritimas, os quaes aquecidos pelo calor do Sol deixam sabir os lagartinhos, que apenas sahem das cascas dos ovos conhecem logo o pae e a mao, acompanham-no ao pasto no mar, em terra e nas arvores. Explico a rasao d’isto dizendo que quanto mais humido e o animal, mais somnolento 6 elle. Entre todas as especies de animaes esta sorte de lagartos e humida e fria, e por tanto sujeita ao dormir, e como seja mais agradavel o somno quando se tem os membros em certo grau de calor, eis por que elles buscam soalheiros. Reconhecendo pequeno o seo calor natural, eis porque poem seos ovos em lugar expostos aos raios do Sol. ^ A rr m Da pesca do Piry. Os selvagens do Maranhuo, de Tapuitapcra, e de Coma tem uma pescaria cerla e annual, como annualmente a do liacalhau nos Bancos da Terra Nova.Alguns mezes depois das chuvas, quando julgarn as agoas escoadas, muitos embarcam em suas canoas, levando fari- nha para alguns mezes ou seis semanas, e assim vao coste- ando a terra a um lugar distante da Ilha 40 ou mais legoas: ahi se arrancham, levantam choupanas, e depois dedicam-se a pescaria, a capa dos crocodillos, e a procura das tarta- rugas. Ahi se reunem muitos selvagens de diversas aldeias da llha, de Tapuitapera, e de Coma. Apanham-se os peixes nas popas, ou buracos de areia com pouca agoa, e quando se vae um pouco mais tarde, coagido pela estapao, encontram-se essas popas seccas e o peixe morto. Sendo impossivel dizer-se o numero ou a quantidade d’estes peixes, fapo porem comprehendel-a asseverando, que chega para carregar todos os selvagens, e ainda fica mui- tissimo. Sao grossos e curtos, nao excedem porem a gros- sura e expessura de um brapo, tem de comprimento meio pe entre a cauda e a cabepa, o focinho achatado e muito similhante ao do tenca, e parecem-se muito com os peixes maritimos chamados marujos pintados. Apanbados nas redes, que levam, chamadas pussars, se- guram-nas pelo meio dose a dose, lanpam-nos com entra- nhas e tudo ao fumeiro para assal-os, e assim ajuntam muitos, que levam para suas casas, e com esta comida sustentam- se um ou dois mezes. Quando querem comer, tiram a pelle do peixe, seccam-na ao sol, pisana-na em um almofariz, re- duzem-na a po, com que fazem seos migaus, isto e, suas bebidas, como fazem os turcos com o po dos quartos de boi cozidos ao forno quando vao para a guerra. Dirigindo-me um dia para a Ilha, achei-me em certa al- deia, onde nada tendo que dar-me para jantar, ferveram al- guns d’estes peixes n?uma panella, do caldo fizeram mingau, vindo o resto no prato. Bern contra minha vontade de nada me servi por causa do mau gosto da fumapa, porem com muito apetite comeramile tudo os francezes, que vinham eorwnigo, achando sabo- rosos os peixes, com grande salisfapao dos indios, que os apreciam tanto a ponto de irem muito longe buscal-os. Como se acham em tanta abundancia estes peixes em taes fossos ou popos desde o inverno ale esse tempo ? Se expli- cates servem ja as del no cap. 40, e por isso a ellas me refiro, acrescentando ainda o seguinte. A grande quantidade de elniva faz transbordar os rios, os regatos, e o proprio mar, de maneira que todos estes cam- pos ficam innundados ate a altura de urn homem: assim sa- hem os peixes do lugar natural, onde habitavam, alii rega- lam-se com pastes novos a ponto de nao se lembrarem de regressar a Patria, e por isso quando as agoas se abaixam, ficam presos em fossos e por,os como vimos em todos os lu- gar^s onde se dao estes factos. A eapa dos jacares Hies e util e agradavel: sao pequenos crocodillos com 8 ou 10 pes de comprimento, de pelle dura, ventre mode, sern lingua, com olhos vivos, sempre alerta e mans: accommettem o homem, cortam e devoram o primeiro membro que agarram. Bscondem-se em grotas, a margem dos rios, e sempre de emboscada, nadam como peixes, arraslam-se ligeira e brandamente, abrem a bocca, e como que intentam assus- lar-vos si vos encontrarn: poem ovos iguaes aos de gali- nhn. ;nrem cobertos de protuberancias, como as caslanhas; dizem que sao bons para comer, mas eu nao aflianpo por- que nunca os provei, pois sempre tive muito horror a estes bixos. Chocarn sees ovos, e d’elles sahern jacaresinhos, gordos, grandes e compridos, comoos lagartos que vemos pelo estio correr nos inuros. E para admirar, que de lao pequeno bixo origine-se tao grande animal, e que apenas sahido da casca do ovo comepa a arnlar e arrastar-se ! Sua carne cheira a almiscar, e doce e desagradavel: os seivageris porem nao fazerri caso d’isto. apreciam-na muitoquando a encontram, e por isso empregam-se muito em ca- pal-os. 0 logar Piry, humido e cheio de limo, tern muilus jaea- res, que sao perseguidos pelos selvagens por meio de fie- chas, atiradas com direcpao a garganta ou a barriga, c de- pois acabam-nos com uma barra de ferro, escamam-nos, e cortam-nos em pedapos, que assam. Si sao pequenos, cozinham-nos com escamas, e assim preparados acbam-nos muito bons e at6 delicados, porque assados com sua gordura, dizem elles, nada perdem de sua substancia. Achei melhor crer do que experimental', embora tivesse muitais occasioes de o fazer, visto que recebi muitos pre- sentes d’elles quando voltaram os selvagens do Piry. A recordapao somente d’estes animaes me fazia nauseas ate o corapao, a vista d’esses pedapos. Diziam os francezes, que o comeram. ser similhante a carne fresca de porco, urn pouco mais adocicada, oleosa, e com o cheiro de almiscar. He muito perigoso tomar-se banho nJesse paiz, a nao ser em logar descoberto, porque estes despresiveis animaes se arrastam de mansinho e se atiram sobre vos. Contaram-me, que urn menino, da aldeia de Bcisaiup, cahindo n’um riacho, onde hia buscar agoa, foi agarrado e devorado pelos jacares. Quando andei pelas costas do mar, desde Trou ate Ra- saiwp, em companhia de muitos selvagens, elles me leva- ram para beber agoa n’uma grota cheia de sarpas e outras mattas, e me advirtiram, que ahi ninguem se podia demo- rar muito por ser o escondrijo dos jacares. Fazem-lhes muita guerra os nossos selvagens, por gosto e utilidade, e trazem grande provisao d’eiles quando voltam do Piry. A razao de nao terern lingua, estes animaes e porque se- gundo creio, lem a garganta e o pescopo, inteiramente in- flexiveis, a ponto de nao poderem olhar nesn para traz nempara o lado sera moverem o eorpo todo: alem disso, elles tern o maxillar inferior duro e iramovel, tudo isto con- trario ao uso da lingua, e so mastigam com o maxillar su- perior. Eis porque agarram e devoram a presa de urn so jacto, nao precisando viral-a e reviral-a da garganta. Disse S. Gregorio, que os crocodillos do Nilo chegavam a ter ate o comprimento de 20 covados, a cor de apafrao, po- rem os do Maranhao e de suas circumvisinhanpas nao iam alem, como ja disse, de 10 ou 12 pes, com a differenpa tambem de habitarem aquelles, durante a noite, a agoa, e de dia a terra, porque busca o calor, visto serem no Egy- pto a noite as agoas quentes e a terra fria, e de dia vice- versa. No Maranhao acontece ocontrario: de noite ficam era terra, e de dia n’agoa, porque as agoas sao frias a noite e quen- tes de dia, e a terra temperada. A razao, porque este animal tem medo dos que o perse- guem, e e alrevido contra os que fogem d’elle, e porque fa- cilmente atira-se sobre este, e so com muita difficuldade se defende d’aquelles, sendo este procedimento o resullado de sua naturesa timida e assustada. Tem so um intestino, porque nao faz a primeira digestao nas carnes cortadas em bocadinhos. 7 mom mais os selvagens que os francezes, e os do Nilo receiam mais os egypcios do que os estrangeiros, o que ex- plica Solinus dizendo reconhecerem elles naturalmente pelo cheiro os que o guerreiam constantemente. Disse um phisiologista, que quando elle devora alguem, chora a sua desgrapa: nao sei si sera verdade. 69 Alem d’estes exercicios, no Piry perseguem os selvagens as tartarugas, ahi em quantidade incrivel, e trazem-nas vi- vas tantas quantas podem. Nao sao avarentos, antes sim por poucos generos alcanpa- reis muitas.Lembro-me, que passando algumas canoas pela nossa si- tu apao de Sao Francisco, por uma faquinha de custo de um soldo na Franpa, deram-me setenta, e pela farinha, que lhes offereci para jantar, mimosearam-me com vinte e cinco, que guardeiem lugar humido e fresco, deitando-lhes todosos dias um pouco d’agoa, e assim se conservaram sem comer por mais de seis semanas. Os selvagens comem-nas com inuito gosto, e dizem que ellas lhes conservam a saude, e lhes fazem bom estomago. Cozinham-nas em seos cascos inteirinhas, sem lirar-lhes as entranhas, e nos as achamos assim preparadas muito melho res do que de outra forma. Si algum d’elles soffre dos ouvidos por algum defluxo liram as mulheres o sangue d’estes reptis, misturam-no com o leite tirado de suas mamas, e com isto friccionam o fundo da orelha. Quando arrancarn o cabello dos seos corpos, com pinpas de ferro, que lhes dao os francezes, esfregam a pelle com (falta uma folha). CAP1TULD ZLI1X Da capa dos ratos, das formigas e das lagartixas. Ha outra capada de um verme, tao divertida e agra- davel como as precedentes, e a dos ratos domesticos e sel- vagens. Nao comem os domesticos, ao menos que eu saiba, porem capam-nos cruelmente; porque si entra um rato em qual- 36154 quer casa, reunem-se todos os habitantes, uns com arcos, e outros com flechas e paus, e com o auxilio tambem de al- guns caes nao escapa o pobre rato. Depois de morto 6 espetado na ponta de uma vara, fin- cada no meio da aldeia, para servir de alvo ao exercicio das flexas dos meninos. As aldeias mais proximas dos portos, onde chegam na- vios, tem mais ratos, porque apenas sentem a terra, atiram- se as ondas, nadam, trocando assim o seo paiz natal, que 6 o mar, para flcar n’um paiz mais firme e seguro, que e a terra. Goraem os ratos selvagens, que vivem nos bosques e no dizer d’elles 6 comida deliciosa. Capam-nos assim: cavam um buraco no meio de um certo lugar no matto, fazem varias entradas, simiihantes as co- elheiras, ou terreiros de coelhos: reuuera-se depois muitos sujeitos, armados de paus, e vao fazer grande alarido ao redor d’esse fosso, como se costuma fazer nas capadas dos lobos. Batem as mattas, e d’ellas fazem sahir os ratos, e elles fugindo, e encontrando esses buracos tao proprios para se occultarem, ahi entram, e entao aproximando-se os selva- gens, toma cada um conta do seo buraco, e entrando outros dentro do fosso, a cacete matam os ratos, dividem-nos igual- mente, e regressam para a aldeia trazendo cada um o que lhe tocou. Assam os ratos ao fumeiro ou sobre carvoes, abrein-nos por diante sem Ihes tirar a pelle, a qual fazem lostar de- pois que o animal esla cozido por dentro, para nao perder a gordura, e depois os guardam dentro de uma porpao de farinha. Sao estes ratos assim preparados, guardadas as propor- poes, mais apreciados do que os javalys e os viados, e as vezes trazem os selvagens quantidade incrivel d’elles. Capam as formigas em tempo de chuva, por ser a epocha propria d’ellas mudarem de habitapao.As que podem voar buscarn a regiao do ai\ deixando suas casas, feitas e cavadas na terra. As outras, si por iustincto natural desconfiam, quo po- dem as agoas invadir suas grulas, e estragar seos arma- zens, celleiros, on dispensa, pegam na bagagem, com ordem digna de ser mencionada, e auxiliadas com a experiencia, como vou con tar para servir de rnodello a todas as outras. Na nossa casa de S. Francisco, no principio das chuvas um milhar de milhoes de formigas sahio de uma caverna, perto d’ahi, e veio tomar posse de um canto do meo quarto, onde cavou camaras, anle-camaras e celleiros. NTima bella manha sahiram todas, e trouxeram um al- queire, talvez, de ovos, indo etn diversas estapoes, isto e, em dislancia de 2 passes uma da outra. Gada acervo trazia suas formigas em ordem, vindo des- carregar cada uma o que trazia no montao proximo, e assim tarn fazendn os outros acervos ou companhias. Admirei-me de ver lantas formigas, e tantos ovos, que deitavam mau cheiro. Mandei fazer bom fogo, e atirar sobre estes ovos, e no caminho por onde passavam estes animaes. Puzerarn-se em alarme, e cada uma buscou salvar os ovos que poude, como fez Eneas a Anodises, seo pae na destrui- pao de Troy a. Nao fui tao bem succedido. porque regressaram ao lugar que haviam escolhido, nao pensando talvez, que me incom- modassem, o que assim nao aconteceo, porque reunindo-se todas por espapo de 2 dias, dcliberaram ir a pilhagem fora do quarto, mostrando-se contentes com a habitapao, que bem a meo pesar lbes dei. Causar-vos-hia salisfapao vendo estes animaesinhos, desde o amanhecer ate ao anoitecer, fazer suas provisoes, quesao as folhas de uma certa arvore, em cujos ramos, como pre- senciei, estavarn muitas para cortal-as e deixal-as cahir em terra, onde cada formiga pegava no que podia e levava para os arjnazeus.Tinham aberto dois camiahos, mudo bans para o seo'ta- manho: por urn iam as carregadas, e por oulro as desetn- barapadas, evitando assim a confusao e a mistura, embora fossem mais de quatroc-entas as carregadeiras. 0 rnesmo fa- zem as outras especies de formigas. fi para admirar-se tambem a especie de abobadas, quo com admiravel industria fazem quando querem caminhar obrigadas. Capam os selvagens somente as formigas grossas como o dedo pollegar, para o que aballa-se uma aldeia inteira de homens, mulheres, rapazes e raparigas. A primeira vez que vi esta capada, nao sabia o que era, e nem onde hia tao apressada tanta gente deixando suasca- sas para correr apos as formigas voadoras, as quaes agarrara mettem-nas n’uma cabala, tiram-lhes as azas para frital-as e comel-as. Capam-nas tambem por outra maneira, e sao as raparigas e as mulheres que, sentando-se na bocca da caverna, convi- dani-nas a sahir70 por meio de uma pequena cantoria, assim traduzida pelo meo interprete. «Vinde, minha amiga, vinde ver a mulber formosa, ella vos dara avelans.» Repetiam isto a medida que iam saliindo, e que iam sen- do agarradas, tirando-se-lhes as azas c os pes. Quando eram duas as mulheres, cantava uma e depoi- outra, e as formigas que entao sahiam, eram da cantora. Causa admirapao vendo-se os grandes pedapos de terra, que tiram de suas cavernas. No tempo das chuvas tapam os buracos do lado das ens churradas, e deixam somente aquelles, por onde pode vir a chuva raras vezes. As formigas do Maranhao tern dois inimigos encarnipados, especialmente estas aliadas: urn—certa especie de caes sel- vagens, 71 com peilo de lobo, fedorentos o mais que e pos- sivel, focinho e lingua muito aguda, e que procura o for- migueiro para alimentar-se: outro, uma qualidade de formi-gas corpulentas, quo do ordinario nascem com as outras, como o zangao entre as abelhas, e cm quanto sao pequenas e fracas, trabalham conjunlamente sem fazcrem barulho, c nem se offenderem. Quando grandes e fortes deixam as outras, fazem bando a parte, so e so, nao vivem mais em companhia, e poem se de embuscada pelo caminho, onde costumam passar suas ir- mas e parenlas, como fez antigamente Abimelech, baslardo de Gedeon, sobre os 70 filhos legitimos de seo pae, seos proprios irmaos, os quaes matou todos sobre uma pedra ern Eplira. Sirva d'isto ao leitor para applicar como julgar acertado. Eis como os nossos seivagens se distrahem mais utilmente com estes animacs, do que os nossos rapazes com as bor- boletas: de tudo se aproveitam e nada perdem, reunindo o util ao agradavel. Vejamos o re?to. A capa dos lagarlos, ehamados pelos Tupinambcls—Ta- rure (os grandes) e Tojti (os pequenos,) e feita por diverso modo, 72 conforme sao da terra ou do mar. Os maritimos habitam ordinariamente as praias cobertas de mangues, onde, duas vezes dentro do espapo de 24 bo- ras, entra o mar. Ahi nutrem-se de carangueijos, de mexilhoes, e de cama- roes, vulgarmente ehamados em Franpa—lagostins, e de pei- xes, que apanham na enchente. Poem seos ovos nos concavos das arvores. Os seivagens capam-nos e flecham-nos na vasante; enter* rando-se pelo tujuco. Para comidaservem tanto como os coelhos, ou uma gran- de lebre, conforme o tamanho do animal. Fervem-nos para fazer mingau, ou assam-nos ao fu- meiro. Os francezes assam-nos ao espeto, bem untado de gordura de peixe-boi, e a primeira vista pensareis que sao coelhos ou lebres espetadas.0 guisado, que d'elles se faz, 6 muito parecido com o das lebres e coelhos, e muitos franeezes gostam mais d’elles do que os nossos coelhos. Eu antes quero crer do que provar. A capa dos lagartos terrestres 6 mais de meninos que de bomens, embora tenba visto alguns bomens atraz delies, como os meninos, e ate 20 sclvagens, homens e rapazes, atraz de trez lagartos. Apenas os pilham, assam*nos, c toma cada nm a parte, que lhe pertencc e acham-na muito boa. Os rapazes apenas os veem correr pela casa, nas paredes ou nas arvores, flecham-nos, porem escolhem os maiores por que tem mais que comer: alguns tern o comprimento de um brapo e a mesma largura. Ha outros vermes, que nao sahem das arvores, deitados sobre folhas, expostos ao sol: dizem os selvagens que sao venenosos, eporissoos deixarn: nao se assustarn com a vossa presenpa, si nao os perseguirdes. Parecem-se com os camaleoes, de que ainda fallarei, tem brilhonos oltios, e a cor do escarlate. Costumam estes lagartos domesticos a juntarem-se e uni* rem-se em forma de holla, de tal maneira que a cauda do macho toca a cabepa da femea, e reciprocamente, e assim tod os curvados, tocam-se as duas cabepas e as duas cau- das. Tive medo quamlo vi isto pela primeira vez. porque nao sabia o que seria, e nem si era alguma especie de serpente, com quatro olhos, e um so corpo enrolado. Os lagartos femeas sao mais grossos do que os ma- chos. Os pequenos lagartos poem ovos, de cinco ate sete cada nm do tamanho da cabepa do dedo minimo, n’um buraco, que cobrern de areia, fazeudo o resto o caldr do sol. Os lagartos grandes poem ovos maiores, a proporpao do seo corpo, e ordinariamente fazem ninhos nos tectos das rasas, nos bosques, e para ahi Ievarn lado o que acham ser159 molle, como sejam musgos, pennas, algodao, farrapos, e frequentam muito a casa si nao Ihes fazem mal. Fazem tanto barulho como um cao, quando eaminham e eonduzem na bocca o que acham, e e am prazer vel-os em tal lida. Nao fazem caminho direito quando construern seo ninho, e antes nsam de muitos rodeios para nao serem desco- bert-os. 0 sol clioca e faz abrir seos ovos, porque sao muito frios e nao tern calor proprio para isso. Sao capados por cobras grandes e horriveis, umas brancas como agoa, outras de cor de violeta, e finalmente algumas manchadas de diversas cores. Invadem ate as casas para nos tectos caparem estes la- gartos, que apenas as presentem ao longe, fogem como se a casa tivesse pegado fogo. Mandei matar Ires cobras d’estas n’um domingo, quando eu e rneos companbeiros fomos dizer missa na capella de S. Francisco, onde as achamos perseguindo os lagartos gran- des, dos quaes ja tinbam matado muitos. Pagaram tal temeridade levando cada uma mais de cin- coenta cacetadas, e ainda se salvariam, si eu nao as man- dasse cortar em pedapos, que viveram e remecheram-se por mais de 24 horas procurando reunirem-se o que nao con- seguiram por estarem distantes umas das outras, talvez por quatro ou cinco passes. Os selvagens tern muito horror d’estes lagartos, e dizem ser venenosos. Os lagartos, quando velhos, perdem sua cauda, que fica negra, e por isso mesmo e fragil como vidro, e quebra-se por qualquer causa. Nao creio, que ellas renaspam, embora o affirme Aristo- teles. Fundo-me no que observei n’um lagarto grande, que estava na nossa casa de S. Francisco, onde se conser- vou por dois annos sem cauda. vindo diariamente comer160 em nossa present, com as galinhas com quo se fami- liarisou. Dizem, e os francezes o asseveram por experiencia, que ha uma especie de lagartos grandes que apanham os fran- gos. e levam-nos para o matto, onde vao comel-os. CAF1TULD XLXV Das aranhas, cigarras e mosquitos. A vida do homem 6 comparada com a da arauha em muitos lugares da Escriptura Santa, especialmente no Psal. 89. Anni nostri sicut Aranea mcditabuntur «nossos annos se passaram, serao contados e meditados como os da Ara- nha.» Escreveo S. Isidore, que a aranha e urn verme do ele- ments do ar, n’elle nutrido, d’onde se deriva a etymologia do seo nome, nunca descanpa, sempre trabalha, de si tira com que formar sua teia, sempre em perigo por se achar ella, seos bens, e suas riquezas, suspensas n’um fio, merce do menor sopro de vento, ou do capricho de urn criado ou do uma camareira, que com um espanador destrua todo o trabalho. Quereis mais bello espelho para considerar as desgra^as e miserias d'esta vida? Nao perderei tempo referindo o que se sabe acerca da naturesa d'este verme, e apenas contarei o que achei de cu- rioso e especial nas formigas do Maranhao, e antes de en- trar na materia fallarei d’uma especie do tamanho de um punho de braeo, e as vezes ate maior.161 Enconlram-se ordinariamente no tronco das arvores, pro- ximas as casas, nas estacas, nos cantos, caminham pouco, nao tem teias, muito venenosas, vermelhas quasi da cor de borrachos quando sahem do ovo, coisa horrivel e feia! Fogem fFellas os Indios, e julgam mortifera a sua picada. Nutrem-se da corrupgao do ar. Existein outras de diversas especies, maiores e menores, e todas domesticadas. e nos mattos encontram-se grandes, menores, e pequenas. Em todo o tempo produzem e especialmente no in- verno. Com a frescura da noite juntam-se: deixa o macho a sua teia para se unir com o seo fio a teia da femea, si ella esta collocada em lugar mais baixo: si porem a teia da femea 6 superior a do macho desce ella, vein procural-o, e assim si juntam. fi muito facil de ver-se, pois o praticam todos os dias, no fim da tarde. 0 macho e pequeno, e a femea e tres vezes maior do que elle. Fazem uma pequena bolga, redonda e chata, muito hem feita e tecida, parecendo-se com setim branco e a simi- Ihanga de um breve de Agnus Dei. N’ella deixam apenas um buraquinho, por onde com o pe introduzem os ovos. Quando esta fechada a bolga tapam o buraquinho, e car- regam-na junto ao ventre e estomago, aquecendo-a por esta forma, e quando presentem estar os filhos em estado de $a- hir, rasgam a bolga ao redor, como se faz com a casca da fava, sahem logo, correm pela teia da mae, e a noite aga- salham-se debaixo da mae, como fazem os pintos com as gallinhas afim de resguardarem-se do frio da noite. Quando tem forgas, cada uma faz a sua teia, e por sua industria euida de si. Ha outras, que fazem pequenos pucaros de harro, do ta- manho e feitio de uma ameixa de dama, tao bem feitos, 27162 quanto e possivet, per dentro e pot* fora, o que tambeni fazem certas especies de moscas, de que ainda fallarei. Sao as boccas d’estes potes proporcionaes aos seos tama- nhos, com uni buraco tao pequeno, em que cabe apenas um alfinete, por onde sahem os ovos para serem aquecidos pelo SoL Este pucaro costuma estar junto a uma arvore, ou n’uma folha de palmeira, e a terra de que e feito, muito se parece com a de Beauviis. Enchem o pucaro de ovos, tapam no, e quando as maes julgam ja terem os filhos sahido da casca, destapam o bu- raco, e entao sahem as aranhasinhas e acompanham-nas. As aranhas dos mattos proc-edem de outro modo: roem as amendoas das nozes das palmeiras espinhosas, pouco a pou- co e deitam fora tudo per meio de tres buracos naturaes, que tern estes fructos: depois ahi dentro fazem seus ninhos e depositam seos ovos. Sao differentes as teias destas aranhas quanto a sua po- sifao por ellas escolhidas. As domesticadas armam suas teias nas rachas e entradas dos buracos, afim de agarrarem moscas e mosquitos. Umas estendem suas teias nas arvores, de um ramo a ou- tro, e de um arbusto a outro para agarrarem borboletas e outros bichinhos iguaes: outras tecem as teias por cima da terra para pilharem vermes, como sejam formigas e outros iguaes. Algumas fazem teias tao fortes, que ate n’ellas cahem la- gartinhas, e entao descem as aranhas, matam-nas por meio de um aguilhao, que tern em si, e depois chupam-lhe os miolos e o sangue, e so quando se fartam, e que as dei- xam. Yi aranhas do mar, muito parecidas com as de terra po- rem maiores.73 flabitam em buracos nas praias, e alimen- tam-se de peixinhos. Dizem que chupam o sangue e o humor das cobras, iguaes as que mandei eortar em peda^os, e asseveram os selva-gens, que se morderem a cabefa d’algum individuo, ficara louco. No Maranhao, como em parte alguma, lem muitas c-i- garras, 74 que fazem em tempo proprio um barulho infernal, como eu nao acreditaria si nao ouvisse: ha do diversas va- riedades, tamanhos e cantos. Sao umas grossas, tern seis pollegadas de comprimento, e voz forte e alta a ponto de ferir-vos vivamente os ouvi- dos. Nao eantam no inverno, e sim no estio, e quando se aproximam aschuvas gritam tantoa ponto de estalarem pelos lados, como me contaram os selvagens, sendo isto causado pelo baler das azas quando si esforgam e se incham para dar mais harmonia a voz. Estudei os usos e costumes destes animaes em alguns, que conservei entre folhas na nossa casa. Reconheci ser seo canto devido a ires coisas. 1. a Engolem o ar, enchem o ventre, entumecem-se bem para estenderem bem os lados, e (icarem sonoras. Ha gran- de accordo entre a extensao dos lados, e as azas, por rneio das quaes forma-se o som, que claramente se ve tomarem ellas folego quando erguem as azas, e quando abaixam, es- tendem e dilatam os flancos. 2. a As azas sao mui finas e diaphanas, e por tanto pro- prias para formar o som por serem muito seccas. 3. a As azas de cima sendo fortes e massif as, tocando e batendo as azas do meio contra os lados e com auxilio do ar, forma o som. Vou fazer-vos comprebender isto por meio de compara- coes vulgares. N’uma cithara ha tres coisas para produzir harmonia—as costas onde fica o ar, que entra pela rosa do meio, as cor- das tesas, limpas, seccas e bem collocadas, e a mao do to- cador: assim tem estes animaesinhos as costas e as ilhargas cheias de ar, que entrou pela bocca, as segundas azas sao as cordas, e as grossas a mao do tocador. Cantam no estio desde o nascer do sol ate meia noite ou duas heras depois. e se callam por causa do orvalho. quecomepa a cahir com frio, e assim fleam at6 que apparepa o sol e com seos raios extinga as gottas de orvalho, que cahi- ram nas folbas, e entao vem ellas aquecer suas azas. Em quanto guard am silencio, e minha opiniao, que ellas se nutrem com o mesmo orvalho, e nao digo isto sem causa pois quasi sempre (icarn no mesmo logar, e quando sentem algum movimento voam para outra folha. Algumas d’ellas, cspecialmente as todas verdes, nao tern voz, arrastam-se pela terra como os gafanhotos, juntam-se como as moscas, poem em setembro ovinhos negros nos buracos dos ramos das arvores, nos quaes se formam os vermes, ao depois cigarras: vao pouco a pouco se fortifi- cando aflm de passarem a estapao invernosa, e substituirem seos pues e maes que rresse tempo morrem arrebentados a forpa de gritar como ja disse. Nao tern sangue, ou tern muito menos que as moscas, porem sao organisadas de uma substancia porosa. secca, e ligeira. Matam-nas as gallinhas, porem nao as comem, e quando por acaso o fazem, enfraquecem e emmagrecem. Ha n’este paiz diversas especies de mosquitos, porem ape* nas fratarei dos que o merecerem pelos seos principios na- turaes, e sao os chamados Maringoins pelos selvagens: ha de diversos tamanhos e grossura, e todos tern a mesma forma. Originam-se de um humor acre, gostam dos sabores pi- cantes e acidos, e por isso encontrarn-se muito no mar e suas praias no tempo do inverno, forrnados pelo humor e vapores do mar. lncommodam muito os homens picando-lhes a pelle com seo bico ponteagudo como uma agulha, e sugando assim o humor salgado, que corre entre a pelle e a carne. Gostam da luz porem aborrecem a chama e a fumapa, e por isso quando anoitece, as que andam por fora, poisam nas folhas das arvores, e os que estao dentro de casa nos tectos, bem a sen pesar, por causa das fogueiras, que165 acendem os selvagens ao redor de si, para se livrarem d’elles. Nos lugares mais proximos a agoa, maior abundancia d’elles existe, visto serera creados por agoas, como ja disse. Sao capados pelos morcegos, que, buscando-os nos luga- res onde se fkam, involvem-nos com suas azas e depois os comem. Sao por elles muitissimo persegnidos os nossos francezes, quando vao a pesca do peixe-boi, e para evital-os armam suas redes no ramo das arvores, o mais alto que podem, por ahi soprarem mais o ar e o vento: si se partissem as cordas dariam bello salto, e nao deixarn de emballanpar-se para afugental-os. CAFITULD ZLV Dos grillos, dos camaleoes e das moscas. De todos os animaes, que fazem companhia ao homem, no Brasil, nenhum ha que iguale ao grillo, chamado pelos selvagens Cuju 75; e por ser tao familiar e domestico pude a vontade salisfazer minha curiosidade estudando este ani- malsinho. Nasce da corruppao. Quando se faz uma casa coberta de palrna fresca, appare- cem n’um momento milhoes e milhares d’estes grillos ou Cujus. Virao dos bosques visinhos? nao pode ser; porque nas casas cobertas de palrna velha nao sao cncontrados. logo forpa e confessar, que formam-se na palrna nova com o auxilio do sol.166 Notei que dois ou tres dias depois de coberta a casa, os grilles sao brancos como neve, signal de nova gerapao, pouco a pouco tomam a sua cor ordinaria, amarello-negro. Alem d’isto origioara-se tambem de ervilhas, e favas po- dres o que conheci por experiencia. Quanto a produepao do pae e da mae proved d’uraa se- mente deixada nas folhas de palma: e pegajosa e fica onde se colloca, ate que d’ella por meio de calor saia outro gril- losinho. E ardente no seo ajuntamenlo, e eis porque lanto se roul* tiplicam. 6 muito pequeno, porera astucioso, tem horas para co- mer e para cantar: nao deixam de procurar comida quando presentem estarem todos deitados, e entao descem do tecto e correm, por assini dizer, os cantos da casa, onde se apro- veitam de todas as migalhas e restos de comida, e se en- contram restos de carangueijo deixam tudo mais. Acabada a comida regressam a seos logares, onde cantam e passam o resto da noite, e o dia tambem, se o ardor do sol o nao encommodar. Nao goslam de cliuvas, e emquanto esta chovendo, nao cantam. Gostam portanto do tempo sereno e doce, sem muito ca- lor, e sem muita ebuva. Roem muito os pan nos, que encon- tram, o se aebarem urn capote de cem escudos n’uma noite dao cabo d’elle. Nao tocam em panno de linho a nao estar elle engordu- rado, ou com algum liquido, de que gostera, e por isso para conservar-se alguns vestidos, embrulhanvse n’estes pannos. Tem quatro iuimigos capitaes. t.° Os lagartos, que correm apoz elles, como os caes atraz das lebres. E urn goslo ver as voltas e vira-voitas que da a capa e o eapador. 2.° Certos macaquinhos amarellos e verdes a que cha- mam os selvagons Sapaius, vivos e ageis como um pas-167 saro; capam com uma das maos e na outra guardam os grilles. 3. ° Sao as gallinhas, que os devoram com incrivel avidez, e para isto voam sobre as casas, e nao poucas vezes estra- gam a cobertura d’ellas. 4. ° Sao certas formigas grandes, que atacam-os nos bura cos e cavernas, onde se abrigam nas casas: distrahi-me at- gumas vezes venclo tao singular combate; a formiga desce ao buraco, onde lanto faz, que o Cuju sahe a campo, ou en- tao 6 puchado pelos p6s, e muitas vezes prefere a morte a perder suas pernas posteriores, que leva a formiga. Outras vezes deixa-se o grille comer dentro do buraco. de maneira que somente flea a cabepa e as azas, que as formi- gas carregam como tropheos. Tern os grilles particular malicia, como experimented por que mordem a extremidade dos dedos das pessoas, que dor- mem, e carregam o bocadinho de pelle que podem tirar. Achei-me por isso muito encommodado do pollegar, a ponto de nao poder escrever por oito dias. 0 Camaleao 6 um animal do tamanho e da grossura de urn pequeno lagarto. e a elle similhante no rosto, olhos, e cabepa, tendo nas costas escamas como o crocodiilo, e pare- ce ter a pelle coberta de pelle ou limo. Tern a cauda muito comprida, e de ordinario dobrada cm dedalus, diminuindo gradualmente ate a ponta. Raras vezes se ve o macho com a femea, e por isso nao me atrevo a contar o modo de sua procreapao, porque nao pude vel-a, e nem imaginal-a. Contento-me apenas em refe- rir o que vi. fi muito demorado no seo andar, esta sempre ao sol, dei- tado sobre folbas ou ramos, e por isso se pensa que vive so de orvalho. Batem-lhe as ilhargas constantemente, e muito mais quan- do receiam alguma coisa, sendo isto motivado pela sua ti- midez natural, proveniente de muito humor frio, pelo qual torna-se venenoso quando e comido por algum animal.168 Nunca se encontra nas arvores fructiferas, prevenpao da naturesa para nao envenenar com o seo frio excessivo o fructo que tocasse, e por isso e visto nos ramos de arvores, que somente servem para o fogo. Como o lagarlo tem quatro pes, e muda dc cor conforme o movimento do corpo, e os batimentos das ilhargas. Sao raros em Maranhao, e somente sao encootrados em lugares bem expostos ao meio-dia: deitam-se nas folhas, es- tendem as quatro patas, e descanfam a cabe^a. Nao fazem movimento algum com os olhos, quaudo estao vendo, e nem abaixam as palpebras superiores: constantemente bate-lbe o papo. Dizem, que se este animal fosse lan$ado ao fogo difficil- mente arderia, porem envenenaria pela fumapa as pessoas presentes. Nao flz esta experiencia com o camaleao, e. sim com ou- tro animal mui similhante a die pela friesa. Mandei lanpal-o n’um braseiro, que mandei preparar, e retirando-me para longe, tomei cuidado que ficasse sempre no fogo, movendo-o constantemente, e depois que morreo, vio-se que o fogo nao poude obrar contra seo corpo, ficando inteiro e solido, conservando sua figura e pelle: mandei ti- ral-o do fogo e enterral-o. Ha muitas especies de moscas, umas da uoite, outras do dia. As moscas da noite sao as que buscam o seo sustento du- rante eila agarrando os bicbinhos, que voam, onde encon- tram: como tem de alimentar-se nas trevas, deodhes a Providencia urna luz, 76 que trazem adiante e atraz: a luz dianteira esta n’uma placa de forma quadrangular, adherente ao estomago, sendo os dous angulos, que tocam a sua bar- ba, muito estreitos, e esta construida de uma pellicula dia- pbana, e coberla de um pello mui delicado, com que rece- bem a humidade da noite, e por este meio produzem um brilho de luz. Percebeis bem isto recordando vos do brilhoi 69 da pescada a noite, por causa da delicadesa da escama ou da sua pelie bumedecida. Acontece o mesmo com certa especie de madeira podre, ou melhor rarifeita, e tenue, livre de tod as as immundicies, e que tem a propriedade de attrahir a humidade. 0 mesmo tem elies no chato da barriga, onde se encon- tra uma pellicula bem lisa, cheia do pello tao lino, de que acima fallei. Quando voam atravez de uma noite escura, parecem ser grossas faiscas de ardente fornalha de fundir metaes. Pertencem ao dia as outras moscas; sao infinitas e va- rias e por isso somente me demorarei, iratando das que tiverem alguma coisa digna da considerapao do leitor, como sejam as abelhas, e as vespas, e do mais que fal- larei. As abelhas do Maranhao, e de suas circumvisinhanpas ia- bricam suas casas de tres modos: entre os ramos das ar- vores, como ja disse, quando escrevi sobre o Meary, ou no concavo das arvores, isto e, no Ironco principal, porque escolhem uma arvore que tenha uma concavidade no tronco, sobem pela frente d’elle, e depois descem ate a terra, onde fazem os alicerces dos seos cortipos, e depois fabricam o seo mel, caminhando sempre para cima. Quando nao e assim, escolhem lugar apropriado, levantam da terra urn cortifo concavo, onde fabricam mel e cera. & virgem a sua gerafao, e creio nao haver entre eiles macho e femea, e assim todos trazem comsigo o germen da futura procreapao. Dir-vos-hei a razao d’esle meu modo de pensar, que for- mei observando com attenpao urn cortipo de abelhas n’uma grande arvore concava e secca, distante 30 passos de nossa casa de Sao Francisco, o que ainda me foi facil, pois eslas moscas nao dao ferroadas, 77, comtanto que nao se Ihes fapa mal, embora se esteja bem perto d’ellas. Fizeram os selvagens um buraco ao p6 d’esta arvore, por onde sahia o mel, e por abi observei tudo bem a minha 28170 vonlade, ate mesrno as camarasinhas, em que se achavam ellas envolvidas. Estes casulos eram tapados de todos os lados, embrulha- dos n’uma tella bem delicada, e por cima esta a cera e o mel. N’algumas camarasinhas d’estas, achei somente algumas gottas de semcnte, claras como a agoa da rocha, e soube ser a materia de que se organisavam as novas moscas. N’umas vi o chdos, ainda informe, feito e composto desta materia prima, a maneira de uma pasta molle, branca como creme: n’outras vi moscasinhas. perfeitamente formadas, e ja com movimento, porem envolvidas n’uma tella delicada e di iphana, que rasguei com cuidado, e vi n’estas moscas to- das as suas partes bem distinctas e conformadas, menos os p£s, por serem os ultimos, que se formam, e ja depois, que se mnvem. Reconheci ser verdade o que diz S. Isidore d’estas mos- cas a Apes dictce sunt quia sine pedibus nascutur, nain postmudum accipiunt:» as abelhas, ou antes os apedes, sao assim charoados porque nascem sem pes, sendo este nome composto por a, que quer dizer—sem, e pedes—pes. Assim composla quer dizer—sem pis, mas nao se usa em francez, e sim emprega-se o nome de abelhas. Sobre o que eu disse a respeito de sua gerapao virginal, alem da experiencia, que eu live, de que podem duvidar alguns espiritos, ha uma testemunha irrefragavel, Santo Am- brosio, Doutor que si dedicou ao estudo dos segredos da abelha mais do que nenhura outre antes ou depois d’elle. Nao o fez sem motivo, pois desde o seo berpo que estas moscas se alojaram em seos labios, e depois em toda a sua bocca, eis suas patavras: Apes nuilo concubitu miscentur, nee lioidine resolvimtur, nec partus doloribus quatiun- tur, sed integritatem corporis virginalem servantes svbito maximum filiorum examen emittunt: «nao si misluram as abelhas por meio de alguma conjuncpao, nao si entregam por meio de sensualidade, nao soffrem dores de parto, po-171 rem conservam a integridade virginal de seo corpo, e em pouco tempo produzem grande numero de novas abelhas.» Diz o autor do livro da «Naturesa das coisas»—Omni- bus virginalis integritas corporis—«conservam todas a in- teiresa virginal do seo corpo.» Ha diversas especies de vespas, tendo uma d’ellas algu- ma coisa de novo: esta qualidade 6 negra, mui delgada do meio do corpo a ponto de julgar-se estar o ventre unido ao estomago por um so fio. Sao industriosas o mais, que e possivei. Recolhem-se todas a um nicho de terra, no cimo das ar- vores, tan bem estocado, que dentro d’elle nao cabe uma s6 gotta d’agoa: a cobertura ou tecto d’este nicho 6 em for- ma de zimborio, e apenas cabe a chuva, corre ligeiramen- te, e ahi nao si demora: n’elie nao tern abertura alguma, e apenas cinco ou seis buracos proporcionaes a grossura d’ellas. No interior fazem accommodates para viver, e fabricam uma especie de mel bem amargoso, e negro como tinta. Cada uma tem sua casa, cavada na espessura do nicho, a maneira dos buracos de um pombal, onde se agasalham os seos habitantes. fi admiravel a sua industria no fabrico d’estes nichos, e presenciei-a muitas vezes. A margem das fonles fazem argamassa, carregando com os pes um pouco de terra, que desmancham e amassam com agoa, que vao buscar, e trazem unido ao pello de suas coxas. Assim preparado. vao carregando em varias partes rlo seo corpo. 1. ° No pescopo. 2. ° Nos pes. 3. ° Na imiao das coxas contra seo corpo. Nao deixam seos filhos no nicho commum, porem fabrica cada uma o seo cubiculo a parte, a imitapao da flor de mei- mendro, presa ou suspensa a algum pau, ou outra coisa co- berta, ionge do perigo de ventos e de chuva.Levant rauito tempo preparando seo nicho, e o enfeitam o rnais que podem, com o brunidor do seo fucinho. Depositam no interior sua semente, como fazem as abe- lbas, fecham a entrada, occultam-na, dormem a noite em commum, e ainda a madrugada esta longe, e ja ellas se desperlam para montar guarda 6 fazer sentineila ao redor de sua habitapao, fazendo guerra de morte a quem se lhe aproximar. Posso dar noticias d’isto, porque um dia, indo a um canto de minba casa arrumar nao sei o que, quando passei, bati, sent querer, com a minha cabepa no nicho, onde estava a mae, e ella, julgando mal de minhas intenpoes, pensou que eu o fizesse por maldade, e cheia de colera, escolheo a parte mais delicada do corpo humano, isto d, os olhos, para vingar-se. Permittio Deos porern que em iugar dos olhos me ferisse as sobrancelhas com o seo aguilhao. Foi tao doloroso o golpe, e tao penetrante o veneno, que cahi por terra, batendo-me exlraordinariamente lodas as minhas veias, desde a planta dos pes atd o cume da cabe- pa, como nunca senti em minha vida. Recolhi-me a cama com o corapao sobresaltado, inchou muito a parte offendida, e ardia como brasa. Julguei perder o olho, e assim estive por muitosdias, ao depois flquei bom. Procream ainda de outra forma. Fazem um pequeno pu- caro de barro, arredondado, sirnilhante aos feitos pelas ara- nhas, como ja disse, deitam denlro suas sementes, que se transformam em vermes vermelhos, iguaes aos que se en- contram nas ameixas das damas: adquire depois azas, e fica vespa. Nao tern os selvagens cantharidas em seo paiz, porem fa- zem muito aprepo d’ellas e dao muitos generos para pos- suil-as. Trazem-nas os francezes, porque anteriormenle ja tinham ensinado aos selvagens as propriedades d’ellas, o que nao se deve escrever: prova isto que os homens viciososmais depressa gastariam esta nagao do que ella o 6 por na- tureza. Ha tarabem insectos e vermes roedores mui subtis e en- genhosos, com uma capa bonita e inteira, porem passan- do uma escova por cima, desapparece atd o pello e fica s6 a urdidura. 0 mesmo acontece aos vermes roedores dos bosques, que fazern grande sussurro. Deos porem fez passaros que vae tirando das arvores taes vermes. 3AFITULD XLV1 Das onpas e dos macacos do Brazil. A onga 6 o animal mais furioso do Brazil e 6 do tamanho dos galgos da Europa. No rosto parece-se muito com o galo, tem bigodes horri- velmente dispostos, vista perspicaz e aterradora, pelle como a de lobo, manchada de negro a maneira da do leopardo, garras muito compridas, patas como de gato, cauda grande e maior que todo o corpo diminuindo pouco a pouco at-6 a ponta, e com ella brinca n’um areial voltando-se para apa- nhal-a, e correndo para o mesmo Dm, como fazern os gati- nhos no meio de uma salla, divertindo-se cada um com o rabinho. Ama a solidao, aborrece a sociedade, habita so nos bos- ques, e somente 6 acompanhada por occasiao da sua juncpao, o que feito retira-se a femea.Nada receia, nada teme: para vendo dirigir-vos a ella, ou tica no fim da estrada, por onde tendes de passar, de for- ma que ou voltareis, ou entao corabatereis porque nao cede. E melhor a retirada ainda que com algum vexame, do que por orgulho arriscar sua vida em luta com tal animal. 0 Rvd. padre Arsenio assim o fez, vindo da aldeia da Mayoba para a nossa casa de S. Francisco, quando encon- trou, ao meio dia, na estrada uma onga que veio esperal-o. Regressou para a aldeia, e assim evitou perigo tao proximo. Nao buscam os liomens, e 6 raro encontral-as, e quando isto se da o perigo 6 certo. Nao se atiram, e nem correm logo atraz das pessoas que veem, antes dao-lhe tempo bastante para fugir, e apenas agarram urn ou outro menino, porem raras vezes. Tem muito medo de fogo a ponto de nao se approxi- marem d’elle, e por isso evitam-nas os indios accendendo fogueiras em suas casas, sempre abertas quer de dia quer de noite. Fazem guerra desabrida aos caes e macacos, vindo agar- rar aquelles at6 junto as aldeias, sem causarem o menor mal aos selvagens deitados em suas redes, e quando vao estes a caga, acompanhados por muitos caes, sao estes devorados e cornidos pelas ongas, que fingem correr diante d’elles, e quando se acham longe de seos senbores, saltam sobre elles e facilmente os estrangulam. Poucos escapam de suas garras para trazer noticias a seos senhores, que nao os ouvindo ladrar, acreditam que as on- gas os comeram. Nao vao mais alem, e regressam mais depressa a casa onde suas mulheres e filhos choram a morte do cao, que el- les levaram a caga com intengao de diverlirem*se. Si 6 perigoso atacar um sold ado furioso, e victorioso de seos inimigos, ainda muito mais o e apresentando-se em tal occasiao a vista das ongas.Capam os macacos desta sorte: batern ein circumferencia o bosque, onde se abrigara os macacos, encurralam-nos a’um ponto, onde se agrupam: entao trepam as onpas em varias arvores, e d’ali se atiram sobre os raraos e hastes de oulras onde estao os macacos, e assim os apanham. Empregam tambem outro ardil. Occultam-se debaixo de folhas n’um lugar, onde ellas sabem, que os macacos vem beber, ou quando estao pescando mariscos e carangueijos, entao d’um so pulo agarram os que podem. Fazem ainda mais. Quando v£em ou ouvem que os macacos estao reuni- dos em qualquer lugar, vao surrateiramente arrastaudo a barriga pelo cbao, como fazem os gatos quando querem agarrar algum ratinho, e depois estendem-se e fingein-se mortas. Chega um macaco, para, chama outros, que chegain logo, descem o mais que podem, sempre desconflados, para verem e examinarem se na verdade esta morto o inimigo: rangem uns os dentes, e outros como que fazem uma especie de dis- curso de congratulapao por tal fim: eis senao quando resus- cita o fingido morto, mais depressa do que elles sobe ao cimo da arvore, onde transforma a vida d’elles em morte, nao simulada e sim real. A onpa s6 pare uma vez, e um s6 filho, como a leoa, e eis a razao de haverem poucas no Brasil. A onpasinba rasga o utero de sua mae, que o nutre mui curiosamente al6 que fique em estado de cuidar por si de sua aliraentapao. Ape- sar de tal ruptura, unem-se em tempo proprio, porem nao ha fructos d’esta uniao. As onpas sao errantes, caminham por diversos logares, atravessam brapos de mar, e quando falla-lhes pasto em terra, vao ao mar pescar carangueijos e outros iguaes bixos do mar. Existem tambem onpas marinhas, como ja disse quando fallei do Meary, tendo a parte anterior igual a da terra, e a posterior similhante a cauda de um peixe.176 Sao tao furiosas, corao as terrestres, e saltam da agua contra seos inimigos. Machos e femeas veem-se livres dos filhos que trazem no ventre, a maneira das baleias, dos golQnhos e de outros pel- xes do mar. Em Maranhao e seos contornos ha muita variedade de ma- cacos: 78 uns grandes, fortes, barbados, e de sexo bem dis- tincto, espeeie perigosa, e que nas mattas muito bem se de- fendem das invasoes dos selvagens. Contou-me urn interprete que n’um certo dia um selvagem com uma flecha ferio a espadua de um destes macacos, e que elle tirou a flecha, arremepou-a contra o selvagem e o ferio gravemente. Atiram-se sobre as raparigas e mulheres, e forpam-nas si nao sao mais fortes do que elle. Ha outros barbados, mais pequenos, que trazem mamas nos seios, e sexo bem visive! em lugar proprio. Sao muito bem tratados pelos francezes: os selvagens os agarram atirando um projeclil qualquer sobre elles, que ca- hem atordoados, e sao assim amarrados. Os triviaes sao quasi que similhantes em sexo, e nem merecem descrippao alguma. Em geral os monos sao agradaveis a vista. Caminham um atraz do outro, e com tal cadencia no passo, que os que vem atraz assentam os pes e as maos, onde as- sentaram os que foram adiante. Fazem assim uma corda de duzentos a tresentos, e diria ainda mais, si nao receiasse causar admirapao ao lei tor. Acbei-me muitas vezes nas mattas, onde elles habitavarn e dir-vos-hei, sem precisar o numero, que vi grande quan- tidade d’elles na forma ja dita. Cousa agradavel o mais que se pode imaginar. Arremepam-se estes animaes de uma arvore a outra, de um ramo a outro, como faria urn passaro bem voador, e o fazem com tal prestesa, que mal se ve.177 Si vos descobrem debaixo de alguma arvorc, fazem in- crivel matinada, e depois de vos fazerem muitas caretas e de dizer-vos mil injurias em sua linguagem, embrenham-se pelos mattos. Nunca deixam em hora certa, 79 a larde ou noite, de ir beber agoa, mas sabeis com que subtileza ? Para o grosso do exercito na distancia de 300 passos da fonte, manda espias para examinar a fonle e suas circumvi- sinhanpas, espreilam si nada ha que os assuste, examinam com cuidado si ha embuscada de algum inimigo, e apenas o descobrem gritam com voz forte e correm a reunir-se ao exercito. Voltam depois de algum tempo e praticam o mesmo. No caso de seguranpa gritam e ganem para vir o exer- cito, e chegado este ainda usa de outra velhacaria. Bebem todos urn a um: a medida, que um bebe, passa alem e trepa n’urna arvore, e assim atd o ultimo: assim be- bem, passam para outro lado, por onde nao vieram e ahi acabam a fieira. Deixam a fonte e vao em tumulto procurar seos amore^ e n’isto ha ordinariaraente grandes gritarias, gemidos, mor- diduras e arranhamenlos, porque querem os mais fortes es- colher as damas e serem servidos em primeiro lugar. Nada digo sem experiencia e tudo isto presenciei tod as as tardes na nossa fonte de S. Francisco. Vao pescar sempre em companl ia, carregando as maca- cas as costas seos filhos. Pescam carangueijos e mariscos. Antes de agarrarem os carangueijos, quebram-lhe as te- zoiras para livrarem-se das mordidellas, depois quebram- nos com os dentes, e, se estao rijos, com pedras, e o mes- mo fazem com os mariscos. Cuidam muito as maes no suslento dos filhos, antes de poderem elles por si buscal-o; tiram o marisco e o caran- gueijo da concha, limpam-no muito bem, e offerecem ao fi- Iho nas costas, e estes o agarram e comem. 29178 Nuiica vao para longe das arvores: e o seo rcfugio ape- nas ouvem algum raotim, ou veem alguem, e por isso para as suas pescarias escolhem lugares proximos a arvores alias e copad as. Si veem passar uma canoa de selvageos, muito longe d’elles, saudam-nos rindo a seu raodo, si se aproxima a ca- noa, fogem, e ninguem os pilha. CAFXTULD XL TO Das aguias, dos passaros grandes e dos passarinbos d’aquelle paiz. Na Ilha ordinariamente nao se veem aguias, porem ha muitas na terra flrme, proxima a Maranhao. Nao sao verdadeiramente tao grandes como a do velho mundo, porem sao mais furiosas, atrevidas, e valentes, que accommettem os homens, e nao fazem seos ninhos, sobre ro- chedos, como diz Job, Aquilla in petris manet «a aguia mora nos rochedos» porem entre as arvores. Vou contar-vos a este respeito o que ouvi em Maranhao sobre duas aguias extraordinariamente ferozes, que vieram aninhar-se nos mangues d’Uy-ra-piran, aldeiazinha na costa, distante legoa e meia do Forte de S. Luiz. Mostraram-me o lugar, onde ellas viviam, n’um dia, em que passeiando pelo mar fui visitar um francez, morador n’essa aldeia. Tinham essas aguias cortado ramos mais grossos^ do que uma coxa de homem, e tinham feito tao boas acommoda- coes, que melhores nao fariam doze homens.179 Ahi tinham depositado seos ovos com seos filhinhos, e nin- guem se at re via a passar por perto. Vao capar cabritos-montezes, matam-nos, e\spedapam-nos com unhas e bicos, e depois trazern alguns boceados a seos filhos. Pescam da mesma forma arremepando-se sobre os gol- phinhos, pirapamas, e trombudos, e tiram-no do mar com suas garras, deitam-nos em terra, dividem-nos em pedapos, que levam a seos filhos. Vao ainda mais longer mataram urn homem e uma mu- lher Tupinambds, o que lhes causou a sua morte e a de seos filhos, porque si lhes armou uma ciiada tao bem ar- ranjada, que conseguio-se matar o macho, e a femea achan- do-se viuva retirou-se para a terra firrae abandonando seos fllhinhos, que foram passados pelas armas dos Tupinambds em vinganpa do crime commettido na pessoa dos dois, que dies mataram, e destruio-se-lhes o ninho. A femea e maior que o macho, ambos de cor parda, olhar vivo e feroz, poupa forte e irripada no cume da cabe^a, pennas grossas no canudo e grandes como a de um gallo da India: servern-se d’elias os Tupinambds para emplumar suas flexas. Nota-se n’estas pennas uma coisa particular e especial: si os selvagens as misturam com outras pennas, como sejam de araras, e de outros passaros grandes, sao estas roidas e comidas por aquellas, pelo que sao guardadas a parte, e com outras nao as deitam em suas flexas. Por maiores, que sejam os outros passaros, e a Aguia o Senhor e o Rei nao por igualdade de forpas, mas por subti- leza e ligeireza de voo, subindo muito alto quando quer perseguir os passaros grandes, e descendo mui rasteira- mente quando elles tambem descem, e quebram-lhes a ca- bepa com o bico. Ficam assustados todos os passaros quando ouvem o seo grito, calam se e occultam-se entre folhas.180 Capam principalmente os gavioes, parecidos com as pom- bas brancas, que vivem nas praias, saltando de ramo em ramo, esperando a vinda de passarinhos para assaltal-os e agarral-os. Abi vao as aguias capal os, e despedapal-os n’um momento. Nulrem-se tambera de tartarugas do mar e de terra, e nao poupam a alguma serpente ou cobra que por veutura en- contrem. Raras vezes podem os selvagens pilhal-as de geito para flechal-as. Trepam-se no cume das arvores, onde expandem as azas aos raios do sol, tirandocom seobico as pennas velhas, que por esse estado ja nao servem: ahi vao os selvagens buscar estas pennas para seo uso. Assiraelham-se muito na fdrma e cor as pennas dos gallos da India, e sao muito boas para escrever. Alein d’estas aguias ba passaros grandes chamados mm uacu, quasi do tamanho dos abestruses da Africa, 80 mais compridos, porem nao lao grossos. Os grous de la parecem-se com os pardaes. Si algum foi para a Franpa, levado por nossos companheiros, saibam que ha outros ainda mais grossos. Agarram-nos os selvagens quando pequenos, e para isso procuram a occasiao em que os paes vao capar. Sao brancos quando pequenos, mechem-se pouco a pouco, e vao mudando at6 que alcance suas pennas e cor verda- deiras. Sao muito glutoes, e parece que nao se fartam, porem quando comem 6 por muitos dias. Si os macacos pudessem persuadir os selvagens a extin- guir essa rapa, o fariam indubitavelmente, porque perdem mi!hoes dos seos para sustento d’ellas. Os Tupinambds, que criam estes passaros, conhecem que a melhor carne, que se Ihes pode dar, 6 a de macacos, e para isto vao ao matto capal-os e matal-os.181 • Ha outras especies de passaros grandes, porem que nao se comparam com estes, e sao as araras, os canindSs, e outros, os quaes sao agarrados pelos indios por maneira as- tuciosa. Vao ao matto, escolhem as arvores, onde costumam estes passaros passar a noite, e onde se recolhem depois de comer: fazern debaixo d’essas arvores uma casinha redonda, com capacidade para conter tres homens, e coberta de pa- Ihas: ahi se recolhem e esperam a vinda dos passaros, que como nao desconfiam, aproximam-se muito, e entao os sel- vagens lhes atiram qualquer projectil, que os atordoa sem matal-os, cahem em terra onde sao facilmente agarrados e prendem, e com o correr do tempo de tal maneira se do- mesticam, que embora os soltem, nao deixam a casa do seo dono: introduzem-se pelos quartos, fazern grande matinada, com voz similhante a do corvo, aprendem a fallar como os papagaios, e dao suas pennas a seos hospedes para com el- las se adornarem e enfeitarem.81 Os habitantes do rio depennam seos gansos para encher colchoes, e os indios tiram as pennas d’estes passaros para fazer seos enfeites e adornos. Ha muitas e diversas qualidades de garpas, umas maio- res, e outras mais pequenas. Fazern seos ninhos nos mangues a beira do mar, vivem de peixe, e trazem alguns inteiros a seos lilhos que princi- piam a comel-os desde os seos primeiros dias. Admirei-me de ter sido encontrado um peixe grande, do tamanho de um arenque, no ventre de uma garpa, pouca implumada. Os selvagens vao tirar dos ninhos as garpasiuhas, arma- dos de bons cacetes para se defenderem dos paes e maes, que em tal caso nao deixam de acudir aos que nutrem tao terna e cuidadosamente afim de estenderem a especie. Similhantes as garpas ha outros passaros chamados for- quilhas pelos francezes e portuguezes, porque teem a cauda fendida quando vdam: fazern seos ninhos nos mangues, em182 lugar recondito, e pouco frequent-ado dos homens o quanto 6 possivel: ahi poem, e deixam seos fiihos, vao para o mar, e ahi ficam por todo o dia enchendo de peixe uma grande bolsa, que Irasem debaixo da goela, e que depois levarn a seos fiihos: quando esta vasia esta bolsa, enche-se de vento que os alivia e suslenla no meio do ar, quando passam muitos dias e noiles sem ir a terra, e atiram-se pelo mar em distancia de 50 a 60 legoas procurando ali- mentos. Tem a vista exlraordinariamente apurada a ponto de ve- rem do mais alto lugar, a que sobem, o peixe que nada no mar, e sobre elle cahem c agarram-no. Tem uma proprie- dade muito boa e e que perseguem os peixes, que andam atraz dos pequenos para devoral-os. Aproximam-se d’agoa, e como querem participar da presa, perseguem-nos o quanto podem. Alem destes passaros grandes ha milhares de passari- nlios, entre os quaes merecem especial mengao os seguin- tes. As andurinhas do mar em tao grande quantidade, que co- brern as praias nas vasantes: sao boas para se comer, e a vontade matareis muitas com uma anna, carregada de chum- bo miudo, e sentado n’uma canoa. Ha outra qualidade de passaros, que admirarn muito a p :i!.o de nao se acreditar, e comtudo e verdade, por mim experimentada, os quaes tem por bico duas facas, embuti- das em seos cabos, e aos quaes dao o nome de navalhas: o bico nao lhes serve para buscar alimento, e porissodizem que elles s6 vivem de vento, porque essas facas cortantes nao lhes servem senao de passaternpo quando passeiam pe- las praias, e encontram outros passaros, que sao por elles cortados pelo meio. No dia, em que parti do Maranhao, urn maneebo perlen- cente ao Sr. de Sam Vicente, que me acompanhou em toda a minha viagem, matou um, cujo bico guardei e trouxe para a Franpa.183 Ha meiros como os de Franga, iguaes na plumagem e no canto, que espandem suas pennas a vontade no firri das chu- vas, quando vem o bom tempo visitar os habitantes da zona tdrrida: no fim do bom tempo e principio das chuvas soltam um canto triste, como que chorando o passado, e prevendo as tempestades do inverno, si tal nome merece. Ha muitos passarinhos de bellesa incrivel: uns paroos, ou- tros cor de violela, azulados, amarellos e mesclados: fazem os selvagens penachos de suas pennas, que sao inuito caras por ser difficii matal-os, porque presentindo o inimigo, que os busca, trepam-se no curne das arvores mais altas, nas pontas dos ramos, fazem seos ninhos os quaes amarram com uma embira muito forte, e na outra extremidade que cabe no solio, fabricam uma especie de pote de terra, no qua! criara seos fllhos entrando por um so buraco, proporcional a sua grossura. Trouxe para Franga esses passarinhos, que aqui causa- ram muita admiragao. Possue o Maranhao um genero de passarinhos, que nao excede no corpo a extremidade do pollegar, e acrescento com todas as suas pennas, e tern canto melodioso, que faz lembrar o das andorinhas, que imitarn quando querem can- tar: levantam o bico, e soltam o canto o mais alto, que po- dem, e o sustentam em quanto o permittem suas azas. Fazem suas casas junto as fontes, onde muitas vezes vao banhar suas azinhas para mais facilmente voarem alto. Ahi perto fazem seos ninhos, e imaginae o tamanho dos ovos, que chegam de 5 a 7: seos filhinhos ainda sao de mais ad- miravel pequenez. Sao tao fecundos, que os meninos enchem cabagas de ovos d’elles. Ha de diversas cores, amarellos, violetas. pardos, etc.184 CAFITULD ZLVUI Resposta a muitas perguntas, que fazem n’aquelle paiz k respeito das Indias Occidentaes. Para perfeipao d’este primeiro tratado, julguei acertado responder a todas as perguntas, que se fazem n’esse paiz. t .a Si esta terra de equinoccio pode ser habitada por fran- cezes delicados, oaturaes de urn paiz temperado, criados com cuidado e bons alimentos, pois nao parece poderem se accommodar n’um paiz agreste, selvagem, cheio de mat- tas, entre barbaros, e debaixo da zona torrida e ardente. Respondo, que na verdade todosos principios sao difficeis, port m pouco a pouco apparece a facilidade. Nao ha no mundo villa ou aldeia, que nao cause susto e encommodo no principio, porem depois de alguns annos tudo vae bem, e os nossos padres ja ahi deixaram o fructo de suas fadigas. Nao eram mui delicados os cidadaos romanos ? E comtu- do nao deixaram Roma e Italia para plantarem suas colo- nias nas florestas gaulezas e allemans ? 0 portuguez nao e, como nos os francezes, na Europa su- geito a todas as molestias, trabalhos e fadigas? Sim! porem e neste ponto mais soffredor do que nos, pois bem sabe ser m ressario primeiro lavrar para depois colher: comtudo es- tabelece-se muito bem no Brasil, faz grandes negocios, sen- do a terra bein preparada e cultivada. Havendo dinheiro ha ahi de tudo, como em Lisboa. Eu vos lembro, que se a paciencia dos homens tern tornado, dentro de oito mezes, boas e ferteis as terras crestadas pelo gelo ou congeladas, uma terra, o coragao do mundo, nao sera habitavel pelos francezes ? E ate loucura pensar n’isto, e portanto concluo, que esta terra e apropriada a naturesa dos francezes como e a Franpa, si for bem cultivada e provida de viveres ne- cessarios e acommodados ao gosto francez, como sejam pao e vinho: quanto a carne, peixe, legumes e raises, ha de tudo185 isto incrivel abundancia, tendo apenas o trabalho de colher e plantar os vegetaes. Enganar-se-hia porem quem pensasse, que as arvores pro- duzissem patinbos assados, as corpas, quartos de carneiro, recentemente tirados do espeto, e o ar andorinhas bem co- zidas, de forma que nao havia mais trabalho do que abrir a bocca e comer. Com tal fantasia, nao Ihe aconselho, que la va, porque arrepender-se-hia. E pois esta terra habitavel pelos francezes, e si ahi nao tiverem commodidades, arrepender-se-hao, porem tarde. 2.* Eis o que disse, e basta- 8* a terra 6 habitavel, e pode ahi morar-se com algum encommodo durante alguos annos. Mas sera saudavel para os francezes? Os indios ahi •ao sadios, e vivem longo tempo, embora selvagens e bar- laros, nascidos n’este clima, e acostumados a tal tempera- tira. Nao tem os francezes tal privilegio, pois sao sujeitos amuitas febres, que se terminam em paralysia e outros en- coomodos. Respondo a isto, que julgamos das substancias pos accidentes, e das terras pelos encommodos e enfermi- dat?s. Omparemos agora a menor aldeia de Franpa com a Co- loni; Francesa n’estas terras, e no espapo de urn anno acha- mosiaver na aldeia dez vezes mais doentes do que em dois no Mranhao. Si lgumas pessoas se dao mal, nao 6 novidade pois em toda .parte esta a morte: assim sao as molestias. D’eies males nao estao isentos Reis e Principes em paizes os mas agradaveis e salubres, que se possa imaginar. Em ois annos, que la eslive, apenas houve uma morte a do Rvc padre Ambrosio: 83 fallo da morte natural, porque os devtados pelos peixes, a culpa foi d’elles por se lanpa- rem aonar. Mom o Rvd. padre de uma paralysia, porque estando muito atado a derrubar arvores grandes, e tendo o suor molhado) seo habito, foi assim mesmo celebrar missa, e 30186 apenas sahio da igreja foi acommettido por urna febre, de que falleceo poucos dias depois. Digo isto com certesa, porque o assisti ate o fim, achan- do-se fora em servipo de Deos os outros dois padres. A vista d’isto Maranhao e Paris pleiteam entre si. Diz Paris—«es ma terra, porque mataste urn padre capu- chinho que te mandei.» Re^ponde Maranhao «por um perdi quatro dos meos.» «Tendes rasao para censurar-me ?» Assim o deveria ser, si os meos fossem tratados como principes, e o pobre capu- chin'no apenas tivesse farinha, ou pouco mais. «Concordemos pois, que o clima e sam e salubre, e que desperla nuito o apetite, e si houvessem muitas gulodices como em Franpa, para ahi iriam as pressas muitas mopa francezas. 3.a Dizem vae tudo muito bem, porem nao ha vinho,e nem trigo, principaes alimenlos, indispeosaveis nos mello- res banqu^tes para as carnes mais delicadas. Respondo, que ha milho em grande abundancia, dejue se pode fazer pao, como nos o faziamos, e o achavrnos muito agradavet ao gosto, embora gostassemos mais dafari- nha do paiz, especialmente quando fresca, porque nao3 pe- sada ao estomago. Este pao de milho serve d’alimento em muitas teras do velho mundo, 84 e especialmente na Turquia, nuclei cha- mado trigo da Turquia. Nao se perdeo ainda a esperanpa, que a terra fme do Rra-il, forte e gorda, nao possa produzir trigo, corrque se fabrique o pao como na Franpa. Os habitantes de Pernambuco ja o fizeram; nao ctao Ion- ge de nos, porem em terras peiores. Quanto a terra firme do Maranhao, melhor seri;si o rei de Hespanha nao prohibisse nas Judias Orientaes (Occiden- taes plantapao de trigo e de vinhas para tel-as sopre de- penden tes de seo soccorro, e de tudo quanto cres? nosseos Reinos de Hespanha e Portugal.187 Accrescento ainda, que o Peril, que esta no mesmo para- lello que a terra flrme do Maranhao, 6 abundante de Irigo e de vinhas. Quem pode impedir, que ahi se produzam estes generos ? Quanto ao vinho, nao e feito das vinhas do paiz, embora ahi possam crescer, 85 e contam-nos, que as trazidas pelos nossos relfgiosos na ultima viagem pegaram e produziram fructos. Quern pode impedir grandes plantapoes de vinhas, e que em dois ou tres annos se fagam grandes colheitas ? A Franca nem sempre tern vinho, actualmente porem tem muito. Os flamengos, os inglezes, os hibernios e dinamarquezes nao fabricam vinho, contentam-se com cerveja, e se querem beber vinho abrern a bolsa, e ahi vao os melhores vinhos do Universe. 0 mesmo succ-ede em Maranhao, porque os navios ahi os levam. Ill bem verdade, que e um pouco mais caro do que em Franga, porem e melhor, segundo pensam alguns france- zes, que avaliarn as coisas pelo prego. Os mais economicos acostumam-se com a cerveja do paiz que e muito boa por ser feita de milho, e nao e muito cara por haver muita abundancia desie genero na terra e serem as agoas boas e puras. 4.a Dizem. Si 6 assim nao e mao, porem pode ahi fazer-se vantagens, visto que, em quanto ahi estive, nunca me ani* mei a gastar dinheiro. Respondo. Se todos soubessem porque se dava essa falta, ticariam contentes, porem nao e cousa que todos devam saber. Direi somente, que esta falta nao provem da terra, que 6 propria a produsir bons generos quando bem cultivada, como sejam: Algoddo, cana fistula, macleira de diversas co- res, piteira,86 tinturas de urucu, de cramesim, pimentas tongas, lapis-lazuli, cobre, prata, oiro, pedras preciosas, plumas, passaros de diversas cores, macacos, macacos-mo- nos, e saguins, e especialmente assucares, quando si levan- larem engenhos e plantarem cannas.188 Si nada de la se trouxer (callando o que si deve dizer em publico) provern da ma direcpao dos negocios, cuidando cada um de si, o que tem feito com que haja pouco sorti- mento de mercadorias francezas, necessarias aos selvagens, e pelas quaes dao algodao, tinturas, pimentas, e outras coisas similhantes, alem de outros generos, que por si mes- mo possam obter os francezes. Vendo os selvagens a pobresa dos armazens, onde ape- nas haviam mercadorias para com ellas si comprar farinha, fleam preguigosos, nada fazem e nem farao emquanto os francezes nao tiverem coisa alguma a dar-Ihes em recom- pensa: tal 6 o seo genio e assim o farao, e por isto nao merecem censura, por que em todo o Christianismo nao si encontra um s6 homem, que trabalbe de graga. Nao vos admireis si nada tragam, e sim si na primeira viagem conduzirem comsigo alguma coisa. Nao me prendo as rasoes ja ditas, e outras, que callo, e sim no caso de prover-se a esta falta, como convem, eu vos asseguro que a llha e suas circumvisinhanpas ainda pro- duzirao bons estofos. Tendo satisfeito a todas as perguntas e objeegoes sinto repngnancia em responder a muitos mancebos, que por bens de fortuna somente possuem a espada e o punhal, mais que ricos de coragem cortam muitas vezes a garganta uns dos outros, e vao em companhia para um paiz bem triste, onde navio algum vae levar novidades. Desejaria perguntar-lhes—que fazeis em Franga senao es- posar quesloes de vossos irmaos mais velhos ? Porque nao experimenlaes fortuna, ou ao menos porque nao ides enri- quecer vosso espirito com a vista de coisas novas? Passa- rieis assim o vosso tempo, em quanto si aplaca o vosso co- rapao, e si fortalece o vosso juiso: prestarieis servipo a Deos e ao vosso Rei visitando esta nova Franpa. Ahi descobrireis novas terras, achareis alguma coisa de valor, como sejam pedras preciosas etc., e quando mais nao fosse, bastaria que, quando voltardes, nao fleasseis mudo189 uas reunioes, porque aquelle que viaja tem sempre ganho o seo pao. As cinzas e os fogoes sao para os cazeiros, creados por Deos para cultivar a terra. A nobresa n’este mundo tem outro Dm, e qual 6 elle? o de empregar vossos esforpos e trabalhos para dilatar o reinado de Deos, ajudar os Apostolos de Jesus Christo a chegarem aos fins para os quaes sao enviados, isto e, para augmento do sceptro e da coroa de vosso prin- cipe, e morrer por estas duas empresas—6 morrer em leito de honra. V6s me respondereis—mas sob que ordens e porque meios ? Minha penna, senhores, nao pode ir mais longe. Fiz o que devia e o resto ignoro. Espero portauto, que Deos inspirara aquelles, que tudo podem, a favor da perfeifao de tao alta empresa. CAPITOLD XLXX Instrucgao para os que vao pela primeira vez as Indias. Sabio e aquslle, diz o proverbio, que para seos negocios se aproveita do exeinplo e experiencia dos outros. Se os nossos francezes, antes de terem ido a India, sou- bessem o que depois conheceram, teriam melhor dirigido os seos negocios, e nem teriam passado pelos encommodos, que soffreram: o que resolver ahi ir, calcule quauto tempo ahi se pode demorar, junte ainda mais urn bocado, por- que la nao se tem a commodidade do regresso quando se quer.190 Fapa seo sortimento para esse tempo, e por duas formas, uma para si e outra para os selvagens afini de obter delies viveres e outros generos. As suas provisoes devem consistir de aguardente forte, do melhor vinho de Canaria, em bons frascos de estanho, bem arrolhados e acondicionados n’uma frasqueira fechada a cha- ve, e esta tao bem guardada, como o seo corapao, para ser- vir nas necessidades e nas molestias que podem apparecer. Fuja de sucia com pessoa alguma, porque entao desap- parecera bem depressa as soas provisoes. E costume no mar, desde que se suspeita haver vinho on agoardente na frasqueira de algum passageiro, o pedir-se de vez em quando uma vez d’esses espiritos para beber em companhia, e quando se esta em viagem deve-se fazer de duas coisas uma, ou ser-se liberal e para isso nao faltam instigapoes, ou entao passar-se por velhaco, e soffrer todas as injurias, que lhe queiram fazer. 0 meio mais seguro para evitar estas coisas e nao entrar em sucias. Para a passagem do mar deve surtir-se de algum vinho tinto, e de coisas iguaes para quando precisar visto o tri- vial do navio ser muito rnal preparado. Deve fornecer-se de urn bom numero de camisas, lenpos, e vestidos de fustao, e nao de estofos pesados, excepto os vesluarios para festas, porque n’este paiz nao se precisa se- nao de pannos leves. Leve sabao para o aceio da casa, muitos sapatos porque la nao achara urn so, senao os que para ahi forem levados e por alto prepo, de forma que pelo prepo de um par te- reis em Franpa uma duzia, toalhas, guardanapos, lenpdes e um bom colchao, e se quizerdes viver a francesa, isto 6, com limpesa, deveis levar baixela de estanho para quando estiverdes doentes. Devereis levar assucar, boas especiarias, uma porcao de rhuibarbo muito fino, tudo bem acondicionado n’uma caixa para livrar o assucar das formigas do paiz, porque 6 impos-191 sivel imaginar-se o que fazem estes animaesinhos, que me* tem-se por toria a parte, e tudo trespassam se e de ma- deira. Devem essas caixas ser feitas de ferro branco. As mercadorias pelas quaes dos Indios obtereis em troca viveres e oulros generos do paiz, e escravos para ser- vir-vos e cultivar vossas ropas, sao as seguintes—facas de cabo de pau, de que usam os magarefes, e muito apeteci- das pelos selvagens, muitas thesouras de bolsa de couro, muitos pentes, contas de vidro verde-gaio, a que chamam missanga, foices,87 machados, podoes, chapeos de pouco va* lor, fraques, camisoilas, calpoes de adellos, espadas velhas, e arcabuses de pouco prepo. Dao muito aprepo a tudo isto, e assim tereis escravos e bons generos. Nao esquepaes tambem pannos verdes-gaios, e vermelhos de pouco valor, porque nao fazem grande differenpa dos es- tofos, rosetas, assobios, campainhas, anneis de cobre dou- rado, anzoes, alicates de latao chatos, com um pe de eum- primento e meio de largura, tudo isto por elles muito apre- ciado. Assim bem provides destes generos, nao duvideis de ser* des bem vindo entre elles: ahi nao deveis viver vida folga- da, e muito negocio fareis n’esse paiz pelo qual pouco da* reis, se souberdes guiar-vos. Assim preparado, nao vos esquepaes do principal, que e antes de embarcardes puriQcar e robustecer vossa alma com o Santissimo Sacramento da conflssao e da cummunhao, dis- pondo todos os vossos negocios como quern nao sabe se o mar lhe permitlira o voltar. Apenas embarcado, fazei vossa cama o mais perto, que for possivel, do mastro grande para evitardes o balanpo visto ser ahi o lugar mais quieto do navio. Deve-se serapre temer a Deos, porem nao receiar os acasos do mar, sendo melhor mostrar o rosto tranquillo do que desassocegado, visto de nada servir o medo.192 Nao vos assusteis senao quando os pilolos iraplorarem raisericordia, porque entao e preciso cuidar da alma, visto irem mal as cousas. Quando virdes o navio navegando de lado, as caixas vi- radas, o mar entrando no convez, as vellas molhando-se nas ondas, os marinheiros jurando e buffando, 88 nao vos assus- teis, mostrae-vos sempre de animo prasenteiro, nao vos descuidando porem da vossa consciencia. Nao questioneis com algum marinheiro, pois com isso nada alcanpareis. Quando cbegardes ao porto, nao vos apresseis em saltar, cuidae primeiro nas vossas mercadorias e bagagem, porque acontece muitas vezes visitarern a bagagem, e serrarem os caixoes, onde vem os generos, de maneira que se possa introduzir a mao. Fazei conduzir tudo em vossa companhia para casa do vosso Compadre, que deveis escolber com estes predicados se for possivel. 1. ° Que tenha escravos, canoa e caes, para nao sentirdes falta de peixe e de capa, senao raras vezes tereis estes generos, sendo necessario compral-os aos selvagens, e assim muito cara vos seria a vida. 2. ° Indagae se elle tem bom genio especialmente a mu- Iher, porque nada ha peior do que ma hospede. Se encontrardes bom acolbimento, convem fazer alguns presentes, e depois deveis trazel-os sempre na esperanpa de outros, sem serdes comtudo muito liberal, e por isso todos os mezes lhe deveis dar alguma coisa afim de nao vos cha- marem avarento, e como tal nao vos apregoem entre os seos iguaes, criando assim difflculdades quando quizerdes obter alguma coisa. . Nao vos deixeis prender pelos affagos das flibas dos vos- sos hospedes, ou de outras, pois nao vos faltarao caricias se souberem que tendes mercadorias. Em tudo o mais 6 preciso andar prevenido, tendo sem- pre bem presente a memoria o acaso e o perigo, que fa-193 zero contrahir molestias sdrdidas aquelles, que de si se es- quecera. Podeis livrar-vos d’isto com facilidade, mormente se con- siderardes o grande peccado, que commeteis. CAPITULD L Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes recem-chegados, e como convem proceder para com elles. Si ha napao no mundo, que goste de fazer bom acolhi- mento aos seos amigos recem-chegados, e que os receba em suas casas para tratal-os bem o quanto e possivel, sem duvida alguma os Tupinambds occupam o primeiro lugar a vista do que fizeram aos francezes. Logo que fundeou o navio, que trasiam os francezes, sur- giram de todos os lados selvagens em suascanoas, bem en- feitados de pennas e preparados segundo sua classe como si fossem para uma grande festa. Apenas descobrem ao longe navios que demandam a terra corre logo esle boato por todas as aldeias Aurt vgar uacu Karaibe, ou Aurt Navire suay «ahi vem os grandes navios de Franpa.» Immediatamente tomam os seos vestidos bonitos, si os tem, e principiam a fallar uns aos outros por esta forma: «ahi vem navios de Franpa, e eu vou ter urn bom compa- dre, elle me dara machados, foices, facas, espadas, e roupa: eu lhe darei minha filha, irei pescar e capar para elle, plan- tarei muito algodao, dar-lhe-hei gavioes e ambar, e flcarei 31194 rico, porque hei de escolher am bom compadre, que tenha muitas mercadorias.» Dizendo isto batem nas pernas e nos peitos era signal de alegria. As mulheres e os rapazes fabricam farinha fresca e nova, e os homens vao pescar e capar, e quando a casa esta pro- vida de carnes de diversas qualidades, raizes, peixes, capa, e farinha, vao todos aos navios. Os mais impacientes vao em suas canoas a bordo do na- vio, ancorado na enseiada, endagar se vieram os seos ve- lhos Chet nassaps, e qual 6 o francez que traz mais generos para lhe offerecer seo compadresco, sua casa e sua filha. Apenas salta o francez 6 logo rodeiado por elles: homens e mulheres mostram-se prasenteiros, presenteam-nos com vi- veres, convidam-nos para compadre, ofiferecem-se para le- var-lhes sua bagagem, em Cm fazem o que podem para con- tental os e agradal-os. Nao tem inveja por estar um francez em casa de outro: o que primeiro se apresenta 6 que leva o hospede, sem a me- nor questao, e nem por isso se insullam. Fazem mais ainda: quando um francez muda de compa- dre, nao questionam por islo, despresara-no, e tem-no por homem mau, e assim raciocinam. «Si nao poude viver com aquelle, como vivera commigo?» Si o selvagem e genioso, avarento e preguiposo, quando o francez o deixa nao se zangam os outros, antes dizem «E bem feito ser elle despresado, 6 um homem difficil de ser aturado, avarento e preguiposo.» Escolhendo o francez um compadre, segue-o e vac para a aldeia, 89 e entao o hospede com certa gravidade, como si nunca o houvesse visto, lhe estende a mao e lhe diz: «Ereiup Chetuassap ?» «Chegaste meu compadre,» 90 coisa digna de vdr-se e de contemplar-se. Direis ao vel-os, que sahem a maneira dos imperadores de um gabinete bem fechado, onde estavam empenhados em grandes negocios.195 Si querem fazer grande acolhimento a urn francez e Ihe mostrar que muito o estimam, antes que o pae de familia the diga Ereiup, as mulheres e as filhas o lamentam e de- pois dam-lhe bons dias. Responde-lhe o francez Pa, «sim?» resposta que quer di- zer «sim de todo o corapao: eu te escolhi para morar com- tigo, e para ser meo compadre, e do numero de tua farni- lia: te dei a preferencia porque te eslimo e por me parece- res bom homem.» Diz-lhe o selvagem—Auge-y-po «muito bem, estou muito contente, honras-rne muito, sede bem vindo e aqui serastao bem acolhido como em parte aiguma.» Por isto reconhecereis a candura e a simplicidade da na- turesa, que consiste em poucas palavras e muitas obras. 0 contrario acontece a corruppao, pois inventa muitos discur- sos, muitas palavras adocieadas, cortejo sobre cortejo mui- tas vezes so com o chapeo, e nao com o corapao. D’estas duas receppoes qual sera a melhor e a maiscon- sentanea com a lei de Deos, e com a simplicidade do chris- tianismo ? Apos aquellas palavras, elle vos diz—Marape derere? «Como te charnas ? qual e o teu nome ? como queres que te chamemos? que nome queres que se te de ? Convem notar, que si nao escolherdes urn nome pelo qual sereis conhecido em toda a parte, elies vos darao um esco- Ihido entre as coisas naturaes, existentes no seo paiz, e o mais apropriado a vossa physionomia, genio, ou maneira de viver, que por ventura descobrirem em vossa pessoa. Por exemplo, entre os francezes, um foi chamado beico de sargo, porque tinha o beipo inferior puchado para diante como os peixes chamados sargos. Tiveram outros o ape)lido de garganta grande porque nada o fartava, de sapo-boi,91 por estar sempre entumecido, de cdo pirento pela sua cor ma, de piriquito porque leva- va so a fallar, de lanca grande por ser alto e esguio, e assim por diante, e ordinariamente fazem estas coisas em196 suas casas grandes, e por esta forma pouco mais ou menos. «Que nome se ha de dar a teo compadre ? —Nao sei, 6 preciso estudar. Indica cada um a sua opiniao, e o nome que encontra mais apropriado, e si 6 bem recebido pela assemblAa lhe e imposto com seo consentimento, si 6 homem de posipao: si e do vulgo, queira ou nao queira, ha de ter o nome, que lhe der a assemblAa. Tem tambem outra maneira de impor nomes: quando elles vos eslimara, e vos dam muito aprepo, elles vos dam o seo proprio nome. Depois de saber vosso nome pensam na cozinha dizendo— Demursusen Chetuasap, ou entao Deambuassuk Chetuasap ? «Tem fome, meo compadre? quer comer alguma coisa?» A hospede vos escuta e vos attende prompta a servir-vos si disserdes sim ou nao, porque tomarao vossa resposta, como dinheiro contado, visto que n’essas terras nem se deve ser vergonhoso, e nem guardar silencio. Si tendes fome, direis Pd, chemursusain. Pd, cheambu- assuk, «sim, tenho fome, quero comer.» Perguntam elles Ma6-pereipotar, «que queres tu comer ? que desejas tu que eu te traga ?» Sao mui liberaes no principio, diligentes na capa e na pesca, afim de contentar-vos e ganhar vossa affeipao para obter generos; mas cuidado, nao lhe des tudo no principio, conservae-o sempre na esperanpa, dando-lhe cada mez al- guma coisinha. A sua pergunta dizei, si quereis carne, peixe, passa- ros, raizes, ou outra qualquer coisa, e entao vossos hos- pedes, o marido e a mulher trazem para vos a capa, o Min- gau, que tiverem, podeis comer a vontade e dar a quern quizerdes. Apenas tiverdes comido, arma a sua rede ao pd da vossa, principia a conversar comvosco, offerece-vos um caximbo cheio de fumo, que accende, chupa tres fumapas, que ex- pelle pelas ventas, e depois vos entrega como coisa muito197 boa, e que faz rauita estima, como na Franpa se pratica com as bebidas. Accende tambem seo caximbo, e depois de haver tornado cinco ou seis fumapas diz—Ereia Kasse pipo: «deixaste teo paiz para vir ver-nos, visitar-nos e trazer-nos generos ?» Respondei-lhe Pd—«sim, deixei tudo, despresei meos ami- gos, e meo paiz para vir aqui ver-te.» Levantando entao a cabepa como que admirado, diz Yande repiac aut, «compadeceo-se de mim, olhou-nos com pieda- de: lembraram-se os francezes de nos, nao se esqueceram de n6s.» Deixaram sua terra para nos vir ver—Y Katu Karaibe; «sao bons os francezes e muito nossos amigos.» Depois pergunta ao francez Mabuype deruuichaue Yrom ? «Comvosco quantos superiores, guerreiros, capitaes e prin- cipaes vieram?» Responde-lhe elle Seta, «muitos.» Replica o selvagem—De Muruuichaue ? «Nao es d’esse numero ? Nao ds um dos principaes ?» Bern podeis pensar, que nao ha ninguem, por mais me- diocre, que seja a sua condicpao, que de si nao diga bem, e por isso responde o francez Che Muruuichaue «sim, sou um dos principaes.» Diz o selvagem Teh Augeypo «muito bem, estou muito contente: basta, fallemos de outra coisa.» Ereru patua? Ereru de caramemo seta? «Trouxestes muitas caixas e cestas, cheias de mercadorias ?» Sao as melhores noticias, que se lhes pode dar, para as quaes tem sempre dispostos o animo e o corapao, de sorte, que tudo quanto dizem e somente como que um preambulo para chegar a este ponto. Depois que o francez responde-lhe affirmativamente diz o selvagem—Mea porerut decarameno pup6? «0 que trou- xestes em vossas caixas e coffres de joias ? que mercado- rias ?» dizem elles com v6z doce e agradavel, pois sao muito curiosos de saber o que trazem comsigo os francezes.198 Deve estar prevenido o francez para nao dizer e nem mostrar o que elles desejam, afim de trasel-os sempre na expeclativa, si dos seos servipos quer aproveitar-se. Deve responder* Ihe—Y Katu paue «trouxe tantas coisas, cnjos nomes nem mesmo sei, sao Delias e magni(icas.» Esta resposta e como agoa lanpada na fornalha ardente do ferreiro, a qual redobra o calor, e activa a chama, e as- sim desperta a curiosidade do selvagem, ate por meios adu- latorios, expressados por geslos, dizendo Eimonbeu opap- Katu «eu te pepo, nao me oecultes nada, dize-me.» Yassoi- auok de Karamemo assepiak demae: «Abre-me tuas caixas, teos cestos, deixa-me ver tuas mercadorias, tuas rique- zas.» Deve responder o francez Aimosanen ressepiak ou Kapron deue «agora nao posso, deixa-me descancar, logo te mos- trarei: Begoye sepiak «nao duvides, urn dia veras a tua von- tade.» 0 selvagem entende o que .isto quer dizer, e vendo que perde seo tempo, diz a si mesmo, levantando os hombros, e como que se lastimando—Auge katut tegne, «pois bem, es- peravei.» Bem sei que nao serei ouvido, porem, diz elle ao fran- cez Dererupe xeapare amon? «Nao trouxestes muitas fou- ces e machadinlios de cabo de ferro ?» Dererupe urd sossea-mon? ((Trouxestes machados de cabo de pau?» Ererupe ytaxeamo? «Nao trouxestes facas d’apo.» Ererupe ytaapen? ((Trouxestes espadas d’apo.» Ererupe ta- tau? ((Trouxeste arcabuzes?» Ererupe tatapuy seta? «Trou- xeste muita polvora?» Responde o francez a tudo isto Aru seta yagatupe giapa- rete ((Sim, trouxe muita coisa boa e bonita.» Diz o selvagem Auge-y-pd «Muito bem.» Ereipotar turumi ? Ercipotar kere «queres dorrnir ? que- res deilar-te ?» Responde o francez Pa die polar «sim, quero dorrnir, deixa-me.»199 Da-lbe entao o selvagem as boas tardes, ou boas noites, dizendo—Nein tyandekaruk tyande petom «boa tarde, boa noite, descangae a vontade.»> Deixemol-os em descanpo, e passemos a seguuda parte d’esta bistoria.Continuacao da historia das Goisas mais memoraveis, acontecidas no Maranhao em 1613 a 1614. Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo baptismo de muitos meninos. 0 cantico segundo, (representando allegoricamente a ori- gem da Igreja, em terra nova, ainda nao illuminada pelo conhecimento do verdadeiro Deos) diz: Vox turturis audita est in terra nostra: ficus protulit grossos suos: vineoe flo- rentes dederunt odorem suurn: «foi ouvida a voz da rolla em nossa terra: produzio a flgueira seos figos verdes, e as vinhas em tlorescencia derramaram seo aroma.» Interpretando estas palavras Rabbi Jonathas, diz em sua Paraphrase chaldaica, que a voz da rolla signiflca a voz do Espirito Santo annunciando a Redemppao promettida a Abra- ham, pae de todos os crentes: eis suas proprias palavras:— Vox spiritus sancti et redemptiones quam dixi Ahrahce Pa- tri vestro: «a voz do Espirito Santo e da Redemppao, que prometti a Abraham, vosso Pae. Diz mais, que pela flgueira deve entender-se a Igreja, e que pelos figos novos se representa a conflssao da fe, que devem os crentes fazer diante de Deos, e flnalmente que pelas vinhas em flor exhalando bom cheiro sao indicados os rf K 03ry i A ^ j .. i.. i. 1 j. & 1 i 32202 rneninos louvando o Senhor dos seculos: Ccetus Israel, qui comparatus est precocibus ficubus aperuit os suum, et eti- am pueri et infantes laudaverunt Dominatorem seeculi: em nosso tempo vimos isto realisado em Maranhao, e suas eircumvisinhanpas, onde depois que a v6z do Espirito Santo, por meio da predica do Evangelho, se fez ouvir n’estas ter- ras, e tocou o corapao de muitos, especialmente dos que so- licitaram o baptismo, a bella figueira da Igreja produzio no- vos figos, que sao as almas sahidas de infidelidade para a crenpa do verdadeiro Deos, e entao as vinhas em florescen- cia exhalaram seo cheiro quando em suas cabepas recebe- ram os meninos as agoas do baptismo, louvando o Senhor dos Seculos pela parte que ja tomavarn do sangue de Jesus Christo e da f6 da Igreja. Coisa admiravel, digna de ser bem pensada e considera- da: apenas a voz do Evangelho trovejou, e fuzilou por essas florestas desertas, por estas sarpas, cheias de agudos espi- nhos, esses pobres bichos (esses selvagens) presos nos lapos do cruel capador Satanaz, comeparam animados pela forpa e impetuosidade d’essa v6z a construir seus pequenos tern- plos, como outrora tinha predicto o Propheta Rei David no Psalrno 28. Vox Domini prceparantis Cervos, et revelabit condensa et in templo ejus omnes dicent qloriam: a v6z do Senhor amanpando os viados, descobrira o interior das brenhas e das sarpas e no seo Templo todos entoarao lou- vores a elle. Explicam os doutos, em varias licpoes, estas palavras di- zendo que a voz do Senhor parem os bichos seos filhos, a sirnilhanpa da mao da parteira ou do cirurgiao habil, que serve para tirar do ventre da mulher o menino sam e salvo. Esta voz nao 6 outra, a darmos credito aos naturalistas, senao o ribombo do trovao, e a luz do relampago, que por urn segredo muito intimo da naturesa faz com que param as femeas dos animaes ferozes. 0 mesmo produz a predica do Evangelho, aniinada e vi- vificada pelo Espirito Santo, excitando o corapao d’estes bar-baros, ha muito tempo iuternados nas sar^as e brenhas da ignorancia, da infidclidade, e dos maos costumes. Nas casas grandes nao se falla mais de outra coisa se- nao do conheeimento do Deos, contando cada urn o que ou~ vio de nos quando veio visilar-nos, e terminando essas es- pecies de conferencias pela manifestapao do grande desejo, que tinham de ver seos filhos baptisados e dies tambem, por meio d’estas e outras palavras similhantes. Que coisas, diziarn elies, sao estas, que os Padres nos contain por meio dos interpretes? Nunca as ouvimos iguaes. Nossos paes, ja por iradiepao nos contaram, que outr’ora veio aqui urn grande Maratd de Tupan, 92 isto e, Apostolo de Deos nas provincias, onde residiam, e Ihes ensinou mui- tas coisas de Deos: foi e!!e quern lhes mostron a mandioca, as raizes para fazer pao, porque antes so comiam nossos paes raizes do matto. Vendo este Maratd, que nossos antepassados nao faziam caso do que dizia, resolveo deixal-os, mas antes quiz dar- lhes um testemunho de sua vinda aqui, esculpindo n’uma rocha uma especie de mesa, imagens, letras, a forma de seos pes, e dos seos companheiros, as patas dos animaes, que trasiam, os furos dos cajados, a que se arrimavam em viagem, o que feito passararn o mar, procurando outra terra. Reconhecendo nossos paess ua falta, procuraram-no muito, porem nunca d’eile tiveram noticias, e ate hoje ainda nao veio visitar-nos algum Maratd de Tupan. Muito tempo ha, que frequentamos os francezes, e nenhum d’elles nos trouxe padres, e nem nos contou o que por seos interpretes nos dizem os padres. Por exemplo fazem viver de maneira diversa os Carai- bas. Prohibem os francezes de tomarem nossas filhas, o que ou- Ir’ora faziam com facilidade, dando-nos em troca algumas rnercadorias.204 Dizem grandes coisas de Deos, e a elle fallam era suas Igrejas, e para isso fecham as portas, fazem-nos sahir para que despa Tupan diante d’elles, e entao si ajoelham todos os Caraibas. Bebe e come Tupan em bellos vazos de oiro, e em mesa bem preparada e ornada de bellos estofos, e bonitos pan- nos de linho. Adoraam-se com ricos vestuarios, e quando querem fallar aos Caraibas assentara-se no meio d’elles, e somenle falla urn Padre, que esta assentado. Escutam-no todos os francezes, falla por muito tempo, canpa-se, ninguem o entende porem todos ahi estao firmes. Depois que este falla, cantam uns depois de outros, de lado a lado, leem n’um Cotiare, (n’um livro) o que cantam e dizem elles que assim estao fallando a Deos. Julgam nossos paes perdidos com Jnropary, ardendo em fogos subterraneos, e riem-se de n6s quando choramos e lamentamos nos funeraes de nossos parentes. Mandam atirar no matto a comida, a bebida, e o fogo, que costumamos dar aos nossos parentes defunctos para fa- zer a viagem ate onde estao nossos avOs nas montanhas dos Andes. Elles nos dizem e pregam, que somos muito tollos em dar credito aos nossos barbeiros e feiticeiros. especialmente ao seo sopro para o curativo dos infermos. Fallam com altivez contra Jeropary, e nao o temem de f6rma alguma. Promettem aos que creem em Tupan, e que elles lavam com suas maos, de subir ao Ceo por cima das estrellas, do sol e da lua, onde esta Tupan sentado, e em roda d’elle os Maratds, e todos os que acreditam em suas palavras, e sao por elles lavados. Regeitam raparigas e mulheres, dizendo que o fdho de Tupan nao as teve, sahiudo do ventre de uma rapariga chamada Maria com a qual nunca seo marido teve rela- pses.205 Ha dias nos quaes nao comem carne embora Ih’a offere- pam. Nao se passara dez dias, contando pelos dedos, que nao mandem os Francezes vestirem-se com roupas bonitas, e irem a casa de Tupan fallar com elJes e escutar a pala- vra de Deos. Vestem-se de maneira diversa dos outros francezes, ca- minham diante d’elles, e todos os saudam. Convivem sem- pre com os grandes, que !hes fazem tudo quanto querem, e dizem atd que abandonaram suas riquezas e fazendas para mais iivres conversarem com Tupan, e manifestarem a von- tade d’elle aos francezes. Quando vamos vel-os, nos acariciam, especialmente a nos- sos flltaos dizendo-nos, que ja nao nos pertencem e sirn a elles, sendo-lhes dados por Tupan. Que nao nos penalizemos por isso, porque nunca nos deixarao e nem nossos filhos: que elles sao muitos era Fran- pa, que todos os annos virao outros, que depois de have- rem educado e ensinado nossos filhos, os farao fallar em Deos lao familiarmente como elles o fazem: que Ibes ensi- narao a rotiarer (a escrever) e a fazer fallar o papere (o papel) mandado de muito longe aos que estao auzentes. Dizem-nos que seo Rei 6 poderoso, que os ama, e nos ajudara em quanto elles estiverem comnosco. Ah! porque nao somos mais mopo? para ver as grandes coisas, que fa- rao os Padres em nossas terras! Elles construirao com pe- dra grandes Igrejas como ha em Franpa. Trarao hellos estofos para ornar o lugar, onde desce Tu- pan. Mandarao buscar miengarres, isto e, musicos can- tores 93 para entoarem as grandezas de Tupan. Recolherao todos os nossos filhos n’um lugar, onde alguns dos Padres cuidarao d’elles. Mandarao buscar de Franpa mu- lheres para ensinarem o que sabem a nossas fiihas. Nao nos faltarao ferramentas para nossas ropas. Ah! diziam alguns d’elles em continuapao, si chegarmos a vdr essas mulheres em nossas terras, entao temos certesa que nao nos deixarao206 os francezes, e nem os Padres, especialmente si nos derem raulheres de Franca. Si eu tivesse, disse um d’elles, uma mulher franceza nao queria outra, e faria lanla ropa quo havia de chegar para sustentar tantas francezas, como de dedos eu tenho nas maos e nos pes, isto e, vintc, nurnero infmido para significar muito, porque depois de terem che- gado a vinte, comepam a contar de novo. Levantando-se entao elie, quo era o Principal no meio do grope, em qne me achava, e batendo nas nadegas com quanta forpa tinha, disse Aca-ucu, Kugnan Karaibe, Aca- ucu seta, «Amo uma mulher francesa com todo o meu corapao, amo-a extremosamente.» Respondeo o Cdo grande, tambem Principal—«promette- ram-meuma mulher francesa, que desposarei na mao dos padres, e me farei christao como fiz meo filho Luiz-galante, e quero ter em pouco tempo um Olho legitimo. Minha pri- meira mulher esta velha, e per isso nao precisa mais de marido, e as outras oito, ainda mopas, as darei por esposas a meos parent.es, e ficarei so com a mulher de Franpa, e minha velha mulher para nos servir.» Faziam outros iguaes discursos em suas cazas grandes e na minha residencia, ou quando me viam passar, conten- tando-me de referir apenas o que acima escrevi para mos- trar o fervor d’estes barbaros, suscitado pelo Divino Espirito Santo. Vox turturis audita est in terra nostra, para produzir de seo seio fechado e preoccupado por mil infeepoes estes hel- los e amigaveis viadinhos, vox Domini preepa? antis Cervos, e em outro logar Cerva charissima e gratissimus hynnulus, cap. 5° dos proverbios, «a corpa muito eslimada, e o tem- plo muito lindo.» Continuemos. A estas palavras seguio-se logo a pratica, porque foram muitos meninos entregues ao Rvd. padre Arsenio, residente em Juniparan, e a mim, morador em Sao Francisco, perto do Forte de Sao Luiz, para acudir aos francezes e receber os207 Indios de oatras terras, que todos os dias nos vinham ver e conhecer, si era verdade o que de n6s se dizia em longes terras. Foi esta a divisao, que fizemos, de tanlas e tao grandes terras para cultivar e lavrar o que permiltissem nossas for- pas, cuidando um de urna parte e outro de outra, excepto quando houvesse necessidade de sahir da If ha, porque entao se tomariam providencias adequadas. Impossivel e a paiavra o pintar o contentamento e a ale- gria, que sentiamos vendo estes selvagens trazer-nos seos fitbos, voluntaria e expontaneamente, para serem baplisados, preparando-os o raelhor que podiam com os meios offereci- dos pelos francezes, isto 6, vestidos com um pedapo de panno dealgodao, escolhendo padrinhos entre os francezes, contra- hindo assira com elles estreita allianpa, especialm.nte com os meninos baptisados, si eslivessem em idade de oconhocc rem, porque entao considerariam seos padrinhos como seos pro- prios paes, chamando-ihes pelo nome de cheru, «meo pae» e sendo pelos francezes chamados os rapazes cheaire «meo filho,»eas meninas cheagire «minha filba»: vesliam-nos em summa o melhor, que podiam, e os selvagens, paes dos rne- ninos baptisados, lhes oifereciam todas as commodidades re- sultantes de suas ropas, de suas pescarias, e capadas. Vendo assim estas cousas, lembrava-me do que diz o cap. 5° dos canticos. Oculi ejus sicut Colombo; super rivulos aquarum, quce lactce sunt lotce, et resident juxta fluenta plenissima: «os olhos de Jesus Christo, esposo da Igreja, parecem-se com os olhos da pomba, orvalbada de leite, que contempla os regatos das fontes, e faz seo abrigo e morada nos rochedos, que abrangem rios amplos e espaposos.» Estes olhos de Jesus Christo sao as grapas do Espirito Santo, que fazem quebrar seos ovos a maneira das tartaru- gas, expostos a merce das innundapoes do mar e da frialda- de da areia. Tem estes mesmos olhos por piano e fim lavar e purificar as almas, especialmente as almasinhas rociadas de leite. As-208 sim como a pomba branca brinca sob re os riachos, e habita a margera dos grandes rios, assim tambern o Espirito Santo folga e rauito na conversao de uraa terra nova, e encara com bons olbos a sabida d’estas almasinhas do estado ge- ral d’estas terras barbaras, a saber, da ignorancia de Deos para chegar a conhecel-o por meio das agoas do baptismo, parlecipantes, como nos, da visao de Deos, porque nao fa- zem acceppao de ninguem, visto que eslas almas barbaras Ihe cuslaram lanto como as nossas. Ob! prepo inflnito! ob ! falta de caridade, que nao tem desculpa perante Deos, de severem lantas almas pedindo a salvapao, sem embarapos e riscos, e em risco de se per- derem por nao haver urn pequeno auxilio. Bom Deos! lodos nos acreditamos, e Jesus .Christo confir- ma esla crenpa, que uma so alma valle mais que todo o resto do mundo, isto 0, que todos os imperios, e reinados da terra, que lodas as riquezas e thesouros do homem: mais ah! nao temos difficuldade de por em execupao nossas crenpas. Nao posso deixar este assumpto sem primeiro declarar a luta interior, que experimentei, para fazer ver e descarre- gar minha consciencia tanto quanto a julgo compromettida, parecendo-me bastante para minha juslificapao e defesa o que acabo de dizer. Li e notei em bons auclores, profundos e perspicases no conbecimento dos segredos e mysterios da Escriptura, que as pombas brancas orvalhadas de leite eram certas pombas, que os Syrios ereavam em honra e venerapao de sua rainba Semiramis, sendo prohibido matal-as sob pena de morte. Contam-nos os antigos ter-se esla rainba immortalisado por urn acto memoravel, entre seos altos feitos d’armas, o mais milagroso quanto 6 possivel a grandesa dos reis, qual a suspensao entre o Ceo e a terra de seos jardins, pomares, e bosques de recreio. Salomao procurou esta comparapao entre as coisas profa- nas para mostrar uma obra divina nolavel entre as outras,209 quat a conversao das almas, inteiramente reservada ao po- der de Deos por ser uma segunda creapao pela qual assim como suspendeo a terra no ar, assim tarnbem suspendera jardins, pomares, e florestas de sua igreja com surpresa dos calculos e juizos humanos, aflm de dar lugar aos seos pre- destinados e eleitos chamando-os quando Ihesapraz, no meio dos desertos, e do interior das mais vastas e densas flo- restas. Antes de ir adiante, nao deixarei escapar a coincidencia que se nota entre a grande Semiramis e Maria de Franpa, rainha cforistianissima. Semiramis rainha reinante e tutora de seu filho o r/d d’A- syria emprehendeo grandes coisas, em beneflcio e sustenta- culo do imperio de seo filho. Igual caso se da com a nossa rainha, e embora Semi- ramis tenha em seo tempo feito muitas obras magnificas, pelas quaes grangeou o amor e a obediencia de seos sub- ditos mais do que outra qualquer, sua antecessora, a im- mortalidade de seo noine foi devida a seos edificios miracu- losos. Com igual ra/ao direi, que entre as heroicas acpoes da rainha, mae do rei, que levaram a posteridade seo nome immortal, conta-se a missao dos padres capuchinhos as ter- ras do Brasil para ahi plantar os jardins da igreja, comepa- da e fundada sob sua authoridade e ordem, e assim sera o Brasil obrigado a sustentar estas pombas brancas em me- moria e lernbranpa de tao grande Semiramis que tern tanta piedade como poder para aperfeipoar esta empresa. Ainda vos pepo, que em nossas pequenas pombas rocia- das de leite deveis v£r os fllhinhos dos selvagens condu- zidos ao gremio do christianismo pelo baptismo. Ha cinco annos, pouco mais ou menos, nem havia desejo de se intentar a cathequese d’esta gente. 0 diabo ahi mandava com imperio, arrastava para si to- das estas almas sem pagar dizimo a Deos, porem presente- mente, em quanto durar e conlinuar a missao, com o auxi- 33210 lio de Deos ouvireis dizer quaes os grandes fructos, ja co [hides, e outros que se colhein todos os dias. A nossa maior consolagao, a que nos fazia soffrer as amar- guras e as difficuldades dos trabalhos, que ahi nao nos fal- tavam, era ver a franqueza e boa vontade, com que os sel- vagens nos apresentavam seos fillios para serem baptisados dizendo entao nos, em conversa com elles, que para n6s nada havia mais agradavel do que o trazerem elles seos fi- Ihos a pia baptismal, e sempre que comnosco fallavam era assumpto da conversa a manifestagao de seos desejos por verem seos filhos por nos baptisados. Poderia aqui reproduzir muitos oxemplos para confirmar esta verdade, mas como tenho de referil-os em lugar pro- prio, deixo-os agora de mao. CAFITtlLD II Do baptismo de muitos infermos e velhos, que falleceram depois de christaos. Entre os mais hellos enigmas sagrados, que recita Job no seo livro, esta no Cap. XIV a parabola do loureiro di- zendo. Si senuerit in terra radix ejus, et inpulvere mor- Inns fuerit truncus illius, ad odorem aquae germinabit, et faciet comam quasi cum primo plantatum est: «Si a raiz do loureiro se mergulha na terra, e seo tronco morrer no po, apenas sentir o cheiro da agoa germinara e produ- zira nova copa de folhas, como si fosse recentemente plan- tado.»211 Os Setenta assim inverteram esta passagem: Si in petra mortuus fuerit truncus ejus, ab odore agues florebit/ et faciet messern, sicut nova plantata: «si o tronco do Lou- reiro morrer na pedra, com o cheiro d’agoa florescera, e corao planta nova mostrara era breve sua copa.» Outra versao ha ainda mais bella: Attracto humore aqucBO iterurn germinat, exibet quce fructus decerpendos, ut plantce soient «o Loureiro morlo chupando a agoa ger- mina de novo, e como as outras planlas offerece sazonados fructos.» N’estes trez trechos descobrireis muitas coisas, que ser- vem litteralmente ao nosso flm. 1. ° A raiz do Loureiro dentro da terra. 2. ° Seo tronco morlo no po ou na pedra. 3. ° 0 cheiro d’agoa, que da a vida perdida a raiz e ao tronco fazendo produzir folhas, flores e fructos. 0 Loureiro representa as Nagoes infieis, conforme a fic^ao dos antigos da nympha Daphne, a qual perseguida pelos demonios com o nome de Appollo foi converlida era Lou- reiro. Sua raiz sepuitada no po ou na rocha representa longa serie de annos, nos quaes estas Nafoes barbaras jazeram entregues aos sees barbaros e invelerados costumes. 0 tronco ja morto representa o fim e terminaeao d’esta ignorancia. Deos querendo presentemente visitar esta Napao escolheo os enfermos, os velhos, os caducos e moribundos para fa- zel-os renascer em Jesus Christo, levando as folhas verdes da grapa, as flores dos dons do Espirito Santo, e os fructos dos meritos da paixao de Jesus Christo, e com isto tudo o cheiro c o atractivo da agoa do baptismo. Sentiamos muito consolo quando baptisavamos os doen- tes e os velhos, cuja morte era esperada com certeza, por que receiavamos que por falta de soccorros, nos vissemos obrigados a deixar e abandonar todos os meninos recente-212 mente baplisados e os ad altos, que conslantemente si apre- senlavam. Tinhamos ao menos certeza, que baptisando os que se achavam proximos da morte, abria-se o Paraizo, e perdia-se a occasiao que Ihes faria perder talvez a grapa obtida, fi- cando sos e longe dos Ministros da Igreja para nutril-os na grapa recebida. Alem d’isto o baptismo d’estes velbos fazia muita impres- sao no corapao das testemunhas vendo a devopao, com que ordinariamente recebiam o baptismo. Vou dar-vos alguns exemplos. Na ilha cahiram doentes duas raparigas, uma livre e ou- tra escrava, sendo aquella casada com um Tupinamba, muito bom mopo, o qual depois da morte de sua mulher, constan- temente nos perseguia para ser baptisado, aprendendo com muito boa vontade a doutrina christa. Esta rapariga, proxima da morte, pedio que lhe dessem o baptismo, confessando por palavras nascidas do corapao a verdade da nossa religiao, mostrando por signaes exteriores o toque do Espirito Santo no seo corapao, banhando-se de lagrymas de amor e de reconhecimento ao grande Twpan, que lhe fazia tao assignalada grapa de a ter feito nascer neste seculo para tiral-a do meio de tantas almas perdidas de sua napao e conceder-lhe o goso do paraizo. Fitava com attenpao o Ceo, e com palavras doceis e tre- mulas recitava o que sabia a respeito da crenpa de Deos, repellindo para bem longe Geropary e seos antigos enga- nos. No meio d’este discurso, precursor da morte, lamentava a condemnapao de seos antepassados. Fazia exposipoes muito bellas a seo marido e o animava a receber quanto antes a purificapao de seos peccados. Devo dizer d’ella um facto muito particular, qual o de ha- ver conhecido um s6 homem, o seo marido, o que 6 nao pequeno milagre n’aquelle paiz, por causa do mau costume213 introdusido pelo diabo no corapao das mopas, de se honra- rem pela deshonra, e de nao apreciarem a castidade ou a virgindade. Bern vedes por isto, que em todos os escolhidos de Deos ha sempre alguraa virtude natural, que provoque, nao por merecimento e sim pela occasiao, a grapa de Deos, que si- milhante ao sol, com indifferenpa, esta a entrar n‘alma de todos, si houver para isso disposipao. A Tapuia, ou escrava, atacada por violenta febre, que a atormentava muito, achava-se em sua rede so e por todos abandonada, conforme o uso e costumes d’elles, que consi- deram grande deshonra cuidar d’uma escrava quando esta a morrer, isto antes da nossa chegada a ilha, quando entao Ihes mostramos o quanto era desagradavel a Deos a crueldade com que atiravam por terra o escravo moribundo e lhe que- bravam a cabepa como ja disse. Esta desgrapada mulher, prisioneira de Satan, e victima das desgrapas communs da natureza, que sao as enfermida- des e as dopuras dolorosas e insuportaveis, sem pessoa al- guma junto de si foi entao olhada com piedade, e visitada por seo Creador, animando-a a pedir o baptismo. Oh ! juiso de Deos ! Oh ! providencia eterna ! Quem podera comprehender teos conselhos na vida do ho- mem! Esta pobre creatura, dardejada vivamente no corapao pe- las flechas das primeiras grapas do seo senhor, nao mereci- das por alguma obra boa anterior, que houvesse feito, lan- pava suas vistas por todo o quarto procurando ver, si al- guem lhe apparecia para mandar chamar os Padres, afim de ser lavada com as agoas do baptismo, e felizmente lhe appareceu urn francez, a quem expoz seos desejos, c veio elle logo dizel-os ao padre, indicando a casa d’ella, que era perto, e elle foi logo visital-a, instruil-a e baplisal-a. 0 francez, que cuidou d’ella, e o padre que a baplisou, me contaram coisas admiraveis.214 Esla infeliz creatura quanto ao corpo, porem muito feliz quanto a alma, princlpiou a experimentar os penhores do Ceo, c o merecimenlo do sangue de Jesus Christo que rece- beo pelo baptismo. Tinha sempre os olhos flxos no Ceo, der- ramava abundantes lagrymas, e dizia de momento a momento, estas palavras—Y Katu Tupan, che arobiar Tupan. Oh! quanto Deos e bom ! Oh ! quanto Deos ebom ! eu creio n’elle. Depois por meio de signaes mostrava aos francezes, que Jiropary, o diabo, andava ao redor de sua rede, e enlao dizia Ko Jiropary, Ko y pochu Jiropary: «esta ali o diabo, atirai sobre elle a agoa de Tupan, isto e, agoa benla para elle fugir.» Fazia-lhe o francez a vontade e dizia ella que o diabo fugia a tod a a pressa, e por isso constantemente pc- dia ao frauccz que derramasse em roda d'ella e de sua rede muita agoa benta o que fazia, bem como o padre quando ahi se achava. Apenas Ihe appareeia uma dor de cabepa, que muito a en- commodava, pedia para que lavassem a testa, as fontes e a cabepa com agoa benta, com que alliviava muito, a ponto de nao sentir mais doenpa alguma: pouco depois entregou sua alma ao Creador. Amortalharam e sepultaram seo corpo a maneira dos chris- taos: aconleceo porem, que alguns malvados, Blhos de Gi- ropary, que nunca foram descoberlos, senao seriam puni- dos, luram a noite desenterral-a, quebraram-lhe a cabe^a e roubaram o panno de algodao de sua mortalha: pela manha foi outra vez sepultada. Ninguem se admire d’isto, pois o diabo reserva sempre para si alguns bons servos, mesmo nos reinos os mais bem policiados, afim de executar suas mais detestaveis inlen- poes. Sabeis sem duvida, que os Tupinarnbds aborrecem nalu- ralmente os que abrem as sepulturas dos mortos e nao podem por isso tolerar, que os francezes abram as covas, onde fo- ram enterrados seos parenles para Ihcs tirar os objectos, que elles cheios de superstipao ali deixam,215 Ahi estava a morrer um velho Tabajare, tao magro, que os ossos lhe furavam a pelle, sera voz, e sem movimentos na sua rede. Julgando-se raais proximo da morte do que da vida, ins- pirado por Deos, pedio o baptismo. Fomos visital-o e cathequisal-o pediudo-lhe sua opiniao a respeito de todos os pontos e artigos, que lhe propuzeraos. Com as maos postas nos disse que acreditava no que lhe diziamos. Demorando-nos nos artigos relativos a crenpa da Sanlissi- ma Trindade, da lncarnapao, Morte, e Paixao do Filho de Deos, do Baptismo, e do Mysterio da Santa Eucbaristia, por que estava proximo da morte, procuramos fazer-lhc enten- der estas materias tao altas e profundas por comparapoes fa- miliares, a que prestou muita attenpao, e dezejando com todo o fervor o baptismo nos lhe promettemos, que no cazo de Bear bom elle receberia as ceremonias do baptismo na capella de S. Luiz, e aprenderia com gosto a doutrina chris- tan, que ensinavamos aos catecumenos antes de baptisal-os. Respondeo-nos, que nao era tao longe a Capella de Sam Luiz, que nao podesse ser levado at6 la afim de, antes de morrer, ser baptisado, consolapao que muito desejava aflm de ir direito para o Ceo. Vendo este fervor e devopao ficamos satisfeitos e concor- damos ser elle carregado n’uma rede at6 a igreja de Sam Luiz, e ahi baptisado com toda a solemnidade. Alguns dias depois morreo tranquillamente. N’esse mesmo tempo cahio doente uma mulher Tabajare, e tao gravemente, que todos julgavam-na em breve morla: fomos vel-a e lhe offerecemos o baptismo que aceitou de muito boa vontade, e com muita attenpao escutava o que di- ziamos, por intermedio dos interpretes, a respeito das glo- rias do Paraizo, das penas do inferno, do que ella devia crer, antes de receber o baptismo nocaso de Deos lhe dar saude. e que podesse aprender areligiao chrislan, e enlao na igreja receberia as ceremonias do baptismo, no que coricordou e foi216 baplisada: recobrando sua saude, julgou dostu dever cum- prir sua palavra, embarapando-a porem o facto de ser mu- ifaer de uni Tabajare, que tinlia mais duas, nao podendo ella continuar a viver com elle casada segundo as leis do christianismo. Removemos este obstaculo seguindo o conselho de Sam Paulo: si qua mulier fidelis habet virum infidelem ct hie consentit habilarc cum itiay non dimiiat virum etc quod si in/idclis discedit, discedat: «si alguma mulher flel esliver casada com um homem inflcl, e que este queira morar com ella, ella que nao o deixe, si o homem inflel a deixar, ella o deixe tambem.» Em virtude d'isto fizemos saber a seo marido, que se qui- zesse ter por unica esta mulher ebristan, deixaudo as outras, que ella nao o abandonaria, mas que si quizesse viver como d'antes na qualidade de concubina, que nos e os grandes dos francezes lhe afianpavamos, que elle seria despresado como incompalivel com o christianismo. A principle mostrou repugnancia porem afinal concordou, vivendo como mulher chrislan e unica com seo marido. Faziamos o mesmo aos meninos pequenos, proximos a morle, observando porem estas formalidades: pediamos o consentimenlo dos paes e macs antes de baptisal-os, embo- ra nao os deixassemos de baptisar, quando os viamos mori- lumdos: apesar de eslarmos certos da boa vontade geral dos se-lvagens de apresentarem seos lilhos ao baptismo, nos Ihes preslavamos esta hoinenagem com o fim de attrahil-os a se converlerem. Nao vern a proposito relerir aqui alguns exemplos, porque nada aclio u'islo de exlraordinario.217 GAFXTULC m Do baptismo de muitos adultos, especialmente de um chamado Martinho. Antes de tratar d’esta materia, julgo necessario advertir ao leitor, que no fim da obra do reverendo padre Claudio achara alguma coisa d’esta e da seguinte historia, ludo ex- trahido de uma de minhas cartas, que enviei de Maranhao, a meos superiores, e como apenas esbocei-as, justo e quo eu as descreva minuciosamente. Estas sagradas agoas do baptismo nao estagnaram na ilha, pois atravessando a corrente forte e impetuosa do mar, sem com elle misturar-se, passaram as terras firmes de Alcanta- ra e Coma, que despertadas por seo doce sussurro aco- lberam bein os espiritos d’aquelles, que Deos tinha escolhi- do para si, e pelo bom gosto d’ellas procuraram indagar- Ihes a origem, maravilha, que nao pode ser descripta como merece, pois a forga d’estas agoas venceo incomparavelmente a actividade do azougue, chamando a si todos os pedagos de oiro espalhados por diversos lugares, isto e, as almas inspiradas por Deos em Tapuitapera e Coma vinham a iMaranhao onde tinha assentado seos alicerces a salvagao d’este paiz. Quern poderia dizer o grande numero de pessoas, que nos vinham visitar para aprender alguma coisa dos mysterios da nossa fe ? Na verdade ninguem, mas para contentar o leitor e dar- Ihe alguma ideia direi, que nao havia um so dia, em que nao recebesse novos visitadores e as vezes chegavam a 1OU e a 120: eis a razao porque nao podia deixar facilmente o Forte, e ir as aldeias a meo cargo ministrar o pasto espi- rilual. Muitos d’estes selvagens de diversas idades se me apre- sentaram pedindo o baptismo, o que eu diflicullava, e so- 34218 mento ooneedia aos que julgava, por algum acto extraordi- nary, enviados por Deos para ta! flm. A razao porquc apresentavamos essas dilficuldades ja o disse, por vir da incertesa do soccorro, e do temor em que cslavamos de baptisar todos os que nos pediarn, e depois deixal-os sem coadjutores, peloquc poderiam cahirem peior eslado do que se achavam anteriormente. Nao deixavamos comtudo de trazel-os csperanpados, e aproveitavamos a occasiao de instruil-os no conhecimenlo e amor do Omnipotenle ate a vinda dos novos padres, que os adiarain promplos para satisfazer suas vontades. !dil re os que foram inspirados vivamente pelo Espirito Santo, e que por isso baptisamos havia um indio de Tapui- tapera, principal n’uma aideia antiga d’esta provincia, cha- mad a Marentin, sempre grande amigo dos francezes, de boa indole, modesto. de poucas fallas, olhos sempre volla- dos para terra, tido outr’ora entre os seos por afamado bar- beiro ou feiticeiro, lendo n’elle muita fe os doentes. Contou-me elle e depois muitos outros, que era christao, e quando exercia a sua arte de barbeiro era visilado por muitos espiritos folgazoes, que brincavam diante d’elle, quando embrenhava-se nos mattos, tomando diversas cores, sem Ihes fazer mal algum antes ate tornando-se seos inti- mos: achavam-se porem na duvida si eram espiritos bons ou maos: tal era a sua crenpa n’estes espiritos bons ou maos. Gonforme o costume tinha tres mulheres, antes de ser christao. Aconleceo porem, que inexperadameute viesse com muitos selvagens, seos similhantes, de Tapuitapera para ver nao so a nos como lambem as ceremonias, com que serviamos a Tupan. Achando-se no Forte de S. Lui:> vio na manha do dia seguiule (que era domingo) os francezes vestidos com suas boas roupas, aeompanhando seos chefes em caminho para a219 nossa casa de S. Francisco afim de ouvirem rnissa. Apos estes iam os selvagens, o que o animou a seguir o prestito, especialmente pelo desejo e intenpao, quo tinham, ha muitos annos de aproximar-se de nos. A Capella de Sam Francisco encheo-se logo de francezes, de selvagens christaos, e nao christaos, que tinham lodos especial devopao de receber em si algumas gotlas de agoa ben la. Marentirij observando a pressa de todos, alcanpou como poude o canto de uma porta, trepou-se n’um banco, quo ahi achou para ver a sua vontade tudo quanto eu fazia. Apenas pisei nos degraos do altar, voltei-me afim de sail- dar a todos, e descobrindo este selvagem acudio ao meu es- pirito a esperanpa de salval-o. Contou depois, como prestou attenpao a todas as ccremo- nias, que fiz na celebrapao do alto e profundo mysterio da Missa, e desejou saber porque me revesti de alva branca, liguei a cintura, deitei o manipulo no brapo, e a estolla no pescopo: aproximei-me a direita do altar, onde me aprc- sentaram urn vaso com agoa e sal, sobre o qual pronunciei algumas palavras fazendo muitos signaes da Cruz; levanta- ram-se os francezes, me respondiarn cantando, e tendo eu um ramo de palma na mao o mergulhei n’agoa deitando algumas gottas no altar, depois sobre mim, e levantando-me fui aspergir os francezes comepando pelos chefes e acaban- do pelos que estavam na porta da Igreja, chegando tambem para esse fim os selvagens nao christaos, na convicpao de que Ihes serviria contra Jeropary, desceo elie mesmo do banco, rompeo a multidao para receber tambem algumas gottas d’agoa benta, o que conseguio. Nao gosou logo esta gotta de celeste orvalho, porque as cantharidas peponhentas e venenosas cabiram sobre as flo- res de sua alma entre-abertas, porem as abelhas indus- triosas de inspirapoes divinas vieram reunir ahi o doce mel da rapa christa, porque regressando ao seo lugar agachou- se atraz dos outros, dorniio, e duraqte o seo somuo vio o•220 Ceo aberlo, e para elle irern subindo muitas pessoas vesti- das de branco, e atraz d’ellas muitos Tupinambds a medi- da, que eram por nos baptisados. I)isseram-lhe na visita que as pessoas vestidas de branco eram Caraybas, isto 6, francezes ou christaos,94 conhece- dores de Deos e do baplismo desde a mais remota antigui- dade, e que os selvagens, que os acompanham, eram lava- do s por nos, e acreditam em Deos, em nossas palavras e de nossas maos recebiam o baptismo. Despertando, nao disse palavra, porem ficou muito pen- sativo e melancolico, e assim embarcou, e foi para a sua terra. Chegando a sua casa todos o desconheceram, e Ihe per- guntaram o que sentia, e si havia recebido alguma desfeita dos francezes em Yviret. Sem dar resposta alguma de dia para dia mais se entris- lecia, fugia da companhia de seos similhantes passeando s6 em suas ropas e bosques, onde foi accommettido por estes espiritos loucos, cahindo depois tao gravemente doente a ponto de cbegar as portas da morte, sempre afflicto pela visao, que vira em Yviret, e pelos espiritos de que ja fallei. Finalmente ouvio uma voz interior dizendo-lhe que se qui- zesse livrar-se de tal afflicpao e molestia, e ir com Deos para o Geo convinha, antes de morrer, lavar-se com essa agoa, que cahio n’elle quando esteve na casa de Twpcm em Yviret. Obedecendo a esta voz, em madrugada alta, mandou um seo irmao ter comnosco, e pedir-nos por intermedio do chefe dos francezes, cuja intervenpao invocou, um pouco d’agoa de Tupan, n’uma porpao de algodao, guardada n’um carame- mo, 95 afim de nao se perder uma so gotta para lavar sua cabepa, e ir assim lavado para o Ceo. Cumprio a ordem o enviado, dando seo recado ao Sr. de Pezieux, bom calholico, que se admirou, bem como o Sr. de llavardiere e outros.221 0 Sr. de Pezieux mandou-me este homem, com um inter- prete, para me dizer o flm de sua vinda que muito me ma- ravilhou vendo n’um selvagem tao grande fe, misturada com temor, respeito e humildade. Quiz ir logo ter com elle, porem nao pude, porque, como ja disse, de todas as partes vinham diariamente muitos sel- vagens procurar-me, e nem foi possivel mandarlhe o Rvd. padre Arsenio porque estava occupado em outro logar, e por isso mandei-lhe um francez proprio e capaz para fazer- Ihe companhia, cuidar na sua salvapao e baptisal-o, sem ce- remonia, no caso de receio de morte. Cbegando a sua casa o francez com o irmao de Marenlin, disse-lhe que eu nao podia deixar a ilha, e nem o Forte de Sam Luiz por causa dos muitos selvagens, que me vinham procurar, mas que elle vinha em meo logar afim de o bap- lisar, antes de morrer, no caso d’estar tao doente a ponlo de nao poder ir a ilha para ser baptisado por nossas maos. Ouvindo isto recobrou forpas e actividade, e disse, «vislo que a coisa 6 assim, nao quero ser baptisado por um Ca- raiba, e sim pelas maos dos padres,» e nem deixou de le- vantar-se (embora doente e fraco a ponto de nao poder es- tar em p6 senao com muito custo) na manha seguinte, de embarcar-se e vir procurar-me no Forte, expondo-me o seo grande desejo de ser filho de Deos e baptisado, e de apa- gar as visoes, que tinha na cabepa. Respondi-lhe que era necessario aprender a doutrina chris- tan o mais cedo que podesse, deixando muitas mulberes, e contentando-se apenas com uma. Eram estas as duas coisas, que, entre outras, exigiamos dos adultos. Replicou-me, que em quanto a pluralidade de mulheres foi coisa, que nunca approvou, e que achava de razao um homem ter uma mnlher s6, mas que em beneficio de sua casa necessitava de muitas. Disse-lhe que podia ter muitas mulheres como servas, e nao como esposas.222 Concordou n’isto facilmente, e cheio de boils desejos em poucos dias aprendoo a doulrina clirislan e pedio-me, que eu o inslruisse, antes de ser baplisado, das ceremonias que com tanta attenpao vio no priraeiro dia, em que foi toeado pelo espirito de Deos. Disse-lhe que Tupan era um grande Senhor, sempre com- nosco embora nao seja vislo, devendo ser servido com pro- funda reverencia, com ornatos e vestidos diversos do ordi- nario. Expliquei-lhe que o primeiro vestido branco, que me vio tomar, sigcificava tres coisas: i-“ a innocencia e puresa, com que deviamos apparecer diante d’elle; 2.a o vestido de sua humanidade, proveniente do sangue de uma virgem, de quern fallava com os homens: 3.a para representar o vesti- do de zombaria, que Ihe deram seos inimigos quando quiz por nos soffrer, ameapando-lhe de o fazer padecer o que qui- zessem, embora livesse el'e o poder de impedil-os em suas intenpoes. Disse-lhe, que a corda com que aperlei a cintura, e essas liras de seda, que puz no brapo e no pescopo representa- vam os ornamentos, que deviamos dar a nossa alma para ser agradavel a Deos: a corda quer dizer—continencia de mulheres, a tira do brapo—o bem, que devemos fazer ao proximo, e a do pescopo, onde 6 costume trazer-se collares e aderesses,—o amor e a perseveranpa na nossa profissao, que tudo isto junto faz lembrar as cordas com que foi pre- so o Salvador. 0 oulro vestido de seda, que puz por cima de tudo isto, mostra o zelo ou a salvapao das almas, que devemos pro- curar, nao nos contentando so de ir para o Ceo, mas fazen- do tudo quanto pudermos para que nos acompanhem nossos similhanles. Signiflca tambem o segundo vestido a vestimenta de zom- baria, que foi dado a Nosso Senhor em sua Paixao. A respeito da agoa e do sal, sobre que pronunciei algu- mas palavras, expliquei-lhe que eu o fiz para dar a agoa o223 poder, da parte de Deos, de expellir o diabo do lugar e das pessoas, em que eslivesse, e que a aspersao, que eti fazia com a palma sobre os francezes era para expellir o diabo, que andava ao redor d’elles, e que o canto, que elles entoavam em quanto eu lhes lanpava agoa benta, era uma supplica a Deos para purifical-os de sens peccados. Perfeitamente instruido de todas estas coisas, concorda- mos baptisal-o no dia da festa da Santissima Trindade. Para seo padrinho escolheo o Sr. de Pezieux, e no dia aprazado vestiram-no com uma roupa de algodao bem alvo em respeitosa homenagem ao Sacramento, que ia receber, isto 6, a innocencia e candura baptismal conferida sob a invocapao das tres pessoas da Santissima Trindade. Grande numero de selvagens, principalmente de Tapniia- pera, assistiram a este baptismo, o que lhes fez grande im- pressao no espirito, vendo este homem, seo similhanle, res- peitado por elles tan to por suas antigas feitiparias, como por sua autoridade e idade, receber, como si fosse menino, so- bre sua cabepa a agoa de Jesus Christo. Querendo aproveitar tao boa occasiao pedi aos fran- cezes que abrissem caminho para que de mim se aproxi- massem os primeiros e os principaes selvagens, que alii se achassem, aos quaes dirigi a palavra por meio do inler- prete. «Todos os dias, meos amigos, vedes em vossa terra os passaros seguirem uns aos outros, de forma que quando uns levantam o voo, todos os outros os acompanham. «Sabeis tambem que os javalys caminham em grande com- panhia, sem que urn so delles se desvie dos passes dos pri- meiros. «Por experiencia conheceis que os Paratins, isto e, os peixes chamados—sargos—no mar andam sempre em gran- des bandos seguindo seos conductores, de tal forma que vindo os primeiros ao encontro de vossas candas, quando ides pescar, imitam-nos os outros cahindo dentro dellns u<- sim apanhaes vos grande quantidade d’esses peixes.224 ((0 que e isto? 0 exemplo dos similhantes. A naluresa implantou em todas as crealuras vivas e intelligentes o de- sejo d’imitagao de coisas similhantes, conforme as differen- les especies. «0bservae agora este homera vosso similhantc e princi- pal, que si fez filho de Deos. «Bem sei que trazei-nos vossos filhos, porem pensam al- guns de vos que nao sao capazes, por velhos, de receberem o baptismo: e um engano, porque, como vossos filhos, po- deis ser baptisados, e ir para o Ceo, Vede dianle de nos este homem que vou baptisar, que me prometleo de ensi- nar os que o quizessem ouvir. Abri os ouvidos para ou- vil-o.)) Dilo isto, mandei ajoelhar-se nos degraus do altar, e re- cilar em voz alta e clara na sua lingua, e de maos postas a doutrina christa, que para diante sera encontrada em lugar proprio. Comecei depois as ceremonias do baptismo, observadas com muita atlenpao por todos os selvagens, recebendo o nome de Martim Francisco, lembrado por seo padrinbo por lal ou qual semelhanga com o seo antigo nome de Maren- tin, fazendo assim geralmente conhecido pelos selvagens tal conversao. Acabado isto, mandei-o sentar junto de seo Padrinho, e comecei a celebrapao da missa, que ouvio com toda a de- vopao, de maos postas, e na occasiao de levantar-se a Ilostia ajoelhou-se, como os outros, recitou a orapao domi- nical e o credo em quanto vio os francezes tambem de joelhos. Passados alguns dias quiz regressar a sua aldeia, tendo alcanpado a saude do corpo e da alma, e despedindo de nossos chefes e de mim, nos o mimoseamos com rosarios, imagens, Agnus Dei e bentinhos. Recommendamos muito, que depois de orar a Deos, re- sasse lambem para a Virgem Maria, Mae de Jesus Christo, recilando em sua lingua Ave Maria lanlas vezes quantas225 fossem as contas do seo rosario, e a orapao dominical tantas quantas fossem as contas grandes. Tomou tal devopao com a Santissima Mae de Deos quo trazia sempre ao pescopo o seo rosario, que beijava muitas vezes, e quando queria orar a Deos elle o tirava e fazia o que lhe ensinamos. Antes de partir disse-me que so linha um Pilho, que me traria no seo regresso para eu vel-o, e quando estivesse instruido na doutrina christa, eu o baptisaria e elle o daria aos Padres para Gear sempre com elles. Prometteo igualmente escolher uma das suas tres mulhe- res, com certesa a mae do seo filho, si clla quizesse ser christa como elle, conservando as oulras como servas. Bern compromellido com estas promessas, embarcou para Tapuitapera em procura de sua aldeia e de sua casa. CAFITULO IV Do que fez este christao em beneficio da instruegao e conversao dos seos similhantes. Nada ha mais bravio e mais difficil para domesticar-se do que a phanth^ra, ainda mais por ser de naluresa furiosa para com os animaes das florestas, que ella ataca e despe- daga no primeiro encontro. Ao contrario, quando se sente gravida, torna-se mais fa- voravel, exhala bom cheiro pelos poros do seo corpo, e mu- da sua voz de cruel para branda, como que convidando os outros animaes a seguil-a, o que fazem. 35226 A napao dos Tupinambds era uma verdadeira panlhera, cruel como nenhuma, segundo mostra o seo procedimento devorando seos inimigos. Apenas appareceo a grapa sobre estas terras, raudaram em dopura sua crueldade; sees dis- cursos desesperados em salutares; seos cheiros putridos, provenientes de seus fumeiros em outros agradaveis, ap- proximando-se aos de Jesus Christo, transbordando de amor para com o proximo, desejando-lhe fazer o mesmo que elles receberam, inspirados pela conceppao espiritual das grapas de Deos no fundo de sua alma, como se le nos Canticos I. Oleum effusum nomen tuumy ideo adolescentulce dilexe- runt te nimis: c pouco depois, Trade me post te, cur- remus in odmem unguentorum tuorum: «teo nome, 6 Salvador do Mundo, e o teo conhecimento e um balsamo derramado, por euja influencia e cheiro sentem-se as no- vas almas cheias de teo amor, e todas se dedicam a adque- rir-tc.» Martinho Francisco entre os outros selvagens executou esta doutrina, porque apenas chegou a aldeia principiou a fallar a seos visinhos, e d’ahi caminhando para outras al- deias da provincia de Tapuitapw a> sempre das grandezas de Deos c das grapas que elle recebeo. Apresentava sempre aos olhos uos selvagens a desgrapa dos seos antepassados, que tinliam fallecido nas crenpas de Jeropary, e a felicida- de, que gozavam os que se baptisavam e se faziam filhos de Deos. Taes conversas produziram effeito, muitos procuraram a fonte de salvapao para n'ella beber, e sugar o leite do peito de Jesus-Christo, como elle o fez e se conta do Unicorne, que procurando as agoas, distantes do veneno, por acaso foi tocado ate o corapao pela suavidade do canto de uma joven donzella96 deitada sob os ramos floridos das arvores da flo- resta, o que livrou este animal de sua furia natural e o apro- ximou do peito d’aquella que o commoveo. 0 Unicorne, grato e nao avaro do bem recebido, desejoso de que seos similhanles tambem o partilhem, vae procu-227 ral-os no centro dos bosques, e por todas as sortes e gestos convidam-nos a seguil-o afim de tomarem parte na sua Mi- cidade. A jo veil donzella representa a esposa de Jesus Chrtsto, a santa igreja, seo canto harmonioso a predica do Evangelho, seo peito, onde sao acolhidos os proprios animaes irracio- naes, a misericordia divina com todo o seo poder, as agoas sem veneno, os sagrados sacramentos, o feroz Unicorne, os infieis, e Martinbo Francisco, por seos discursos e oxemplos, foi a primeira acquisipao, seguida de muitas outras. Nao se tinham passados seis mezes, e ja se experimen- tavam grandes effeitos, porque tendo elle convertido e ins- truido muitos habitantes de Tapuitapera de todas as ida- des, mandou-nos os mais instruidos e intelligentes ao Forte de Sam Luiz para serem baptisados, o que fez, depois de os reter comigo por algum tempo para experimental-os em seos desejos. Augmentando-se diariamente o numero dos calecumenos em Tapuitapera foi necessario ahi ir o Rvd. padre Arsenio para baptisar muitos d’elles, dignos d’essa grapa lanlo polo seo desejo, como pela sua instrucpao chrisla. Tinha Martinho ediflcado uma Capella, e junto d’ella uma casa, no meio de sua aldeia, com o auxilio dos outros cliris- taos e selvagens ahi residentes. Benzeo o padre a Capella, e tomou conta da casa, onde foi vesitado e sustentado em quanto ahi esteve, por chris- taos e selvagens. Depois que baptisou os quo para isso julgou aptos, foi ver algumas aldeias da provincia, e o seo principal sobera- no, e por toda a parte foi muilo bem acolhido, manifestando todos em geral o desejo de serem christaos, e de terem pa- dres em suas aldeias. Aleanpou o bom homem Martinho Francisco nome honro- so, dado pelos habitantes de Tapuitapera em recompensa de seos trabaihos e fadigas para fazel-os christaos por ter228 sido entre elles o primeiro christao, e por saberem quanto n6s o estimavamos. Chamaram-no Pai-miry, «Padre pequeno ou o vigario dos Padres,)) e na verdade bern merecia tal nome, porque desde que se fez christao nunca mais se descobrio n’elle vestigios do antigo homem, ou os maos costumes dos selvagens. Era grave, modesto, pouco fallador e raras vezes ria-se, e nada fazia que parecesse ser contrario ao christianismo. Era este o regimen de vida que observava, e como mais velho fazia observar aos outros christaos: 1. ° Pela manha e a tarde reuniam-se todos na Capella: levantava-se urn d’elles, ajoelhavam-se outros, e depois di- zia urn em seo idioma «em nome do Pai, do Filho, e do Espirito Santo» e fazia o signal da Cruz, na testa, na bocca e nos peitos, no que era pelos outros imitado: punha depois as maos, fixava a vista no altar, e recitava pausada e dis- tinctamente a orapao dominical, o symbolo dos Apostolos, os mandamentos de Deos e da Igreja, o que findo, si tinha al- guma advertencia a fazer aproveitava a occasiao, sinao, re- colhia-se cada um a sua casa. 2. ° Viviam em commum quando se achavam juntos, e para isso traziam o resultado de suas pescarias e capadas para serem igualmente dividido entre elles, e antes de co- merem, o mais velho recitava em sua linguagem o Benedi- cile, fazendo o signal da Cruz sobre si, e sobre as iguarias: tiravam todos o chapeo, faziam em si o mesmo signal e nin- guem tocava na comida antes de abenpoada. Em quanto comiam nao contavam coisas mas ou que ex* citasse o riso, como fazem os Tupinambas; porem o mais velho dizia alguma coisa a respeito de Deos e da Religiao. 3. ° Nunca iam aos cauins e reunioes, conforme costuma- vam os Tupinambas: era um dos pontos principaes, que Martinho Francisco gravava no corapao dos convertidos, isto e, que os cauins eram inventados por Jeropary para se- meiar a discordia entre elles, e fazer com que praticassem229 toda a especie de males os que os frequentassem, sendo ini- possivel amar a Deos quem gostasse de cauins, porque, di- zia elle, quando descubro, que alguns dos meos similhan- tes se retiram das cauinagens, agouro que bem depressa se- rao christaos e vou procural-os; mas nao tenho animo para fazer o mesmo aos que frequentam taes orgias. 0 que elle dizia era verdade por ser horrivel espectaculo ver essas gentes em reunioes, parecendo antes congresso nocturno de feiticeiros do que ajuntamento de homens. Achei-me apenas uma so vez n’estas reunioes para d’ellas poder fallar, e nunca mais la tornei. Via aqui uns deitados em suas redes vomitando com muita forpa, outro caminhando ou marchando em diversos sentidos com o juiso perdido pelo vinho, ali outros gritando, fazendo mil tregeitos, estes danpando ao som do maracd, aquelles bebendo com muito boa vontade, aquell’outros fumando para mais se embriagarem, e o que ainda e peior, e estarem mu- lheres e mopas ahi misturadas parecendo bem difficil a pre- senpa de Bacho sem Venus. Por minha vontade os francezes deviam fazer o que fize- ram os portuguezes, isto 6, prohibir todas estas cauinagens: os portuguezes, depois que habitaram algum tempo na India, reconheceram, que um dos maiores embarapos para a pro- pagapao.do christianismo eram essas reunioes diabolicas, de que procedem todas as discordias e desgrapas entre os sel- vagens. 4.° Vestem-se estes novos christaos o melhor que po- dem, caminham todos juntos, nao trazem flechas e nem ar- cos, excepto quando vao a capa ou a pesca, contentando-se em trazer um cacete de uma especie de ebano, negro ou vermelho, com que se distinguem facilmente dos outros. Quando vao a outras aldeias, si encontram algum chris- tao, recolhem-se a casa d’elle, contentam-se com o que tem e vivem sobriamente como tanto convem a um christao,230 CAFITULC V De um Indio, condemnado a morte, que pedio o baptismo antes de morrer. Nao se acreditaria, si a experiencia nao o livesse confir- mado, que vendo-se simplcsmcnte por fora a concha de uma osira mariuha coberta e suja de lama e lodo, que ella em si ja livesse uma perola preciosa digna de ser collocada no gabinete dos principes. Quern podera crer, que um selvagem iniquo, impuro, e immundo, como nao posso dizer, embora creia que o pro- prio diabo, author de laes trapas, se envergonhe d’isto, nao tenlia inimisade e soberba contra o soberano, que o lira d’islo ? Quern podera, digo eu, crer, que tal individuo, por deter- minate da divina Providencia, fosse escolhido para o reino do Ceo, e tirado d’esses abysmos infernaes, para receber (na hora da morte, bem merecidas por suas torpezos) o sagrado baptismo, que o lava de todas as maculas, e Hie proporcio- na Tacil e franca entrada no Paraiso? Um pobre indio, bruto, mais cavallo do que horacra, fugio para o matto por ouvir dizer, que os francezes o procuravam e aos seos similhantes para matul-os e purificar a terra de suas maldades por meio da santidade do Evangclho, da can- dura, da puresa, e da claresa da Religiao Catholica Aposto- iica Romana. Apenas foi apanhado amarraram-no, e trouxeram-no coin seguranpa ao Forte de Sam Luiz, onde deitaram-lhe ferros aos pes: vigiaram-no bem ate quo chegassem os principaes de outras aldeias para assistirem ao seo processo, e proferi- rem sua sentenpa, como fizeram a final. Nao esperou o prisioneiro pelo principle do processo, e elle mesmo sentenciou-se, porque diante de todos disse, «vou morrer, e bem omerepo, porem desi'jo que igual fim tenham os meos cumplices.»231 Terminado o processo e proferida a sentenp a, cuidou-se cm sua alma dizendo-se-lhe, que si elle recebesse o baptismo, apesar de sua ma vida passada, iria direito para o Geo ape- »as sua alma se desprendesse do corpo. Acreditou nossas palavras, e pedio o baptismo: para lal fim veio o Sr. de Pezieux procurar-me em nossa casa de S. Francisco em Maranhao, e conversando si devia ser eu quern o baptisasse, resolvemos negativamente pelas seguintes ra- zoes: Pensavam os selvagens que nos outros padres eram pes- soas misericordiosas e compassivas, que expontaneamente empregavamos nossos esforpos perante os grandes para al- canpar a vida dos condemnados: que os grandes nos csti- mavam, e nada nos negavam, e que, alem d’isto, nos pre- gavamos, que Deos nao queria a morte e sim a vida do pec- cador, e que por isso tinhamos vindo aqui para dar essa vida de forma que, si eu o baptisasse publicamente, antes d’elle morrer, teria satisfeito muitos caprichos d’esles espi- ritos debeis c incapazes a respeito da opiniao, que forma- vam de nos e que seria muito prejudicial a nossas intenpoes dando alem d’isso causa a varias murmurapoes dos selva- gens, que diziam—«si os padres gostam da vida, porque deixam este christao ir morrer? Si amam tanto os christaos porque nao amam este? Si os grandes nada Ihes negarn, porque nao pedem a vida d'este ?» Por tudo isto, e por outras razoes, que omitto, decidi- mos ser conveniente e necessario, que eu nao o baptisasse. Roguei pois ao dito senhor que, depois de instruil-o polos interpretes, o baptisasse antes de ir ao supplicio, sem as ce- remonias da igreja o que se prestou e cumprio. Recebeo, com tranquilidade e sem tristeza, na prescnpa dos pnncipaes selvagens o baptismo, depois do que urn dos Principaes, chamado Karuatapiran «Cardo vermeIho,» de quern ainda fallarei, lhe disse estas palavras: «Tens agora occasiao de estares consolado e de nao te affligires, pois presentemente es filho de Deos pelo baptismo.232 que recebeste da mao de Tatu-uacu (nome do Sr. de Pe- zieux em sua lingua) com permissao dos Padres. Morres por teos crimes, approvamos tua morte, e eu mesmo quero por o fogo na pe£a para que saibarn e vejam os francezes, que detestamos tuas maldades; mas repara na bondade de Deos e dos Padres para comtigo, expellindo Jeropary para longe de ti por meio do baplismo de maneira que apenas tua alma sahir do corpo vae direita para o Geo ver Tupan e viver com os Caraibas> que o cercam: quando Tupan man- dar alguem tomar teo corpo, si quizeres ter no Ceo os ca- bellos compridos e o corpo de mulher antes do que o de um homem, pede a Tupan, que te de o corpo de mulher e resuscitaras mulher, e la no Ceo ficaras ao lado das mu- Iheres e nao dos homens.)) Desculpareis este pobre selvagem, nao christao e nem ca- thecumeno, fallando da Resurreipao. Elle nos ouvio ensinar que n’um dia resuscitariam todos os homens, regressando cada alma do lugar em que estava para occupar o seo corT po, acrescentando o que pensou ser indifferente a Resur- rei^ao, isto 6, que uma alma recebe um corpo de homem ou de mulher, no que se enganou nao se deixando em pe tal ideia falsa, pois elle e o paciente foram instruidos da verdade: julguei acertado referir aqui simplesmente o que se passou para que o leitor reconhepa sempre quanto sou fii ! em minlias descrippoes, como ja disse, e provarei sem- pre nos discursos, que ainda hei de transcrever. Este infeliz condemnado recebeo as consolapoes de muito boa vontade, e antes de caminhar para o supplicio disse aos que o acompanhavam: «vou morrer, nao mais os verei, nao tenho mais inedo de Jeropary pois sou filho de Deos, nao tenho que prover-me de fogo, de farinha, de agoa, e nem de ferramenta alguma para viajar alem das montanhas, onde cuidaes que estao dan^ando vossos paes. Dae-me po- rem um pouco de Petum para que eu morra alegremente, com voz e sem medo,»233 Deram-lhe o que elle pedio, a similhanpa dos que vao ser justipados, aos quaes tambem se da pao e vinho, costu- me nao d’agora, e sim desde a mais remota anliguidade, pois entao se offerecia aos criminosos vinho com myrrha c opio para provocar o somno dos pacienles. Feito isto, levaram-no para junto da pepa montada na muralha do Forte de S. Luiz, junto ao mar, amar- raram-no pela cintura a bocca da pepa, e o Cardo ver- melho lanpou fogo a escorva, em presenpa de todos os Principaes, dos selvagens e dos francezes, e immediata- menle a bala dividio o corpo em duas porpoes, cahindo uma ao pe da muralha, e outra no mar, onde nunca mais foi enconlrada. Quanto a sua alma, e de crer que os anjos a levas- sem ao Ceo, pois morreo logo depois de haver recebido as agoas do baptismo, certesa infallivel da salvapao d’a- quelles, a quern Deos concedeo tal grapa, nao pequena e nem commum, porem tao rara como o arrependimento do bom ladrao na Cruz, que tendo vivido sempre desre- gradamente ate chegar aquelle logar, recebeo comtudo esta promessa de Jesus Christo—Hodie mecum eris in Paradiso, seja feita a tua vontade assim na terra como no Ceo, oreremiu-areduare eime iury oreue, dae-nos hoje o pao qnotidiano, de-eiuru ore yangaypaue rece, perdoa nossas offensas, ore recome-mocare supe ore-ieuron eaue como nos perdoamos aos que nos offendem moar-ocar hume yepe tecomemo-pupe nao nos deixeis cabir em tenta^ao ore pessuron peyepe mae ciyue suy. mas livrae-nos do mal. Amen Jesus. SAUDAQAO ANGELICA. Ave Maria gratia, resse tonussen vde, Eu te saudo Maria, de grapa cheia, Deyron yande yare-reco o Senhor e comligo, ymunbeu kaiu poire aue edereieo kugnan suy benta es lii entre as mulberes. ymunbeau katu poire aue demeinboire Jesus. bento e o fructo do teo ventre. Jesus.243 ORACAO A VIRGEM. Santa Maria Tupan sen Santa Maria mae de Deos h$ Tupan mongueta ore yangaypaue vae resse rogae a Deos por nos peccadores cohu yran ore-requi ore-rumeue agora, e na hora de nossa morte. Amen Jesus. O SYMBOLO DOS APOSTOLOS. Arobiar Tupan Creio em Deos tune opap katu maete tirucin padre fodo poderoso mognangare vuac creador do Ceo mognangare ybuy creador da terra Jesus-Christo tayre oyepe vac em Jesus Christo, seo filho unico ahe Sainct Esprit, demognan pit an amo quo foi concebido do Espirito Santo ahe poire oart Sainct Marie, suy e nasceo da Virgem Maria Ponce Pilate muruuiclmue amoseico sericomemo poire amo padeeeo sob poder de Poncio Pilatos, presidente yiuca poire amo yuira morreo sobre o madeiro da Cruz ioasaue resse morreo ymoiar ypoire ytemim buire amo foi amortalhado e enterrado no sepulcbio ouue ieuue euue apeterpe desceo aos infernos244 ahe sui turiare mossa poire resse uue ombueue sui. Se- cobe yereie-buire ao terceiro dia resurgio dos mortos oie upire vuacpe subio ao Ceo Tupan tuue opap-katu maete tiruan mognangare katu aue cotu seua esta assentado a direita de Deos, seo Pae Omnipotente ahe sui turine ycobe vae omano vde poire pauS recomognan de la vira a julgar vivos e morlos. Arobiar Saincte eglise catholique Creiona Santa Igreja Catholica, arobiar Saincte tecokatu demosaoc morupe creio ua communhao dos Santos arobiar teco-engay pane ress6 morupe Tupan dewon creio na remissao dos peccados por Deos arobiar as&-recobe iebure creio na resurreipao da carne arobiar teiube opauaaerem-eim-rerecoe nuarne creio na vida eterna. Amen Jesus. OS DEZ MANDAMENTOS. 1. ° Ymoete yepe Tupan I Honra um so Deos 2. ° Ayte erete netieume poire renoy teigne. It Nao juraras em vao o nomo de teo Deos. 5.° Ymoete dimanche are maratecuare eum aue. III Honra e sanctiGca o domingo, dia de repouso. 4. ° Ymoete deruue desseu eaue. IV Honra teo pae e tua mae. 5. ° Eparapiti hume. V Tu nao mataras. 6. ° Eporopotare hume. VI Tu guardaras castidade.245 7. ° Emonmaron hume. VII Tu nao furtaras. 8. ° Teremoen hume aua resse. VIII Tu nao levantaras falso testemunho contra teo proximo. 9. ° Yemonmotare hume aua remerico resse. IX Tu nao conheccras a mulher de outrem. 10. Yemonmotare hume aua mae resse. X Tu nao cubigaras corns alheias. RESUMO DOS MANDAMENTOS DE DEOS. 1. ° Opap katu maete tiruan sosay ase Tupan rausuue. Sobre todas as cousas amaras a Deos. 2. ° Oie ausuue eaue ase uua picharc raussuue. Ama teo proximo como a ti mesmo. OS MANDAMENTOS DA SANTA IGREJA. 1:° Arve maratecuare ehume messe renduue. Ouve missa nos dias de festa. 2. ° Sei hu iauion yemonbeu. Todos os annos ao menos uma vez confessa teos peccados. 3. ° Tupan rare pacques iauion. Teo Deos pela paschoa commungaras. 4. ° leeuacuue iauion erecucuue. Tu guardaras jejuns pela quaresma e vigilias. 5. ° Aiamion ase mae moiaoc. Pagaras os dizimos. OS SETE SACRAMENTOS. 1. ° Iemongaraiue. Baptismo. 2. ° Ase seurap aua reu assu yendu karaiue non. Receberas na testa o santo oleo pela mao do Bispo.246 3.° Asc-rcon yanonde Tupan retro. Antes de morrer reccberas o corpo de Decs. 5. ° Oyekoacuue, oyetnonbeu. Penitencia, eontissao. 6. () Oyemo-auare. Ordem. 7. ° Mendar. Casamento. CAF1TULO Y!H Qual a crenga natural dos selvagens a respeito de Deos, dos espiritos e da alma. 0 Psalmista Rei David, no Psalmo 101, quo e uma sup- plica por elle composta para os pobres e infelizes, cheios de anciedade e oppressao, particularmente os infieis, diz— Placuerunt servis tuis lapides ejus, et terra ejus misere- bunf. Tapidtapera, Comma, Caetes, Para e Mearim e fazendo-os fugir para os matos e logares desconhecidos com receio de serem presos e captivadcs pelos francezes ou pelos portu- guezes. Finalmente mostrou-se tudo de forma diversa, porque quando julgavamos tudo perdido, foi quando Deos mostrou o poder do seo nome, conservando nao so estes selvagens junto de nos, mas tambem fazendo com que despresassem seos feiticeiros e o poder do diabo, fazendo fugir Jeropary, com o nome de Deos, e a ablupao de Jesus Christo. Vou mostrar bons exemplos. Lembrar-vos-heis do que acima vos disse tanto dos fei- ticeiros dos campos do Mearim e das habitapoes de Thion, como da maneira porque os diabos manifestavam o temor, que tinham das cruzes, que plantavamos em nome de Jesus Christo, e de nos seos fieis servos: quando alguns de seos Principaes me diziam, que estes feiticeiros nao quiseram vir277 com elles, eu lbes perguntava a razao, e dies me respon- diam—porque Jeropary tern medo de Tupan. Acaiuy, principal do lMearim, de quem fallaremos mais de espapo, veio me pedir licenpa para fazer sua casa ao pe da minha, nao querendo ficar com os outros no Forte, dizen- do-me entre outras rasoes que tinba para isto, ser porque Jeropary nao se atrevia a aproximar-se do logar, em que babitavamos visto termos vindo expressamente para re- pellil-o. Pedro Cdo, selvagern baptisado em Dieppe havia muitos annos, dizia a mim e aos Srs. de la Ravardiere, de Pezieux, e a outros quando o interrogavamos a respeito de sua feli- cidade na guerra, que Deos sempre o livrara de mil pe- rigos porque era christao, e fazia fugir o diabo apenas chegava n’uma aldeia, e que seos similhantes mostravam- se animados, quando em companhia d’elle, nao temendo Je- r opary. 0 mesmo pensavam os habitantes de Tapuytapera a res- peito dos novos christaos, julgando que elles perseguiam e faziam fugir Jeropary, mostrando-se contentes por isto quan- do tinham esses christaos em suas aldeias. Servindo-nos d’estas crenpas embutiamos no espirito dos cathecumenos como ponto de fe, que logo que elles fossem lavados, adquiririam poder contra o diabo, e nunca mais deviam temel-o. Corre voz geral em todas estas terras, que os diabos sao espiritos mans, que temem os Pays e os Caraybas, isto e, os padres e todos os que sao baptisados. Recorda-mequefallando mil vezes d’esta materia aos sel- vagens, elles me disseram—Jeropary yportassuasseque ge- sera—«o diabo esta agora pobre e miseravel, tern muito medo e ja nao e atrevido como era.» Jeropary ypochu, Tupan Katu «o diabo 6 mau, cruel e nada valle, porem Deos e muito bom.» Que desejarieis mais para o complemento dVste primeiro signal, e seguranpa da total ruina do diabo?278 Sao os proprios diabos, que confessam teraer o nome de Jesus Christo, as armas de sua paixao, e ate os seos ser- vos, dissuadindo seos intimos amigos para que de oos se ausentassem, abalando eeos e terra afim de embarapar-nos, e movendo tudo para inutilisar nossos esforpos, emfirn ca- hiram de ventas no chao, e chegaram ao cabo de suas as- tucias. Os que outr’ora os temiam, hoje os despresam; emfim so nos resta continuar as obras comepadas. Unguis loquentur novis: «fallarao novas linguas». Na verdade os nossos selvagens do Maranhao fallam uma lin- guagem inleiramente nova, visto que, esse Marata antigo, isto e, um dos Apostolos de Jesus Christo de qnem fallarei mais adiante, nao lhes ensinou a fallar como fallam agora, a saber: na profissao do christianismo recitando o symbolo dos Apostolos Arobiar Tupan etc. etc., a dirigir-se a Decs por meio da oragao dominical Oreruue etc. a encaminhar suas vidas e acpoes segundo os mandamentos da lei de Deos Ymoete yepe Tupan etc. etc. conforme os mandamentos da Igreja. Are maratecuare ehume etc. «lavar e fortificar suas almas pelos Santissimos Sacramentos. Iemongarauiue etc. fi por certo fallar linguagem nova, quando discorrem so- bre os mysterios da nossa fe, como sejam a unidade da es- S( i]> ia em Deos, e na Trindade das Pessoas; que o Filho de Deos tomou corpo no ventre da Yirgem: que os maus vao para o inferno, que todos os homens resuscitarao em corpo e alma, indo depois cada um para o lugar de sua sentenpa: sao estes com tudo os discursos diarios dos feiticeiros, s6 fallando em malar, comer, assar e seccar a carne dos seos inimigos, e nas suas incontinencias, libertinagens e lou- curas. Admirar-se-ha muito quern pensar em tal mudanpa entre os barbaros, que somente sabetn o que lhes ensinou a na- tureza.279 Creem os judeos, que os Apostolos sahiram d’um tuneL bem cheio, de vinho e de carne, e viram que os gentios de diversas napoes davam signaes de entender o que prega- vam, e que os Apostolos por sua vez tambem os perce- biam. Tambem vos disse, que os selvagens ficavam muito admi- rados quaudo viam seos similhantes, baptisados, discorrer em sua lingua sobre coisas altas, profundas, e tao novas, como as que conheciamos por seos interprctes, e diziam uns aos outros—como e que esta gente falla tambem de Tupan, como os Padres Ihes tern ensinado tao bellas coisas, quaes as que nos contam: como nossos filhos sabem mais do que nos, nossos Padres, e mais remotos antepassados, que embora tenham vivido muito nada nos conlaram como estes Padres: por forpa fallaram com Deos. Em terceiro lugar. Serpentes tollent «elles desviaram as serpentes.» Que sao essas serpentes do Brazil, que com sua lingua e cauda envenenam estes povos? Nao sao todos os grandes e pequenos feiticeiros, que envenenam suas Na- poes? A f6 de Jesus Christo 6 como a Cegonha, que puriflca o paiz, onde esta, das serpentes venenosas. S. Paulo, na Ilha de Malta, atirou ao fogo a vibora que trazia no dedo. 0 dedo dado por Jesus Christo aos Apostolos, e o poder do Espirito Santo, que de ordinario busca agentes naturaes docemente, sem constrangimento, para dispor o objecto a receber uma nova forma pelo banimento e ruina de outra f6rma contraria. Estas viboras, arremepadas ao fogo, sao os Ministros de Satanaz, que o Espirito Santo expelle para tornar a Napao cheia d’abusos susceptivel de acceitar o Evangelho e de co- nhecer a Deos. Si eu disser, que me parece ter o Espirito Santo, em re- lapao a estes feiticeiros do Maranhao, feito urn grande mi- lagre, que nunca fez para com os sacrificadores do Paganis-280 mo, creio ser bem recebida a minha opiniao, porque, alem tie dois ou tres feiliceiros, todos os grandes so desejam set* baptisados: ao contrario, raras vezes estes sacrificadores do diabo, na genlilidade esposavam a christianismo. Por isso podiamos dizer, quo as serpentes venenosas, que se arrastam na terra, tornam-se passaros voadores no ele- mento do ar, conforme a profecia de Isaias: De radice colu- bri egredietur Regulus, et semen ejus absorvens volucrem: «da raiz da cobra sahira o Basilico, e a semente do Basilico engulira o passaro,» o que Vatable assim interpreta 105» De radice serpentis egredietur Regulos, et fructus ejus, ceres- tes volans: «da raiz da serpente sahira o Basilico, e o seo lruclo sera uma cerasta volante.» Para entender esta passagem convem recordar-se do quo escrevem os naturalistas, a saber, que as cobras grandes e grossas geram o Basilico quando comem um sapo; porern o Basilico procura gallinhas brancas, com quern se unem, pondo elias ovos, que enterram n’areia ao ardor do &oU e d'elles sahem serpentes, que voam. Nada dizem, que eu nao visse em Maranhao, conforme me diziam e pensavam os selvagens, e aconteceo-me por duas vezes, que uma gallinha branca que eu tinha, po- zesse dois ovosinhos redondos como uma ameixa de dama e salpicados, e depois ella mudou de cacarejar, e parecia loiica. Disseram-me entao os selvagens, que infallivelmente o Basilico nos mattos a tinha coberto, pelo que convinba ma- lar, quebrar e queimar os ovos, para evitar a morte infalli- vel de quern os comesse: si se deixasse os ovos, sem qqei- mal-os, d’elles sahiriam serpentes voadoras, que nao era a primeira vez, que isto acontecia, e entao todas as galliiQhas mudarn de canto, e nao param n’um lugar. Appliquemos isto ao nosso fim, e digamos que a ajntiga cobra e Satanaz, Principe dos Demonios, os Basilicos sao os Diabos destacados nas Proviacias por Lucifer para scduzir o Mundo; as serpentes sao seos Alicistros, como sejam os Pa-281 gys ou feiticeiros do Brazil, que desejam adquerir azas para mtjdar de elemento da terra para o do ar, deixar seos ve- Ihos e abpminaveis costumes de arrastar o peito era seo execrando e diabolico servipo, e aproximar-se do Ceo, co- mo o resto dos indios pela ablufao ou lavagem de seos antigos peceados pelo Sacramento do Baptismo. Estas serpentes, tao perseguidas no Brazil, sao esses des- grapados costumes, e abominaveis peccados, como sejam as vilania^, raivas, e vingangas, ja descriptas amplamente n’outra parte. Em quarto iugar. Et si mortiferum quid biberint non els nocebit: «e si bebem algum veneno mortifero, nao Ihes damnificara.)) 0 verdadeiro veneno, que engolem as almas, e a falsa doutrina, que o Diabo faz suggerir nos ouvidos dos novos christaos. Vos o achareis em muitos exemplos do proprio seculo dos Apostolos. Certos seductores iam corromppr os individuos sem malicia, e apenas bebiam alias o Aconito, senliam-se afflictos, impressiQnados em sua alma, e abalados em sua fe; porem o Espirito Santo mencionado no genesis—Spin- tus Domini, ferebatur super aquas «o Espirito do Senhor e levado sobre as agoas de Chaos,» isto e, ainda nao purifica- das e nem limpidas, ou como querem dizer os outros: Incu- babat aquis, deitava-se sobre as agoas do Chaos para d’elle tirar as Bellas pombas, como fingiam os Poetas, os ovos de Thetis, cobertos pelo pombo branco, ou o Cysne, de que sa- hiram Castor e Pollux, ou entao fouebat aquasy aquecia essas agoas ainda frias. 0 Espirito Santo, digo eu desculpa mais facilmente a fra- gilidade e fraquesa d’estes novos christaos, mas nao as dos antigos crentes. Assim vae adejando sobre as agoas desviadas do verda- deiro caminho pelos maus discursos d’aquelles, que tern a alma mal conformada, vae chocando os ovos abandonados pelo Pae e Mae, almas recentemente lavadas, porem sepa- rad as da presenpa d'aquelles que as tern lavado. w282 Aquecidas essas agoas geladas pelo sopro do pernicioso Aquilon, nao quer que o veneno bebido lhes de a rnorte, conduzindo-as ao regapo dc sua Mae, e entre os brapos dos que, depois de Deos, os geraram espiritualmente em Jesus Christo para obrigal-os a vomitar o veneno do seo corapao, e lomar o aliraento salutar, pelo qual se fortificaram para resistir de ora em diante a todos os choques. Passou-se isto no Brazil, como aconteceo no tempo dos Apostolos, onde urn certo numero de novos christaos de Tapuitapera, seduzidos por mas palavras de urn certo per- sonagem, metade d’elles se deshouveram e renunciaram o Christianismo; porem nos euidamos d’elles com todo o zelo. Assim fizeram os nossos superiores, que redobraram de cuidados para remediar este mal levando para ahi tudo quanto julgaram necessario, e por isso essas novas plantas, fanadas por brisa gelada, adquiriram seo anligo vigor e flo- rescencia, e tornando a vel-os no Forte de Sam Luiz, pro- curamos animal-os a ficarem firmes.e constantes naprofissao do Christianismo, e ordenamos-lhes de nao se separarem de Martinho Francisco, ahi nosso suffraganeo. Sentia-se o diabo cercado por todos os lados, e peiores os seos negocios de dia para dia. N’esta epochs, em que estou escrevendo, espero que os padres que por la andam, Ihe deem terriveis combates, e que seo reinado va de decadencia em decadencia, ate to- tal ruina; porque antes de eu deixar a ilha, via e experi- mentava a disposipao geral e universal d’estes selvagens, 106 especialmente dos meninos, para os converterem.283 GAPITIiLO XT7 Os filhos do Brazil darao cabo do reinado de Lucifer, e comegarao a estabelecer o reinado de Jesus Christo. 0 psalmista rei David, no seo psalmo 8.°—In finem pro torcularibuSj psalmus David, isto e, o psalmo dc David, que deve ser cantado emacpao de grapas ao Senhor no fim das vindimas diz, prevendo a ruina total do imperio de Lucifer sobre as almas dos infieis, e o estabelecimento do reinado de Jesus Christo—Ex ore infantium et lacAentvum perfecisti laudem propter inimicos tuos} ut destruas ini- micum et ultorem. «Tens apurado teos louvores pela. bocca dos meninos e das crianpas de peito a despeito dos teos inimigos, e por isso tu destroes o adversario e o tyranno vingativo.» Rabbi Jonathas embellezou esta passagem, e esclareceo-a por esta forma—Fundasti fortitudinem, ut destruas Au-cto- rem inimicitiarum et ultorem «estabelecestes a forpa do teo imperio pela bocca e confissao da Fe dos meninos para mos- trar tua grandesa, e destruir o autor das vinganpas e o san- guinario vingador. Disse Sao Jeronymo—Quiescat inimious et ultor «fechaste a bocca ao seductor inimigo da salvapao, e enraivecido con- tra os homens pela voz dos meninos. Grande maravilha 6 o serem os meninos o symbolo da proxima fundapao do reinado de Jesus Christo e a queda do poder dos demonios. Nao me demoro em fundamentar com muitos exemplos este signal da providencia de Deos, e assim limilo-me a re- ferir o que se passou no Triumpho de Jesus Christo antes de sua Paixao, quando os meninos em alta voz diziam—Hosan- na filio David «seja bem vindo o Filho de Deos,» o que disse em primeiro logar o santo rei no seo canlico—In fi- nem pro torcularibus, «no fim pelas pressoes,» isto e, no fim do reinado de Satanaz, e no principio da Paixao de Je-284 sus Christo, quando era tempo de pagarem os meninos este tributo de reconhecimento. Em segundo lugar, de dia a dia, na continuapao, no fim, e na consummapao do captiveiro de Satanaz sobre as almas infieis, e no principio da Santa Igreja, fundada entre ellas, principalmente pelos meninos, o que desejo mostrar tersido feito pelos filhos do Brasil. Estas almas juvenis, ainda nao corrompidas por antigos e maus costumes de seos paes, mostram nao sei que dispo- sipao singular e particular para receber, como si fosse uma taboa rasa, qualquer pintura.............................. (Falta uma folha.) repugnancia: nos lhe facilitavamos os meios de o entender comparando com as coisas, que veem diariamente. Assim como crescem as ostras sobre os ramos das arvo- res, tomando carnes e recebendo vida entre duas conchas, sem mistura, nem effusao de semente do humor marinho, e apenas pelo calor do sol, assim tambem o Filho de Deos no ventre da joven, a Santa Virgem, recebeo seo precioso san- gue da materia, e o Espirito Santo, do calor, e assim tomou corpo sem aiguma outra operapao humana. Gostavam muito da comparapao, e me disseram que em seo paiz muitas coisas so geravam pela simples influencia do Sol, como os lagartos, que sahem dos ovos, depois que recebem a vida do calor do Sol, e por isso nao tinham difficuldade em crer o que nos Ihes ensinavamos, e nem que Deos se fizesse homem para morrer afim de salvar os seos,. porquc, diziam elles, Jeropary, apesar de ser espirito mau, entra no corpo dos monstros para nos amedrontar, espancar e atormentar. Sobre tudo muita admirapao nos causava o como facil- mente se convenciam da verdade e da realidade de Jesus Christo, Filho de Deos, sob as especies de pao e vinho, ao passo que viamos tantas almas vacillantes n’este ponto, em- bora lhes sobre espirito e comprehensao para outras coisas.285 A este respeito nao pude dizer outra coisa, senao o que disse a Escriptura Santa no proverbio 25—Sicut qui mel multum comedit, non est ei bonun? sic qui scrutator est magestatis, opprimetur a gloria.—«E coisa tao doce como o mel, mas quern d’ella comer rnuito, nao pode offender mais o estomago.» Nada ha de mais suave e delicioso do que a contempla- £ao das obras de Deos e a leitura das letras santas, mas para aquelle que vae rnuito alem, e tudo mede pela vara de seo espirito, impellido pela soberba de seo entendimenlo. Nada ha mais seguro, que nao fique opprimido pelos vi- vos raios da gloria de Sua Magestade, como se observa nos mochos cegos, visto quererem olhar e julgar da face do sol, e da sua luz. Ao contrario, os que manejam com temor e humildade os mysterios de nossa f6, sao esclarecidos sem prejuiso de suas vistas, e docilmente obedecem a vontade e poder do sobe- rano, que pode o que quer, quer e faz o que diz. Estes pobres selvagens, fallo atd dos que nao sao ainda christaos, apenas se lhes fazia signal de sahirem da igreja, retiravam-se promptamente, ficando comtudo na porta, que se conservava fechada em quanto se recitava o canon da missa, e fazia-se a communhao. Diziarn elles, em resumo, que n'essa hora descia Tupan sobre os altares, bebendo e comendo comnosco, que nao tinham merecimento para ficar ahi em frente d’elle senao quando fossem baptisados, e a maior parte d’elles se ajoe- Ihavam, imitando os ’francezes. Os Indios christaos ajoelhavam-se apenas ouviam tocar a campainha, juntavam as maos e adoravam a Deos. Ao mysterio do Sacratissimo Corpo e Precioso Sangue do Filho de Deos elles chamam Tupan, quer dizer, o proprio Deos, segundo suas crenpas, Asereu yanonde Tupan rare, quer dizer, «antes de morrer receberas o corpo de Deos». Ainda que eu reconhecesse n’elles facilidade de crer se- gredo lao profundo, nao me animaria a communicar-lhes se-28G nao em artigo de morte, e antes queria deixar esta tarefa para os que viessem depois de mim, porque dando n’um certo dia a communhao a uma India, a quern examinei tanto quanto pude antes de Ihe dar o Precioso Corpo de Jesus Christo na Paschoa, apenas recebeo a Hostia Consagrada per- turbou-se muito e nao a poude engolir a ponto de querer tiral-a com a mao o que Ihe prohibi disendo so poder ser tocada por sacerdotes, que nao livesse receio, e nem se as- sustasse tendo de receber seo Deos, que era de sua vonta- de, que ella recebesse a hostia e a engolisse com toda a con- fianpa, o que fez mediante urn pouco de vinho que Ihe dei a beber no calix: tao grande secura da lingoa e bocca proveio da grande timidez d’ella em receber tao santo manjar, o que me resolveo de entao em diante a deixal-os bem fun- damentarem-se no conhecimento d’este artigo antes de ad- minislrar-lhes o Santo Sacramento, e ainda que muitos me pedissem o Tupan, eu lhes respondia que esperassem pela vinda dos nossos padres. Nao ha grande difficuldade em fazel-os confessar suas fallas, ate mesmo as proprias mulheres, e de coisas que sao dUficeis a este sexo declarar aos sacerdotes, representantes da pessoa de Deos. Mui livremente vos dizetn sim e nao, o tempo, o lugar, a qualidade das pessoas, o numero de seos peccados, sem al- gum vexame tolo e mau como por ahi se observa. Nao tern a menor hesitagao em crer na efficacia do ba- ptismo, que e o lavamento dos peccados, a filiapao de Deos, e a acquisifao do Ceo, tendo como certo que os baptisados vao para o paraiso gozar da companhia de Deos, com tanto que nao caiam outra vez em peccado mortal. Acreditaram sempre, que havia inferno, onde estava Je- ropary, e para onde iam os maus. Sabiam ao mesmo tempo por tradic^ao, que Deos era muito feliz la em cima, vivendo com os espiritos bons, e que seos paes que linham tido boa vida, iam para um lugar de delicias, onde nada lhes faltava embora terrestre.287 A vista d’isto facil nos foi fazel-os entender o que deviam crer do paraiso, do inferno e de urn terceiro lugar, onde se purificam as almas antes de irem para o Geo, de urn quarto onde os meninos, que nao chegaram a receber o baptismo, morrendo antes do uso da razao, eram recebidos para nao padecerem por nunca poderem ver a Deos, visto ser o bap- tismo a chave do Ceo. Nao se acreditaria, senao vendo-se, quanto sao os selva- gens curiosos por saberem das coisas de Deos. Todos, quan- do com elles conversavamos, nos faziam mil perguntas a este respeito, iguaes a estas: Como Deos fez o Mundo ? Si o fez com suas proprias maos, ou si ajudado pelos bons espiritos poude fazer o Geo, as eslrellas, o sol, a lua, o fogo, o ar, a agoa, a terra, os primeiros homens, os pri- meiros passaros, peixes e animaes, reptis, arvores e her- vas l 0 que existia antes de feito o mundo, e o que fazia Deos vivendo sosinho ? ' De que forma esta no Ceo ? Como faz rebumbar o trovao, e cahir a chuva ? Si falla aos homens, si viemos do Ceo, si nascemos de mulheres, si vimos anjos e diabos ? Quern nos ensinou tudo quanto ensinavamos, si nao mor- riamos, e depois da nossa morte como si faziam outros pa- dres ? Si em Franpa haviam muitos padres, si andam veslidos como n6s, si havia urn padre que fosse rei, porque regeita- vamos mulheres e mercadorias ? Si a Mae de Deos era uma rapariga como outra qualquer, si bebia e comia como nos, porque tinha morrido, si nao vinha do Ceo passeiar as vezes na terra e fallar comnosco? Si os Apostolos eram padres como nos, quantos tinham existido, porque os outros Caraibas francezes nao eram tam- bem padres como nos, si fomos nos mesmos que nos fize- mos Padres, ou si foi outra pessoa?288 A tod as estas e a muitas ou'tras pergufilas respondiarrios com a vcrdade, e dies por gestos e palavras demonstravam sen contentamenlo. Assim corria de maneira agradavel o tempo enlre taes perguntas e entretinimeMo. E por isso que pretendo aqui deixar as diverse e mite singulares conversapoes, que tive coni os Murumchaues, islo 6, com os principaes de Maranhdo, Tapuitapera, Com- ma, Caides, Pard e Miary. Nao quero demorar-me mais fallando em taes perguntas e respostas, visto que as veieis mais adiante, e espero que minhas respostas vos contentarao muito, e vos assevero qhe serao fielmente transcriptas atd na propria linguagem com que foram proferidas. Espero desculpa nao so por isso corno tambem pelo mais que ja deixei escripto, mormente nao se achando tantos or- nalos n’esta historia como exigia a curiosidade d’esta se- culo. ft minha opiniao, que a bellesa de uma historia consiste na verdade do facto e na simplicidade do estylo. Si eu nao descrever palavra por palavra essas conferen- cias, ou si nao usar de muitas palavras, basta que nao of- fcnda em coisa alguma a substancia do facto, sendo essa abundancia de discurso necessaria e requerida para vos fa- zer calender bem claramente suas intenpoes, e as nossas expressoes.289 CAFITTILO XYX Primeira conferencia com PacamSo, grande feiticeiro de Comma. Tendo tido muitas conferencias com este principal e grande feiticeiro, von narral-as por capitulos: eis o pri- meiro. Pacamuo 6 pequeno no corpo, vil e abjecto a tal ponto, que quern nao o conhece, nao faria caso d’elle. Comtudo isto e o maior e o mais graduado de todos os principaes doMaranhao, especialmente na provinciade Com- ma, uma das mais bellas, fertil e povoada no paiz dos Tu- pinambds. Goza entre elles de tal poder, que somente com sua pa- lavra tern movido todos os habitantes, sendo extremamente temido. fi flno e velhaco tanto quanto pode ser urn selvagem, e por essas qualidades chegou a obter esse poder, grandesa e prestigio, sendo tido por supremo curandeiro, subtilissimo feiticeiro, muito familiarisado com os Espiritos, tendo entre suas maos e a sua disposipao a morte e a vida, concedendo vida e saude a quern bem lhe aprouver; alem de grande bafejador entretinba os ingenuos por meio de confissoes, de lustrapao, incensamento, e muitas outras coisas iguaes como ,ja dissemos. Nao foi dos primeiros a visitar os francezes e fazer-lhes seos offerecimentos, desejando ver o que elles queriam, por- que tinbam vindo aqui, e como se estabeleceriam. Informando-se bem de tudo isto, veio ao Forte de Sam Luiz, entrou, e saudou agradavelmente o Sr. de la Ravar- diere. Vinha bem acompanhado por indios enfeitados de pennas, trouxe comsigo a mais vigorosa de todas as suas mulheres, cujo numero chegava a trinta. Chegando a Yuiret, tendo passado o mar em nossa barca, que tinha ido buscar farinha a sua terra, distante mais de 43290 40 legoas do Forte de Sam Luiz, fez saber ao Sr. de la Ra- vardiere, que ia ao seo Forte, e foi esperado. Formou sua gente, uns atraz dos outros, e todos o acom- panharam. Andou ao redor das casas, situadas na grande prapa de Sam Luiz, fallando como era de costume, apregoando sua grandesa, o seo amor aos francezes, o objecto da sua visita, e tambem o valor e poder dos francezes. Acabado isto, aproximou-se da porta do Forte, perto de um quarlinho, onde estavam alguns francezes observando o que elle fazia. Ordenou a sua mulher, que se prevenisse para carregal-o at6 a casa do governador, e foi obedecido promptamente, escanxando-se na cintura d’ella como usam as indios quan- carregam seos filhos: assim entrou no Forte, e dirigio-se ao dito senhor: sua mulher era negra como o diabo e pintada desde a planta dos p6s at6 a cabepa com o succo do geni- papo. Antes de ir adiante pensae si era possivel conter o riso, vendo-se um dos Principaes do Brazil montado em tao bello cavallo. Foi comtudo muito bem acolhido, e disse o que lhe veio a mente para desculpar-se, fmdo o que, e depois de tratar dos seos negocios, veio a minha casa, em Sao Francisco, acompanhado por gente implumada. Mandei logo armar-lhe uma rede de algodao bem alva, onde assentou-se, e pedindo a um dos seos companheiros o seo caximbo, este o entregou ja com fogo. Depois de ter tornado tres ou quatro caximbadas, exha- lando o fumo pelas ventas comepou assim a fallar-me grave e pausadamente achando-me defronte d’elle n’outra rede: «Ha muitas luas, que eu tive vontade de te vir ver e aos outros Padres; mas tu, que fallas com Deos sabes, que nao e bom e nem prudente ser-se leviano e facil, mor- mente n6s outros que fallamos com os Espiritos, e mover- nos com as primeiras noticias e por-nos a caminho, por-291 que sendo observados pelos nossos similhantes, dies nos imitarao. «0 poder, que alcanfamos sobre nossa gente, se conserva por certa gravidade em nossas acpoes e palavras. «0s intromettidos, e os que a primeira noticia apromptam suas canoas, se emplumam e vao logo ver o que ha de novo sao pouco estimados, e nunca chegam a ser grandes Prin- cipaes. «Foi isto o que me impedio e embaragou de vir logo. «Os habitantes de Tapuitapera e muitos de rninha pro- vincia vieram antes de mim, porem sao menos do que eu. «Alegro-me com a vossa vinda, porque saberei que ha Deos: sou mais capaz de o saber do que um so dos meos similhantes: nao desejava que um s6 d’elles me precedesse ou que tu o levasses diante de mim, e o fizesses fallar com Deos. «Quando me ensinardes o que e Tupan, terei mais auto- ridade e serei mais estimado, do que actualmente, e em meo paiz occuparei o primeiro logar depois de ti. «Dize o que queres que eu fapa, e quando meos similhan- tes virem, que eu sou filho de Deos e lavado todos deseja- rao sel-o, buscando imitar-me. «Terei grande pesar, si estimares outro mais do que eu, porque sempre vizei altas coisas. «Tinha muita curiosidade de visitar e de ouvir os Fran- cezes. «De meos av6s aprendi a historia de No6, o qual construio uma barca, poz dentro sua gente, que Deos fez chuver abun- dantemente por muitos dias, que a terra flcou submergida debaixo d’agoa, invadindo campos, montanhas, valles, mar, e separando-nos de v6s. «No6 foi pae de todos. «Soube tambem que Maria era Mae de Tupan, sendo Vir- gem, porem Deos mesmo fez corpo para si no ventre d’ella e quando cresceo mandou Maratds, Apostolos para tod a a parte, nossos paes viram um, cujos vesligios ainda existe.292 «V6s outros padres sao mais do que n6s, porque fallaes a Tupan, e sois temidos pelos espiritos: eis porque quero ser padre. «Muito tempo ha, que eu sou pagy, e uinguem 6 mais do que eu, porero nao fapo caso d’isto, porque vejo que meos similhantes somente vos apreciarao. «Desejaria muito que viesses a minha proviacia, boa ter- ra, onde se encontram muitos javalys, viados, e corpas, nada te faltara, e sempre estarei comtigo.» Respondi-lhe a tudo isto, dizendo ter muita satisfapao de vel-o, ja teudo muitas vezes ouvido fallar d’elle e do seo po- der, como euganava com certos ardis os indios fazendo-os acreditar ter em seo poder urn espirito familiar, sendo ainda maior o seo contentamento por vel-o principiar a reconhecer sua falta, sendo certo que por seo discurso eu bem percebia que elle nao tinha a inlenpao, que Deos exige, para ser posto no numero dos seos filhos e lavado com agoa divina. Replicou-me assim: «Que queres dizer com isto, que eu nao procuro Deos como convem ? «Sera porque desejo ser padre como tu, fazer-me admirar mais do que nunca entre os meos, persuadil-os a ser filhos de Deos, a procurar-te para serem baptisados, e fazeres em minha provincia o que quizeres, que de mim se diga que eu era o grande Pagy, sendo o primeiro a reconhecer Deos e vos outros padres. «Sendo estimado pelo grande espirito, os outros a minha sombra procurarao a Deos e farao como eu. «Si eu nao me fizer lavar, muitos nao o farao, e dirao— esperemos que Pacamao seja Caraiba, e depois n6s o se- remos, porque tem melhor espirito e e mais esperto do que n6s. «Deves saber que antes de terdes chegado, eu ja lavava os habitantes do meo paiz, como v6s padres fazeis com os vossos, porem em nome do meo espirito, e vos o praticaes em nome de Tupan.293 «Eu bafejava os infermos, e elles licavani bons: elles mo diziam o que flzeram, e eu embaracei Jeropary de fazer- lhes mal. «Fazia apparecer annos bons, e vingava-me dando doenpas aos que me despresavam. Dava-lhes agua que corria do pa- vimento de minha casa, o que agora nao fapo e nem quero mais fazer, porque era a subtilesa do meo espirito, que me suggeria tbdas estas coisas, zombando assim dos meos, que julgavam, por falta de espirito, ser isto maravilha. «Foi um francez que me ensinou a fazer brotar agoa do soalho de minha casa.» Respondi-lhe pelo meu interprete, que na sua replica des- cobria nao procurar elle a Deos como era conveniente, por que pretendia por meio do baptismo fazer-se maior e mais estimado entre os seos do que era antes por meio de seos grosseiros embustes, visto que Deos exigia de seos filhos, que fossem humildes, e que se arrependessem dos peccados passados: com quanto na verdade Deos nao deixe de exal- lar os seOs, mtiito mais do que os diabos fazem com os seos sectarios, em quanto elle tivesse esse espirito, nao esperas- se que os padres o baptisassem, e sira o fariam so quando elle nao fosse soberbo, e estivesse arrependido de suas fei- tiparias. Em quanto eu dizia estas palavras, chegou o interprete do Sr. de la Ravardiere por nome Mingan, a quem eu tinha mahdado chamar para conversar com Pacamao, porque 6 da iirdole d’esses selvagens dar mais credito aos interpretes mais velhos do que aos mopos. Gontei-lbe palavra por palavra toda a nossa conferencia at6 aquella hora, e Ihe pedi para fallar a elle de conformi- dade com os meos e seos pensamentos. Eis como elle fallou: «Tu bem sabes, que ha muito tempo eu converse comvos- co, e com vossos paes, quando estavamos em Potyiu. «Muitas vezes te chamei embusteiro por abusares de teos similhantes, muito credulos.294 «Tu Ihes fazia crer ludo quanto querias: teos paes e lodos os nao baptisados vao para Jeropary no inferno, e tu iras corn elles si nao fizeres o que dizem os padres. «Quando estavamos comtigo antes da vinda dos padres, sempre zombavamos do que faziam vos e os outros pagys: nao diziamos palavra por nao ser esse o nosso fim, e sim colher algodao. «Lanpavamos mao de vossas filhas, e d’ellas tinhamos fi- Ihos, o que e hoje prohibido pelos Padres, nao me atreven- do por isto nem eu e nem os outros, ir a Igreja, porque os Padres nos ensinam, que Deos prohibe a deshoneslidade. a, modesla, e trazia em seos olhos nao sei que pudor, nao se animando a olhar-me directamente: alem d’isto occullava corn o pe di- reilo de seo filho sua enfermidade, guardando o respeito na- tural de nao se apresentar de outra forma diante de mim, de que tirei boa conclusao agradando-me ainda mais de suas maneiras e procedimento: achei-a muito boa e caridosa para com os francezes, humilde e obediente a seo sogro e ma- rido, virtudes nao pequenas n’uma india. Antes de partir prometteo-me seo marido, que nao casaria com outra, e nern a abandonaria. Rerpondi-lhe, que se assim (izesse os padres o casariarn a face da igreja, depois de baptisado. n X 'DTrT,TT? pr Conferencia com Iacupen. 109 Era Iacupen um dos principaes da tribu dos canibaleiros, conduzidos para a ilha pelo Sr. de la Ravardiere, pae de um mancebo christao, de boa indole, chamado Joao, e antes Acaiuy-miry, «caju pequeno ou cajusinho.» Teve por va- rias vezes o trabalho de vir de Juniparan procurar-me e conversar commigo sobre as coisas divinas, e sobre a vai- dade d’este mundo. Um dia veio a minha casa com seo filho, e assim fal- lou-me: —Tenho muito desgosto de nao ser baptisado, porque sei que em quanto cstiver assim, o diabo pode perseguir me e perder-me.Ah! quem pode a$$egurar-me a vida ate a noile?x Agora volto para minha aldeia, posso enconlrar umaonpa furiosa, que me corte a garganta, e me mate sosinho no bosque. Para onde ira meo espirito ? Nao tenho pesar e nem inveja, que meo lilho, que aqui esta, se baptisasse primeiro do que eu. Mas dize-me: nao 6 coisa notavel, que elle seja Filho de Deos antes de mitn, seo pae, e que eu d’elle aprenda oque devia ensinar-lhe ? Penso n’isto, e torno a pensar muitas vezes, principalmente depoisda vossa vinda, e da de outros padres: lembro-me da crueldade de Jeropary para com a nossa napao, porque lem feito morrer a todos, e persuadio a nossos feiticeiros de con- duzir-nos ao centro de uma floresta desconhecida, onde dan- pariamos constantemente, alimentando-nos somente do ama- go das palmeiras e da eapa, succumbindo muitos por fraque- za e debiiidade. Sahindo nos de la. e vindo nos navios do Miwuuichaue la Ravardiere para a ilha do Maranhao, armou-nos Jeropary outra emboscada, instigando por meio de um francez aos Tupinambds para matarem e comerem muita gente nossa: si nao 6 a vossa chegada acabariam comnosco. Ja vedes, que somos muito infelizes n’esta vida. Perseguimos os veados e outros bixos para matal-os e co- mel-os, porem elles nao necessitam de ferramentas, de fogo e nem de canoas, pois acham a comida feita: quando perse- guidos n’um lugar, em poucas horas transportam-se para outro atravessando ate brapos de mar, sem canoa: nos ou- tros porem nao podemos fazer o mesmo: faltam-nos ferra- mentas, fogo e canoas, e o que e mais, vem ainda perse- guir-nos nossos inimigos, ora os Peros, ora os Tupinambds, e linalmente outras napoes adversarias: finalmente a nossa posipao e peior do que a dos anirnaes da terra.— Respondi-llie: «0 que disseste, e bem certo, porque o dia- bo o que deseja somente e matar o corpo e perder a alma,313 e assim procede sempre com aquelles, com quern lem pou- co a ganhar retendo-os em suas cadeias: e um monsenhor, e trata cruelmente seos servos. «Deos nao 6 recebedor dos velhos, e nem dos mopos. Os primeiros, que se apresentam, sao recebidos por elle, com- tudo os ultimos sao sempre os primeiros, porque recebem o christianismo com mais considerapao, e o conservam com mais fervor do que os que o abrapam ligeiramente. «Nosso Deos nos fez miseraveis n’este mundo afim denao olharmos so nas delicias da carne, e sim para preparar-nos com deslino a outra vida alem d’esta.» Antes de passar adiante convem explicar o que elle quiz dizer, quando fallou da desgrapa de sua napao, devida aos conselhos dos seos feiticeiros, e a carniflcina feita pelos Tu- pinambds. Havia entre elles um grande feiticeiro, que entretinha com o diabo visiveis relapoes, e gozava de tal poder entre elles que todos Ihe obedeciam. Aproveitou-se o diabo de tal ensejo para seduzir e en- ganar esta populapa, ensinando ao feiticeiro o que devia dizer-lhe para elle ir tomar posse d’uma terra, onde ludo, facil e sem trabalbo Ihe appareceria a medida de seos de- sejos. FiSta napao, tao cheia de prejuisos, seguio este desgrapa- do, nao intermediando muito tempo sem conhecer a zomba- ria do espirito do conductor, porque falleceram milhares, e acharam-se no meio de vasta floresta, danpando constante- mente, como elle Ihe ordenou, ate quo chegasse o Espirito para Ihe indicar o lugar procurado. Ahi achou-se o Sr. de la Ravardiere, demonstrou-lhe seo engano, o que reconhecido, seguiram-no e embarcaram-se em seos navios com destino a llha do Maranhao, onde al- gum tempo depois um miseravei francez tendo uma ques- lao com o Principal d’essa gente, para vingar-se, instigou os Tu'pinambds a rnatal-a, subindo esta carniflcina a cern ou a cento e vinte, entre mortos e prisioneiros. 46Tal barbaridade foi praticada cinco ou seis mezes antes da nossa chegada. Continuemos. Depois de ininha resposta, disse-me: —Tenho bem pesar de nao poder obsequiar-vos como mereceis, porque nao lenho meios de ter escravos; outr’ora fui rico, hoje sou pobre. Fiz o que pude ao padre, residents em Juniparan. Tenho bem pesar de nao traser-te ca$a sempre que venho ver-te.— Repliquei-lhe immediatamente: «Nao e isto que desejo de ti, e estou muito contente de conhecer tua devopao, e tua boa vontade, porem ambiciono que sempre progridas de dia a dia, e adquiras novos conhe- eimentos a respeito de Deos. «Tens um padre na tua aldeia, visita-o sempre, e d’elle aprende as maravilhas de Tupan. «Tens alem d’isto teo filho, que sabe a doutrina christan; die que a ensine a ti e a todos de tua casa, o que fara me- Ihor do que nos, visto pronunciar bem as palavras da tua )ingua.» —0 que acabas de dizer-me aiilige-me muito, respondeo- me elle, porque meo filho depois de christao, logo no prin- eipio, procedeo bem: ja sabia ler 11m pouco no seo Cotiare, e escrever, estava sempre com 0 padre, e 0 seguia por toda a parte. Deixou depois tudo isto, entregou-se a liberdade, esque- ceo 0 que havia aprendido, e foge para 0 matto quando 0 pa- dre 0 procura: isto me mata e como nada aproveito em fal- lar-lhe, eu te pepo que tu lhe mostres, e proves ser elle fi- lho de Deos, e que Jeropary 0 quer seduzir: eil-o aqui, fal- la-lhe.)) Satisfiz-lhe 0 desejo, recordando a seo filho 0 fervor, com que recebeo 0 baptismo, admirando-me de vel-o tao muda- do a ponto de fugir dos padres, pelo que eu acreditava an- dar 0 diabo no seo encal^o si nao regressasse aos seos de-315 veres, se uao frequentasse o padre de Junipamn, e nao abrapasse sua aritiga fe. Ouvio-rae pacienternenfe, e prometteo-me melhor procedi- mento. Considerae, eu vos pepo, o zelo de um verdadeiro pae para salvar seo filho, corno mostrou o grande feiticeiro de Tapuitapera: este pae e ainda pagao, e coratudo vos o ve- des solicito, e cuidadoso pela consciencia de seo fiiho. Quantos paes ha em Franpa, que so cuidam dos hens tem- poraes de seos filhos, e despresam os espirituaes ! Veio outra vez visilar-me em companhia de alguns selva- gens, seos visinhos: rolou nossa conversapao a respeito da creapao do Mundo, da providencia de Deos para com o pro- cedimento dos liomens, e da vocapao singular e parlicular de cada um. —E preciso, disse, que seja Deos um Espirito poderoso, incomprehensivel para nos, para crear com umaso palavra, como ouvimos muitas vezes de vos outros padres, ludo o que vemos e ouvimos. ' Imagino a immensidade do mar, que ha d’aqui ate a Frart- pa, tanlo assim, que os navios gastam doze luas no trajecto de ida e volta, e admiro que o sol, que temos, seja lambem vosso. Quantos passaros, peixes, e animaes existe no Mundo, to- dos foram feitos por fupan.— 0 segundo ponto de discussao toi este: «Vejo-me embarapado quando penso nas diversas napoes. que existem no Mundo. «Vejo os francezes ricos, valentes, inventando navios para passarem o mar, canoas, e polvora para matar os homeris insensivelmente, bem vestidos e nutridos, lemidos e respei- tados. «Ao conlrario nos vivemos errantes e vagabundos, sem roupas, machados, fouces, facas e outras ferramentas. «De que procede islo?316 «Nascem ao mesmo tempo dois meninos, um francez, e outro Tupinambd, ambos doentes e fracos, e nao obstante um nasce para gozar de todas as commodidades e o outro para viver pobremente. «Livres nascemos, um nao tem mais do que outro, e com- tudo uns sao escravos, e outros Muruuichdues. Eis o terceiro ponto de discussao: —Nao posso tranquilisar o meo espirito quando penso, que vos outros francezes tendes mais conhecimento de Deos do que nos. Porque temos vivido tanto tempo na ignorancia? Dizei-nos, que foi Deos quern vos enviou, e para que nao o fez antes? Nossos paes nao se teriam perdido, como suc- cedeo. Os padres sao homens como n6s, e porque elles fal- lam a Deos, e nos nao?— Respondi-lhe a tudo isto, dizendo «ser muito pequeno nosso espirito para conceber coisas tao altas, reservadas por Deos so para si. Basta saber que elle fez tudo, ama e da o necessario a todos.» Quando ve um individuo disposto a abrapar suas crenpas nao deixa de o mandar vesitar pelos seos Apostolos, que lhe proporcionam meios de salvar-se, sendo de crer nao achar- se seo corapao e espirito, antes da nossa vinda, disposto e aplo para receber tao grande luz, qual a do Evangelho. Estes e outros discursos similhantes, que adiante en- contrareis, vos habilitarao a julgar da capacidade de suas almas para receberem a fe de Jesus Christo, nosso Sal- vador.CAPITULD XX Conferencia com o Principal d’Orobutin. Era este Principal de alia estatura, muilo magro, modesto e affavel, e tinha estado doente desde a nossa chegada ate quando veio vesitar-nos. Entrou em nossa casa acompanhado por alguns dos seos, com muito respeito e quasi a tremer. Acolhendo-o muito bem, mandei sental-o em frente a mini n’uma rede de algodao, e logo conforme o costume, princi- piou assim a fallar-me: c(Vim hoje ter comtigo, 6 padre, para duas coisas: a pri- meira para desculpar-me e pedir-te que nao repares o nao me encontrares quando chegaste em Uraparis, como fize- ram Japy-acu; Pira-Juua, Ianuarauaetti, e outros Princi- paes da ilha, e nao poude tambem vir antes de Pacamdo, de Aua Thion, meo chefe, pois achava-me gravemente do- ente, porem no meio de minha molestia sempre tive o de- sejo de ver teo rosto, e ouvir de tua bocca o que meos companheiros de aldeia me contavam de vos outros pa- dres. «A segunda coisa que aqui me traz, e offerecer-te meos filhos, que t’os dou, quero que sejam teos, e que os fafas Caraibas. «Desejo igualmente e pepo-te, que venhas tu ou um dos padres a minha aldeia edificar uma casa para Deos instruir a mim e a meos similhantes, e declarar-nos o que Tupan deseja de nos para sermos lavados, como tern sido os ou- tros. «Asseguro-te que nao faltariam viveres, por ser minha terra boa e abundante de c.a£a.» Advirto ao leitor, que e facil traduzir as paJavras e pen- samentos d’este selvagem, porem nao os gestos e a vivaci- dade do seo espirito ao pronuncial-os: direi apenas que suas expressoes eram acompanhadas de lagrymas ecom voz cheia318 At tavlas Aos Y\e\As. VaAves l\VauA\o A'WAkxUU e Kvsmo, YvityvAove.?) l\a^\ic\uu\\o«s esa^las aos> YaAvfcs A a sua OvAm Ae, Wmi, e a (vulvas Ao smuVo, sewAo (\wa\vo Ao \U\aY. YaAvc. \v- seu\o, uma Ao YaAve, CAawAAo, c, uma \>ava Auas \u%s>ous. Moos Revcrendos e carissimos Padres.—A paz do Senhor seja comvosco. Nos vos dirigimos esta peqnena carta para dar-vos noticias acerca da nossa viagem, e como chegamos, merce de Deos, felizmente a esta terra do Brazil na llha do Maranhao, entre ns povos Tuphunahds. nao sern grande?Cinco mezr s estivemos no mar soffrendo encommodos, quo so podem avaliar os que por elles ja passaram, e como o Sr. de Rasilly, por estes dois ou tres mezes, regressa a Franca afim de trazer-nos novos auxilios, reservamos-nos para n’essa occasiao descrevermos mais amplumente o re- sultado da nossa viagem, tanto no mar como em terra, n’esle novo Mundo. Aproveitamos agora a occasiao para dizer-vos e muito as pressas, que para aqui chegarmos foi necessario parlir de Caucale, porto da Bretanha, e ja estando d’elle distante du- sentas legoas do mar levantou-se grande tempestade, que separou os nossos tres navios, uns dos outros, causando admiragao, ate mesino aos nossos melhores pilotos, o nao ter algum d’elles naufragado. Quiz Deos porem livrar-nos d’esta desgraga, e enconlra- mos dois de nossos navios, arribados em Inglaterra, d’onde vos eserevemos, e creio que ja estareis de posse das nossas cartas. Na s?gund'a-feira de Paschoa partimos de Plymouth,1,1 na Inglaterra, e navegamos sempre com bom tempo, monos alguns dias na costa de Guine, mui perigosa pelas molestias do paiz. Sahindo de Plymouth auxiliou-nos vento tao favoravel, que em pouco tempo passamos as Ilhas Canarias, por enlre as ilhas Boa Ventura e Canaria grande, vistas por nos per- feitamente. Das Canarias ganhamos a Costa d’Africa no Cabo do Ba- jador, sempre navegando pela Barbaria: de Bajador desvia' mos-nos da Costa d’Africa ate o rio chamado Lore pelos hes- panhoes,112 e perto d’elle fundeamos: sahindo d’ahi ainda nos desviamos da Costa d'Africa ate o Cabo branco, lugar bem debaixo do tropico de Cancer. D’este Cabo procuramos a Costa de Guine, passando entre as ilhas do Cabo verde, o proprio Cabo verde lugar perigo- sissimo pelas molestias contagiosas, ahi reinantes em certas eslacoes do anno: esta molestia ataca as genglvas de lalsorte, quo a carne cobre os dentes, e os faz cahir com grande perda de sangue a ponto de nao se poder estancar, sobre- vindo lambem os eocommodos de estomago e inchapao, e d’isto tudo resulta a morte escapando poucos: merce de Deos ninguem morreo durante a nossa viagem, porem ape- nas entramos na terra, falleceram tres, e ahi ficaram sepul- tados. De Guine viemos-nos aproximando da linha equinoccial, que passamos bem difficilmente, coisa ja por nos esperada a vista da estapao em que estavamos. Soprou vento contrario por quinze dias causando-nos grandes sustos, e receios de que nao apparecessem calmarias antes de passarmos a linha: grapas a Deos, pouco a pouco, embora o vento contrario, tanto bordo demos, que quando mal pensamos, estavamos no hemispherio do meio dia. Passando a linha, avistamos e afmal chegamos a uma pe- quena ilha chamada Fernando de la Roque, 113 situada a qua- lro graus de allura para o meio dia, e a cinco para seis le- goas de circumferencia, ilha bella fc agradavel, cujas pro- priedades, querendo Deos, havemos de descrever na pri- meira opportunidade: e na verdade urn verdadeiro paraiso- sinho terreste. Saltamos n’esta ilha, onde aperias achamos 17 ou 18 in- dios selvagens, em companhia de urn portuguez, todos es- c.ravos e ahi postos por determinapao da gente de Pernam- buco: d’estes indios baptisamos cinco. Depois de havermos plantado a Cruz n’esta ilha, no cen- Iro de uma capella, feita por nos para ceiebrapao da santa missa, e de abenpoado o logar onde residimos por 15 dias, casamos dois destes selvagens, urn indio com uma india, de- pois de baptisados. Nao quizemos baptisar o resto aqui, porem achamos bom addiar o baptismo ate chegarmos ao lugar do nosso destino, si bem que libertassemos todos esses selvagens tirando-os do capliveiro, e fazendo-os livres com muila satisfapao d’el-337 les, depois do que manifestaram anlenlo desojo do nos acompanharem ate Maranhao, eomo de facto acontocoo. Vieram comnosco trazendo muito algodao, o outros gene- ros, que possuiara. De Fernando de la Roque ganhamos a Costa do Brasil, ca- minhando ate o cabo da tartarugo, terra firme no paiz dos canibaes, onde, diz Euzebio, na sua Historia, passara o Apos- lolo Sam Matheus a vista d’esta Costa do Brasil: imaginae a nossa alegria vendo terras tao desejadas apos cinco mozes de navega^ao. Depois de 15 dias de demora no cabo das tartarugas, continuamos a navegar, e cbegamos a ilha do Maranhao, onde fundeamos no dia da gloriosa Santa Anna, Mae. da Sa- grada Virgem Maria, com que muito me alegrei, (disso o padre Claudio) por termos tide n'esse dia, que eu tanto amo, a felicidade de chegarmos ao lugar tao desejado. No domingo seguinte saltamos todos em terra, levando agoa benta, cantando o Te-Deum laudamus, o Veni Crea- tor, a ladainha de Nossa Senhora, e depois eaminhamos cm procissao desde o porto ate ao lugar escolhido para ievan- tar se uma Cruz, a qual foi carregada pelo Sr. de Rasilly e todos os Principaes da nossa Companhia. Depois de benzida esta ilha, ate entao Ilhasinha, foi polos Srs. de Rasilly e la Ravardiere chamada Ilha de Santa An- na, nao so por termos ahi chegado n’esse dia, como tam- bem porque chamava-se Anna a Condessa de Soissons, pa- renta do Sr. de Rasilly. 114 Depois plantamos a Cruz: ao pe d’ella, estando todo o largo abencoado, enterramos urn pobre homern, tanoeiro, que vinha comnosco. Fez-se tudo isto com geral contentamento e demoramo- nos ahi oito dias. Deixamos esta pequena ilha e fomos procurar a ilha grande do Maranhao, habitada por selvagens (que sao as pedras pre- ciosas que cobifamos e gramas a Decs chegamos Rons e hem dispostos. 4 *j338 Vestidos com os nossos habitos de sarja fina por causa do calor da zona torrida e revestidos cle urn a bonita sobrepelliz branca, empunhando nossos bastoes, e em citna de tudo a Cruz corn o Crucificado, descemos do navio para uma canoa, especie de batel construido pelos indios de urn sotronco de pau, onde estavam tod os-os selvagens, que ja tinham estado na praia com o Sr. de Rasilly, e muitos francezes ja dos que vieram comnosco e ja dos pertencentes a equipagem do Sr. de Manoir, e do Capitao Geraldo, todos francezes, que aqui achamos: muitos d'estes selvagens atiraram-se ao mar e na- il aram afim de chegarem prirneiro do que nos. Assim conduzidos saltamos em terra, onde se ajoelhou o Sr. de Rasilly e todos os francezes para nos receberem (hon- ra nao commum) e como nos achassemos embarapados com (a! sorpresa, eu live (disse o padre Claudio) a feliz lem- branpa de enloar o Te-Deum iaudamus conforme o cantico da igreja, e assim caminhamos em procissao entre lagrymas de alegria de muitos francezes, e seguidos pelos indios. Assim tomamos posse d’esta terra e novo mundo para Jesus Christo, e em seo nome, esperando abenpoar o lugar, e n’elle plantar a Cruz em qualquer dia para isso desi- gnado. Deixo as outras particularidades para contar-vos quando escrever mais de espapo sobre esta nossa viagem. Somente vos digo que no domingo 12 de agosto, dia de Santa Clara, celebramos todos quatro as primeiras missas, que aqui se disseram. Com bem razao ordenou Deos que o dia de uma Santa Yirgem da nossa Ordem, que deo nova luz ao mundo, fosse escolhido para fazer brilhar a nova luz do seo Evangclho rCeste novo mundo. Nao e possivel descrever-vos o grande contentamento, que mostraram estes pobres selvagens com a nossa vinda. C um povo conquistado e ganhado, povo grande, que na verdade nos ama, e nos dedica affeicao. c chama-nos gran-339 des prophetas do Decs ode Tupan, o cm sua linguagem pa- dres Carribain, Matarata. 115 Depois quo aqui c.hegamos temos lido muito boas noli- cias. Os indios do Para, outro povo, de um lado visinbo do Amazonas, e do outro d’este povo, onde existem somenle com mil homens, desejam muito que la vamos instruil-os. Embora messis multa, operarii autem paiici «seja gran- de a colbeita, sao poueos os operarios.» Si quizessemos desde ja se baptisaria grande parley E certo que arcgiones albescunt ad messem,» eslas re- gioes aqui enbranquecem mostrando a necessidade do ceifa. felizmente chegou o tempo de ser Deos aqui adorado e re- conhecido. Agora estamos procurando Jugar para nos acommodar e fazer uma Capella, ate que cheguem de Franga pedreiros para cdificarem uma Igreja. Existem muitas matlas virgens, que convem arrotear antes. • Nao posso descrever-vos agora o grande contentamento dos selvagens pela nossa chegada. Dao-nosboa esperanga de se converterem. Todo este povo ainda que bruto e selvagem mostrou-se contente com a nossa chegada, tern vindo ver-nos com muita alegria, manifestan - do grande desejo de instruir-se no christianismo. Creio que quando soubermos a lingua d'elies havera muito que collier, com grande satisfagao para os que lem zelo pelas coisas de Deos e pela salvagao das almas. Preparam todos os seos filhos para nos trazcrem afim de serem por nos instruidos, e ja nos prometleram nao mais comer came humana. Sao muito bonachaos, e nao malicio- sos. Por unica religiao apenas creem em Deos, que cbamam Tupany e na immortaiidade da alma. Quanto ao paiz e terra ferlil e muito boa, onde nao ha frio, e sim eslio eonstante; ninguem conheee o que e frio, e as arvores eslao sempre verdes.340 Os (lias e as noites sao sempre do mesmo tamanho: oasce o sol as 6 horas da manba e encerra-se as 6 da larde. Estamos apenas a dois graos e meio da linha equinoctial on do Equador. E voz geral haver n’este paiz muitas riquezas, como sejam minas de oiro, de pedras preciosas, de perolas, de ambar- gris, alem de muitas pimenteiras, muito algodao, rnuita herva da rainha, ou petum, e muito assucar. Brevemente, quando nos estabelecermos bem, nos vos as- seguramos ser isto aqui um pequeno paraiso terreste, com todas as commodidades e alegrias. Nao posso ir mais longe: fica o resto para quando for o Sr. de Basilly, e entao hei-de dizer-vos outras coisas em par- ticular. Quanto a minha saude nunca passei tao bem como agora, grapas a Deos e so bebendo agoa, (palavras do pradre Clau- dio.) Si na Franpa me fosse preciso fazer a millesima parte do- que aqui fapo, mil vezes teria morrido, e n’isto reconhepo, que non in solo pane vivit homo, «o homem nao vive so de pao.» Convem que para ca venham os delicados de Franpa. Louvo a Deos por nunca ter enjoado, com grande admira- pao de todos. Quando chegamos no paiz dos calores, justamente quando estavamos sob o tropico de Cancer, quando o sol estava su- bindo, live apenas dois ou tres pequenos accessos de febre passageira, grapas a Deos. Deixo o mais para outra occasiao, pois agora falta-nos tem- po, e sobram-nos trabalhos. Kogae a Deos por nos, e pelos nossos companheiros, o mais que poderdes, pois agora, mais do que nunca necessi- lamos da grapa de Deos, sem as quaes nada se consegue. 0 que n’este sen Lido fizerdes, Deos vos compensara.Summano iz oA$u\\\a% eo'ms ma:\% \>avlu-uY(m*, ve\mdav& xocalmuU aos Vatos Cayvic\\\u\vos> \z Vcvvu \»e\o SY.&e^laUOVC. 0 Sr. de Manoir, 116 (um dos capitaes, de que se faiJou na carta precedente, que fora encoutrado n’aquelle paiz com o capitao Geraldo) chegando uUimamente a Franpa, e sendo portador da, carta, ja transcripta e de muitas outras (algu- mas das quaes bem desejariamos aqui publicar para que nao ficassem sepuitadas no esquecimento as maravilhosas obras de Deos, de que elias fallam, como que para despertarem os homens afim de louvarem a sabedoria, providencia, o bondade do Creaaor) contou muitas particularidades dos pa- dres, nao referidas em suas cartas. Disse, que os padres chegando a hi cometaram a editicar sua morada, construindo uma Gapella para celebrapao da missa, e algumas cellas pequenas para residencia, sendo co- adjuvados por alguns selvagens com alguns pannos e ramos de arvores. N’um certo dia, quando um padre ceiebrava missa, die- gou um selvagem dos mais velhos, (que elles considcram seos governadores, honrando os e respeitando-os por causa da sua idade avanpada) em companhia de trinta selvagens para ouvirem missa, o que fizeram, admirando com grande surpresa lao bellas cereraonias, e tao lindos ornatos, por el- les nunca visto (pois que homens e mulheres andam todos nus.) Quando o sacerdote chegou a consagrapao e ao otfertorio, desceo um veo entre elle e o povo, de forma que este nao poude ver aquelle, e nem o que se fazia por detraz d esse veo. Julgaram isto uma affronta e mostraram-se olfendidos, c por isso, finda a missa, foram perguntar a causa de tal of- fensa. Responderam os padres tjuc nisto nao havia ollensa, e que assim se fez por serem elles ainda pagans, nao podendo•y-i'4. ser a Missa celebrada em su'as presents cm bora eslandu na Igrcja. l)eram-so por satisfeitos c mostraram-se Iranquillos, e fo~ ram cunlar o occorrido as suas mulliercs, quo sc mostrararn ilcscjosas de ver os grandes Prophetas de Decs e do Tupan, c se reuniram em grande numero para tal lim. Nao quizeram porem os padres abrir-lhes a porta de sua pequena ehoupana porque eslavam rmas, mas ellas nao es- peraram por segunda reeusa e metteram a porta dentro, o que nao Ihes foi difficil praliear, enlraram e nao se can^a- ram de olhar e con templar os Padres, embora se demoras sem pouco tempo, por Ihes pedirem os Padres que se retiras- sem, o que cumpriram. Depois desla visita, reuniram-se os velhos em grande nu- mero e combinaram entre si qual devia ser o presente que offerecessem a esses Prophetas, como demonstrapao de sua benevolencia e regosijo pela sua chegada. Finalmente concordaram, visto dormirem os Padres no' chao duro, quo se desse a cada am o seo coiehao de algo- dao, que ahi tloresce, e uma das mais hellas raparigas, n maior presente que costumam fazer. Trouxeram quatro colchoes e quatro raparigas, e olTere- ceram aos Padres, que rindo-se aceitaram aquelles e recu- saram estas com palavras de agradecimento. \ imirados com tal procedimento, diziam uris aos cu- lms. 0 que e ist-o? Estes Prophetas nao sac homens como nos? Porque nao acceitam estas raparigas, sendo impos- sivel o passar urn homem sem eilas? Porque nos fazem lal ollensa? ftosponderain os Padres, que assim procediam, nao por quo reprovassem o casamento, quando conforme as leis de Decs, visto que ate elles o louvavam, mas como Decs ha- via outhorgado graoas mui particulars a elles, e nao aos ou- tros homens, ponpie o serviatn com mais perldicao, podiam passar stun mulheres nor moio dessas graoas.Ouvimlo esla pobre genie lacs palavras fiearam admira- dos e como quo fora cle si, eonlemplando a sautidade des- les Prophelas, e d’ahi em diante os veneraram mais, julgan do-sc felizes quando Ibes enlregavam seos lilbus para serem educados em nossa sanla fe, e afinal baptisados. Tudo isto se podera ver na seguinte carla, eseripla pm esses Padres a um honrado mercador de Ruao cliamado Fer- manet, um dos seos maiores bemfeitores, para quo se veja quo nada acrescentamos, e que apenas narramos os faclos pura e simplesmenle colbidos iressas cartas e em inlbrma- poes de pessoas fidedignas, testemunhas occulares, e por que n’ella se encontram particularidades nao meucionados nos outros. Eil-a: A paz do Senhor Deos esteja comvosco. Depois de tantas recommendapoes, que nos tizest.es quando partimos para vos escrever, seriamos culpados si nao vos dessemos noticias de paiz tao bom, gramas a Deos. Depois de 4 a 5 mezes de viagem ahi chegamos ieliz- mente, sendo bem recebidos pelos Indios, eonforme sua rus- ticidade, nao nos imporlando o modo e sim a demonstrate do seo contentamento entao e ainda agora diariamenle, Ira* zendo-nos seos filhos para inst.ruil-os o que faremos medi- ante a grapa de Deos. Quando voltar o Sr. de Rasilly, por estes 2 ou 3 mezes. nos vos mandaremos o numero dos convertidos e dos ba- ptisados. 0 paiz e muito bom, e ha esperanca de produzir muito iabaco Petum, e Urucu, havendo ja muito assucar, bellas pedras, ambar-gris, e dizem-nos, que distante d’aqui 20 le- goas ha uma mina de oiro. Si nao fosse grande a nossa pressa, nos vos dariamo mais algumas noticias. porem nao podemos alongarn»s.IU ijarniu humildemcntc vossas maos, e recommendando- nos a senhoia vossa mulher, somos do vos o d ella Vossos Immillissirnos servos em Nosso Senlior. Frei Claudio d" Abbeville. Frei Arsenio do Pariz. NaxvacCvo vvwv mv\W\\\n\*o, x:v\u\v> wumo \e\Uv uv> We\A. \HuVre VWumVmo <\o Wo.we cVa VWo.ce, e \>ov esle eo\\\- wvuu’uacVa o.oV\e\^. \KuVve V\owm\ssoY\o. Ilevd. Padre, eu vos saudo humildernente em Nosso Se- rdior. 0 fim d'esta e eommuniear-vos, quo vein hqjc procurar- me um marinheiro, quo vio e fallen com os nossos lrrnaos, quo eslao om Maranhao com os Tupinambas, onde felizmenlo chegaram no dia 8 do Julbo. Fste marinheiro ahi ouvio luissa, e a olla assistio com muito rcspeito urn vellio selvagem do paiz, acompauhado por 25 ou 30 indios. Quando chegou o tempo de consagrar-se e clevar-se a santa hostia, deseeo um veo, causando-llies isto admirapao. Rccebida a explicaeao moslraram-se satisfeitos, e logo co- meearam a eontar nor toda a parte o quo virarn, e por isso vieram muitos ajudal-os a edilicar sua habitafao e Forte, ja em m-incipio. Veio o marinhoiro cm 22 de Agosto no navio de Moisset, reeommendado ao Sr. de Manoir, a quern, segurido pensa, torao nossos lrrnaos entregado suas cartas, ou a algum ou- iro official de navio, o quo me dispensa de eontar-vos ou- tras parlicularidades. Nao mudaram, e nem mudarao a edr dos seos habitos, usaudo apenas de um tecido rnais leve do quo o nosso, por eausa do calor.Deus seja louvado por tudo, e Ihes ronceda a gra^a de alii appareccrcm rnuilos fruclos para a gloria do seo Santis simo Nome, e exalta^ao da Santa Fe da sua lgreja. Sou de vossa Rcvcrendissima o menor servo cm Jesus Christo Havre, 12 de Novembro de 1612. Frei Theopldlo, indigno Capuchmho. N OT A. S GRITICAS E HISTORIGAS SOBRE A VIAGEM DO PADRE IVO DE EVREUX POR MR. FERDINAND DINIZ.ISTOT-A-S. 1 (frontespicio;. Esta vasta provincia, uma das mais florescentes do Brazil, antes da chegada dos missionarios francezes nao teve esta- belecimento algum importante. Eram arbitrarios os seos li- mites, convindo nao esquecer que a immensa capitania do Piauhy fez parte d’ella ate 1811. Presentemente tern 186 legoas, de 20 ao grao, de comprimento, 140 de largura, e nunca menos de 20,000 legoas quadradas de superficie. Fica entre 1° 16’ e 7° 35’ de lat. raerid. Gonfina ao N O com o Para, servindo de linha divisoria o Gurupy, a N E e banhada pelo Oeceano Atlantico, a S E com o Piauhy, sepa- rando-a d’elle o rio Parnahyba, e finalmente a S com a pro- vincia de Goyaz pelo rio Tocantins. * Ainda que seja quente e humido o clima do Maranhao e sadio. As chuvas que fertilisam este rico territorio princi- piam regularmente em outubro. O aspecto geral do paiz offerece por toda a parte ondu- lapoes do terreno, mas em nenhuma offerece elevagoes con- sideraveis, exceptuando-se d’estas asserpoes geraes e por forpa mui summarias a comarca de Pastos-bons, onde se en- contram montanhas como sejam Alpercatas, Valentim, Ne- gro etc. E regada por 14 correntes d’agoa. * Consulte-se a respeito de todos estes assumptos o meo Dtc- cionario historico e geographico do Maranhao. Iria longe se eu quizesse acompanhar pari passu esta publicacao, onde nao poucas vezes foi illudida a boa fe de Mr. Ferdinand Diniz. Do Iraduclor.350 Do tod os estes rios 6 o Parnahyba o mais consideravol: infelizmente suas margens nao sao tolalmente sadias, pois oin varies pontos, como em quasi tod a a provincia, reinam as' febres intcrmitentes. Avalia-so seo curso em 240 legoas. 0 Uapecuru, seo immediato, e de que falla constantemente o Padre Ivo d’Evreux, banha apenas 150 legoas de terreno, o Mearim 78 legoas, sendo ainda menos consideraveis o Pindar e, o Tury-assu, o Gurupy, e o Manoel Alves Grande. Julga-se que e de 462,000 pessoas a populate de toda a provincia, embora diga o relaiorio official da pre- sidencia, com data de 3 de julho de 1862, que esta cifra e apenas de 312,628 almas, sendo 227,873 livres e 84,755 escravos. Gonvem observar, que o recenseamento geral da populapao do Imperio, feito em 1825, dava apenas 165,020 almas, sendo esta cifra muito inferior a realidade, porque recusaram muitos Srs. dizer com certesa o numero dos seos (‘scravos. Nada se sabe, e nem sera possivel saber-se exactamente, a respeito da povoa^ao nomade dos indios, isto 6, d’aquella cujo conhecimento seria muito curioso afim de apreciar-se as mudanpas. que houveram nas aldeias depois do que es- creveo o Padre Ivo, podendo apenas dizer-se que 6 maior no Maranhao, no Para, e na nova provincia do Rio Negro, do que n’outra qualquer parte. Em summa o governo so tem dados mui imperfeitos e raros sobre estas infelizes hordas, das quaes se occupa actual- men le. Os cuidados tardios, embora caridosos, da administrapao provincial, tern que acabar muitos males afim de que seja completa a reparapao. Tudo ainda esta por fazer relativamente aos Indios. Nao souberam estas tribus conservar nem a dignidade que da completa liberdade aos habitantes das florestas, e nem os principles de civilisapao, que seintentou incutir-lhes no seeulo XVII.Reconcenlradas no interior por Mathias de Albuquerque, dizimadas pela variola, hoje sao apenas a sombra do que foram sob o dominio dos seos chefes independentes. Esta popular,ao indigeua e comtudo maior nos deserlos do Maranhao, e embora d’ella nao tratem certas estatisticas, e avaliada em 5,000 o numero dos indigenas reunidos em aldeias. Si dermos credito a urn intelligente militar, que viveo em const-antes relapoes com elles por espapo de 20 annos, a sua decadencia physica e menor que a moral, pois perderam ate a reminiscencia de suas tradicpoes th^ogonicas, ainda mat, visto ser muito curioso o comparal-as com a narrapao dos antigos viajantes francezes. Sob este ponto sao elles menos favorecidos que os Gua- rayos, visitados por Orbigny, os quaes ainda hoje repe- tem em seos canticos as legendas cosmogonicas do seculo XVI. Os indios do Maranhao, entre os quaes se contain os Tim- byras, os Ges, os Krans, e os Cherentes nao podem fornecer ao historiador senao informapoes mui incompletas, pois que ha perto de 40 annos ja o major Francisco de Paula Ribeiro se queixava do immenso esquecimento d’elles, (vide Revista Trimensal, tomo 3.°, pag. 311) esquecimento fatal de gran- des tradicpoes, pelo que se tornam hoje preciosos certos li- vros, como sejam os dos nossos velhos missionaries, onde pelo menos se encontram os mythos antigos, ahi escriptos para serem combatidos. De vez em quando entre estes indios degenerados apre- sentam-se alguns homens energicos, que comprehendem o abatimento de sua rapa, e que desejariam vel-a progredir, porem sao mui raros, pouco comprehendidos, e demais so olham para o futuro, e nao experimentam amor algum por sua antiga nacionalidade. Seos compatriotas longe de ajudal-os nos trabalhos em- prehendidos para melhorar seo futuro, ainda os amesquinham com o seo odio tao irreflectido quam brutal.Foi o que aconteceo a Tempo e a A’ocn7, chefes conheci- dos pelo major llibeiro. Trabalharatn inutilmente para cha- mar ao caminho da civilisapao as l,ribas, cujo governo Iho foi eonfiado, e a final foram viclimas do seo zelo. Vide (tMemoria sobre as nacbes gentias, que presente- mente habitam o continents do Maranhdo escripta no anno do 1819 pelo major graduado Francisco de Paula Ribciro, Revista‘Trimensal, T. 3° pag. 184.» De passagem disemos, que nao deixaram descendentes, pelo menos conhecidos, os Tupinambas calhequisados pelos missionaries francezes, suppondo-se apenas, que urn ramo d’esla grande napao ainda hoje povoa Vinhaes e Villa do Paco do Lumiar, achando-se no mesmo caso S. Miguel e Tresidella, a margem do rio Itapecuru, e Vicinna, no Pin- dare. Com mais probabilidade ainda confundiram-se os Tupinam- bas com as tribus do inferior, tomando os noines de Timby- ras e Gamellas. Sao tambern subdivisoes dos Timbyras os Sakamecrans, os Kapiekrans ou Cancllas-finas, e os Ges, que vagam peJasgrandesflorestas a Oeste do Itapecuru. Nega o major Ribeiro, que ainda sejam antropophagos estas di- versas tribus. N’este escriptor imparcial, e que reconhece a ferocidade dos Timbyras, e qye se deve estudar as horriveis represalias, de que tem sido dies os indios, sendo a es- cravidao a menos sanguinolenta. Elle avaliou em 80:000 o numero d’indios selvagens, embrenhados nos maltos em 1810, hoje sem duvida consideravelmente diminuido. ^ (pag. 1). Francisco Huby era tambern livreiro e tinha sua loja n’uma prapa entre os mais afreguezados armazens na galeria dos prisioneiros em Palacio, e soffrera-a como os outros no gran- de incendio de 1618. Qualm annos antes d’elle encarregar-so da publicapao do livro de Claudio d’Abbeville, de que este e continuapao.morava na rna de Sam Thiago no Folic de oiro, e nao na Biblia de oiro, que depois tomou por divisa. Si foi ferido na prosperidade, foi justamenle por haver permittido, que mao impia privasse a Franpa por mais de dois seculos do livro precioso, de que tinha side edictor, e que lioje entregamos a publicidade, gracas a uma (Tessas em- presas lilterarias tao raras era nossos dias, onde a honra das letras e o pensamento dominante e superior a todas as con- siderapoes. 0 volume, que servio para a nossa reimpressao e enca- dernado em marroquim encarnado, semeiado de (lores de lys de oiro, e com as armas de Luiz XIII. Faz parte da re- serva sob n.° 01766 da Bibliotheca Imperial de Pariz. 3 (pag. 9). A capital do Maranhao occupa ainda hoje o raesmo lugar escolhido por seos antigos fundadores. Esta situada a 2° 30* e 44” lat. austral e 1° 6’ e 24” de long, oriental do meri- diano do Forte de Villegagnon, na bahia do Rio de Janeiro. La Ravardiere e Rasiily escolheram para edificaki a ponta de terra 0 d’uma pequena peninsula, ligada a ilha do Mara- nhao pela calpada do Caminho grande. As rios Anil e Bacanga, vindos de diversos pontos da ilha confundem suas agoas na mesma embocadura e formam vasta bahia. A elevapao, que se apresenta ao S do Anil, a E e ao N. do Bacanga (lugar onde se confundem as agoas d'estes dois pequenos rios) e o lugar primitivo onde se levantou a cidade nascente collocada sob o patrocinio de Sam Luiz. A cidade de Sam Luiz, elevada em 1676 a dignidade epis- copal por uma Bulla de Innocencio XI, conta nunca menos de 30 mil habitantes, e esta situada em terreno docemente ondulado, sempre, em todas as estapoes, carregado de rica vegetapao, e assim offerecendo aos viajantes panorama en- cantador. (Vide Corographia Brasilica, Will. Hadfield., Mil- lief de St. Adolphe, e principal men te os AporUam entos esta-354 lislicos da provincia do Maranhao, annexos ao Almanack de i860 publicado por B. de Mattos. Esta Jinda cidade e naturalmente dividida pela espinha dorsal da peninsula, que separa as duas bacias dos rios na direcpao de E. 0. Seo ponto mais elevado e o Campo d' Ourique, onde apre- senta 32m 692e de elevapao aciroa do nivel medio do mar. E dividida em tres parochias: N. S. da Victoria, S. Jodo, e N. S. da Conceicdo, tem 72 ruas, 19 becos, 10 prapas, 55 edificios publicos, e 2,764 casas, das quaes 450 tem urn so pavimento. Para utilidade dos habitantes podem ser maiores e mais regulares as prapas, e embora sejam as ruas cortadas em an- gulo recto, podiam ser mais largas e melhor dispostas sendo observadas as regras da hygiene. Nao sao mas suas calpadas, e tem declive bastante em re- lapao aos dois rios que banham a cidade. Em resumo 6 a Capital do Maranhao saudavel e limpa. «0 navio que demandar o porto, toma por marca o Pala- cio do governo, assentado n’uma eminencia que domina o porto. Este edificio tem a seos pes o Forte de Sam Luiz, e de suas janellas percorrendo-se com os olhos uma extensa ba- hia avista-se ao longe as costas e a cidade de Alcantara: mais perto da barra esta o pequeno Forte da Ponta d’areia, o, dentro do porto na margem opposta do Bacanga a peque- na ermida do Bomfim, muito arruinada, e na frente do Anil a Ponta de Sam Francisco, onde segundo a noticia que nos dirige, entregou la Ravardiere ao commandante portuguez a cidade nascente e a fortalesa de Sam Luiz, nunca se poden- do assas louvar n’essa occasiao o procedimento inteiramente nobre do commandante francez e de Alexandre de Moura por parte da Hespanha. 0 joven cirurgiao de Pariz que foi com tanto zelo pensar os feridos dos dois partidos, e que recebeo lao penhorador acolhimento no campo inimigo poude d'elle dar somente umaideia, por sua narrapao sincera e franca, da cordialidade, que appareceu entre os francezes e os portuguezes depois do com bate. (Vide Archivos das viagens publimdas por M. Ter- rain Compans.) Em dislancia de alguns metros pelo Anil acima esta o convento e Igreja de Santo Antonio, construidos no proprio lugar onde em 1612 Ivo d’Evreux, ajudado pelos padres Arsenio e Claudio d’Abbeville, ediflcou seo conventosinho sob a invocapao de Sam Francisco. Soffreo depois d’isto va- rios concertos e augmentos este mosteiro dos Capuchinhos francezes, achando-se hoje uma parte do edificio moderno occupado pelo Seminario Episcopal, e a Igreja, hoje em construcpao, levanta-se com architectura gothica simples.» Pelo que nos dizem sera a igreja mais bonita do Mara- nhao. Nao e esta a unica construcpao digna de mencionar-se na cidade, porem e a unica que nos interessa directamente. Mencionamos apenas o Caes da Sagracdo, assim chamado em memoria da coroapao e sagrapao do Sr. D. Pedro 2.°, e .da vasta bahia, onde agora se escava para poder n’ella fun- dear uma fragata a vapor da primeira ordem, e apenas cita- mos a doca que se projecta fazer nas enseiadas das Pedras * Contam-se muitas construc^oes monumentaes, como sejam a igreja do Carmo, a Cathedral, o quartel do Campo de Ou- rique, o Theatro, e mais outras que forpa e omittir, pois apenas n’uma ligeira nota desejamos mostrar englobada- mente o que em 250 annos se tornou isto fundapao fran- cesa. William Hadfield, um dos mais modernos viajantes, que tratou d’este paiz, observou que 6 na cidade de Sam Luiz, onde no Brasil se falla o portuguez com mais pureza. E a patria de dois escriptores mui estimados no Imperio, Odorico Mendes e Joao Francisco Lisboa, fallecido ha pouco. * Outro engano. Aqui nao se conhece esta doca. Do Iraductcr.356 Depois de haver traduzido.com superioridade de estylo, que causaria inveja aos conlemporaneos de Camoes, occu- pa-se aclualmenle Odorico Mendes na traducpao em verso das obras de Homero, onde a seiencia do rythmo disputa com a inspirapao. Quanto ao poeta das legendas nacionaes, cujos cantos sao geralmente repetidos no Brasil (queremos fallar de Gonpal- ves Dias) pertence tambem a provincia do Maranhao, por elle explorada como sabio e como viajante intrepido, porem nasceu em Gaxias. As obras d’esses tres escriptores honram ao paiz, sao tam- bem a honra da bibliotheca publica; porem este estabeleci- mento, creado n’uma cidade eminentemente litteraria, nao esta em relapao com as necessidades crescentes de outras instituipoes suas, relativas a instrucpao publica. Ha tres an- nos contava apenas 1031 volumes. Prasa aos Geos, que o livro, que agora reproduzimos, o primeiro que, com o de Claudio d’Abbeville, foi escripto na Cidade nascente, marque o principio de uma era nova para eslabeleeimento tao mdispensavel n’uma Capital, ja flores- cente. Muitas outras instituipoes supprem esta deficiencia, publica-se na Capital diversos jornaes, taes como o Publi- oador Maranhense, a hnprensa, o Jornal do Commercio etc. etc., e tambem ha uma Associacdo typographica, um Gabinete de leitura, e a sociedade litteraria Atheneo Mara- nhense. Tudo isto na verdade e mui differente do tempo, em que o Padre Arsenio de Pariz com muita difficuldade achava ape- nas uma folha de papel para escrever a seos Superiores. 4 (pag. 11). A Cathedral de Sao Luiz ou do Maranhao, (assim com estes dois nomes se designa a Cidade) deixou a invocapao de Sao Luiz de Franpa. E a antiga Igreja do Convento dos Jesuilas a actual cathedral sob a invocapao de N. S. daVictoria. (Vide Ayres do Cazal—Corographia Bmzilica. Rio de Janeiro 1817. T. l.° pag. 166). Parece-nos, que nas grandes constructs, que actual- mente so estao trabalhando para o augmento do Convento de S. Antonio, respeitou-se a pequena Capella feita pelos francezes. Sao tres os frades d’esta Ordem, Frei Vicenle de Jesus, guardiao; Frei Ricardo do Sepulehro e Frei Joaquim de S. Francisco, todos sacerdotes. 5 (pag. 12). Ao norte do Brazil e no interior da Goyanna havia enlao prodigiosa abundancia d’esta especie de foca, cuja carne era muito saborosa: chamam-na os portuguezes peixe-boie os indios manati. Ainda hoje os habitantes ribeirinhos do Amazonas e do Tocantins nutrem-se com a excellente carne d’este peixe. (Vide Osculati, America equatoriale). Claudio d’Abbeville Ihe deo o nome de Uraraura. 6 (pag. 14). Esta localidade, .ja citada, ainda o sera muitas vezes. 0 vaslo territorio, ainda hoje conhecido em Maranhao pelo nome de Tapuitapera, esta hoje dividido pelas cornarcas de Alcantara e de Guimaraes. Antigamente foi occupado por onze aldeias de indios, das quaes a maior era Cuma. Ta- puitapera dista 40 legoas de Maranhao. * Pensz Martins que esta palavra quer dizer—habitapao de indios inimigos. Vide Glossaria linguarum brasilensium. Erianguem. 1863, em 8.° N’esta obra acham-se tambem os nomes dos lugares, dos vegetaes e dos animaes. * 40 leguas ? Nao, e sim 4 leguas. Vide art. Alcantara no meo Diccionano. Do tiinluctor.0 Aparatimer, que doo tao felizes cotnpara^dcs an padre ivo, e simplesmente o mangue (Rhyzophora. Lin.) Esta ar- vore das praias americanas tao util a industria, forma vas- tas florestas maritimas, e era roda da costa do Brasil e de Venezuela. Com muita frequencia se tern destruido estas ar- vores, em varios lugares, e temos ouvido ate attribuir-se a invasao recente da febre amarella a destrui^ao systematica d'este bonito vegetal, que aformosea com sua verdura todas as praias brasileiras. Cahindo sob o ferro do cultivador dei- xa a descoberto praias cheias de lodo, habitadas por myria- des de carangueijos, formando assim pautanos d’onde sc desprendem miasmas de especie muito perigosa. No Brasil conhece-se duas qualidades de mangue, o branco e o vermelho, e para a descrippao scientifica d’elles envia- mos nossos leitores para Aug. de St. Hilaire. Julgamos que a palavra antiga, ahi empregada pelo padre lvo, vem do verbo parere, parir, porque esta arvore se reproduz pelas raizes, que, como arcadas, espalham ao redor de si. (Vide Nossas scenas da naturesa sob os tropicos,) e ahi achareis o effeito do mangue nas paisagens, 7 (pag. 17). E lamenlavel esta lacuna, porem deixa comtudo perce- bcr, que se trata das tartarugas do Maranhao. Com os ovos d’este chelidoniano prepara-se no Para o que se ehatna—manleiga de tartaruga, de que se exporta pro- digiosa quantidade. 8 (pag. 17.. N esta enumerapao mui completa de quadrupedes que se podern capar, um nome desperta naturalmente a attenpao do leilor, e e vacca brava. E bem possivel, rigorosamente fallando, que os campos do Mearim ja tivessem algum indi- viduo da rapa bovina, ja ha muito tempo introduzida em359 Pernambuco: Claudio d'Abbeville 6 muilo explicilo iresle ponto. Mas nao 6 d’isto que quiz tratar o nosso bom missiona- rio: a vacca brava, ou bragua, como chama em outro lugar, e o Tapir ou Tapie, conforme Montoya, animal muito corn- mum em todo o Brasil. Para denominal-o serviram-se os hespanboes e portugue- zes d’um nome pedido por emprestimo aos Mouros. Chama- vam-no tambem Anta ou Danta, que significa, dizem, bu- falo. Quando chegou aos americanos a sua vez de dar nome ao boi, chamaram-no Tapir-acu. Marlius observa com razao, que esta palavra na lingua geral se applica a todo o mamifero corpulento. Sendo este pachyderma o animal mais corpulento conhecido na America do Sul, foi sua capa procurada de preferencia pelos Euro- peos, e assim desappareceo, ou pelo menos tornou-se mais rara nos lugares onde outr’ora era abundante. Em certos paizes da America era um animal sagrado, e assim figura em diversos monumentos. No Brasil procuravam os indigenas este animal, tanto por ser boa capa como pela espessura de seo couro, de que I'a- ziam escudos impenetraveis as flexas, pela maior parte ar- madas de uma ponta aguda de madeira ou de cana. Joao de Lery trouxe do Brasil para Franpa alguns d esses broqueis, porem nao cbegaram a Europa, porque uma terri- vel fome devida a longa viagem de 5 mezes obrigou o po- bre viajante a comel-as, depois de amolecidas por meio d’agoa. Os nossos leitores que desejarem conhecer minuciosa- mente o Tapir americano, consultem uma excellente disser- tapao, dedicada especialmente a este animal, escripta pelo Dr. Roulin, Bibiiothecano do lnstituto. No Glossario de Martius le-se uma extensa syuonimia re- lativa ao Tapir. (Vide pag. 479.)360 9 'pag. 18;. E certo que os indios d esla tribu foram contraries aos francezes. Ha na historia d’esta expedite urn poulo, quo nao lbi ainda bem esclarecido: o mais afamado capitao de indiosde que se recorda o Brasil fez suas primeiras canpanhas du- rante o dorninio dos francezes. 0 celebre Camarao, o grande chefe ou Morubixaba dos Tabajares, comniandava 30 frecheiros na luctaentrelaRavar- diere e Jeronymo de Albuquerque. Gonvidadopelo governo portuguez para tomar parte n’esta guerra, partio de sua aldeia, no Rio Grande do Norte, e foi para o Presidio de N. S. do Amparo, no Maranhao, em 6 de setembru de 1614: seguio-o seo irmao Jacauna com urn filho d(3 igual nome, e de 18 annos de idade. Depois de muitos annos Camarao, que teve tao boa es- cola, adquirio fama immortal nos fastos do Brasil por oc- casiao da expulsao dos hollandezes. (Vide Memorias para a historia da Capitania do Maranlido, impressa nas Notioias para a historia e cjeographia das Nacoes Ultramar'mas. 10 (pag. 18;. No Brasil nao ha verdadeiros javalys, e nem este nome se pode dar aos Pecoris ou Tajassus, ou Porcos do Matlo na linguagem dos naturaes. Nao e extraordinaria a proesa do fidalgo, porque andando os pecaris sempre em bando basta cliumbo grosso para matal-os. Martius deo a svnonimia com- pleta d’esle animal no Glossaria linguarum brasiliensium. ■Vide a divisao Animalia cum Synonimis, pag. 477.) 11 (pag. 18;. Uin ajoupa e uma peqjcna cabana coberla de folhas e abertas por lodos os lados.361 Esta palavra e muito usada 110s nossos eslabelecimenlus do Guyana. Ye-se eslampas de ajoupas em Barrere. 12 (pag. 19y. Em 1542 a foz do grande rio foi explorada por Aphonso de Xaintongeois. (Vide o Manuscripto original cle sua via- gem na Bibliotheca Imperial de Pariz.) Joao Mocquet, cirurgiao francez, guarda das curiosidades de Henrique IV, visitou suas praias. (Vide o Manuscripto do seo Relatorio na Bibliotheca de Santa Genoveva.) • Finalmente la Ravardiere fez ate la um reconhecimento. Joao Mocquet foi rauito explicito quando tratou do mytho das Amasonas, que tanto occupou Condamine e o illustre Humboldt. Tudo quanto elle referio d’eslas guerreiras soube do chefe Anacaiurg, cujo personagem, ou seo homonyrno, encontra-se nas obras de Ivo d’Evreux. Governava uraa napao no Oyapok ou do Yapoco. Mocquet disse a seos leitores, que nao poude visitar, como desejava, o Amasonas «por serem violentas as correntes para os navios, e mesmo para o seo patacho que ja fazia muita agoa.» Todas estas narragoes a respeito do grande rio deixou em Franpa impressoes tao duradouras, que o Conde de Pagan, quarenta annos depois, convidou a Mararin a reerguer pro- jectos esquecidos. Para a conquista da Amasonia elle queria uniao com os indios, e por sua vontade devia o Cardeal li- gar-se «aos illustres Homagues (Omaguas) aos generosos Yo- rimanes e aos valenles Tupinambas.» Nunca certamente os selvagens receberarn tao pomposos nomes ! Seria mui curiosa, si se achasse, a narrapao da expedi- <;ao pelas margens do Amasonas em 1613, feita por ordem de la Ravardiere e ainda no tempo de Luiz XIII exislia uma copia. 32362 13 (pag. 20). Entra Gabriel Soares em minuciosas descrippoes do fa- brico d’esta farinha, de que os indios fazem grandes provi- soes. A especie de mandioca, conhecida pelo nome de Carima, serve de base. Esta raiz a principio dissecada a fogo brando, depois ra- lada, 6 pisada n’ura alraofariz, peneirada e misturada com certa quantidade de outra qualidade de mandioca na occa- siao de ser torrada, o que se faz ate Gear muito secca, e n’esse estado e conservada por muito tempo. Encontram-se sobre esta industria agricola do Brasil todos os esclarecimentos necessarios no Tratado descriplivo do Brasil, pag. 167. Augusto Saint-Hilaire disse com rasao, que a cultura da mandioca tirou a maior parte dos seos processos da econo- tnia domestica dos Tupis, e resumio concisa e habilmente tudo que ha a dizer-se relativamente ao cultivo da planta. (Voyage dans le district des Diamants et stir le littoral da Bresil. T. 2—pag. 263 e seguintes.) 14 (pag. 21). Gabriel Soares esta aqui inteiramente de accordo com o nosso Missionario. Estas grandes canoas chamavam-se Maracatim, por causa do Maracd, que, como protector, trasiam na proa. Iga cha- mava-se uma canoa pequena, e Igaripe uma canoa de cor- tipa ou casca de arvores, etc. etc. (Vide Ruiz de Montoya, Tesoro, na pag. 173.) 15 (pag. 21). Andre Thevet, e depois d’elle Joao de Lery descreveram com exactidao esle genero de ornato, chatnado Araroye pelo ultimo d’estes viajantes.368 Coube ao padre ivo lazer-nos eonhecer seo valor svm- bolico. 16 (pag. 24). A curiosa narrapao do indio confirma a opiniao de Hum- boldt, e bem pode ser que antigamente se encontrassem al- gumas mulheres cansadas do jugo dos homens, e por isso entregues a vida guerreira. Combina igualmente com as tradicpoes colhidas por Con- damine e sessenta annos antes do Padre lvo o franciscano. Andre The vet nao esteve longe de ver n’estes selvagens americanos descendentes directos do exercito feminino com- mandado por Pentisilee. Humbold disse com rasao, que o mylho das Amasonas era de todos os seculos e de todos os periodos da civilisa- pao. IT (pag. 25). Esta napao nao e indicada no Diccionario topcxjraphico, historico, descriptive) da Comarca do Alto Amasonas. Re- cife. 1852—1 vol. em 12. Tambem nao a encontramos na longa nomenclatura da Corographia Paraense de Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Deve estar extincta, e Martius tambem nao a cila no seo Glossaria; publicado ultimamente. IS (pag. 25). Por este nome, aqui tao frequente, designa-se uma grande aldeia alem de Tapuitapera. Era tambem o nome de urn vasto territorio e de urn rio. Segundo o padre Claudio—Crnnd signiflea proprio para pesca, poreiil duvidamos que seja exacta a explicapao.364 Debalde procura-se esta palavra no Glossaria de Marlius publicado em 1863. 19 (pag. 25). Cazal, o Diocionario do Alto Amasonas, e Accioli nada dizem a respeito d’estes rios, onde comtudo esteve utn ex- ercito de 2,000 homens! Martins trata de uma napao de Pacajaz ou Pacayd, no Para. (Vide Glossaria linguarum. pag. 519.) 20 (pag. 25). Esta ligeira descrippao das casas aereas construidas sobre mangoes e troncos das palmeiras muritis Jembra um facto hem curioso, classiQcado outr’ora como fabula, e descripto na Relapao de Walther Ralegh. E bern possivel que haja algurna exagerapao, porem o facto e authentico, e deo-se na foz do Orenoco. Os Waraons visitados ha perto de um seculo pelo Dr. Le- blond, os Guaraunos descriptos pelo sabio Codazzi, sao urn e o mesmo povo, salvos de inteira destruipao por sua ma- neira de viver. Os Camarapins, cujo desaparecimento acabamos de pro- var, foram menos felises. A respeito dos indios das louras consulte-se o resumo, que outr’ora fizemos, dos manuscriptos, por onde o Medico francez provou sua moradia entre os Waraons. (Vide Guya- na, 1828, em 18.) Codazzi, cujos hellos trabalhos geograpbicos sao conheci- dos, citava em 1841, os Guaraunos, como nao tendo ainda abandonado suas casas aereas. Ha trinta annos, quando muito, vinham elles negociar com os habitantes da Trindade. (Vide o Resumen de la Geogm- phia de Venezuela. Pariz. 1841—em 8. Agostinho Codazzi morreo ultimamente.365 Quanto aos manuscriptos do Leblond, que ja tivemos i nossa di.sposif.ao, pertenciam a collecpao das viagens, pos- suida em 1824 pelo edictor Nepveu. (pag. 28). Este personagem tinha um nome todo portuguez, o era muito dedicado a napao, a cujos inleresses servia. 0 titulo de Capitdo afmal estendeo-se a todos os chefes da rapa indigena. 22 (pag. 29). Este selvagem fanfarrao gabava-se de ter feito morrer o padre Ambrosio, residente em Iuiret, cuja pronuncia segun- do Claudio d’Abbeville, e Jeuiree, e ella indica a estranha signiflcapao d'este nome. 0 Pay acu, o grande padre e lvo d’Evreux. A palavra Pay quer dizer em portuguez Padre. Pay-f/waczz-, diz Ruiz de Montoya signiflcar Bispo ou Prelado em Guarany. 0 nome de Pay foi mais facilmente adoptado pelos indi- genas pela sua analogia em designar pessoas graves. Os feiticeiros eram chamados—hechizeros—para servir-nos da propria expressao do lexicographo hespanhol. Da lingua geral, modificapao do Guarany, Pay signifies padre, monge e senhor. Pay Abare Guacu era a dcsigna- pao dos prelados e dos jesuitas. Os indios ainda ehamavam o papa Pay above ocu ete. 23 (pag. 29). Nao sabemos porque o missionario modifica a orthographia do nome de um povo, que elle ja escreveo muitas vezes de forma diversa. Claudio d’Abbeville escreve Topinambas, o author da sumptuosa entrada Tupinabaulx, Hans Staden Topinembas,360 e emfim Joao cle Lery Tuupinambaults. Malherbe suavisan- (]() a expressao escreve Topinambus. Foi esta ultima ortho- graphia a que prevaleceo no tempo de Luiz XIV, porem pie- ferimos a que e adoptada pelos brasileiros. (pag. 31). Pop esta palavra tao vaga, aqui empregada polo padre Ivo, suppomos que elle pretende designar os povos mais selvagens ainda que os Tupinambas, ou entao que se entre- gavam mais especialmente a anthropophagia. Nas obras de Humboldt encontra-se uma curiosa definipao da palavra Canibal. Notaremos apenas, que 50 annos antes do tempo, em que escreveo o padre lvo, designavam-se as- sim, quasi que exclusivamente, os indios mais proximos do Equador. Na historia da Franpa antarctica por Andre Thevet, a pro- posito da madeira de tincturaria, le-se o seguinte: «o da costa do rio de Ianaire 6 melhor que o da costa de Canibaes e de toda a costa do Maranhao,» (pag. 116 verso), e mais adi- ante: «visto que chegamos a estes Canibaes, d’elles diremos apenas, que este povo, depois do caho de Santo Agostinho, e alem at6 o Maranhao, e o mais cruel e deshumano que em qualquer outra parte da America. Esta canalha come ordinariamente carne humana, coino nos comemos carneb ro. 'pag. 119.) 2 5 (pag. 31.) Foi com effeito nas margens do ltapecuru, que se apre- sentaram os porluguezes. Claudio d’Abbeville disse algumas palavras sobre este bello rio, porem exagerou o seo curso. Nos estamos tao pouco ao facto da geographia d’esse paiz, que Adriano Balbi se contentou em mencionar seo nome ape- nas no quadro, que trapou, dos rios do Maranhao.367 Que prodigiosas mudanpas nao se terao operado sobre suas roargens desde o tempo, em que o nosso bom frade assim o chamava alterando-lhe o nome ! Em lugar d’estas florestas, onde aodavam errantes os Timbyras, cultiva-se milho, mandidca, canna de assucar, fumo e algodao, e a producpao ultima d’este genero foi tao abundante, que subio a 35,000 saccas. Em Franpa nao se conhece o nome das cidades mais im- portantes, assentadas a margem d’este rio, e apenas se en- contram em nossos livros de geographia. Quern ja ouvio fallar da peqqena cidade de Caxias, a ri- sonha patria de Gonpalves Dias? Comtudo 6 uma cidade rica, commercial, banhada pelo Itapecurii, e distante da ca- pital sessenta legoas. Em 1821 era apenas um povoado de 2,400 almas, e hoje este numero elevou-se a 6,000 habitantes. Caxias 6 o centro do commercio entretido com o Piauhy, e com immensas solidoes de campos de criapao de gado, conhecidas pelo nome de sertdo. Edificada para assim dizer no deserto, tern escolas flores- centes, um theatro, estabelecimentos de utilidade publica, que nem sempre se encontra em cidades mais considera- veis. O nome de Caxias tem no Brazil significapao politica, por- que, em 1832, travou-se no Morro do Alecrim uma ba- talha, cujo resultado consolidou a Independencia da Pro- vincia. Mais tarde, na propria colina, chamada das TabOcas deo-se o sanguinolento combate, onde foi vencido * Fidw, e que inspirou a Gonpalves Dias tao energicos versos. Seriam necessarios volumes para narrar, ainda que sum- mariamente, as perturbapoes, que se seguiram a este acon- * E engano. O major Fidie nao foi vencido, e sim capitulou honrosamente em 1.° de Agosto de 1823. (Vide Histona da In- dependencia do Maranhao (1822 a 1823) pelo Dr. Luiz Antonio Vieira da Silva, hoje Senador do Imperio, pag. 109 a 127.) Do traductor.368 tecimento, e as luctas tempestuosas, que houveram neste canto ignorado do mundo ate 1848, quando o Dr. Furtado conseguio reprimir a horda, que assolava esta cidade nas- cente. * A propria naturesa, por si so, e grande n’estas regioes: 20 mil habitantes formam a populapao d’este vasto muni- cipio, empregado superficialmente na agricultura. Na distancia, era que nos achamos, estas revolu^oes tao cumpridas para serem contadas, assimilham-se as da idade media, que a historia local as vezes registra, mas que facil- mente esquece visto nao ligar-se a algum dos grandes inte- resses, que prende a attonpao do mundo. K Mr. Ferdinand Diniz foi illudido por escriptos politicos, em- bora habilmenle manejados porern sempre com paixao. Nao foi o Conselheiro Furtado a quern se deve esse estado do paz, e sim a outro cidadao como ja disse no meo Diccionario neste trecho que para aoui transcrevo. —Duron este triste e lamentavel estado de ferocidade ou de- zespcro ate o tempo, em que o fallescido Dr. Eduardo Olympio Machado peranle os escolhidos da Provincia em 1851 recitou estas palavras: «A fcbre homicida, que ia lavrando pelo municipio de Caxias, «tem feito, vae para tres mezes, prolongada remissao. E qual o areagente que conseguio acalmar seos lugubres accessos? A «energia e actividade do actual delegado de policia o Dr. Joao «de Carvalho Fernandes Vieira, o qual, formando culpa aos de- (dinquentes, perseguindo-os com incansavel zelo, devassando as «casas de certos individuos, que ate entao contavam, senao com aacquiescencia, com o silencio da auctoridade publica, tern con- «seguido restituir a tranquilidade o districto de sua jurisdiccao.» Foram estes valiosos e importautes servicos apreciados pelo Governo Central, pois mandou por mais de urn Aviso louvar o Dr. Joao de Carvalho. D’ahi a poucos annos houve quem intentasse arrancar esses louros da fronte do energico e activo ex-juiz municipal e dele- gado de policia de Caxias para offerecer a outro, que nada fez, nao cuidando da historia que tudo registra e a todos faz justica! Esta accao, por demais injusta, nos faz lembrar estes versos do poeta de Mantua: Hos ego versiculos feci: tulit alter honores Sic vos non vobis. nidificates, aves etc. etc. Do traductor.369 Com mais jusla rasao pode applicar-se isto a villa do Codo, a mais florescente apos Caxias, como ella banhada pelo Ita- picuru, e como ella separada da Capital por urn espapo de 60 legoas. 26 (pag. 34). Este nome do principio do mal, acceito em tod a a obra pelo Padre Ivo d’Evreux e por Claudio d’Abbeville parece ser mais particular ao Norte do Brazil. Martius escreve Jurupari, ou Jerupari. Anhagd parece ser mais uzado ao Sul. Nao se acha a signilicapao desta pa- lavra no Tesoro de la lingua Guarani. Angai neste pre- cioso Diccionario significa espirito mau. Anhanga significa hoje apenas um phantasma. (Vide Gonpalves Dias, Dicci- onario da lingua Tupy.) ^7 (pag. 36). Estes povos, antes de reunidos, eram charnados Tabaiares pelos Tupinambas. Pag. 36. Tabajares nao significa de maneira alguma inimigoy e sim senhores da Aldeia. (Vide Adolpho de Varnhagem, Hisloria geral do Brazil. T. l.° Accioli. Revista do Instituto.) 28 (pag. 36). A denominapao, adoptada no Seculo XVII por nossos com- palriotas, veio sem duvida alguma do costume que tinham estes indios de furar o labio inferior, e mesmo as faces para n’ellas introduzir discos de uma especie de esmeralda, fei- tos com muita paciencia, e apreciados como joias estima- veis. (Vide Sur Vusage de se percer la levre inferieure chez les Americains du sud, a serie de nossos artigos, in- serida com muitas gravuras no Magasin pittoresque. T. 18 pag. 138, 183, 239, 338, 350 e 390.370 29 (pag. 36). Mcarimnse e evidentemente urn nome creado pelo nosso bom Missionario, e meJhor nao o inventaria Rabelais. Os Mearinenses eram os prnprios Tupinambas que resi- diam nas ferteis margens do Meary, d’onde proveio o nome a provincia, no pensar de Cazal. 0 Mearim, que offerece um curso de 166 legoas, so e navegavel no inverno, e as canoas grandes sobem unicamente ate 60 legoas. Nasce na Serra do Negro e Canella aos 8° 2’ e 23” de Jat. e 2° 2T de long, contados da Ilha de Villegagnon na bahia do Rio de Janeiro. 30 (pag. 36). A palavra Tapuya ou Tapuy tern levantado grandes dis- cussoes: sera o nome de um povo? (Vide o Diocionario de Goncalves Dias). Significara inimigo? Ruiz de Montoya nada diz a tal res- peito. Sera preciso crear uma napao distincta da dos Tupys, a qual estes deram tal nome. Um escriptor, authoridade na materia, Ignacio Accioli nao hesita a tal respeito. Quando enumera as principaes divisoes da rapa Tupica, olle diz: aoutra napao geral, a dos Tapuias, divide-se, como pensam muitos, em pequenas tribus fallando perto de cem dialectos, e sao os Aymores, os Potentm, os Guaitacds, os GuaramoniSj os Guaregores, os Jacarussus, os Amanipa- ques, os Payeias e grande numero de outras.» (Vide T. XII da Revista Trimensal—Dissertacdo historica, ethnographica e politic a sobre quaes eram as tribus aborigenes, etc., etc., pag. 143.) 31 (pag. 42). Rsle pensamento passou como proverbio na ilha e em Guyana.3 3 (pag. 42,. Hans Staden prisioneiro, peios Tupinambas em 1550, ao sahir do Forte da Bertioga suscitou grande discussao para saber-se com certeza, quern foi o primeiro que o tocou. (Vide la Collection. Ternaux Compans. 3 3 (pag. 49). Nada tem de exlraordinario o nome d’este ehefe, porem 6 necessario escrevel-o assim com mais exactidao. Il/ira Pi- tonga. (Vide Ruiz de Montoya.) Lery escreveo Araboutan, Thevet Oraboutan. Dcsapparece csta celebre madeira cada vez mais das grandes florestas, onde iam buscal-os os nos- sos antepassados. 34 (pag. 51). E urn Tabajara quern Falla, porem observamos, que a pa- lavra Carbet nao pertence a lingua geral. 0 padre Ruiz de Montoya nao a inserio no see precioso Tesoro de la lingua Guar any. fi usado mais particularmente entre os Galibis e os oulms povos de Guyana. Resente-se esta expressao da visinllanpa da nossa co- lonia. Gonvem fazer certa differenpa entre os Carbets, ou earn grande, e as Ocas ou Tabas, que formavam a architectura rudimentar dos outros povos do Brasil. Ouparnos a este respeito o Padre du Tertre. «No rneio de todas estas casas, fazem uma grande, commum, a que cha- mam Carbet, a qua! tem ordinariamente 60 ou 80 pes de comprimento, e e formada de grandes forquilhas de 12 a 20 p6s de altura, infincadas na terra: sobre ellas coliocam uma palmeira, ou outro troneode arvore muito direito, que serve de cumieira, e n’ella ajuslam caibros, que descem ate (nearem terra, e cobrem-nos com ramos ou folhas de palmeiras, Picando muito escuro o interior da easa, pois a claridade so entra peia porta, e esta 6 tao baixa, que para entrar-se e necessario curvar-se.» Estas particularidades pedimos emprestadas a uma obra do anno de 1643, e se referem especialmente a architectu- ra rustica dos Caraibas insulares. Escolhemos este exemplo quasi contemporaneo do livro publicado pelo nosso autor, porque na realidade nao ha gran- de differenpa entre os Carbets das ilhas e os dos conti- nentes. Si se escrevesse uma hisloria d’essas casas de folhas tao rapidamente construidas, apresentar-se-iam certas varieda- des conforme os usos e fins para que se destinam. (Vide a este respeito Le voyage pittoresque au Bresil de Debet, de- pois as gravuras do livro de Andre Thevet, publicado em 1558.) Haviam pequenos e grandes Carbets, aquelles onde os Piagas faziam suas charlatanerias, e estes onde se formavam os grandes conselhos. Tinham estes ultimos a configurapao de um dos nossos vastos alpendres, tendo lugar para 150 ou 200 guer- reiros. No XVII seculo, na linguagem de nossas colonias, nas ilhas ou no continente, formar um conselho qualquer era Carbeter; o termo era proprio e acha-se usado por todos os viajantes. (Vide entre outros Biet, Voyage dela France equi- noaiale. Paris. 1654, em 4.°) 3 o (pag. 56). David Migan era natural de Dieppe, e como fizeram tan- tos outros naturaes da Normandia no flm do seculo XVI, veio tentar fortuna entre os selvagens do Brasil. Encontraram-no os chefes da opposigao estabelecido ha- via muitos annos em Jupinaram, na ilha do .Vlaranhao.Era em toda a exterisao ila palavra um inlerprele da Nor- mandia, e sabe Deos de que reputapao gozavam estes inler- pretes no que dizia respeito ao que entao se chamava mundo civilisado. Comparavam-nos ate aos selvageus, cujos odiosos festins, dizia-se, que elles partilhavam. David Migan teve as bonras do Mercurio francez. (Vide T. 3, pag. 164) Regressou at Franpa com Rasilly a quem era muito atfei- poado, e assim foi bom por ser o unico capaz de traduzir para a Rainha, a longa exposipao de Itapueu. De passagem lembramos ter elle tambem assignadoo ter- mo de cessao, que la Ravardiere fez de seos direitos a Fran- cisco de Rasilly, o que indica, sem duvida alguma, o gozar de considerapao excepcional. 0 nome de Migan nos parece ser nome de guerra, pois esta palavra na lingua tupy, signiflca o caldo grosso, que se fazia com a farinha de mandioca. Malherbe, que estava nas Tulherias, quando se apresen* tar am os indios, notou a habilidade d’este homcm. Havia outro interprete chamado Sebastiao, muito affeipoa- do a Ivo d’Evreux. 36 (pag. 65). E mui curioso o achar-se em Maranhao, no anno de 1612, um selvagem fazendo ao padre lvo o tnesmo raciocinio, a que foi obrigado a responder Joao de Lery em 1556: «o que quer dizer vos Mair e Peros, (francezes e portuguezes) vir- des de tao longe buscar madeira para vos aquecer? La nao a tendes ? (Vide Histoire d'lm voyage en la ter re du Bresil. Rouen 1578 em 8.°) 37 (pag. 70). Largamente descreveo Mr. Humboldt a regiao dos Otoma- nos, e as porpoes immensas de terra, que reunem estes in- dios para comer quando Jhes falta a capa e a pesca.Pensa o grande viajaute, que esla terra secca ao sol, for- mando lulhas de bolasinhas, dispostas symetricamente, e procurada peJos solvagens por conterem particulas animali- sadas e que a fazem mitritiva. Prova o padre du Terlre, que tanto os indios das ilhas corno os do continente coraem terra, embora pense que seja por aberrapao de gosto. «Todos comem terra, maes e (ilhos, diz elle, cacausade. iao grande aberrapao de gosto nao pode proceder, penso eu, senao de urn excess;) de melanco!ia.» (Hist. nat. das Anti- Ihas, habitadas polos franeezes. T. 2°, pag. 375.) Nao longe das regioes descriptas polo padre Ivo, a mar- gem do rio Ucayale, encontram-se ainda os indios Pinacos, cujo nome verdadeiro e Puynagas. Estes indios despresa- dos por seos compalriotas, sao afamados comedorcs de terra. A este respeito, entre outros, foi publicado urn curioso opus- culo de Mr. Moreau do Jonnes com o titulo de Observations sur los Geop/utges dos Antilles. Paris. An. VI. Tern somente J1 paginas. 38 (pag. 73). Na enumerapao das diversas classes da inlancia acbarnos ainda exactidao no padre Ivo, embora contundisse a letra N coma R: a palavra menino escreve-se Curwnim nos Olos- sarios brasileiros. (Vide Gonpalves Dias, Dicdori^rio da lin- gua Tupy. Leipzig, 1858 em 12.) * 3 0 (pag. 81,. Gonpalves Dias diaina a virgem Cunhd mucu. (Vide Dic- cionario.) 40 (pag. 82). Este singular uso, fallado por todos os viajantes do XVI seculo, como acaba de ver-se ainda nao estava modificado.Nao se encontra somente entre os Caraibas das ilhas, o sim tambem em pleno vigor na Europa, e especialmente entre os Bascos, e era entao chamado a «encubapao.» As ciMiscellanias historicas,» publicadas em Orange em 1675, contem interessantes observapoes a tal respeito. «No~ ta-se, diz elle, urn admiravel costume em Bearn. Quando pare uma mulher, anda ape e o rnarido deita-se para guar- dar o resguardo. Creio que os Bearnenses tomararn este cos- tume dos hespanhoes, de quern Strabon disse a mesma coisa no livro 3° da sua Geographia.v 0 rnesmo faziam os Tibarenienses, como refere Nimpho- dore, na excellente obra de Apoilonio de Rhodes, livro 2, e os Tartaros segundo o testemunho de Marco Paulo, cap. 41, livro 2.° Este uso, tao exquisite, e so explicavel si se podesse des- cer at6 o recondito mais intimo do caracter indiano, era re- ligiosamente observado pelos mais valentes e afamados guer- reiros Tupinambas, e provocaria o riso do homem civilisado, si indagasse a sua origem natural. Torna-se porem admira- vel, para assim dizer, quando se sabe ser tal costume acoin- panhado de mui crueis privates, porque o indio, que acaba de ser pae, e que se condemna a tao ridiculo repouso, nao so priva-se de alimentos, como ainda se entrega a outros supplicios com intenpao de evitar que soffra o filhinho certos males, que elle receia. Pela sua ignorancia e superstipao julga-se com grande in- fluencia phisiologica sobre o rnenino, e muito soffre e com stoicismo afim de poupar algumas dores ao recem-nascido. 0 homem civilisado das cidades, embora mediocremente intelligente, abstem-se de esquadrinhar estas ideias cheias de dedicapao, embora inconstantes dos selvagens, e ri-se antes de proferir seo juiso. A companheira do indio tambem supersticiosa, approva o que faz seo rnarido: soffre, sem queixar-se, verdadeiras do- res e entrega-se a urn novo trabalho ainda mais pesado. porque todo o servipo da casa cahe sobre ella.No modo do pensar desta pobre muJhcr a salvage do re* cem-nascido depende do procedimento stoico de seo marido. Nunca podemos saber qua! era o motive, que obrigava os antigos a entregarem-se a este repouso tao exquisito, nao differente provavelmenle do concedido aos americanos. Carli, cuja engenhosa erudiepao explica tantas coisas antigas da America, nao procurou mesmo uraa hypotbese para desco- brir motivo tao ridiculo. Enganou-se por certo, quando disse seremelies alimentados abundantemente. (Vide Lettres Ame- ricaines. Boston et Pariz, 1788, T. 1 pag. 114.) Ebom ler-se com cuidado a versao francesa d’esta curiosa passagem. Nao soube o traductor francez, Febvre de Villebrune, dar real valor as palavras italianisadas pelo autor. Antonio Biet, 6 mais justo para com os indios, e menos inclinado a zombaria do que os seos predecessors, quando descreve a «incubapao» entre os Galibis. «0 pobre indio, diz elle, soffre muito durante seis sema- nas, come pouco, e quando acaba o resguardo, esla tao ma- gro como urn esqueleto.» 0 mesmo viajante nos mostra o Galibi, sempre paciente, nao deixando a casa grande, e nem se animando a levan- tar os olhos para os que o rodeiam. (Voyage de la France equinoctial, Livro 3.° pag. 390.) Descrevendo os costumes de certos Caraibas, nao podia o autor da historia moral das Antilhas esquecer a incu- bacao. Rochefort conta as particularidades e especifica sua ana- logia com uma ceremonia identica, que vio n’uma provincia de Fran pa. Este repouso forpado do indio pareceo-lhe muito absurdo, porem nao nega ao pobre paciente o merito do jejum, antes confessa, que durante sua reclusao apenas the dao ura ponco de farinha e agoa. (Vide Historia moral pag. 494.) Nao proseguiremos n’estas citapoes, bastando dizer que ^mtre os povos do Brasil os Tupiniquins, os Tupinacs, os Ta-bajares, os Petiguaras, e muitas oulras tribus imilarn os Tu- pis, e estes nomes nada mais adiantam. Convem comtudo fazer bem saliente o amor paterno entre os indios, dando-se assim ao mais extravagante dos costu- mes a sua origem verdadeira. 41 (pag. 84;. Tamoi quer dizer avo na lingua dos Tupinambas: aqui ha alterapao de palavra, proveniente por difterenpa de pro- ouncia. Le-se no Tesoro de la lingua Guarany, base da lexieo- graphia brasileira Tamoi, abuelo, Cheramoi, mi abuelo, Cheruramoiruba, mi bisabuelo, Cheruramoi, el abuelo de mi padre, etc. Por sua origem linham os Tamoyos real proeminencia so- bre as outras tribus da mesma rafa. No meiado do Seculo XVI habitavam as circumvisinhan^as de Nicteroy, ou antes do Rio de Janeiro: como alliados lieis dos franceses foram expellidos d’essc bello territorio por Sa- lema, e os restos de suas tribus desceram para as regioes do Norte, onde enconlraram seos antigos amigos, que se ha- viarn refugiado especialmente nos campos de Maranhao. 43 (pag. 87 *). Nao e de mediocre imporlancia a especie de vocabulario, aqui offerecida pelo nosso rnissionario. Os leitores francezes, pouco familiarisados com a philolo- gia americana, despresaram sem duvida esta collec^ao de frases, provenientes d’uma lingua, que comtudo servio de recreiapao a Boileau: o mesmo nao acontecera n’um vaslo Imperio, onde as letras sao hoje tao honradas. N B. Na pagina 87 em vez de 41, lea-se 42. Do irailuclir.378 Ha muilos annos ja, que o Autor da 1 listeria Geral do Brazil provou a importancia do estudo das linguas indi- genas n’uma Memoria impressa entre as actas do Institute Historico do Rio de Janeiro. (Agosto 1840.) 0 padre Anchieta, a quem se deve a composipao da pri- meira grammatica, conhecida, da lingua geral, nao fallava o Tupy sem uma especie de enthusiasmo; o padre Figueira o imitou em sua sincera admirafao; Laet, com quanto nao manifestasse admirapao gabou sua abundancia e do£ura, e nisto foi seguido por Bettendorf. Pode dizer-se, que entre todos estes foi o padre Araujo quem melhorfezsobresahir sua importancia debaixo do ponto de vista philosophico. «Como foi, disse algures esse Religioso, que os povos, que a fallaram, tendo suas ideias limitadas em estreito circulo de objectos, todos necessarios embora a seo modo de vida, po- dessem conceber signaes representando ideas, capazes de indicar o objecto, que nao conheciam antes, e isto nao de qualquer forma, e sim com propriedade, energia e elegan- cia, accrescentando« sem ter ideia alguma da religiao, a nao ser da natural, encontraram em sua propria lingua ex- pressao para patenteiar toda a sublimidade dos mysterios da religiao, e da Grapa, sem pedir emprestado coisa alguma aos outros idiomas.» Enganar-se-ia completamente quem julgasse estar hoje esquecida a lingua usada entre tribus numerosas quando em 1500 Pedro Alvares Cabral descobrio o Brasil. Deixou nao so vestigios na Geographia do Brazil, mais tambem ainda hoje se falla n’algumas aldeias, tendo estreita affinidade com o Guarany, lingua usada na mor parte do Paraguay. Comtudo nao e a mesma do seculo XVI. Modificam-se os idiomas dos povos selvagens a similban- pa dos idiomas dos povos civilisados, e ainda mais talvez quando uma corrente de ideias novas vem desvial-os da liberdade do seo andar.370 0 Maya, o Quiche; o Azteco, o Quick ua, o At/mar a nao sao o que foram no tempo de Cortez, de Alvarado, e de Pi- zarro. Si o sabio Veylia podesse, ha perto de um seeulo, confrontar a differenfa enorme, quo apresenta o Nahuall antigo com o quo fallavarn muitas pessoas do seo tempo, imagine-se o quo nao succcderia quando so Ozesse a lnesma confrontagao entre a lingua Tupy, e o moderno Guarany. Esta ultima lingua, lao ein uso no Paraguay, nao e mais fallada com a pureza da sua origem, segundo diz o Sr. Beaurepaire de Bohan, si nao pelos Cayuas, das nascentes de Iguatiny. Sao pois mui preciosos todos os livros, que tratam da lingua antiga debaixo do ponto de vista grammatical. Debaixo d’este ponto de vista, as viagens d'Hans Staden, de Tlievet, e de Lery tern mais valor do quo as Relates de Claudio d’Abbeville e Ivo d’Evreux. . Acham-se todos os promenores apreciaveis a este respeito no nosso opuscule publicado sob este titulo—Une fete bre- silienne celebree d Rouen on 1550. Suivie d'un fragment duXVIsieele roulant sur la Theogonie des anciens peupf.es du B resit e des poesies en langue Tupiq-ue de Christovarn Valente. Pariz, Techener, 1850, gr. em 8.° 0 sabio Hermann E. Ludewig nao eonheceo o vocab.ulario apresentado pelo padre Ivo, ou pelo menos nao tratou d’clle. (Vide The literature of American aboriginal languages. Lon- don, 1857, in 8.) Finalmenle tern se feito iLestes ultimos tempos trabalhos de tanto folego, merecendo o primeiro lugar os do illuslre Martins. Um distincto litterato brazileiro, o Dr. Gonsalves Dias, que ja publicou em Leipzig o Diccionario da lingua Tupy (1858) foi de novo estudal-o nas profunrias florestas do Amazonas. A philologia brasileira ainda l’ara grandes progresses..'380 43 (pag. 94y. Aqui ha falta seusivel em nosso texto, por ter indubila- vd o nosso viajante occupar-se largamente d’urna rapa, quo com os Morobixabas representam o papel principal na vida civil e politica dos Brasileiros. Simao de Vasconcellos nas suas—Noticias do Brasil— nada deixa a desejar a tal respeito, e para elle enviamos nossos leitores, observando apenas que os Piayes, os Page ou Pagy somente alcanpavam a prodigiosa influencia, que gozavam, submettendo-se a experiencias e a jejuns tao rigo- rosos a ponto de arriscarem sua vida, obtendo fmalmente o litulo, que tanto ambicionavam. Sao as mesmas essas provas ou experiencias desdc a em- bocadura do Orenoco etd as do Rio da Prata. Quando o candidato estava ja muito enfraquecido pelo je- jum, entregavam-no as mordiduras das formigas, abarrota- vam-no de bebidas asquerosas, cuja base era o succo do ta- baco, e algumas vezes defumavam-no a ponto de perder os sentidos. Si resistia a taes supplicios, era igual senao superior aos guerreiros. Deixou-nos Vasconcellos a respeito do que se pode cha- mar Collegia dos Piagas, a similhanpa do Collegia dos Drui- das, certas particularidades muito minuciosas, applicaveis principalmente as Provincias do Sul. No Norte os Pages Aybas eram os feiticeiros afamados as- trologos, ou melhor tempestuosos, a que nada podia resistir. Sob sua dependencia estavam os astros, e sob sua obedien- cia o sol e a lua para cumprir suas ordens: desencadeiavarn os ventos e levantavam tempestades. Os mais ferozes ani- maes, como as onpas e jacares, obedeciam-no. Para alcanpar aos olhos do publico tal poder recorria o Page Aybas a um meio, que nunca falhou, isto, e a herva dos feiticeiros ainda mais poderosa do que a da Europa, o Paricd, cujos effeitos terriveis foram descriptos pelo Dr. Ro-drigues Ferreira. (Vide Mem arias das Academias das Sci- encias de Lisboa.) Mastigava-se o Partede com isLo fazia-se um ungnento, uzado para uncturas. 44 (pag. 100). Ha aqui um pequeno erro typographic), que convcm cor- rigir: leia-se pois rocou,. Em toda a America Meridional costumavam os selvagens tingir a pelle de vermelho alaranjado, on de negro aznlado por meio do rocou, Bixia Orellana, ou Genipapeiro (Ge- nipa Americana.) 0 Padre Ivo descrevendo com exactidao o fructo d’esla arvore, em abundancia no Maranhao, diz—o summo claro, e limpido que se exlrahe della, Fica muito negro logo de- pois da sua applicafao, e assim conserva-se por 9 dias (Vide a este respeito Humboldt, Voyage aux regions e-quin oxi.- ales.) 45 (pag. 101 Serve-se aqui Ivo d’Evreux de uma expressao impro- pria designando pela palavra Thon o que se charaa bicho de pe, niga, pulex penetrans, dos entomologistas. Bern pode ser que a palavra seja da lingua geral. Encontra-se com a mesma accep^ao em Thevet, que a escreveo em 1558 Vide France antarctique. pag. 90). E muito conhecido este insecto, e por isso desnecessario 6 demorarmo-nos des- crevendo os males, que produz. (Vide entre outros Natura- lises, o veridico Auguste de Saint-Hilaire, Voyage dans V inteneur du Bresil. T. l.° pag. 35 e 36). * N B. Na pagina 101 esta 44: lea-se 43. Do traductor.582 40 (pag. 100 V Roalisou-sc completamenlc a prophecia do bom Padre. Poueas sao as regioes do rnundo, que, como esta, tenham sido exploradas cm beneficio da seiencia. Mem das Plantas uteis do Brazil, devidas ao nunca assas cborado Augusto de St. Hilaire, ha hoje a Flora brasilL ensis do Piastre Marlius, tambem autor da Materia-medica deste paiz. Nao desejamos eanpar o espirito do leitor com uma arida nomenclatura de Jivros especiaes. Contentamos-nos apenas dizendo, que muito tem os brazi- leiros concorrido para estes trabalhos scientificos, cilando somente as Memorias do Dr. Ereire Allemao, recenlemenle publicadas, e a grande collecpao, infelizmente nao acabada, da FIoi'a Flu minensis. 47 (pag. 108). Esta moleslia, lao cruel e lao sirnilhante a syphilis, so nao e a propria syphilis, tambem acha-se descripla na France anlarctiquG de Andre Thevet, livro publicado em 1558 (vide pag. 80). Joao de Lory tambem descrcveo sees symptnmas. Esta claro, que nao se pode attribuir aos negros de Guine molestia lao geral cntre os Americanos. 4® (pag. 114). 0 Padre Ivo e rigorosamente exacto no que diz a respeito dos funeraes dos Indies, e com elle concordam em ludo Eery e Thevet, dando este ultimo uma excellent estampa re- presenlando urn Indio prestos a ser sepullado. (Vide pag. 82 v.) 1 N !>. Na pngina 100 lea-so Hi cm vcz dc -i;>. Do trartuctor.383 49 (pag. 114). Nao se esqueciam os Tupinambas de collocar, entre as suas singulares previsoes para o morto, um pouco de tabaco, car- ne, peixe, raizes de cara e de farinha de mandioca. H! rigoro- samente verdadeiro tudo o que o padre Ivo conta n’este capi- tulo, como se pode ver nas estampas que apresentam Thevet na France antarctic/ue, e Lery oa sua voyage. 50 (pag. 117). Os Tapuytaperas, cujo nome deviam a uma localidade do Maranhao, tinham cabellos cumpridos. Pertenciam a raca Tupy, pois que Migan, o interprete natural de Dieppe, on- tendia sua linguagem, e o mesmo succedia aos de Gumma, cuja aldeia tinha indios com este nome. Os Cahetes, no seculo XVI, constituiam uma napao essen- cialmente bellicosa occupando a maior parte do territorio de Pernambuco. Fallavam a lingua Tupica, ou lingua geral. En- contram-se as mais curiosas particularidades a respeito de sua organisapao interna no Roteiro do Brasil, manuscripto exis p?nte na Bibliotheca Imperial de Pariz. Hoje esta sabido, que este livro, tao notavel, composto em 1587 por Gabriel Soares, e o trabalho mais complete, que existe sobre as diversas tribus do Brasil existentes no tempo do padre Ivo. Passados muitos annos a Academia Real das Scieneias de Lisboa, reconhecendo a sua importancia, imprimio-a nas suas Noticias das nacoes ultramarinas, e depois o Sr. Fran- cisco Adolpho de Varnhagem, colleccionando todas as copias d’esta mesma obra, embora sob diversos titulos, publicou uma nova edicpao superior a todas, sob o titulo de Tratado descriptivo do Brasil em 1587, obra de Gabriel Soares de Sousa, senhor de engenho na Bahia, nella residente deze- sele annos, seo vereador da Camara. Rio de Janeiro.—1851 em 8.°384 51 (pap*. 118). 0 padre Ivo quando quer designar o tubarao, escreve im propriamenle requin, quando na primitiva era requiem. Pode bem ser, que o nome imposlo a este peixe lao voraz ’provenha da rapidez com que mala. 5^ (pag. 120). 0 Maraca era urn instrument symbolico, usado tan to nas festas religiosas como nas profanas. Thevet, o guarda das curiosidades do Rei, o descreveo muito bem em seos ma- nuscriptos, inedictos, e como sei que nao sera desagradavel para aqui transcrevo as suas palavras: «Tendo nas maos um ou dois maracds, que e urn fructo grande, de forma oval, similhante ao ovo de abestruz, e da grossura de uma abobora, mais agradavel a vista do que ao paladar, pelo que ninguem o come, fazem com elles muitos mysterios e superstipoes tao extravagantes como in* criveis. Cavam o fructo, enchem-no de milho graudo, amar- ram-no a ponta de uma haste, enfeitarn-no com pennas e enterrando a outra ponta, fica ella em pe. Cada casa tern um ou dois Maracas, que- rcspeitam como si fosse Tupan, trazendo-o sempre na mao, quando danpam e fazendo choca- lhar. Pensam que e Tupan que lhes falla (Manuscript de An- dre Thevet, conservado na Bibliotheca Imperial de Pariz.) Hans Staden e Lery, Roulox Baro escreveram Jargas pagi- nas a respeito do Maraca, e o proprio Malherbe falla dos que ouvio em Paris por occasiao do baptismo de tres indios sendo padrinho Luiz XIII. Ghegando a Pariz, e residindo no Convent dos seos pro- lectores, os indios revestidos dos seos bellos adornos, e com o maraca em punho, excitaram muito entbusiasmo, a ponlo de haver rnuita paixao pela sua danpa e pela sua propria inusica.385 Seria muito curioso si hoje se achasse a Sarabanda com- posta em honra d’elles pelo famoso Gauthier. Malherbe es- creveo ao celebre Peirese dizendo tel-a mandado a Marco Antonio «como excellente pepa digna de ouvir-se» (Vide Correspondance, pag. 285, antiga edicpao.) Ainda, passadas 12 paginas Malherbe tratou da musica entao em voga, e do seo auctor, dizendo «ser Gauthier con- siderado o primeiro no officio, ignorando porem si sahira bem, e si o gosto da Provincia se conformara com o da C6rte.» Nao se contentaram somente de proporcionar aos pobres selvagens distracpoes ligeiras, pois procuraram obrigal-os a residir em Franpa. Diz o poeta pag. 275 «os Capuchinhos, para obsequiarem completamente estes pobres selvagens, resolveram algumas beatas a casarem-se com elles, e ja deram comepo a excur- sao d’este p!ano.» Emquanto porem eram bem acolhidos os guerreiros do Maranhao, suas mulheres nao gozavam iguaes favores. Uma certa Princesa cujo nome calla o poeta, rnanifestan- do opiniao singular, dizia «que para elles tinha muita satis- fapao de dar-lhes casa e comida, mas que as senhoras, suas mulheres, nao podiam ser senao...» bem me entendeis, e por isso nao podia recebel-as em sua casa. 33 (pag. 120). mui curioso o saber-se, que esta expedipao explo- radora as margens do Mearim, reconheceo logo serem es- sas terras essencialmente proprias para a plantapao da canna de assucar, a que se empregam todos os brapos de 15 annos para ca, sendo esta revolupao agricola devida a influencia do Dr. Joaquim Franco de Sa. A charrua des- presada por tao longos annos hoje sulca este solo admi- ravel. 386 54 (pag. 122). Dove ler-se Mutum sendo a especie mais pequena desi- gnada pelo nome de Mutum Pinima. (Vide Diccioimrio Tupy de Gonpalves Dias. Trata-se aqui de Hocco Crax Alector, capa mui procu- rada. A imperial sociedade de acclimatapao emprega actualmente louvaveis exforgos para naturalisar em Franca este passaro do Brasil e da Goyana. 55 (pag. 122). uma linda especie de periquifo, conhecida no Brasil pelo nome de Tui. Forma as vezes bandos tao grandes a ponto de ser um dos flagellos da agricultura. 56 (pag. 123). R a palmeira chamada—Tucum—pelos brasileiros. Consul tese a magnifica Monographia das palmeiras por Marlius. 0 Tucum tern fibras verdes e macias, das quaes se faz excellente fio, proprio para cordas. 57 (pag. 123). Ivo d’Evreux nao hesita com sua sinceridade habitual a formar um verbo derivado da lingua indigena. Desde as margens do Orenoco at6 as do Rio da Prata era o Cauim preparado em grande quantidade. Tinha o mesmo nome em toda a parte esta especie de cer- veja, ou talvez melhor de cidra, quer fosse preparada com milho mastigado pelas mulheres, quer com mandioca cajti ou jabuticaba.387 Enconlramos este fabrico e nome ate entre os Araucans. (Vide a importante obra, do Chili, do Sr. Claudio Gay.) A palavra cauin atravessou espapos immensos, sao os mesmos em toda a parte os processos para o seu fabrico, o que prova estreito parentesco entre os povos mais distantes, uns dos outros. Hans Staden, Lery, Thevet tem apontado seos abuses, e chamamos a attenpao dos nossos leitores para as suas curio- sas narrativas. 0 que os nossos antigos viajantes chamavam Cauinage era afinal uma solemnidade, cujo sentido religioso nao co- nhecemos. Precediam ou succediam estas orgias as grandes expedi- cpoes. 0 «vinho da Europa» se chama hoje Cauin p/i rang a, e a aguardente tao fatal aos indios, Cauin Tata, «bebida do fogo.» 58 (pag. 123). • Descreve com minuciosa curiosidade Joao de Lery esta festa solemne, na qual se infiltrava o espimto de coragem, aos guerreiros prestes a partirem para uma expedipao. Uma das estampas do seo livro representa ate esta cere- monia. Entre todas as tribus da rapa tupy o tabaco e considerado como planta sagrada. Reunimos tudo que se sabia ha alguns annos a respeito da origem do Petum na carta, que dirigimos a Mr. Alfredo Demersay, sobre a introducpao do tabaco em Franpa. (Vide Etudes economiques sur UAmerique meridionale. Du Tabac du Paraguay. Pariz. Guillamin. 1851 em 8.° 59 (pag. 125). 0 nome d’esta napao tao pouco conhecida, e que se apre- senta a penna do padre Ivo, e uma garanlia da exactidao das suas narrapoes.388 Ainda em 1817 existiam alguns Tramembez entre os tra- balhadores brancos do Ceara: cultivavam mandioca e resi- diam oa villa de Nossa Senhora da Conceicao d’Almofalla, onde haviam muilas salinas. (Vide Ayres Casal, Corographia Brasilica, T. 2°, pag. 235.) Gaba o padre Ivo o valor e a industria d’estes indios, ini- migos encarnipados dos Tupinambas. 60 (pag. 125). Tratamos d’este famoso indio quando elle se revestio do commando. 15 a Qgura indigena mais predominante nas duas obras do padre Claudio d’Abbeville e padre Ivo. Na lingua geral a palavra japim 6 o nome de um Undo passaro, de pennas amarellas e negras, que anda em nume- rosos bandos e que em toda a parte faz tao lindos ninhos. Pode tambem dar-se-lhe outra significapao. Japy significa na lingua indigena do Maranhao. «o choque, o golpe.» (Vide Gongalves Dias, Diccionario.) A primeira explicapao 6 a unica adoptada. Japy-uagii era o que se chamava um Mi- tagaya, um grande guerreiro. 61 (pag. 126). Deixa-se o padre Ivo levar muito pelas recordapoes da Europa. Jero-pary-acu, de que tratam escriptores portuguezes, nada tem de comraum com um principe ou um rei, taes como eram representados no novo-mundo por convenpao bi- erarchica. Este erro ja havia sido anteriormente commettido por An- dr6 Tbevet na sua Franca antartica e na sua Cosmographia. 0 historiador de Portugal, La Clede, que vivia no seculo XVIII foi mais longe ainda na enumeragao dos pomposos ti- tulos, que da a alguns pobres chefes de tribus.389 62 (pag. 127). Com o norae de cabacas conhece-se geralmente no Brasil vasilhas ordinarias, feitas com o fructo da cabeceira. Em Venezuella chama-se Tutumas. Algumas destas vasilhas naturaes mostram delicados orna- tos, cores inalteraveis pela agua e grande brilbo. (Vide a este respeito Claudio d’Abbeville, Histoire de la mission des peres Capucins.) 63 (pag. 128). E isto confirmado por Magalhaes de Gandavo, o primeiro escriptor portuguez, que escreveo uma historia regular do Brasil em 1576. Este amigo de Camoes recorda a expressao indigena de que se serve o padre Ivo, porem nao parlilha sua opiniao, antes ere ser o ambar um producto vegetal formado no fundo do mar. 0 que e certo e, que nos seculos XVI e XVII o en- contro, quasi sempre casual, de enormes pedagos de am- bar, arreme£ados pelas ondas em praias nao exploradas, en- riqueceo muita gente. 64 (pag. 131). Debalde procuramos este nome no livro de Ayres do Ca- sal, e no Diccionario de Milliet de Saint Adolphe. A regiao habitada pelos Cahetes de que trata, sabemos com certesa ser na provincia de Pernambuco. A palavra Cahetes significa floresta grande, e se applica a diversas localidades. Foram os Cahetes, que em 1556 mataram e devoraram o primeiro Bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha. Este sabio prelado, natural de Setubal, e educado na uni- versidade de Pariz, regressava a Lisboa, onde ia queixar- se do governador da Bahia.390 Moslra-se ainda hoje a colina, onde eilo inorreu, e nao cresce ahi planta alguma, seguudo a crenpa do povo. (Vide Adolpho de Varnhagem—Historia Geral do Brazil. 0 livro de Gabriel Soares contem tudo quanto se deseja a respeito dos Cahetes, indios considerados geralmente como invensiveis guerreiros, e que se gabavam de habeis mu- sicos. A explorapao do Uarpy, de que aqui se trata, e empre- hendida pelo Sr. de Pezieux 6 urn a prova evidenle do cui- dado, que havia de explorarse esta regiao, percorrendo-se de N. a S. 65 (pag. 131). Estas minas de oiro, que se esperava encontrar no iMara- nhao em 1613, existem hoje na serra de Maracassume. Encontra-se o metal precioso sobre tudo em Piranhas, (districto de Santa Helena) nas cabeceiras dos rios Pindard, Gurupy, Cabello de Velha (Cururupu) Prata (Santa Helena) na Revirada, nas margens do Tomatahy, etc., etc., porem em pequena porpao. Existe cobre na Chapada no lugar Fazendinha e no Alto Pindare. Ferro existe em mais lugares, nos montes de Tirocambo e cm Paslos-Bons. Suppoe-se haverem minas de estanho, porem ainda nao se sabe com certesa. Encontra-se tambem o carvao de pedra, precioso mineral no estado actual da industrial depararam-se ja com alguns indicios no canal do Arapapahy, e affirma-se haver uma mica na distancia de meia legoa do Codo, na fazenda de Santo Antonio, cujas amostras provam ser de superior qualidade. Dizem haver tambem em Vinhaes. Em Sam Jose dos Mattoes encontram-se cristaes de rocba e pedras semi-preciosas, e saphiras em Sam Bernardo da Parnahyba.391 De passagem lembramos que as primeiras minas de ouro, ou para melhor dizer, os primeiros veios de ouro, deslina- dos a enriquecerem o Brasil, somente foram descobertos em Minas-Geraes, no anno de 1595. Pelas Provincias do norte nao conheceo a Metropole as riquezas metalicas d’este vasto territorio, onde desemboccam o Rio doce, e o Jequitinhonha. Sabe-se que este ultimo rio que toma o nome de Belmonte na occasiao em que se lanpa no mar, pouco distante do pri- meiro, com o andar dos tempos deo a coroa enorme quan- tidade de diamantes. Estas pedras, encontradas em 1729, principalmente no valle cercado de alcantiladas rochas, chamado pelos indios —Ivitur, e pelos portuguezes—Servo do Frio, nao eram completameute despresadas pelos indios, pois seos filhos as ajuntavam, e com ellas brincavam. No Maranhao nao ha diamantes. ©(> (pag. 141). Mostra-se o padre lvo aqui mui parco em suas descrippoes, porem deve-se desculpal-o por nao ser naturalista como urn theologo do seo tempo. Foi ainda mais parco o seo prede- cessor. 0 que disse de algumas plantas do genero mimosa indi- ca a sua preoccupapao a respeito de certos phenomenos na- turaes. As qualidades maleflcas, que reconhece no succo do Cajii, de que se fabrica uma especie de cidra, sao mui exage- radas. . Diremos de passagem, que a palavra Cauin deriva-se do nome indigena d’esta arvore. Caju-y, licor de Caju. ©7 (pag. 145). A flor da paixao (Grenadilla ccerulea) na qual a imagi- napao prevenida enconlra santos altributos, gozava cntao de392 prodigioso favor. Foi descripta cm varias obras, c gravada exagerando-se os ponlos de similhanpa, que podia ter com os instruments do supplicio de Jesus Christo. Ivo d’Evreux encontrou nos campos do Brasil magnifi* cas (lores d’estas, e mostrou-as aos amadores. Alguns annos depois elle se teria aproveitado da descrippao poetica, que d’ella fez o poeta popular Santa Rita Durao no poema inti- tulado Caramuru. Lembramos aos amadores de flores phantasticas uma gra- vura do seculo XVII, mui curiosa, mostrando a planta com o seo iamanho natural na obra «Antonii Possevini Mantuani Societatis, Jesu cultura ingeniorum, examen ingeniorum Joannis Huartis. Expenditur Colonial Agrippirm. 1610 ern 12. 6® (pag. 146). 0 guar a (Ibis rubra, ou Tantalus ruber) desappareceo em parte de varias localidades do littoral, onde coslumava expandir sua bnlhante plumagem, sujeita, conforme a ida- de, a diversas modificagoes. • Na obra curiosa de Hans Sladen, publicada na Allemanha em 1557, v($-se qual 6 o papel, que represents esta ave na industria indigena. E'ormavam os Tupinambas em tempo certo verdadeiras ex- pedites para procurar as pennas d’ellas, sempre raras, afim de servirem nas festas com que as tribus se obsequiavam reciprocamente. Em caso de necessidade eram substituidas por pennas de gallinhas, tinctas com uma preparagao vermelha de Ibirapi- tanga, ou pau-brasil. Actual mente refugiou-se o guara nas margens, pouco fre- queutadas, do rio de Sam Francisco, e principalmente nas desertas regioes do Rio Negro. Ainda tambem encontram-se algumas na lagoa dos patos3 e em Guaratuba. (Vide le se- cond voyage d- Aug. St. Hilaire. T. 2°, pag. 222.)303 60 (pag. 152). E impossivel aos quo nao leram as obras da idade media interpretar bem o senlido d’esta frase. 0 livro conhecido sob o nome de Phisiologv,s gozava ain- da de ccrtocredito no tempo do padre Ivo de Evreux. Quern quizer informar-se d’islo roinuciosamenle leia o precioso re- sumo d’esta curiosa obra, publicada pelos Rvds. padres Ca- hier e Martin, sob o titulo Melanges d’Archeologie, d’histoire et de litterature. 4 vol. in-fol. 70 (pag. 156). As mulberes Tupinambas, que assim cantavam para attra- bir as formigas, e activar a capa d’estes insectos, nao o fa- ziam somente para deslruil-as, ou para resguardar suas plan- tapoes de miiho de uma invasao inveneivel. As foimigas grandes torradas eram consideradas como uma das golodices mais preciosas, cuja receita foi por ellas ensinada a alguns colonos do Sul, e sem duvida nao sera desputada pelos nossos modernos Brillal Savarin. Assim como os Arabes comem ainda hoje gafanhotos, con- servados era sal ou pela dissecapao, e os Guaraons das mar- gens do Orinoco apreciam muito as larvas da palmeira Mu- riti (nao fallando de outra comida da terra do mesmo ge- nero), assim tambem os nossos selvagens guardam grandes provisoes d’estes insectos para sua nutripao. Augusto de Saint-Hilaire, o mais verdadeiro viajante, que percorreo o Brasil, achou ainda em vigor o costume de se comer formigas assadas. Depois de ter affirmado ser muito apreciado esse manjar no Espirito Santo, pelo que os habitantes de Campos, sem- pre rivaes dos da Cidade da Victoria, os chamavam Tata Tanajuras, «comedores de formigas», accrescentou «eu mesmo comi um prato d’estes animaes, preparados por uma 5S394 mulher Paulista, e nao lhes achei mau gosto.» (Vide Le se- cond voyage au Brdsil. T. 2.° pag. 181). Martim Soares de Souza, com rasao chamado o Gregorio de Tours dos Brasileiros, e mais claro a respeito do proveilo que os indios tiravam das formigas como alimento. Copiamos aqui o que elle tao curiosamente disse. Depois de haver fallado da especie grande, a que chamam Ipans, escreveo—«E estas formigas comem os indios, torradas so- bre o fogo, e fazem-Uie muita festa; e alguns homens bran- cos andam entre elles, e os misticos as tern por bom jan- tar, e o gabam de saboroso, dizendo que sabem a passas de Alicante: e torradas sao brancas dentro.v 71 (pag. 156). 0 prelendido cao, de que aqui falia o nosso Missionario, esta muito longe da rapa canina: e apenas o papa-formigas, chamado pelos indigenas tamandud, e pela sciencia Myrme- cophaga jubata. 0 naturalista Waterton, que com tanta curiosidade estu- dou os quadrupedes do novo mundo nos proprios lugares, onde com plena liberdade se entregam aos seos instinctos, fez excellente descrippao d’este animal. Ha no Brasil muitas especies de papa-formigasy sendo ra- rissima a chamada pelos portuguezes Tamandud-cavallo: parece ter sido este sobrenome o causador de haver o pa- dre Claudio d’Abbeville errado, quando disse ser o papa- formigas do tamanho de um cavallo. A palavra india, que designa este curioso animal, e com- posla de duas Tnpis-fam, «formiga,» e monde ou mondd, «iomar.» (pag. 157). Deve escrever-se Taranyra, cujo nome pertence a um ppqueno lagarto. Falla-se aqui do Tiu (Tupinambis mo- nitor).395 E excellent a came d’esto reptib e muito havia de con- correr para tornal-a saborosa a preparapao culinaria tao ga- bada pelo Padre Ivo d’Evreux. A repugnancia d’esse bom Padre para taes comidas, nao e de forma alguma partilhada pelos descendentes dos Euro- peos, acostumados as melhores mezas. A carne de Tui pela sua cor e maciesa muito assimilha- se a da gallinha mais preciosa, e porisso apparece nas me- lhores mezas do Brasil. 73 (pag. 162). 0 nosso autor quer fallar da Aranha caranguejeira, (Am- nea civicularia) porem aqui enganou-se. Exagera muito as dimensoes d’este insecto, na verdade nojenlo, como se pode ver em todas as collecpoes de entemologia. Nao e verdade dizer-se que nao fabricam fios para suas teias: a sua picada nao mala, porem envenena. Na lingua Tupy chama-se Nhan- du-Guacu ou de Jandu. 74 (pag. 163). 0 que nos diz o bom Religioso do barulho da cigarra de- nota gosto de observapao na historia natural, muito rare n’a- quella epoca, mas convem nao confundir a cigarra brasileira com o insecto assim chamado na Europa. 7 3 (pag. 165). Na lingua Tupi escreve-se Okiju. (Vide Martins, Glossa- ria ling. bras. pag. 465). 76 (pag. 168). Ivo d’Evreux confesse-se, esta aqui muito inferior a seo contemporaneo o Padre du Tertre.396 E verdade porem tudo quanto elle diz da luz dos pyri- iampos. A entomologia estava entao muito pouco adiantada para que houvesse urna classificapao entre os insectos, e nao le mos habilitapoes para preencher esta falta. Actualmente co- nhece-se no Brazil oito especies de pyriiampos a saber; Lampyris crassicornis, « signaticollis, « concoloripennis, (( fulvipes, « diaphana, (( hespera, « nigra, « maculata. Pode tambem juntar-se a estes lindos insectos a lucidota thoraxica. 77 (pag. 169). E muito exacto, e as abelhas do Brazil nao tem aguilhao: eis o que diz um observador sabio e veridico. Depois de haver affirmado, como o Padre Ivo, que as abelhas nao picavam, disse Augusto de Saint Hilaire «uma especie chamada tataira deixa, segundo dizem, escapar pelo anus um liquido ardente; e por isso e so a noite que se co- lhe o seo mel.» As especies chamadas urucu-boi> sanharO; burd? bravo, chupe, arapua e tupi se defendem, quando sao atacadas, mas parece nao terem aguilhao, limitando-se a morderem como fazem as outras.» muito liquido o mel das diversas especies, e a cera tem a cor parda muito carregada, nao se podendo at6 hoje conseguir tornal-a branca, como a da Europa. Spix e Marti us dao curiosas informa^oes a respeito d’estes uteis insectos, que completam as do nosso grande botanico.397 (Vide Voyage dans les provinces do Rio de Janeiro e de Minas Geraes. T. 2.°, pag. 371 e seguintes.) 78 (pag. 176). Nao ha talvez no mundo regiao alguma, que tenha maior variedade de macacos do que o Brazil. Creio que aqui se trata primeiro da guariba, ou mycetes ursinus, e depois do macaquinho stentor, que intentou des- crev^r o nosso bom Missionario. E provavelmenle d’esta especie a descrippao tao agra- davel e tao animada, feita pelo nosso velho escriptor. Convem observar porem que o Padre Ivo fez-se echo de uma crenpa popular muito vulgar no seculo XVI. Esta especie de legenda das florestas, muito mais appli- cavel aos macacos da Africa e da Asia do que aos do novo- mundo, nao se extinguio ainda de todo nos campos da Ame- rica Meridional, e mostraram a M. Gastelnau uma india, que julgava ter escolhido seo marido entre os macacos das flo- restas (Vide Expedition dans les parties centrales de I’Ame- rique du sud, de Rio de Janeiro d Lima et de Lima au Pard, exdcutie par ordre du governement francais. Paris 1851, partie historique. 5 vol. in 8.°) T9 (pag. 177). Basta ter-se vivido nas florestas habitadas por macacos para conhecer-se a exactidao do que escreveo o Padre Ivo. 80 (pag. 180). Ha aqui com certesa erro, ou entao exagerapao. 0 Padre Claudio d’Abbeville, que descreve a mesma ave de rapina (pag. 232) julga ser elle «duas vezes mais corpo- lento do que a aguia, ter a perna da grossura de urn bra- po, e a pata em forma de unhada.»398 Poderia ser esta descrippao do Condor, porern nao exisle esta ave na America do Sul. Diz o Coronel Ignacio Accioli ter o gavido real tanta forpa a ponto de fazer parar em sua carreira um viado por mais forte que seja. E lao phantastica a descrippao do Padre lvo, que a pri- meira vista se pode applical-a ao abestruz americano de Nandu9 que se encontra somente no Ceara e Piauhy. Urn escriptor contemporaneo, Gabriel Soares, tantas vezes citado, restabelece a verdade fallando do Ura-acu disse «sao passaros, como os milhafres de Portugal, sem diffe- renpa alguma, negros e de azas grandes, de cujas pennas utilisam-se os indios para emplumarem suas flexas, e vivem de rapina.» (Vide Tratado descriptive* do Brasil em 1587. Rio de Janeiro.—1851 l.° vol. in 8.° pag. 232.) Lembramos de passagem, que debaixo do ponto de vista scientifico a parte ornithologica e muito imperfeita, embora a bellesa do estylo do nosso velho viajante. 0 que diz, por exemplo, o Padre lvo do passaro mosca, ou do colibri, e inteiramente inexacto, pois elle nao tern o tal canto agudo, que faz lembrar o grito da cotovia. Confundiram-se as recordapoes com a distancia. 81 (pag. 181). Ivo de Evreux quer dizer, que os Indios se fazem galans, preparando-se com pennas de papagaios. Faziam os Tupinambas com estas pennas nao so mantos, diademas e perneiras, mas tambern cortavam bem miudi- nhas as pennas pequenas e coloridas d’estes passaros, e cobriam com esta pennugem o corpo, e n’elle grudavam-na com certa gomma. Este enfeite selvagem e singularmente original ainda e muito usado e apreciado em certas tribus. Segundo conta Joao de Lery durou mais de tres seculos. A viagem piltoresca de Dcbret apresenta uma amostra.399 83 (pag. 185). Basta, d bastante. Os hespanhdes e os portuguezes con- servaram a palavra baslar. 83 (pag. 185). Ja pagamos justo tributo de saudade a este Religioso, tao cheio de bondade como de zelo, coja sepultura no antigo cemiterio do pequeno Convento nao 6 sabida em Mara- nhao. Como indica o seo sobrenome de Religiao, nasceo o Padre Ambrosio na Capital da Picardia, «de parentes abastados, diz o manuscripto dos elogios, e que lhe deram educapao conforme permittiam seos negocios.» Depois de haver estudado na Sorbona, quando estava prestes a receber a sua carta de licenciado, foi abalado pelas pr6dicas do Padre Pacifico de Sao Gervasio, e entrou no Convento em 1575, quasi no tempo da fundapao do Mos- teiro de Santo Honorato. Em 1599 acabou seo noviciado, e com satisfapao comepou a preencher as obrigapoes de irmao leigo. Cedo passou a prGgador, e entao adquirio essa fama de caridoso, que o fez tao popular. , Aspirava a mais do que isto, «porque queria converter todas as Indias», diz a noticia a elle dedicada. 0 Padre Ivo cercava de todos os cuidados os seos con- frades quando emprehendiam viagens tao incommodas prin- cipalmente n’aquelle tempo. Estava ja muito enfraquecido, e sem forpas, quando em 26 de setembro de 1612 cahio doente, em sua pobre ca- bana de pindoba. . Ardente febre o devorava, e comtudo, ainda depois de receber a extrema uncpao, conservou em bom estado e sem- pre flrme o uso de suas faculdades intellectuaes.400 Transcrevamos aqui algumas palavras, que mostram qual foi o flm de tao bom velbo. Claudio d’Abbeville assim o coola: «Cahindo sobre elle um pequeno paioe) da Imagem de S. Pedro, pendurado por cima de sua cama, e a que dedicava profunda devopao, elle disse—vamos, grande Santo, parta- mos, ja que vieste buscar-me.— «Dizendo isto olhou para o Crucifixo e apos curta agonia restituio ao Creador sua alma tao boa em 9 de Outubro de 1612, dia da festividade do Glorioso Apostolo de Franpa, S. Diniz, Bispo de Pariz: «Foi sepultado no lugar chamado S. Francisco, consagra- do ao nosso Patriarcha, como premicias dos Capuchinhos Francezes.» (Vide tambem uittoges historiques de tous les illustres religieux capucins de la ville de Paris, les v/ns par la predication, les autres par les vertus et sainted de lews oeuvres, les autres par les missions parmy les infidelles etc. etc. sob numero Capucin Saint Honor6 4 (ter).» E para senlir-se e muito que se tenha perdido ha alguns annos o l.° vol. d’esta importante collecpao, contendo os Annaes da Provincia. 84 (pag. 186). Prova esta phrase tao rigorosa do velho missionario a ra- pidez, com que se espalhou na Europa o avati, dos brasi- leiros, o milho dos ilheos visto, bem como o tabaco, por Christovao Colombo na primeira viagem em 1493. Levantaram os botanicos grande questao, ainda nao re- sol vida, sobre a origem primitiva do milho. Pelo que diz respeito ao Brasil cilamos a opiniao d’um viajanle, que por seu saber pode passar por aulhoridade. Augusto de St. Hilaire pensa ter nascido no Paraguay, onde o vio em estado inculto.401 A cultura do milho e ao Sul d’America a planta nutritiva por excellencia, e prepara-se sua farinha por processos sim- ples, e que dao optimo gosto. Eoviamos nossos leitores, que desejam instruir-se de ludo quanto se refere a esta graminea para o precioso livro do Dr. Duchesne—Traite complet du mausou ble de Turquie. Paris. Renouard, 1833 em 8°, e para a grande obra de M. Bonafous. 85 (pag. 187). Falla aqui verdade o padre Ivo, porem nao se segue que ao norte do Brasil se possa fazer vinho. 0 maior obstaculo, que encontra este fabrico, esta no ama- durecimento do fructo sob os tropicos. No mesmo cacho ao lado de muitas uvas maduras eneon- tra-se grande numero de verdes. E voz corrente ter-se feito algum vinho na visinhanfa da Bahia. Caminhando-se para o sul, na regiao temperada de Men- doza, a uva amadurece perfeitamente, e da vinho precioso. (Vide, entre outras viagens a respeito d’este ponto curioso de agricultura americana—Sallusti, Storia delle missione del Chile. 4. vol. em 8.° Padre BarrSre. Nouvelle Relation de la France equinoxiale. Paris, 1743, 1° vol. em 12, pags. 53 e 54.) 86 (pag. 187). Trata-se aqui do fio que se extrahe com abundancia de uma especie de Ananaz. (Ananas non aculeatus, Pitta dic- tus Plum.) Com elle os portuguezes faziam meias, quasi tao proeura- das como as de seda. 57402 87 (pag. 191). Nao se encontra esla palavra no Diccionario de Nicol, ir- mao de Villemain. Podemos affirmar, que se deve escrever hansares—que signifies—uma foice de grande tamanho. 88 (pag. 192). Fazer certo sussurro expellindo com forga o ar pelo na- riz. K expressao do povo, confundida no Diccionario da Aca- demia com a palavra—rendcler «ronear» usada trivialmente no stylo familiar. 80 (pag. 194). Sao por Cardim muito bem pintadas essas recepgoes de indios. Os brasileiros nao podem preferir, na bellesa da narragao e no encanto das particularidades, senao um sO viajante por- tuguez a Ivo d’Evreux e a Claudio d’Abbeville, e 6 aquelle ,cujo nome acabamos de proferir. Este escriptor agradavel porem muito conciso, pertence a ord“m dos jesuitas. Foi para o Brasil em 1583, e ahi ficou revestido de todas as digmMades ate o fim de 1618: soube portanto do estabe- lecimento dos francezes ao Norte do Brasil, e certamente na Bahia soube de sua expulsao, e sobre isto infelizmente nada disse. Fernao Cardim estava em posigao bem diversa da do pa- dre Ivo d’Evreux. Pelas costas do Brasil, onde elle se apresentava, submet- tiam-se os indios ao christianismo, perdendo sua grandeza primitiva e conservando a maior parte dos seos usos.403 0 Missionario francez ao contrario cathequisa os indige- nas, que combatem pela sua independencia conlra seos con- quistadores. Os dois boos missionarios tiveram ambos a mesraa since- ra indulgencia e admiragao para com os povos ainda na in- fancia, aos quaes pregaram, e cuja pr6videncia 6 o seo maior e mais terrivel defeito. As cartas de Fernao Cardim foram felizmente descober- tas pelo incansavel autor da Historia geral do Brasil. 0 Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem nao poz seo nome n’esta preciosa publicagao, honra que aqui lhe restituimos, e a que tem direito como homem de saber e gosto. 0 opusculo de Fernao Cardim tem o titulo de «Narrativa epistolar de uma viagem e missao jesuitica pela Bahia, flheos etc etc.—Lisboa, 1847, em 8.° de 123 paginas. Parece-me que o sabio edictor nao se lembrou de have- rem preciosas informagoes a respoito de Cardim e dos m).s- sionarios contemporaneos do Brasil n’um escriptor de Tou- lon por nome Jarric. (Vide La 2me panic des chose's plus memorables advenues tant aux Indes orientates qv c autres pays de la dccouverte des Portugais en l’establi:ssement de la foi chrestienne et catholique etc. Bordeaux 1610 em 4.° £ dedicado a Luiz XIII. 0 que n’este livro se refere ao Bra- sil, e particularmente as regioes visinhas do Maranhao, acha-se ua pag. 248 at6 359. Morreo o padre du Jarric em 1609. Foi sua obra traduzida em latim, e impressa na Colonia em 1615. Gsta traducgao, augmentada em alguns lugares, foi publi- cada em 4 vol. em 8.° 90 (pag. 194). Ha quasi certesa de nao ter o nosso bom missionario lido a narragao de Andre Thevet, publicada em 1558, e nem a404 viagem mais recenle de Joao de Lery, cujas opinioes reli- giosas deviam afastal-o d’essas obras. Gomparando-se estes velhos viajantes entre si, facilmente nota-se a similhanpa das narrativas. Eis o que disse Joao de Lery a respeito da receppao, que Ihe fizeram os Tupinambas. «Descrevendo as ceremonias, que fazem os Twwpinam- baults para receberem seos amigos, que os vem visitar, merece dizer-se em primeiro lugar, que apenas chega o via- jante a casa do Mussacat, isto d, do bom pae de familia, da de comer aos que por ahi passam, e que elle escolher para seo hospede, facto que se hade praticar em toda e qualquer aldeia, por onde se transitar, sob pena de cauzar enfado se nao d procurado immediatamente. Assenta-se depois n’uma rede onde fica por algum tempo em silencio. Vem depois as mulheres, sentam-se no chao, tapam os olhos com as maos deplorando a boa vinda d’aquelle, cujos louvores farao em oecasiao apropriada. Por exemplo:—tiveste tanto trabalho para nos ver; tu ds bom, e valente: si d um francez, ou outro qualquer estran- geiro, accrescentam—trouxestes para nds tao bellas obras, corao aqui nao temos, e immediatamente derramam muitas agrymas, e assim aplaudem e lisongeam. Si o recem-chegado assentado em seo leito quer pagar- Ihes as finezas, dizendo de sua parte coisas agradaveis, nao querendo porem chorar, (como eu sei alguns dot nossos, que vendo as maneiras d’essas mulheres perante elles, foram tao nescios, que as imitaram) devem ao menos por fingi- mento exbalar alguns suspiros. Feitos assim estes primeiros cumprimentos pelas mulheres, entra depois o mussacat, isto e, o velho dono da casa, que fingira durante um quarto d’hora nao vos ver (caricia mui op- posta as nossas embaixadas, cumprimentos e apertos de mao a chegada dos nossos amigos. Chega-se depois onde estaes, e diz creiube, isto d, chegaste ? etc. etc. fvide Jean de Lery,*05 Histoire d'un voyage en la terre du Bresil. Rouen, 1578, em 8°, ia edicpao.) 91 (pag. 195). Ha no Brasil um sapo de grande tamanho, a que se deo o norae de «sapo boi.» Claudio d’Abbeville diz—«n’aquelle paiz encontram-se uns sapos muito grandes a que chamam cururu. Alguns ha que tem mais de um p6 on p6 e meio de diametro: quando sao esfolados, 6 impossivel dizer-se quam branca e a sua carne, e como sao bons para comer-se. Vi alguns fldalgos francezes comel-a com apetite. 92 (pag. 203). Mui visivelmente falla-se aqui da lenda brasileira relativa a Sume, o legislador dos Tupys. No eurioso opusculo, que a respeito d’este personagem publicou o Sr. Adolpho de Varnhagem, conta a sua chegada a Ilha do Maranhao, e como desappareceo na occasiao, em que se preparavam todos para sacrifical-o. A palavra—Maratd—nos poe em embarapos, pois debalde a procuramos em Ruiz de Montoya: e alterapao da palavra Mair ou Mair, tantas vezes empregada por Lery e Tbevet, para mostrar ou indicar um estrangeiro, ou uma pessoa ex- traordinaria. Nao podemos dar uma resposta satisfatoria. 0 Sum6, que propaga a cultura da mandioca, 6 barbado. Diz-se com razao ser personagem analoga a Manco Capac dos peruanos, e ao Quetzalcoalt dos Azetecas, e ao Zamma da America Central. (Vide Adolpho de Varnhagem, Historia geral do Brasil. T. 1° pag. 136, e Sume. Lenda mytho-re~ ligiosa americana etc. agora traduzidapor um Paulisla de Sorocaba. Madrid, 1855, broch in 8 de 39 pag.106 9 3 (pag. 205,, 0 verbo cantar na linguagem tupy e Nheengar. Ura Nhe- engacara e u'ii cantor propriamente dilo. 94 (pag. 220;. '(-arecera estranbo ao leitor serem os francezes compara- Jos n’este lugar aos Caraibas. Os que lerem com attenpao as obras de Humboldt acha- rao a chave d’este enigma. Os Caraibas do continente ame- ricano, napao immensa, eram notaveis era toda a America pelo seo valor e penetrapao. Sees piayas, ou antes seos fei- ticeiros os elevavam acima de todas as outras napoes: eram no Novo Mundo o mesmo que os Chaldeos no velho. Simao de Vasconcelios nos da a prova d’esta supremacia intelle- ctual: no sul do Brasil os Caraibe-bebe, eram feiticeiros ou ad- vinbadores notaveis: assim se ch.imavam os liomens intelli- gentes, os espiritos, e os anjos, e depois tambem os estran- geiros. 0 Sr. Adolphq de Varnhagem fez nolar, que o nome de Carmjba foi em seo principio dado aos Europeos, sendo todos os Cimstaos assim chamados. (Historia geral, pag. 312.) 95 (pag. 220;. Um Caramemo e que se chama em Guyana urn Pagard, isto e, um paneiro leve, feito com folhas de certa palmeira e as vezes com bonita forma Claudio d’Abbeville assim tambem o chama, quando des- creveo os utensilios de uma casa indigena. Barrerc fez de- senhar este lindo Specimen. 96 (pag. 226). lvo d’Evreux, familiarisado com todos os symbolos em voga no seo tempo, nao se esqueceo de uma graciosa alego-ria na qual figura o Unicornio. Vide Le Monde enchantee, e especialmente a disscrtapao intitulada Revue de I’histoire de la Licorne par un naturaliste de Montpellier. (P. J. Amo- reu.) Montpellier Durville, 1818, era 8.° 47 pags, 97 (pag. 239). E sabido ser esse o nome, que aos portuguezes davam os Tupinambas. Pero quer dizer cao na lingua de Camoes, mas suppoe- se que o nome—Pedro—muito usado no Brazil, provinha de tao estranba designapao. Ayres Casal conta ate a este respeito uraa hisloriasinba, recorrendo a tradicpao, de como um serralheiro, chamado Pedro, fora arremepado pelas ondas, apos um naufragio, as praias do Maranhao. Grapas a sua babilidade no trabalho do ferro fez-se este homem agradavel aos indios, e seo nome com pequena modificapao servio d’ahi em diante para fazer conhecidos os individuos, que se julgavam ser da sua rapa. Em sua Corographia o Dr. Mello Moraes escreveo esta le- genda muito mais completa. 98 ,pag. 242). Nao se tem procurado esclarecer por meio de uma dis- cussao grammatical—esta parte do livro. Differenpas mui sensiveis, produzidas pelo tempo e sobre tudo pela pronuncia, fizeram este lugar para assim dizer in- dicifravel. Nada e mais dificil do que traduzir pelos carac- teres da nossa escripta os sons das linguas indigenas. Essas inflexoes tao delicadas, e as vezes tao fugitivas, em sua appa- rente rudeza sao diQcultosamente fflxadas no papel. Notou Humboldt pertencerem ellas algumas vezes a certos caracte- res pbysicos das rapas. As napoes europeas, as mais habituadas a estes estudos, nao percebiam da mesma forma os sons, e nem os (scn>408 viam da mesrna maneira: quando os portuguezes ouvern Oca, por exemplo, ou entao Toba, o francez percebe Oc e Tob, e quando aquelle ouve Murubixaba este percebe Muruvicha- ve. Deixa a different de ser grande quando sao as pala- vras pronunciadas conforme o genio de cada lingua. A palavra Tupinambds, como se acha escripta no prin- cipio d’esta nota, (Tobinambos) equivale absolutamente pelo som na lingua portuguesa a palavra Tupinambus, como a pronunciavam os contemporaneos de Malherbe. Para a historia da linguistica nao 6 sem interesse esta curta doutrina christa, podendo ser comparada com certas obras do mesmo genero, escriptas por penna portuguesa, estando n’este caso, entre outras, os canticos religiosos em lingua tupy por Christovao Valente, os quaes inclui no opus- culo—Une fete bresilienne. Pariz. Techener, 1850. Nao se pode achar o livro que os contem, e talvez so exista na Bibliotheca Imperial. Reproduzimos aqui seo nome—Cathecismo brasilico da' doutrina christd, com o ceremonial dos sacramentos e mais ados parochiaes. Composto por padres doutos da Compa- nhia de Jesus, aperfeicoado e dado d luz pelo padre Anto- nio de Araujo da mesma Companhia, emendado nesta se- gunda impressdo pelo padre Bertholameu de Lean da mes- ma Companhia, Lisboa, na officina de Miguel Deslandes 1861, c ii 8.° pequeno. A primeira edic^ao foi em 1618. Si se quizesse, poder-se-ia completar este estudo com- parative procurando os seguintes manuscriplos, citados por Barbosa Machado, e que seria coisa curiosa si fossem pu- blicados. Ludewig os ommitlio em seo importante trabalho, com- pletado por Mr. Trubener. 0 Padre Joao de Jesus explica- cdo dos mysterios da fe. 0 Padre Manoel da Yeiga Cathe- cismo. F. Pedro de Santa Rosa Confessionario. Andre The- vet nos seos manuscriptos conservados na Bibliotheca Impe- rial de Pariz, da o Pater e o Credo em lingua tupy, depois reproduzidos em sua grande Cosmographia. Sao preciosos409 estes dois documentos especialmente por sua antiguidade, pois datam de 1556. Entre os livros d’este genero um dos mais modernos e dos mais curiosos e o do Padre Marcos Antonio, intitulado: Doutrina e perguntas dos mysterios principaes de nossa santa fe na lingua Brasila. Foi composto em 1750 e Lu- dewig raenciona-o como fazendo parte das collecfoes do British Museum. 99 (pag. 250). Lery ja tinha asseverado o effeito, que faz nos indios o canto melancolico do Macauhan. A crenpa nos mensageiros das almas, nos passaros propheticos ainda nao se extinguio de todo, pois ainda existe na poderosa napao dos Guayacu- rus, depois de haver exercido antigamente sua poderosa influencia em todas as tribus dos Tupys, porem o padre Ivo deo-lhe extensao que nunca teve, visivel alterapao nas anti- gas ideias mythologicas. . 0 nome d’este passaro respeitado e escripto em portu- guez Acauan, e tambem Macauan: nutre-se de reptis, e nao tern esse aspecto sinistro, que Ihe da o nosso bom Mis- sionary. Tern a cabepa muito grossa em relapao ao corpo, e cor de cinza, o peito e o ventre vermelhos, azas e cauda negras com pintas brancas. Pensa hoje em dia a maior parte dos indios, que a missao deste passaro e annunciar-lhe a chegada de al- gum hospede. Consulte-se sobre o Acauan, Accioli, Corogra- phia Paraense, e Gonpalves Dias, Diccionario da lingua Tu~ py. Martius na palavra Oacaoam diz ser o Macagua de Felix de Azara. Falco (herpethocheres). 100 (pag. 257). No tempo de Ivo d’Evreux, eram chamados Barbeiros, os cirurgioes mais habeis, e alguns annos antes ale o illus- Ire Ambrosio Pare era assim conliecido. 58Como os Piayes, Page, Pagy, Boyes ou Piaches (por todos esles Domes sao conbecidos) cuidam de eurar feridas e mo- lestias. 0 padre Ivo, como se vera adiante, os compara por des- preso aos barbeiros, mas entenda-se, aos barbeiros das al- deias. Este capitulo 6 por certo urn dos mais curiosos do livro, e deve ser com todo o cuidado comparado com o que es- creveo Simao de Vasconcellos, (Chronica da Companhia de Jesus, in fol.) e com todas as Memorias pubticadas pelo Ins- tituto Historico do Rio de Janeiro sobre a religiao primitiva dos indigenas, achando-se ahi bem claramente definidos os attributes de Jeropary. E na verdade para sentir-se a falta de uma folha, porque nos trouxe a perda de preciosos documentos de homens pra- ticos e habeis, que entre si conservavam as tradicpoes. Id (pag. 264;. No tempo d esta narrapao eram ainda os morcegos classi- ficados como passaros. 0 que aqui diz o nosso viajante sobre os vampyros nao e exagerapao. Consulte-se a este respeito Ch. Walterten (Excursions dans I’Amerique meridionale, p. 15 e 389.) Este sabio naturalista descreveo com minucioso cuidado o genero da ferida, que produz o morcego americano nas pes- soas, que dormem. Matou urn vampyro, que tinha 32 polle- gadas de extensao de azas abertas. Em geral sao muilo me- nores. 103 (pag. 268;. Entre os antigos viajantes do seculo XVII e Ivo d’Evreux >) unico, como notamos, que menciona entre os Tupinambas411 os rudimentos de estatuarla (iraperfeita sem duvida) com applicapao a mytbologia d’estes povos. D’estas coisas nada escreveram Thevet, Hans Sladens, e Lery, Vasconcellos, Cardin e Jaboatao. Eram os Tupys unicamente capadores, e so per accidens se ehtregavam A Vida agricola. Os unices vestigios de cul- tura, que d’elles conhecemos, se referem aos seos Macanas, ou a sua Lyvera-peme, especie de armas pesadas, que elles ehfeitavam a capricho. fittbam por costume por urn Maraca, enfeitado de bonitag pennas na proa de suas canoas de guerra, tao esguias como elegantes, e sera bem possivel, que a base d’esse instru- mento seja ornado de sculpturas similhantes as qfle se ob- servam entre os insulares da Polynesia. E provavel que mid- tiplicando-se suas relapoes com os Europeos, tenham os Tu- pinambas bebido entre elles ideias de sculptura rudimenlar que applicam a suas divindades grosseiras. 0 veridico Barrere, que escreveo mais de um seculo de- pois de Ivo d’Evreux, falla de um piaya fazendo uma esla- tueta de Anaanh, genio do mal, que nao e senao o Anhan- ga do padre Nobrega e de Anchieta, cuja lerrivel missao sobre a terra foi tao bem descripta por Joao de Lery, que sempre o chamou Aignan. Deem-lhe nas ilhas ou nos continentes os nomes de Ura- can, de Hyorocan, de Jeropary, de Maboya, de Amignao, reconhepam-se os genios secundarios, como seos mensagei- ros (apenas citarei um, o malicioso Chinay, que faz emma- grecer os pobres indios sugando-lhes seo sangue.) Anhanga teve sempre fama lerrivel nos seculos XVII e XVIII. Este typo primitivo da sculptura religiosa dos Tupys foi infelizmente aberto em madeira muito molle, e por isso nao poude resistir a acpao do tempo, ou a invasao das formigas: duvidamos que se encontre um s6 specimen de dois seculos atraz. Eis finalmenle a passagem tao curiosa de Barrfere que con- lirma as palavras do padre Ivo, «Tem os indios outra sorlede feitigaria, que os singularisa. Fazem uma figura do diabo n’um pedago de madeira mode e soaora: esta estatua do ta- manho de tres a quatro pes e muito feia pela sua immensa cauda, e grandes lanhos. «Chamam-na Anacmtanha que parece dizer—imagem do diabo, porque Tanha significa figura> e Anaan-diabo. De- pois de haverem soprado sobre os enfermos, trazem os Pia- yas esta figura para fora da casa-grande: «Ahi elles o interrogam, esbordoam-na a cacete, como para obrigar o diabo, bem a seu pesar, a deixar o enfermo.» (Vide Nouvelle Relation de la France equinoxiale, conte- nant la description des cotes de la Guiane, de Visle de Cay- enne, le commerce de cette colonie, les divers changements arrives dans ce pays etc. etc. Paris. 1743, em 12 gr.) N’um capitulo precedente Ivo d’Evreux ja fallou de uma boneca que tinha uma especie de mecanismo, que servia para as nigromancias do Piaya. E para sentir-se, que nao se encontrasse urn so d’estes idolos nas collec^oes etnographicas, que entao comepou-se a fazer. Poucos annos antes de haver la Ravardiere explorado o rio do Amasonas, Joao Mocquet, o guarda das curiosidades do Rei, percorreo essas praias, e seria de rara felicidade para a archeologia americana si elle encontrasse alguns dos ido- los de que falla o padre Ivo. 103 (pag. 271). E mui provavel, que estas lustrapoes sejam feitas a imi- tagao das ceremonias, que entre os christaos viram os Tupi- nambds. Pode bem ser, que o mesmo acontega a respeito da pre- tendida confissao auricular de que falla o autor um pouco mais adiante. Os antigos viajantes, Hans Staden, Lery e Thevet nada di- zem, que tenha relagao com tal costume.104 (pag. 272). Parece a pritneira vista ter recebido este jnaya, tao in- fluente, um Dome francez: assim porem nao aconteeeu. Havia n’esse tempo urn poderoso Chefe, chamado Pa- cqwra-behu «barriga d’uma paca cheia d’agoa». Pacamont pode signiflcar a «paca agarrada na armadilha», (Paca- mondS). 0 nome da terra, onde tinha influencia, signiflca a «re- giao das plantas leitosas», e escreve-se Cmnd. 105 (pag. 280). Vatable ou Vatebld era um celebre sabio na lingua he- braica, no seculo XVI, restaurador na Franpa dos esludos orientaes. Morreo em 1547. Suas notas sobre o antigo testamento acbam-se na Biblia de Robert Etienne. tOO (pag. 282). Prova-nos esta phrase ter o Padre Ivo eseripto sua obra na Europa, e saber da missao dirigida pelo Padre Archan- gelo. Affirma Marcellino de Piza terem 565 indios recebido o baptismo n’esta segunda expedipao religiosa. (Vide Annales historiarum ordinis minorum. Lugd. 1676 in fol.) 0 Padre Archangelo, acorapanhado por 12 confrades, por- tador de magniiicos ornamentos bordados pela Duqueza de Guize devia por certo cercar-se de outra pompa, que nao liveram os quatro Geraes Capuchinhos, que deram principio a missao. G rap as aos documentos, que nos sao proporcionados pela marinha, e que devemos ao obsequio do Sr. P. Margry, soubemos por uma carta inedicta do Sr. de Beaulieu a Mr.414 tie Razilly, que o Padre Archangelo, muilo eonhecedor do valor do dinheiro abstrahindo o seo voto de pobresa, nao quiz embarcar-se antes de lhe haverem dado a esperanpa de conseguir subsidios. Apesar dos recursos, de que dispunha o seo chefe espiri- tual, ainda esta por fazer a historia d’esta segunda missao: nao deixou ate vestigios, e flcara para sempre ignorada em quanto nao descobrirmos o livro de Francisco de Bourde- nare. Sabemos apenas que muito mais favorecido, que Ivo d’- Evreux, por seos superiores, recebeo, gramas as suas cartas de obediencia, o direito de admittir novipos em seo Con- vento. Nao teve tempo de utilisar-se de tal privilegio, mas quan- do regressou a Europa, em recompensa do seo zelo foi em 1615 nomeado Guardiao do grande Convento da rua de Santo Honorato. Todos estes factos, omittidos naturalmente pelos bistoria- dores do Maranhao, acham-se referidos nos Eloges histori- ques, manuscripto da Bibliotheca Imperial, e seria injustipa esquecer serem elles tambem narrados pelo Padre Marcel- lino de Piza. Depois de haver contado como o Geral dos Capuchinhos r Paulo de Gaesena deo licenpa a Honorato de Pariz, entao Provincial, para mandar a America uma segunda missao, disse:—«Me nihil cunctalus, duodecim fratres ad hanc expeditionem; aptos elegit quorum animosa phalanx navem conscencd secedens in Indiamy a harbara ilia natione jam capucinorum placidis moribus assueta per humaniter fuit excepta. Na entrada dos portuguezes o Padre Archangelo de Pem- broke retirou-se com os Capuchinhos francezes flcando em lugar d’elles os Franciscanos, que em numero de vinte se recolheram ao Mosteiro. Sob a direcpao de Frei Christovao Severino teve entao o Convento nova regra.415 Forara as bases lanpadas em 1624 porern so forara cum- pridas pontualmente era 4 de Agosto do anno seguinte. Absteraos-nos porern de offerecer as vislas do leitor as des- grapadas peripecias, porque passou este Mosteiro durante 225 annos: basta dizer, que no iim de urn seculo estava quasi reduzido a ruinas. Em 1860 o actual Guardiao, que tinha sob seo governo somente dois franciscanos, mas que soube felizraente captar as syrapathias dos habitantes de Sao Luiz, recorreo a cari- dade publica afim de concertar-se como merece este edifi- cio, a que se ligam interessantes recordapoes do paiz. A Ordem 6 actualmente muito pobre, porern offereco grande contraste, segundo 6 voz geral, quando em seo zelo 6 comparada com outros Conventos * opulentos da Cidade, que estao se arruinando. Nao foram em vao as supplicas de Frei Vicente de Jesus, pois elle arrecadou grandes quantias, que chegaram para reparar os estragos do tempo. Gonservando a humilde Capella, onde orou o Padre Ivo d’Evreux, flzeram-se novas edificapoes que tornaram a Igreja de Santo Antonio a mais linda de tao bella Cidade. 107 (pag. 301). E mui curioso ver aqui o Padre Ivo d’Evreux fazer uma especie de allusao a antigas crenpas d’esses povos, as quaes Thevet, ou talvez o Cavalheiro de Villegagnon tinham guar- dado desde 1555, e que parece ser ignoradas pelos nossos viajantes do Seculo XVI, pois nao tratam d’ellas em suas narrapdes. * E iojustica confundir-se nesta censura o Convento do Car- mo, grapas ao zelo do seo benemerito Provincial o Revd. Frei Caetano de Santa Rita Serejo. Do traducto/.41G Uma nota, mesmo concisa nos levaria muito longe, e ver- nos-iamos forpados a chamar a attenpao do leitor para um opusculo, no qual reunimos tudo o que podemos encontrar a respeito das ideias mythologicas dos Tamoyos e dos Tupi- nambas. (Vide sobre os Maraita—Une fete bresilienne cele- bree a Rouen em 1550 suivie d’u/n fragment du XVIme si- ecle roulant sur la Theogonie des anciens peuples du Bre- sil. Paris, Techener, 1850 gr. in 8.°) 108 (pag. 301). A legenda brazileira de gerapao em gfcrapao transmittio a narrapao das perigrinapoes de dois prophetas, bem dis- tinctos, igualmente estimados por esses selvagens, que os ehamou Tamandare e Sume. Como Boudaha, deixou o ultimo impressas as suas pegadas sobre a rocha viva, quando deixou a terra. 0 mytho de Tamandare, que se le na descrippao do di-' luvio americano, e contado extensamente por Vasconcellos nas suas Noticias do Brazil, pag. 47 e 48. Ahi se lera como o Noe americano subindo ao cume de uma palmeira, que tocava com o seo vertice o Ceo, e agar- rando d’ahi sua Familia poude salval-a, e com ella repo- voou a terra. Na phrase aqui citada, Ivo d’Evreux alludio ao legislador mais moderno, Sume, este Triptolemio brazileiro, que en- sinou a cultura da mandioca aos descendentes de Taman- dare. Simao de Vasconcellos diz raui positivamente, que «havia entre elles tradicpao muito antiga, transmittida de paes a filhos, dizendo haverem apparecido, muitos seculos depois do diiuvio, homens brancos n’estas terras, que fallavarn aos povos de um so Deos e de outra vida. Um d’elles cha- mava-se Sum6} que parece quer dizer Thom&.y> Preferindo a tradicpao, que da a Sao Bartholameu a honra de haver evangelisado os povos longiquos, prevou com isto o Padre Ivo o seo conhecimenfo das origens.Com efTeito, segundo diz Eusebio, chegou oste Apostolo viajaote ale a extremidade das Indias. Siio Panlene percor- reo o interior da Asia desde o ltl seculo, e alii ja action vestigios do christianismo, que bem se podiam attribnir as pr6dicas de Sam Bartholameo. Prevaleeeo comtudo no Brasil a legenda em contrario, como a outra na India. (Vide Jornada do Arcebispo de Goa dom Frei Aleixo de Menezes. qvando fox as serras de Ma- lauare, hcgares em que moram os antigms ehristdos de S. Thome. Coimbra, 1606, in fo!.; No tempo de Vasconcellos bem visiveis eram os signaes dos p6s de S. Thome, ao norte do porto de S. Vicente, perto da Villa. Estes signaes de dois pes nus por maravilha irnpressos na rocha (tdo vivos e expressos, como si em v-m mesmo tem- po juntamente se fizeram) nao eram vistos debaixo d'agoa. 0 religioso franciscano Jaboatam achou no Recife, em Per- nambuco, pegadas santas. . N’esta segunda edicpao da legenda, somente apparece urn p6 como o de urn menino de 5 annos, que suppoe ser o piedoso narrador o de urn jovem companheiro do Apostolo. ■ Vide Novo Orbe Serafwo, reimpresso ultimamente pelos es- forpos do Institute flistorico e Geoqraphico do Rio de Ja- neiro.) Nao se encontram esses afamados signaes somente em diversos pontos do littoral, e sim em ontros lugares, o que seria enfadonho enumerar. Nao contentes ainda com isto fizeram com que o santo viajante se embrenhasse corajosamente pelo interior do Bra- sil, onde em caracteres gigantescos sobre pedras ou rochas escreveo a historia da sua missao. Ha em Minas uma aldeia, a que se deo o nome chaman- do-a Sam Thome das Lettras. Urn observador circumspecto, o general Cunha Mallos, nao vio taes inscrippoes, e combateo a tradicpao dizendo que esses traces phantasticos, que se observant n*nm dos 39lados da Serra das iettras foram formados per accidentes dp lerreno, isto e, por dpndril.es, para servir-me de suas expressoes. Vide Mnerario do Rio de Janeiro ao Para e Maranhdo. Rio de Janeiro. 1836. 2 vol. em 8.° T. l.° pag. 63;. Dura ate hoje esta opiniao sobre a gigantesca inscrippao da Serra das Iettras, e acredita-se actualmente serem de- vidos a infiltra^ao de particulas ferruginosas obrando sobre o grao da serra, e por est’arte simulando earacteres es- eriptos. No Brasil sao muitos os hieroglyphos grosseiramente em* butidos, e ninguem duvida serem devidos a origem indi- gena. Muitas obras nos mostram os seos facsimile. A grande viagem pitoresca de Mr. Debret tern dois, que nao deixam de ter interesse. Fallamos da inscrippao do monte de Anaslabia, e das esculpturas embutidas n'uma rocha, que se encontra perto das margens do rio Yapura, na provincia do Para, bem pode ser que as palavras do Padre lvo se refiram a este monumento, grosseiramente trabalhado, e de que trata Mr. Debret aa pag. 46 do seo T. 1°, porem em aiguns nao acha a mais prevenida imaginapao bases para assentar uma opi- niao historica on religiosa. Pelo que se refere as rochas incisadas, de que falla o nosso bom frade, e tradiepao geral em toda a America, que estes accidentes, resultados de grandes commopoes da natu- reza, sao sempre explicados pela iegenda indigena, que os atlribue ao supremo poder de urn semi-Deos, que, a sua von- lade, quebra as montanhas mais resistentes ao trabalho do homem e, algumas vezes, ate os mais gigantescos. Em Nova-Granada o salto de Tequendama nao teve outra origem, pois foi feito, como se sabe, pelo grande Bochica: poderiamos tambem citar a abertura feita no recife7 que margina o littoral de Pernambuco, e que se attribue ao grande Sume, on ao seu representante christao, o Apostolo viajante. Vide Frei Antonio de Santa Maria Jaboatao, NowOrbe Ser often Brasilia:t, oil Chronica dos frades rnenorcs da provineia do Brasil. 2.a ediec. Rio fie Janeiro. 1858 . Jaboalao esereveo em 1701. . 109 -pag. 31 1. Tinha este ehefe indigena urn nome hem eonhecido na ornithologia do Brasil. 0 Jaeupema e o Pe-nelopsupereilio- ris uma das melhores oacas do Brasil. 1 tO (pag. 384.) Na farpilia dos Foulon, de que gozava muita considerate em Abbeville, tinham mnilos dos sees memhros se dedieado a vida monastica. 0 padre Marfal esleve em Pariz com seo irmao o padre Claudio; este ultimo, cujo arligo esta tao cheio de erros na biographia universal, era ja guardiao do convenlo na sua patria desde 1608, mas, como o padre Ivo, comepou o seo noviciado em 9 de junho de 1595. A bibliotheca do Arsenal possue urn opusculo, hoje rare, do padre Claudio, cujo titulo e—Larrivee des Peres Capu- eins et la conversion des sauvages a nostre sainte Foy de- clares par le B. P, Claude d’Abbeville, predicateur copucin d Paris, chez Jean Nigaut, rue de St. Jean de Latran, em 1613. Pode compaiar-se este escripto com o arligo intitula- do—Retour du sieur de Rasilly en France et des Tonpi- nambous quit amena d Paris. Mercure franchise. T. 8, pag, 164. L'his loir e chronologiqm de la bienlieureiose Co- lette, reformatrice des trois ordres du Seraphique Pere St. Francois. Paris. Nicolas Buon, 1628, em 12: nao e do padre Claudio, como suppoe Eyries. A dedicatoria tern a assigna- tnra de Fr. S. d’A, indigno capuchinho. Ja tinha morridn Claudio d'Abbeville quando appareceo esta obra. Depois de ter 23 annos de religiao, falleceo em Rnao em 1616 e nao em 1632.420 111 ipag. 335-). Leia-se Plymouth: Claudio d’Abbeville escreve Pleme. 112 lpag. 335.; Trala-se aqui do Rio do Onro. 113 (pag. 336.; Difficiimente por este norae se sabe ser a llha de Fernao de Noronha, e nao Fernando de Noronha, romo escreve alguns geographos. Esla a 75° long. E. N. E. do Cabo de Sam Roque, e na lat. de 3° 48, a 52'. Explica-se esta alterapao de nome pela sua visinhanpa do Cabo de Sam Roque. Alguns viajanles antigos escreveram Fernando de la Rog- ue: n’esse caso esta o padre Claudio. 114 (pag. 337,. Omitlio o padre Claudio d’Abbeville esla ultima circum- stancia. 115 (pag. 339;. Leia-se Tupan em vez de Iupan. Quanto a palavra Ma- tarata, que ahi se le, nao se pode entender pelo adjectivo Mbaraete, que significa—forte. Parece estar sob esta signi- ticapao no Tesoro de la lingua Guarany, do padre Ruiz de Montova. 116 (pag. 341.; 0 capilao du Manoir estava ha muito tempo estabeleeido na Illia, onde linha muitas relapoes.421 Foi elle quern hospedou os Missionaries, c dies offereceu ulna festa «tao magnifica corno podia ser em Franpa» disse o padre Claudio, a qual assistiram os Srs. de Rasilly e Pe- zieux. Foi da sua babitapao que partiram os nossos para lo- mar posse do lugar, onde se edificou o Forte de Sam Luiz. Regressou a Franpa antes de ser o Maranhao tornado pelos portuguezes. Quando evacuaram as nossas t'orpas navaes o porlo do Ma- ranbao, muitos francezes nao seguiram o exemplo de Manoir, e se estabeleceram na nova Colonia, onde srj foram permit- tidos artislas. Erraria quem suppozesse ter sido abandonada a missao fundada com tanto zelo pelos nossos Religiosos: sem a ine- nor alterapao foram incumbidos d’ellas os Franciscanos: a este respeito achou-se tudo quanto podia desejar-se no Orbe Seraphico do padre Jaboatao. Contem este resumo uma longa biographia de Frei Fran- cisco do Rosario, frade celebre na Ordem de Sam Francisco, que tomou posse do Convento dos Capuchinhos perto de dez annos depois, que estes o abandonaram de todo. Embrenhava-se muitas vezes este zeloso Missionario nos desertos desconhecidos do Maranhao, onde ia cathequisar os indios. Em 16,10 cornpdz uma obra aproveilavel sobre as tribus que visitou. Infelizmente nunca foi publicada, e o seria se fosse enconlrada, como precioso commentario a obra do padre lvo. Cansado por seos irabalhos, cuja multiplicidade espanta ate a imaginapao, foi para a Bahia, onde revestido das dig- nidades da ordem falieceo com cheiro de santidade em 24 de fevereiro de 1650. Ar ma-se haver elle predicto muitos annos antes os gran- des acontecimentos politicos, que, produzindo a expulsao da Hespanha, dava independencia ao Brasil. Parece que vio-se obrigado a reconstruii- em 1625 os edi flcios que deixaram em eomepo os nossos Religiosos. e porV*)') isso tui die cm Sam Luiz julgado como u primeim fund ad or do Convento da sua Ordem. Varaos ainda dizer uma palavra para acabar estas notas. Serao ellas ainda uni dia completadas pelo trabalho, que ha de precede** a Relacdo do Padre Claudio dyAbbeville. esise quizer, o podem ser ja, consultando se varias obras fran- cezas contemporaneas, absolutamente despresadas, sob este ponto de vista, pelos hisloriadores da America. N’este caso, entre outros, esta o padre Pedro du Jarric, pois, na verdade, ninguem pensaria acliar n’uma Ilisloria das Indids orienlaes todos os factos religiosos, acontecidos em Maranhao antes de 1607. Consultando-'e o 5.° volume desla volumosa obra, en- contra-se a tragica bistoria dos padres Francisco Pinto e Luiz Figueira, jesuitas portuguezcs, os primeiros que visi- taram os deserlos desconhecidos, cujo littoral occuparam os trancezes. Francisco Pyrard, o viajante Belga, residenle na pequeiia cidade de Laval, nos eontou tambem na sua Relacdo das Indias e especialmeate das Ilhas Maldivas, o que na Euro- pa se pensava do Brasil no tempo, em que viveo o padre lvo. Nao trala do Maranhao, e nem o podia iazer. Deve ainda dizer-se que esta bella provincia, conhecida mais peia obra de Mr. Herald do que por oulras antigas, !i u por muilo tempo fora da tod a a vida politico. Doada a priueipio aos lilhos de Jose de Barros, o famoso historiador das ludias, so foi conhecida na Europa por uma lastimavel catastrophe, pois era esquecida apesar da ferlili- dade e da magnificencia da sua vegetagao. Apparece comtudo n’um dos monumentos geographicos mais importanles, unde se veriticou o que era o Brasil no seculo XVI: queremos fallar da bella Carta de Caspar Viegas, que tern a data de outubro de 1534. hoje na Bibliotheca Impe- rial de Paris. Nenhum histuriador ate hoje ainda a nienciuiiou, apezarde sua exactidao tao admiravel para aquellcs tempos, e aindacontinuaria a scr esquecida se o Sr. de Cortambert Liao nos fizesse o favor de communicar-nos a sua existencia. Sentimos muito praser recordando-nos, que este bello tra- balho do desconhecido geographo vae de bora era dianle ligar-se ao mais vasto e ao mais exacto reconhecimento das costas do Brasil, qae tern podido obter a sciencia n’estes lib timos tempos, e d’ella fara objecto de especial estudo o Sr. capitao da fragata Mouchez na sua grande obra nautica a respeito do littoral do Brasil. Deviam acabar aqui as notas indispensaveis para conho cer-se na Franca e mesmo na America o texto do nosso ve- lho viajante. Accrescentaremos apenas uma palavra, talvez indispensa- vel para comprehender-se o valor do documento por nos exhumado. 0 padre Arsenio de Pariz, o fiel companheiro do padre Ivo d’Evreux, disse em 1613 ao Superior do seo Mos- teiro a proposito das regibes, por onde evangelisou, o so guinte: «Eu vos asseguro, meo padre, que quando estiver um pouco estabelecido, sera um verdadeiro paraiso lerrestre.» A esperanpa do bom Religiose nao era das que se podem realisar completamente: nao caminham assim as coisas nesie mundo, porem nao sendo o paraiso, e o Maranhao uma das provincias de um vasto Imperio, que vae progredindo. No meio de prosperidades reaes, e apezar dos esfor^os de espiritos felizmente bem intencionados, o progresso intelie- tual do paiz esta muito longe do que devia ser. As recordapoes do passado, que tanto desenvolvem as populapoes, ahi nao existem. Nao ha archivos, bibliothecas publicas. e nem, instituipbes litterarias, e tanto e verdade islo, que o lmperador, o Sr. D. Pedro 2°, ha dez annos incumbio um dos homens mais activos e eminentes d’este paiz para examinar na Cidade de Sam Luiz o estado real dos depositos litterarios da Capita! do Maranhao.124 Nao reproduziremos aqui as queixas judiciosas e bcm-iun- dadas do Sr. Gonsalves Dias sobre o lamenlavel eslado dos eslabelecimenlos, objecto de suas investigates. Pode !er-se o seo Reiaiorio escriplo em bom estylo na Revista Trimensal pubiicada com tanto zeio pelo Institulo Historico do Rio de Janeiro. Gitaremos apenas, que ha dez annos, Gonsalves Dias acliou 2:000 volumes na Bibliotheca Publica e no Almanach de 1860, edictado pelo Sr. B. de Matlos, apparecem 1:030 em deploravei eslado ! Possa a reimpressao da obra do padre lvo d' Evreux mar- car uma nova era na patria de Odorieo Meudes, de Gonsal- ves- Dias, e de Joao Lisboa. ■ns. Ao leitor................................................ Introduceao.................................................. I Ao Rei....................................................... I AoRei........................................................ 3 Prefacio..................................................... 7 Da construccao das capellas de S. Francisco e S. Luiz do Maranhao................................................. 9 Do estado do poder temporal em sua primitiva............. 11 Da construccao do Forte de S. Luiz, e do interesse dos selvagens em carregar terra.......................... l i Dos preparativos dos Tupinambas para uma viagem ao Amazonas............................................... Ill Partida dos francezes para o Amazonas em companhia dos selvagens............................................... 43 Do (pie aconteceo na Uha durante esta viagem, e principal- mente das astucias de um selvagem chamado Capitao.. 47 Da chegada de uma barca portugueza a Maranhao............ 31 Do valor e dos costumes dos selvagens do Miaty.............. 36 Das incisoes, que fazem estes selvagens em seos corpos e como escravisam seos inimigos........................... 40 Leis do captiveiro.......................................... 44 Outras leis para os escravos................................ 48 Quanto sao misericordiosos os selvagens para com os cri- minosos por acaso e sem malicia......................... 34 Quanto e facil civilisar os selvagens a maneira dos fran- cezes e ensinar-lhes os officios que temos em Franca... 58 Quanto sao aptos os selvagens para aprenderem sciencias e virtudes.............................................. 63 Continuacao do objecto antecedente.......................... 67 Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, obser- vada inviolavelmente pela mocidade...................... 71 A mesma ordem e respeito e observada entre as raparigas e as mulheres.......................................... 79 Da consaguinidade entre os selvagens........................ 84 Dos caracteres incompativeis entre os selvagens............. 90 Da economia dos selvagens................................... 94 Do cuidado que do seo corpo tern os selvagens............... 95 De algumas indisposicoes naturaes, a que os selvagens se acham sujeitos, e quaes os nomes que dao aos membros do corpo.................................................. 191 60IT De algumas molestias particulars a estes paizes de iudios e de seos remedios.................................... 100 Da morte e dos funeraes dos indios....................... Ill Do regresso a ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns Principaes, que o seguiram.............................. 116 Viagem do capitao Maillar pela terra firme a casa de um grande feiticeiro. Descripcao desta terra e das zornba- vias d’elle............................................. 120 Da vinda dos Tremembes, eonio forara perseguidos, suas habitacoes e procedimento............................. 125 Da chegada dos Cabellos-compridos a Tapuvtapera e da viagem ao Uarpv......................................... 129 Dos astros e do sol........................................ 132 Ventos, chuvas, trovoes e relampagos em Maranhao e suas circumvisinhancas....................................... 135 Mar, agoas e fontes do Maranhao.......................... 139 Singularidades de algumas arvores do Maranhao.............. 141 Dos peixes, passaros e lagartos, que se encontram n’estes paizes................................................ 146 Da pesca do Perv......................................... 148 Da caca dos ratos, das formigas e das lagartixas......... 153 Das aranhas, cigarras e mosquitos.......................... 165 Dos grilos, dos eamaieoes e das moscas................... 160 . Das on$as e dos macacos do Brazil.......................... 173 Das aguias, dos passaros grandes e dos passarinhos d’a- quelle paiz............................................ 178 Resposta a muitas perguntas, que fazem n’aquelle paiz a respeito das Indias Occidentaes......................... 184 Instruccao para os que vao pela primeira vez as Indias... 189 Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes re- cem-chegados, e como convem proceder para com elles. 193 Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo ba- ptismo de muitos meninos................................ 201 Do baptismo de muitos enfermos e velhos, que falleceram depois de christaos..................................... 210 Do baptismo de muitos adultos, especialmente d’um cha- raado Martinho........................................ 217 Do que fez este christao em beneticio da instruccao e con- versao dos seos similhantes............................. • 225 De um Indio condemnado a morte, que pedio o baptismo antes de morrer.................]..................... 230 Formulario dos discursos, que fazuamos aos selvagens quando nos vinham ver, para chabTud-os ao conneci- mento de Deos e a obediencia de no&^°.Re'........;•* ^34 Formulario da doutriua christa, que apreno1'8111 e recita- vam de cor, antes de serem baptisados................. ^ Qua! a crenca natural dos selvagens a respeito Deos, dos cspiritos e da alma..................................... 246HI Dos principal1* meios usados pelo diabo para con ter cm suas cadeias por tao longo tempo estes selvagens........ 2o2 Como falla o diabo aos feiticeiros do Brasil, suas falsas profecias, idolos e sacrifices............................ 259 De algumas outras ceremonias diabolicas praticadas pelos feiticeiros do Brasil..................................... 271 Claros signaes do reino do diabo em Maranhao............... 275 Os fillios do Brazil darao cabo do reinado de Lucifer e eo- mecarao a restabelecer o reinado de Jesus Christo....... 285 Prime]ra eonfereneia com Pacamao, grande feiticeiro de Comma..................................................... 289 Segunda eonfereneia que tive com Pacamao................... 290 Conferencia com o grande feiticeiro de Tapuvtapera......... 504 Conferencia com Jacupen...................................... 511 Conferencia com o principal de Orubutin.................... 517 Conferencia com o Onda, urn dos principaes de Comma... 321 Congratulacao a Franga etc. etc.............................. 329 Fidelissima narracao etc. etc................................ 334 Narracao d’um marinheiro..................................... 344 Nolas criticas e historicas por Mr. Ferdinand Diniz........ 347