A Architectura Byzantina DISSERTAÇÃO tf * DE CONCURSO POR * , 5 D. José Maria da Silva Pessanha candidato ao logar de professor da 13A cadeira da Escola de Bellas-Artes de Lisboa LISBOA OFFICINA TYPOGRAPHICA Calçada do Cabra, 7 1904 A ARCHITECTURA BYZANTINA. A Architectura Byzantina DISSERTAÇÃO DE CONCURSO POR D. José Maria da Silva Pessanha candidato ao logar de professor da 13.® cadeira da Escola de Bellas-Artes de Lisboa LISBOA OFFICINA TYPO GR A PHl CA Calçada do Cabra, 7 1904 Digitized by the Internet Archive in 2016 https ://arch i ve . org/detai ls/arch itectu rabyza00pess_1 A architectura byzantina D ecorridos tres quartos de século após a consagra- ção official do christianismo, quebrava-se a uni- dade política de Roma, dividindo-se pelos filhos de Theodosio o vastíssimo império. Era, em ultima ana- lyse, o reconhecimento legal da profunda scisão que, no mundo romano, existia entre províncias latinas e províncias gregas. A Honorio coube o Occidente; a Arcadio, o Orien- te. Roma e Constantinopla, — a antiga Byzancio, — fica- ram sendo, respectivamente, as capitaes dos dois im- périos. No Occidente, ameaçado já pelos barbaros, que, dentro em pouco, deviam occupá lo definitivamente e nelle constituir as nacionalidades modernas, — foram-se obliterando successivamente as brilhantíssimas tradi- ções artísticas da Antiguidade, e só no x ou no xi sé- culo, mercê da influencia exercida pelas escolas orien- 6 A architectura byzantina taes sobre a degenerada arte romana, que os artistas christãos, através das difficuldades derivadas dos acon- tecimentos políticos, haviam logrado salvar de comple- ta ruina, se define uma nova formula de arte, — essen- cialmente monastica e principalmente caracterizada pelo emprego da abobada. É a architectura que, desde Gerville, os historiado- res da arte designam pelo nome de romanica. De modo diverso passam as coisas no Oriente. A Sy- ria, onde o hellenismo se não extinguira ainda, onde a alliança da arte grega e da arte romana se tornára mais estreita, mais intima, do que em nenhuma outra região do império, de modo que os dois elementos, em Roma apenas juxtapostos, constituem alli um todo homogê- neo, claro e logico,— a Syria, desde o começo do n século da nossa era, foi campo de uma singular activi- dade artística, que trabalhos recentes, sobretudo os de Melchior de Vogüé, collocaram em plena evidencia, e povoou-se rapidamente de edifícios notáveis, entre os quaes algumas igrejas que, reproduzindo, embora, na sua disposição geral, as basílicas civis dos romanos, accusam, todavia, certa originalidade, que, em parte, lhes advem da influencia de tradições orientaes, irradia- da da Pérsia, — a florescente Pérsia dos Sassanidas, — e, em parte, da natureza dos materiaes de construcção. Mas era Constantinopla (fóco brilhante de cultura, de arte e de fausto, a contrastar com a barbarie do Occidente) que devia vencer todas as difficuldades da conciliação das fôrmas rectangulares, de origem roma- nana mas adoptadas pelo christianismo, com a cupu- la oriental, que devia consagrar o novo estylo em edifí- cios celebres, e transmittí-lo ao Oriente e ao Occiden- te, entre os quaes, pela sua posição geographica, a ri- sonha cidade do Bosphoro constituía como que o traço- de união. A architectura byzantina 7 Essa architectura, resultante também, como se vê, de uma fusão de elementos clássicos e elementos orien- taes, e que é a architectura christã do Oriente, como a romanica é a architectura christã do Occidente, con- stituc-se mais cedo do que esta, em consequência dos diversos antecedentes históricos e da diversa situação política dos dois ramos do velho império, e já no vi século nos apparece nitidamente caracterizada. E a architectura byzantina. 1 Foi em 328 ou 329 que o imperador Constantino de liberou transferir para Byzancio a séde do império. Empenhado em que a nova capital, a que deu o no- me de Constantinopla, justificasse a designação de se- gunda Roma , que, por uma lei especial, ordenoulhe fosse conferida, — Constantino dotou-a de edifícios mo- numentaes, similhantes aos da velha cidade do Tibre. Assim, Constantinopla, que tinha, como Roma, sete collinas, teve também, como ella, um capitolio, dois /bra, — o forum circular de Constantino e o celebre Augustceon (que porventura existia já e elle apenas en- riqueceu de estatuas), — os seus arcos de triumpho, as suas basilicas, os seus palacios, os seus banhos, o seu hippódromo, que era, como diz um escriptor francês, o verdadeiro fóco da vida publica, e foi, como tal, o thea- tro de muitos dos mais notáveis successos da historia byzautina. Só o amphitheatro e o templo faltavam: Cons- tantinopla nascia christã. Para enriquecer a nova capital, não hesitou Cons- tantino em despojar de muitas das suas preciosas esta tuas grande numero de cidades do Oriente e do Occi- dente,— apesar da severa condemnação em que os Pa- A architectura byzantina 9 dres da Igreja, ainda mesmo aquelles que em mais alto grau haviam recebido o influxo do hellenismo, en- volviam a arte pagã, cujas obras, porque objectivavam o culto da belleza material, eram por elles consideradas oppostas ao espirito do christianismo. É por isso que, em Constantinopla, duas origens de inspiração artística se manifestam a cada passo. Por exemplo:— a fonte monumental que occupava o centro do fovum de Cons- tantino, era decorada com esculpturas de inspiração christã: — O Bom Pastor (fórma sob a qual, pela sua graça tocante e singela, os primitivos artistas christãos preferiam representar o Salvador) e Daniel entre os leões. Pelo contrario, as outras estatuas que ornamen- tavam a praça, representavam divindades do Olympo, e até, — circumstancia muito para frisar, —a grande es- tatua do imperador que nella se erguia sobre uma co- lumna de porphyro, fora primitivamente um Apollo, com que, na tributação artística lançada por Constan- tino a todas as cidades dos seus domínios, Heliopole (na Phrygia) concorrêra para o aformoseamento da nova séde do império. Os dois séculos que decorrem desde Constantino até Justiniano, constituem para a arte byzantina, como diz Bayet 4 , um periodo de formação. As vicissitudes por que tem passado Constantinopla, não nos permittem avaliar directamente os monumen- tos coetâneos da transformação da velha Byzancio em capital do império romano. Segundo, porém, o teste munho de escriptores contemporâneos, as numerosas igrejas mandadas edificar pelo imperador, quer na ci- dade a que deu o seu nome, quer em outras, tinham a disposição das basílicas, — edifícios de caracter civil que 1 L’art byçantin, pag. 24. o A architectura byzantina refere Tito Livio), [ os romanos só começaram a con- struir depois da primeira guerra da Macedonia, e que eram destinados á administração da justiça e, posterior- mente, a funcções mais ou menos similhantes ás das nossas bolsas. Só nas monumentaes cisternas da segun- da Roma se evidencia a influencia asiatica, e se vê empregado o pendente em fórma de triângulo espheri- co, de que a velha capital apenas oflêrece um exemplo, — imitação imperfeita, — nas thermas de Caracalla. As basílicas eram, em regra, divididas longitudinal- mente em tres partes, por meio de duas series de colum- nas ou arcadas, sendo a parte media mais larga e mais alta do que as lateraes. Sobre estas, corriam tribunas, destinadas, de um lado, para os homens, do outro, para as mulheres. Seguia-se ás tres naves um recinto indi- viso e rectangular, — o transeptum ou chalcidicum (pa- rece serem equivalentes estas designações), — reservado para os advogados e officiaes de justiça, e protegido por uma balaustrada ou por uma parede baixa. Para alem do transepto, e formando como que o prolongamento da galeria central, havia ainda um hemi- cyclo, occupado pela tribuna do juiz, e que se denomi- nava apsis ou absis. Aos lados da abside principal, as basílicas tinham, ás vezes, duas pequenas absides, para .alojamento do archivo e outras applicações accessorias. Os tres corpos longitudinaes da basílica eram cober- tos de madeira, decorada interiormente com doirados e revestida no exterior com laminas de chumbo ou de bron- ze. Uma abobada em quarto de esphera cobria a abside. As portas correspondentes ás tres divisões longitudi- naes do edifício, abriam-se sob um portico, que abran- gia toda a largura da fachada. i Liv. XXVI, cap. XXVII. A architectura byzantina 1 1 A basílica Ulpiana, construída ao centro do fórum de Trajano, em Roma, por um architecto de Damasco, Apollodoro, nos fins do i ou no começo do n século depois de Christo,, distinguia-se entre todas, pelas suas dimensões e pela sua magnificência. Tinha quatro se- ries de columnas, e, portanto, cinco naves. Quando, no século iv, o christianismo, até então cruel- mente perseguido, se converteu em religião ofíicial, fo- ram as basílicas os edifícios preferidos para a cele- bração das cerimonias do novo culto. Vastos, podiam conter o povo, que a religião christã, ao invés do paganis- mo, não excluia dos templos. Destinados ao exercício de funcções da vida civil, não os maculavam reminis- cências do culto pagão. Além dJsso, por uma singular coincidência, as basilicas realizavam á maravilha sym- bolos christãos. A ampla galeria central correspondia bem a uma nave, e, segundo as Constituições apostóli- cas , a igreja devia representar a barca de S. Pedro. O transepto, cortando perpendicularmente o corpo forma- do pela nave media e pela abside, dava ao edifício a fórma de uma cruz, e a cruz é, por assim dizer, o sym- bolo fundamental do christianismo. Os primeiros templos christãos foram, pois, basilicas adaptadas ao exercício do novo culto, como, por exem- plo, a do senador Laterano, em Roma, que, transfor- mada pelo imperador Constantino, foi a primitiva basí- lica de S. João de Latrão, ou edifícios construídos se- gundo o plano das basilicas, taes como S. Paulo exh'a- mnros ou Santa Maria Maior, igualmente em Roma. Isolava a basílica uma vasta quadra, precedida por vezes de um portico, descoberta, contornada por uma galeria, e em cujo centro havia uma fonte, cisterna ou poço ( phiala , cantharus, puteus), para as abluções liturgi- cas. Era o atrium . Um segundo portico, amplo, fecha- do nas extremidades, — o navthex ou povticus , liga- 12 A architectura byzaritina va o atrio com a igreja propriamente dita, cuja nave central era dividida por uma balaustrada em duas par- tes : uma, — o pronaos , —destinada para os catechúme- nos e penitentes, que, não tendo recebido ainda o ba- ptismo, só podiam assistir a uma parte dos officios , outra, — o chorus , — occupada pelos cantores, instru- mentistas e acolytos, e onde, em tribunas especiaes,os diáconos recitavam a epistola e o evangelho. As naves lateraes (plaga ou portici) recebiam os assistentes : — a da direita ( dextera ), os homens*, a da es- querda (lava), as mulheres. Ao centro do transepto, que era o logar privativo dos diáconos e subdiaconos, erguia-se o altar. Finalmente, na abside ou presbyterium , em banco se- micircular ( consistorium ), interrompido a meio por um assento mais alto (suggestus), tomavam logar o bispo, ou o dignitário que o substituía, e os presbyteros. O of- ficiante celebrava, antes do século v, voltado para os as- sistentes. Roma assegurava a posse dos paises que as suas armas haviam conquistado, introduzindo nelles a sua cultura, as suas instituições, o seu direito e, por vezes, até a sua lingua. No que toca, porém, á arte, se é certo que por todas as provincias levantava, como padrões mo- numentaes indicativos do seu dominio, as construcções mais typicas da sua architectura — as thermas, os aque- ductos, as pontes, os amphitheatros; se é certo que em todo o mundo romano encontramos uma arte animada do mesmo espirito, uniforme quanto aos princípios, é igualmente certo que nella veem muitas vezes refle- ctir-se, com maior ou menor intensidade, tradições ar- tísticas locaes. Nas provincias da Asia, as mais flo r escentes, entáo, do império, e aquellas onde o genio hellenico se mos- trava ainda vigoroso e fecundo, os architectos, impeli i A architectura byzantina i3 dos pelo desejo de originalidade e reconhecendo que to- das as fôrmas e combinações possíveis dentro dos mol- des clássicos estavam realizadas, já anteriormente á di- visão do império tentam modificar os typos greco-ro- manos, inspirando-se em tradições artísticas da Assy- ria e da Pérsia antiga. Sob a influencia d’esse espirito innovador, que irra- diou também para o continente europeu, como o pro- vam a igreja de S. Demetrio em Salonica, e, na Dal- macia *, o palacio que o imperador Deocleciano habi- tou, depois de haver abdicado, começa a igreja christã, no Oriente, a divergir do typo inicial da basílica. Quanto ao ponto da Asia em que teve origem essa transformação, áquelle em que primeiro appareceram essas basílicas meio romanas, meio orientaes, d’onde procede a igreja byzantina, ha discordância entre os historiadores. Choisy considera as basílicas de Epheso, de Sardes e de Pergamo, como os documentos mais antigos d’essa arte de transição 1 2 . Os monumentos da Syria central, onde Melchior de Vogüé descobriu e estudou, num espaço de trinta a quarenta léguas, cem povoações gregas dos primeiros séculos do christianismo, têem, no entanto, como obser- va Bayet, a vantagem de offereccr, em muitos casos, datas averiguadas. 1 Ácerca dos monumentos da Dalmacia, estudados em uma das suas frequentes viagens, realizou o engenheiro sr. Mendes Guer- reiro uma interessante conferencia perante a Real Associação dos architectos civis e archeologos portugueses, em a noite de 5 de novembro de 1903. É para desejar que o trabalho do sr. Mendes Guerreiro seja publicado no Boletwi d aquella Associação. 2 Lart de balir che s les Bysantins, pag. i 3 i s gg.—Histoire de Varchitecture , tom. 11, pag. 44. A architectura byzantina M A igreja de Bacuza, com as suas naves divididas por duas series de columnas, de proporções classicas, que sustentam arcos de volta inteira, não extradorsa- dos, sem archivolta, e sobre as quaes corre uma serie de janellas, também de volta inteira, e, nas portas la- teraes, com os seus alpendres abobadados, de pedra, esteados em columnas isoladas e em meias columnas ou em cachorros emergentes da parede; — a basilica de Calbe-Luzeh, com o seu narthex flanqueado de tor- res *, os seus arcos vigorosos, sobre pilares curtos, a dividí-la em tres naves, os elegantes columnellos que, sobre os arcos, alternam com as janellas e ter- minam superiormente em cachorros, onde sem duvi- da se apoiavam as linhas das asnas, e, sobretudo, com a sua notável decoração, que poderemos denominar pre-by^antina, em que o symbolismo christão se mis- tura com elementos clássicos, e as estatuas (hoje muti- ladas) dos archanjos S. Miguel e S. Gabriel, sobre a verga de uma das portas lateraes, constituem um caso interessante e raro na ornamentação esculptural das igrejas christãs da Oriente; — a basilica de Turmanim, com a sua escadaria exterior, o seu narthex, de fôr- ma original, — verdadeiro alpendre, a que dá accesso uma ampla arcada livre, em vez da habitual columnata, — o seu portico de quatro columnas, que fôrma, sobre o narthex, um recinto coberto que duas torres ladeam, a sua abside decorada exteriormente com duas ordens sobrepostas de columnas, já, porém, sem a cornija, o friso e a architrave intermédios, que um artista romano 1 A torre é frequente na Syria central, não só em igrejas e palacios como na architectura funeraria. Importa observar que se não trata de campanarios, construcções que só apparecem no Occidente, e mais tarde (na segunda metade do viu século), ao generalizar-se o uso dos sinos de grande volume. A architeclura byzantina i5 haveria julgado imprescindíveis, embora ainda com a repetição do capitel e da base; — a igreja de Rueiha, com a sua physionomia tão singular, determinada pelos arcos-mestres ( doubleaux ), que transversalmente lhe cortam a nave média, supportando empenas, e tendo como pés-direitos pilastras caneladas, que se encos- tam aos solidos e espaçados pilares em que se estri- bam os grandes arcos que dividem longitudinalmente as naves, — todos estes e outros edifícios, que Vogüé detidamente estudou e minuciosamente descreve, 1 do- cumentam essa evolução, permittindo, não só fixar com um rigor outr’ora ínnaccessivel a genealogia da igreja byzantina, como também determinar todos os antece- dentes das duas phases do movimento architectonico operado na Europa Occidental, depois de interrompida, ou, antes, sensivelmente perturbada, pelas invasões dos barbaros, a corrente classica. 2 Mas, de todas as modificações que na Asia experimen- tou a basílica, a mais importante, sob o ponto de vista da formação da architectuia byzantina, é a que resulta da applicação da cupula a edifícios de plano rectangular. A cupula, — typo de abobada que se póde construir sem o auxilio de simples, — fora conhecida dos egy- pcios e dos assyrios, sendo até plausível suppôr que estes últimos a empregassem para cobrir espaços re- ctangulares, 3 e attingíra na Pérsia, graças a uma ap- plicação mais larga do tijolo cozido e ao emprego da cal na argamassa, um desenvolvimento a que nem no Egypto nem na Assyria havia podido ascender. São de facto os persas que inauguram as cupulas de extenso 1 Larchitecture civile et religieiise de la Ayrie centrale. du IV. e au VIl. e siècle. 2 Corroyer, Uarchitecture romane , introd. e c. VIII-X da i.*part 3 Choisy, Histoire de Varchitècture , tom. i, pag. 89. i6 A architectura byzaníina diâmetro, e que, transformando quadriláteros em octo- gonos por meio de percinas, resolvem o problema da ligação da cupula com o plano rectangular. Os palacios de Firuzabade e de Sarvistan, monumentos que alguns archeologos teem attribuido aos primeiros séculos da nossa era, mas que, se acaso não remontam, como pre tendia Dieulafoy, á epoca dos Achemenides, perten- cem, todavia, chronologicamente, a um período anterior á brilhante civilização dos Sassanidas, — ás ultimas dy- nastias parthas, 1 — documentam frisantemente aquella solução. Os gregos deveram, sem duvida, ao Egypto e ás civi- lizações orientaes, quer directamente, quer através da Phenicia, os primeiros modelos da sua arte. A archi- tectura dos edifícios descriptos na Odysséa , como esse maravilhoso palacio de Alcino, «similhante á lua ou ao sol», é accentuadamente asiatica. Cedo, porém, — pelo menos desde os fins do vii século, — o genio grego se li- berta de influencias estranhas, para fulgurar com todo o brilho da sua poderosa originalidade, para altivamente affirmar essa inabalavel confíança em si proprio que, no dizer de Collignon, lhe inspira, com o sentimento da sua força, o desdem por tudo quanto não seja grego. Assim, os architectos da Hellade haviam excluído a abobada, preferindo ao arco a platibanda sobre pés-di- reitos. Os romanos, mercê d’aquella singular aptidão que com tanta verdade lhes attribuiu Polybio, para assimilarem e transformarem o que nas civilizações estranhas en- contravam de aproveitável, tinham adoptado dos etrus- cos (originários, talvez, da Asia, e os primeiros que na Italia possuiram uma arte) a abobada e a arcada. 1 Gayet, L’art pe^sari, pag. 94. A architectura byzantina '7 Tem-se aflfirmado que já no periodo semi-etrusco se- mi-grego da republica empregavam abobadas esphericas para cobrir alguns pequenos edifícios de fórma circular (fórma symbolica, ligada a velhas crenças e tradições da Italia), como, por exemplo, a cella do templo de Vesta, em Tivoli. Mais tarde, na época imperial, des- coberto o processo caracteristicamente romano de con- struir a abobada, firmando-a sobre uma ossatura .resis- tente e leve de tijolo, — que, obtida com o auxilio de simples, representava, por seu turno, um systema per- manente de cambotas, occulto na alvenaria ordinaria, que formava como que um monolitho cavado, — mais tarde, no periodo aureo da arte romana, apparece-nos a abo- bada applicada a vastos recintos circulares, como, por exemplo, o caldarium das thermas de Caracalla e o celebre Pantheon , cuja famosa cupula é um dos mais brilhantes documentos da admiravel sciencia de con- struir que distinguia os architectos romanos,. Ê certo que, logo nos primeiros séculos do christia- nismo, parallelamente á igreja cujo typo generico des- crevi, se encontra, quer no Occidente, quer no. Orien- te, a igreja circular coberta de cupula. Mas, nesse caso (aliás excepcional), a applicação da abobada espherica era facil, e a própria arte do Alto Império offerecia d’ella, como vimos, notabilíssimos exemplos. Onde o emprego da cupula envolvia difficuldades, era nos edi- fícios polygonaes e, sobretudo, nos rectangulares. Os trabalhos de Melchior de Vogtié na Syria cen- tral, revelaram tentativas de solução desse problema a partir do m século, — geralmente em edifícios de peque- nas dimensões, como o de Omme-Azeitum, que, se- gundo aquelle escriptor, data do anno 282. O baptisterio, —hoje igreja, — de S. Jorge, em Ezra, erigido nos primeiros annos do vi século, apresenta já uma bella cupula ovoide, com cêrca de dez metros de diâmetro. 8 A architectura Òyzantina Esse interessante documento da architectura christã é octogonal, e torna-se evidentemente mais facil estabe- lecer a ligação de um octogono com o plano circular da cupula, que a de um rectangulo. O processo alli ado- ptado, é, todavia, muito para considerar. O baptisterio de S. Jorge compõe-se de dois octogo- nos concêntricos, inscriptos num quadrado, a cuja face oriental accresce, precedendo a abside, um como transepto estreito, dividido em tres partes. Em cada um dos ângulos do quadrado, ha um nicho ou exedra. A cupula, que é feita de alvenaria ordinaria, cobre o octogono interno, estribada em oito pilares de cinco metros de altura, passando-se do plano octogonal para o circular, gradualmente, por meio de duas fiadas, que constituem, a primeira, um hexadecagono, e a segunda um polygono de trinta e duas faces. Na base da cupu- la, abrem-se oito pequenas janellas semicirculares, — systema de illuminação que attingiu o seu pleno desen- volvimento em Constantinopla, na basílica de Santa Sophia. Esse movimento architectonico passou da Asia para Byzancio, cujo fundo de população era syrio, e teve a sua repercussão e o seu complemento na faustosa ca- pital, onde, segundo um chronista byzantino, foram con- struídas trinta e oito igrejas, no lapso, de quasi dois sécu- los, que vae desde Constantino até Justiniano. Taes edifícios, porém, desappareceram, e, pelas simples re- ferencias de escriptores contemporâneos, é impossível determinar as phases successivas da evolução que pren- de a basílica romana de Constantino á basílica neo- grega de Justiniano, e que, no século vi, produziu além de outras, a maravilhosa igreja de Santa Sophia, — verdadeiro protótypo da arte byzantina. II Examinadas as origens da architectura byzantina, es- tudemos agora a disposição geral, estructura e decora- ção dos edifícios d’esse estylo. O plano da basílica oriental (e, se me refiro de pre- ferencia á igreja, é porque a arte byzantina, essencial - mente christã, tem, como tal, no dominio religioso, as suas affirmaçoes mais características, mais originaes ; é porque o edifício civil e o edifício sacro obedecem á mesma concepção, aos mesmos princípios, de tal modo que o palacio constitue uma simples variante da igreja) o plano da basílica oriental, — dizia eu, — é cruciforme, embora menos alongado que o da basílica do Occiden- te. Em vez de representar a cruz latina, representa a cruz grega. O cubo foi, porventura, como suggere Da- niel Ramée , 4 o ponto de partida d’esse traçado. A base, e a planificação das quatro faces perpendiculares, desenham a cruz, que, nas tres unidades do seu com- primento e da sua largura, symbolizava, acaso, a trin- dade christã. 1 Histoire générale de 1’anhitectvre , tom. 11, pag. 741. 20 A architeckira hyzantina Sobre o quadrado resultante da intersecção dos rectangulos que formavam a cruz, erguia-se a cupula, motivo principal do edifício, a dominar toda a composi- ção e a imprimir-lhe um accentuado cunho de unidade. A cupula era também um symbolo : — representava Christo, ao subir, triumphante, ao ceu. Pendentes em triângulo espherico, elevando-se até á altura dos fechos de quatro arcos apoiados em vigorosos pilares e cujos vãos deixavam livres os ramos da cruz, faziam corres- ponder ao quadrado central da planta uma circumfe- rencia, sobre a qual descansava a cupula. Abobadas de berço ou em quarto de esphera, completando a cober- tura do edifício, garantiam ao mesmo tempo a estabili- dade da cupula, escorando os quatro arcos em que ella se estribava. As fachadas eram limitadas superiormente por uma cornija horizontal. As janellas, altas e estreitas, offereciam, de ordinário, o aspecto de arcaturas de volta inteira, e eram, nalguns ca- sos, fechadas por meio de peças de mármore, com recor- tes em que haviam sido embutidas pedras translúcidas. As portas, rectangulares e decoradas com molduras, tinham sobre a verga um arco de resalva. O núcleo das construcções era, em geral, de alvena- ria ordinaria. A argamassa compunha -se de cal, areia e tijolos pulverizados. Os byzantinos encorporavam fre- quentemente, nas paredes, vigas e travessas de madei- ra, — particularidade de remotíssima origem, e que se encontra igualmente nos muros de Mycenas. 1 1 Entre o estylo ornamental de Mycenas e o das nossas esta- ções pre-romanas da Citania de Briteiros e de Sabroso, ha eviden- te analogia. — Vid., no tom i da revista Portvgalia (pag. i a 12), o estudo de F. Martins Sarmento — A arte mycenica no noroeste de Hispanha. A architectvra byzantina 21 Empregavam muito, mas, em regra, no revestimem to das paredes, o tijolo, em cujo fabrico punham gran- de cuidado. Os tijolos byzantinos, marcados com siglas allusivas ao edifício a que se destinavam, e, por vezes, com inscripções, á similhança dos assyrio-chaldaicos, tinham ordinariamente a fórma dos tijolos romanos. Ha- via-os também circulares e em segmento de circulo, para os fustes das columnas, e outros com os perfis das mol- duras das cornijas e architraves. As abobadas eram, como as persas, executadas, quan- to possível, sem o auxilio de simples e, em vez de es- sencialmente moldadas , como as do Alto Império, es- sencialmente construídas , 1 representando, não monoli- thos artificiaes, como aquellas, mas verdadeiras conchas de alvenaria ordinaria, sobre as quaes eram directa- mente collocadas as telhas. Nas construcções byzanti- nas, como nas romanas e ainda em algumas das fran- cesas da Idade Media, a abobada excluia o madeira- mento. 2 Os byzantinos empregavam a abobada cylindrica, a de aresta e a cupula sobre pendentes. O exemplo que melhor define o principio que determinava o emprego dos dois últimos typos de abobada, dos quaes o segun- do, — a cupula, — se deriva do primeiro, é, como obser- va Ghoisy, 3 o que nos offerecem os collateraes da basílica de Santa Sophia: -no pavimento inferior, onde, sob pena de exaggerar a altura total do edifício, era 1 Choisy, Histoire de Varchitecture, tom. ii, pag. 14. 2 Era nas províncias meridionaes de França que esta exclusão se dava. Nas do norte, os architectos associavam, em geral, os dois meios, de fórma que a cobertura, de telhas, de ardósia, ou de chumbo, assentava sobre o madeiramento, e não sobre a abobada — Vid Viollet-le-Duc, Dictionnaire raisonné de Varchitecture fran- çaise , tom. 1, pag. 177. 3 Histoire de Varchitecture , tom. 11, pag. 11. 22 A architectura byzantina necessário que as abobadas fossem o mais abatidas possivel, preferiram os architectos a abobada de ares- ta; no pavimento superior, onde nenhuma consideração obrigava a limitar a flecha, deram a preferencia á ca- lota sobre pendentes. Do mesmo modo que na architectura persa e na ro- mana, as pressões das abobadas não se exerciam sobre orgãos especiaes collocados no exterior, como os rendi- lhados arcos-botantes da architectura ogival, de tão primaria importância na estructura dos edifícios d’esse estylo, que Viollet le-Duc não hesita em affírmar que «pedir uma igreja gothica sem arcos-botantes, é pedir um navio sem quilha.» 1 As pressões transmittiam-se ás próprias paredes exigidas pela distribuição do edi- fício, e aos pilares que sustentavam as cupulas. Evidentes, assim, os meios que asseguram o equili- brio, a estabilidade, da construcção, o visitante sente-se tranquillo num edifício byzantino, por mais audaciosa que seja a sua fabrica. Uma das fôrmas características da architectura neo- hellenica é o arco directamente apoiado em columnas, — fôrma de que, aliás, a arte do Baixo Império offere- ce também muitos exemplos, e que já nalguns amphi- theatros e outras construcções civis dos primeiros tem- pos da epoca imperial, fora empregada. O arco byzan- tino é, porém, muitas vezes, subido, — curva esta já adoptada na Asia central e que depois tanto preponde- rou na architectura arabe. A secção do arco é rectan- gular, e a curva de extiadorso accusada, em geral, por uma faixa de tijolos. Quando o revestimento da arcada é de mármore, como na basílica de Santa Sophia, sub- 1 Dictionnaire raisonné de Varchitecture française , tomo i’ pag. 6o. A architectura hyzantina 23 stitue essa faixa uma archivolta que se quebra á altura dos rins, tornando-se horizontal. As columnas, como tinham de servir de esteio ás pernas dos arcos, eram geralmente empregadas com pedestaes cúbicos, a fim de que as pressões actuassem sobre uma superfície mais ampla. Os fustes, que, pela mesma razão, excediam no diâmetro os clássicos, não apresentavam caneluras. Eram ás vezes decorados com hastes de trepadeiras, que nelles se enrolavam em es- piral. 1 O capitel byzantino, derivado, embora, do corinthio, desvia-se do typo clássico, para constituir um typo ca- racterístico, determinado ainda pela necessidade de se accommodar ás suas novas funcçÕes : — torna-se cu- bico, ou, mais rigorosamente, toma a forma de pyra- mide quadrangular invertida, truncada e com as ares- tas levemente curvas. Por vezes, quatro volutas pesadas e pouco salientes occupam os ângulos superiores do tambor, como a attestarem a procedência classica do capitel byzantino. Para que os pés dos arcos descansassem, como im- portava, sobre uma superfície vasta e oblonga, também os architectos neo gregos collocavam, não raro, sobre o capitel um abaco supplementar, mais alto ás vezes que o proprio capitel, e decorado com folhagens ou mono- grammas. A decoração byzantina, que não é propriamente ar- chitectonica, mas um simples revestimento, em que a polychromia domina, applicava-se principalmente ao in- terior dos edifícios, segundo a tradição asiatica. Exte- riormente, viam-se apenas cornijas horizontaes, de pe- 1 Cumpre notar que nalgumas construcçÕes byzantinas (entre ellas a basílica de Santa Sophia), foram applicadas columnas que haviam pertencido a templos da Grécia e da Asia Menor. 24 A architcctura byzantina dra ou de tijolo (ás vezes formando ângulos salientes e reintrantes), e alguns ornatos obtidos pela combinação de tijolos. O mosaico, a pintura a fresco, os mármores de di- versas cores, os metaes, o marfim, constituiam os re- cursos ornamentaes dos byzantinos. Os mosaicos, em que as figuras, accentuadamente rei cortadas, sobresaem num fundo azul ou doirado, de grande intensidade, eram empregados de preferencia na decoração interna das cupulas, não só pela facilidade com que se adaptavam a superfícies curvas, como tam- bém pela necessidade de evitar incidências de luz, que, produzindo reflexos, os não deixassem admirar. A ni- tidez do contorno, reforçada ainda, ás vezes, por um traço negro ; as sensíveis opposiçoes de cor, — limitada, como era, e desprovida de meias-tintas, a escala dos mosaistas byzantinos, — tornavam esta decoração pró- pria para ser vista a consideráveis distancias. Quanto á pintura, que a Igreja primeiro condemnára nas basilicas , 1 mas depois admittíra, compenetrada do seu valor como fôrma- de propaganda, só. por algumas passagens de escriptores do tempo, e, em certo modo, como observa Bayet 2 3 , pela imagem reduzida que d’ella nos conservaram as illuminuras dos manuscriptos, po- demos avaliar o que seria, porque desappareceram quasi completamente as grandes composições muraes, a fresco, que decoravam as paredes de algumas igrejas byzantinas, em substituição do mosaico, — processo muito menos rápido e muito mais dispendioso. Assim, é de crer que essas decorações se distinguissem pela firmeza dos contornos, pelo vigor dos tons, e pela 1 Ne y quod colitur et adoratur , in parietibus depingatur — deci- diu o concilio de El vira (anno 3o5). 3 L’art by^antin, pag. 66. A archiiectura byzantina 25 symetria da composição. Dispostas chronologicamente e substituindo ao symbolismo da primitiva arte christã a representação histórica de successos, não só do Velho e do Novo Testamento, como dos fastos da Igreja (sem omittir as scenas de martyrio, que os primeiros artis- tas christãos evitavam systematicamente), convertiam as paredes das igrejas em verdadeiras Biblias figuradas, que mesmo os illetrados podiam ler. O mármore, cujos tons, profundos, intensos, se ca- savam bem com as vigorosas tonalidades e com o bri- lho vitreo dos mosaicos, ministrava igualmente, pela variedade das suas cores, effeitos de polychromia, que a decoração neo-grega não podia desprezar. Em Santa Sophia, por exemplo, empregaram os architectos o por- phyro do Egypto, o mármore vermelho da Phrygia, o mármore côr-de-rosa da Mauritania, o mármore alvís- simo de Paros, o mármore do Bosphoro, branco, mos- queado de preto, o mármore verde da Laconia, o már- more azul da Lybia. . . Os byzantinos trabalhavam com admiravel pericia os metaes e o marfim, e, tanto na decoração dos edifícios religiosos, como na dos civis, applicavam com uma profusão verdadeiramente deslumbrante o oiro, a prata, o bronze, as pedras preciosas, o marfim esculpido. Al- tares de oiro, iconostases de prata, portas de marfim, telhas de bronze doirado, são amiúde referidos em descripções de igrejas e palacios do império do Oriente. Emquanto na ourivesaria e na esculptura em mar- fim os byzantinos adquiriam justíssima fama, conse- guindo tornar apreciados em todas as cortes os pro- ductos das suas officinas, a esculptura em pedra, evitando representar o homem (no que já se manifes- tavam as tendências iconoclastas do Oriente christão), e, para mais, se não abertamente condemnada, ao me- nos desfavorecida, da Igreja, que se não esquecera de 26 A architectura byzantina que ella havia consagrado, em obras immorredoiras, a imagem das divindades do paganismo, — a esculptura em pedra (dizia eu) decae sensivelmente, sobretudo a partir do século iv, embora se possam citar obras do v e do vi século que deixam ver no esculptor byzantino o descendente do estatuário grego, — ora na correcta nobreza de uma attitude, ora na elegancia de um pannejamento, ora, emfim, na belleza classica de uma Virgem, que recorda a de uma deusa do Olympo. Mas, quanto á esculptura decorativa, ainda que pouco levantada, a ponto de mais parecer obra de gravador ou de ourives, que de esculptor affeito a desbastar vi- gorosamente a pedra, é, todavia, notável, pela riqueza e variedade dos motivos. Demais, como nota Choisy , 1 só uma esculptura assim, toda em arestas vivas a pro- duzirem fortes opposições de luz e sombra, poderia re- sistir ao effeito dos mosaicos e dos mármores. Combinações geométricas, flores de aspecto estranho e animaes phantasticos — são os motivos predominantes na esculptura decorativa dos byzantinos, que é essencialmen- te convencional, e trahe influencias asiaticas, da Pérsia, da índia. Da reproducção naturistica de elementos pe- didos á fauna e á flora, ha, comtudo, alguns exemplos. De um modo geral e synthetico, pode affirmar-se que a architectura byzantina representa, como estructura, o calculo, e, como decoração, o fausto. Em vez da uni- dade organica da basílica primitiva — a mistura, aliás te- chnicamente habilíssima, de dois systemas constructivos distinctos ; em vez da belleza calma, singela, e, por as- sim dizer, intrínseca da igreja latina — uma belleza mórbida, perturbadora, derivada principalmente de uma decoração exuberante, que procura deslumbrar pela riqueza, pela cor, pelos effeitos de luz. 1 Histüire de Varchitecture , tom. n pag. 32 e 33. III Tal nos apparece, no começo do século vi, a archi- tectura byzantina. Do reinado de Justiniano, que governou desde 527 até 5 t> 5 , e que mandou construir por todo o império numerosos edifícios, descriptos pelo seu historiador, Procopio. em seis livros 4 , datam monumentos notabi- líssimos, que documentam a phase mais brilhante da architectura byzantina, e alguns dos quaes foram mo- delo de igrejas construídas no Occidente. O mais celebre, o mais typico, e, ao mesmo tempo, aquelle que, apesar de transformado, desde o século xv, em mesquita, póde ainda hoje ser estudado nos ele- mentos essenciaes da sua reconstrucção (porque a pri- mitiva igreja dedicada á Sabedoria Divina fora obra de Gonstantino), é a basílica de Santa Sophia, em Constantinopla. O traçado d’esta famosa igreja obedece eviden- temente ao intuito de conciliar, tanto quanto possível, a disposição alongada da basilica latina com o plano concêntrico dos edifícios cobertos de cupula. A sua pro- 1 De cedificiis Justiniani. 28 A arckitectura byzantina jecçáo horizontal é quasi quadrada : mede 1 — afóra o narthex e a abside. Dois grandes semi-cir- culos, um a occidente outro a oriente da nave media, ampliam o quadrado central, convertendo o em um ovoide, que aftecta, no entanto, a fórma rectangular, mercê de quatro pequenos hemicyclos que interrompem a curva dos primeiros, formando nichos. Precedia o narthex, para onde se abrem as nove portas da basílica, um atrio rodeado de uma colum- nata. Do lado opposto, no eixo da nave principal, fica a abside, coberta por uma concha. Aos seis hemicyclos correspondem igualmente abobadas em quarto de es- phera. A grande, maravilhosa cupula, domina todo o edifí- cio, cobrindo mais de metade da nave media. Tem cerca de 32 metros de diâmetro. Construída com levíssimas telhas de Rhodes, de um barro branco, muito poroso, eleva-se sobre o quadrado central, des- cansando em quatro arcos apoiados em altíssimos pi- lares e ligados por enormes pendentes esphericos. Sete semicupulas a circumdam, como vimos : — tres do lado do narthex e quatro do lado da abside. Os collateraes, separados da nave media por arcadas que sustentam a grande altura vastas galerias com ar- cadas também, representam verdadeiros contrafortes, que, pelo norte e pelo sul, escoram a base da cupula, como os dois quartos de esphera correspondentes aos hemicyclos terminaes da nave central, a escoram pelo oriente e pelo poente. Numerosas janellas em arco, umas praticadas na base da cupula e das semicupulas, outras sobre as ga- 1 Nestas dimensões, está comprehendida a espessura das pa- redes. A architectura byzantina 29 lerias, nas paredes que occupam os vãos dos arcos longitudinaes, outras na abside e nos nichos, deixam pairar no alto como que uma poeira luminosa, sobre a qual parece estar suspensa a cupula, como se acaso pendesse effectivamente do ceu por um fio, — no ima- ginoso dizer de um poeta grego. A’ noite, segundo um escriptor byzantino, seis mil candelabros doirados illumi- navam o amplo recinto da basílica. Sempre uma luz intensa, a pôr mil scintillaçoes no oiro, na pedraria, nos esmaltes, nos mosaicos, na superfície polida dos mármores. Ao reconstruir a basílica de Santa Sophia, Justi- niano pretendeu que ella excedesse em opulência e es- plendor todos os edifícios até então levantados, e desi- gnadamente o famoso templo de Jerusalem. «Raras vezes, — diz Bayet, — se levou tão longe a loucura da prodigalidade.» 1 As expropriações necessárias para a ampliação da antiga basílica, e, sobretudo, a riqueza dos materiaes empregados, — o mármore, o oiro, a prata, o marfim, as pedras preciosas, — obrigaram ao dispêndio de avultadissimas sommas, em parte obtidas á custa de violentas exacções do fisco. Alem d’isso, Justiniano, a exemplo de Constantino, fez tributários da sua basílica muitos dos antigos templos espalhados pelas províncias do império. Epheso, Baalbek, Pal- myra, Athenas, Roma, Cyzico, Alexandria, a Troada, as Cycladas, viram-se então despojadas de muitas das suas preciosidadas artísticas. Na grande tribuna (ambon) destinada para a leitura das epistolas e evangelhos, quasi ao centro do edifício, e na cupula que sobre ella se erguia, brilhavam o oiro, as pedras preciosas, os mais bellos mármores. Só essa peça custára o montante das rendas do Egypto num 1 Lart by^antin , pag. 42. 3o A architectura byzantina anno. O altar era de oiro. Decoravam no esmaltes e pedrarias, e cobria-o um ciborio de prata doirada. Eram em grande profusão, sobretudo no intradorso das abobadas, os mosaicos, formando amplos quadros, em que as figuras avultavam, solemnes, num fundo resplandecente, azul ou doirado. O que revestia o alto da cupula, occupando o logar onde actualmente se ins- creve, em enormes caracteres, um versículo de Alco- rão, figurava Deus Creador Nem todos os mosaicos de Santa Sophia, — cumpre notar, — datam, porém, do tempo de Justiniano. As- sim, por exemplo, é mais recente a grande composi- ção que se vê sobre as portas do narthex, e na qual, entre dois medalhões com a cabeça da Virgem e a doarchanjo S. Miguel, esta representado, não já com o caracter doce e humilde de outbora, mas com toda a imponên- cia e majestade de um monarcha oriental, Jesus Chris- to, que, sentado num magnifico throno, e tendo a seus pés, em attitude de adoração, a figura nimbada e rica- mente vestida de um imperador, abençoa com a mão direita, e sustenta na outra um livro aberto, onde se lê : — a A pa\ seja comvosco! Eu sou a lu\ do mundo». Conservou-nos a historia os nomes dos dois archite- ctos que dirigiram os trabalhos: — Anthemio, de Tral- les, e Isidoro, de Mileto. Dois artistas oriundos, pois, da região em que, nos séculos anteriores, a architectura romana, ao contacto da arte persa e sob o influxo do genio grego, alli immanente e ainda vivificante, havia tomado uma feição nova, precursora da architectura by- zantina, que a tal ponto seria inexplicável sem essa evolução, que alguns archeologos concluiram a priori a sua existência, hoje comprovada pelos monumentos christãos da Syria e da Asia Menor. A esses dois architectos estavam subordinados cem mestres, cada um dos quaes dirigia outros tantos A architectura byzantina i i obreiros. O imperador acompanhava de perto os tra. balhos, que importaram numa somma approximada- mente igual a 4 : 5 oo contos de reis da nossa moeda. Convertida, como fica dito, em mesquita, depois da tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, a celebre basílica de Justiniano, que era apenas um dos sumptuosos edifícios que, ligando-se, constituíam o meio em que decorria a vida imperial, toda feita de exteriori- dades brilhantes, acha-se hoje desfigurada, não só pelos contrafortes e minaretes que os turcos lhe accrescenta- ram, como pelo grande numero de construcções que a ella se encoslam. «O aspecto exterior, — diz Edmundo de Amicis, — nada tem de notável. A unica coisa que prende o olhar são os quatro altíssimos minaretes brancos, que surgem nos quatro ângulos do edifício, em cima de pedestaes do tamanho de umas casas. A cupula famosa aflfigura-se pequenina. Não parece que possa ser aquella mesma cupula que se vê desenhar se redonda no azul, como a cabeça de um titan, de Pera, do Bosphoro, do mar de Marmara, e das collinas da Asia. E uma cupula ncha- tada, flanqueada por duas meias cupulas, revestida de chumbo, coroada de janellas, que se firma em quatro muros pintados com largas faixas brancas e rosadas, sustentados pela sua vez por enormes contra-fortes, em tôrno dos quaes surgem confusamente muitos pequenos edifícios de aspecto mesquinho, — banhos, escolas, mau- soléus, hospícios, cozinhas para os pobres, — que es- condem a antiga fórma architectonica da basilica. Não se vê senão uma mole pesada, irregular, cor de cal, núa como uma fortaleza, e que não parece tão grande que possa suppôr quem o não saiba que está lá dentro a immensa nave de Santa Sophia. Da basilica antiga não apparece propriamente senão a cupula, que per- deu comtudo o esplendor argenteo, que se via, se* Ò2 A architectura byzantina gundo dizem os Gregos, das summidades do Olym- po.» 1 Mas, vista no interior, apesar das devastações que o tempo, as conquistas, as exigências do culto muçulmano e a barbarie dos seus actuaes possuidores lhe teem tra- zido, ainda hoje a famigerada basilica de Santa Sophia, que durante largo tempo foi para os artistas um modelo consagrado, e para todos uma verdadeira maravilha, que as lendas attribuiam poeticamente a uma inspiração divina, produz no espirito dos que a visitam uma forte e singularíssima impressão, em que predomina talvez a tristeza, como se porventura esse grandioso monumento fosse, de facto, um «colossal sepulcro», mas em que indubitavelmente se mistura a admiração pelo que ainda tem de bello. Eis como o primoroso escriptor ita- liano já citado nos descreve tal impressão : «O primeiro effeito, realmente, é grande e novo. «Abrange-se com uma vista d’olhos um vacuo enorme, uma architectura audaciosa de meias cupulas que pa- recem suspensas no ar, de pilastras desmedidas, de arcos agigantados, de columnas colossaes, de galerias, de tribunas, de porticos, sobre os quaes desce de mil grandes janellas uma torrente de luz; um não sei que de theatral e de pittoresco, mais que de sacro; uma ostentação de grandeza e de força, um ar de elegancia mundana, uma confusão de clássico, de barbaro, de caprichoso, de presumpçoso, de magnifico; uma grande harmonia, em que com as notas trovejantes e formi- dáveis das pilastras e dos arcos cyclopicos, que lem- bram as cathedraes do Norte, se misturam gentis e brandas cantilenas orientaes, musicas clamorosas dos banquetes de Justiniano e de Heraclio, echos de cantos pagãos, vozes frouxas de um povo effeminado e ex- - 1 Constantinopla (trad. de M. Pinheiro Chagas),; pag. 2o3. A architectura byzantina 33 hausto, e gritos longínquos de Vandalos, de Avaros e de Godos, uma grande magestade destruída, uma mu- dez sinistra, uma paz profunda; uma idéa da basílica de S. Pedro encurtada e rebocada e da de S. Marcos engrandecida e deserta ; uma mistura nunca vista de templo, de igreja e de mesquita, de aspectos severos e de ornamentos pueris, de coisas antigas e de coisas novas, e de cores disparatadas, e de accessorios des- conhecidos e extravagantes; um espectáculo em summa que levanta um sentimento a um tempo de assombro e de amargura, e que faz com que se esteja por algum tempo com o animo incerto, como procurando uma pa- lavra que exprima e affirme o proprio pensamento.» 4 A arte byzantina tem sido vivamente discutida; e uma das características de inferioridade que os seus detra- ctores lhe attribuem, é a de se haver immobilizado num formalismo esteril, monotono, logo após as brilhantes manifestações que illustram o reinado de Justiniano. Os estudos de que, sobretudo em França e na Alle- manha, tem sido objecto nestes últimos cincoenta an- nos, provam, comtudo, que ella, reflectindo as vicissi- tudes do império do Oriente através do longo decurso da Edade-Media, teve os seus períodos de esplendor e as suas phases de decadência, modificou-se, transfor- mou-se, evolucionou. No tocante á architectura, se acaso lhe assignarmos como ponto de partida o século vi, o reinado de Justi- niano, em que evidentemente encontrou a sua formula definitiva, teremos talvez de reconhecer, com W. Lu- bke 4 e outros historiadores, que, demasiado complexa logo em seu inicio, não ofterece amplo desenvolvimento. 1 Ob. cit., pag. 2o6-2o7. 2 Essai sur Vhistoire de Vart (trad. de Ch. A. Koella), tom. i, pag. 271. 3 3 4 A architectura byzantina Mas, nesse caso, o mesmo póde affirmar-se da ar- chitectura romanica, se a não fizermos datar d’e ses pequenos edifícios, como a capella funeraria de Male- baude (Poitiers), que annunciam e preparam as gran- des basilicas abobadadas do século xi, e da architectura ogival, se a não considerarmos sequencia ininterrupta e perfeitamente lógica da romanica, desprezando os monumentos em que, no começo do século xn, pri- meiro foram applicadas, como orgãos activos da esta- bilidade da abobada, as nervuras cruzadas, para só at- tentarmos naquelles em que esse estylo se manifesta já plena e inconfundivelmente caracterizado, pelo em- prego simultâneo de tão maravilhoso artificio, — verda- deira chave da architectura gothica,— do arco-botante e do arco em ponta de lança. Abstrahindo, porém, do rigoroso significado histó- rico e o geographico do designativo, e reputando equivalentes as expressões architectura by\antina e ar- chitectura christã do Oriente , força é admittir que a evolução que liga as basilicas romano-orientaes da Sy- ria e da A^ia Menor ás construcções monásticas do Athos, póde representar-se por uma linha tão acciden- tada como a que traduza qualquer das outras evoluções architectonicas. Mas, ainda mesmo fixando como limite á nossa analy- se, o século vi, teremos de confessar, com um escriptor moderno, que, se acaso o espirito que animava e diri- gia os artistas byzantinos, era sempre o mesmo, as fôr- mas pelas quaes esse espirito se traduzia, variavam mui- to. A basílica de Santa Sophia é, com effeito, o protó- typo da architectura byzantina. A partir da sua con- strucção, que realiza um verdadeiro prodigio de ousadia e de equilibrio, as basilicas alatinadas, como a de Da- na, tornam-se rarissimas no Oriente, e o domínio da cupula tende a consolidar-se e a estender-se. A architectura byzantina 35 Não se julgue, todavia, que a architectura neo grega se limitou depois á copia ou á simplificação d’esse mo- delo, caindo assim, como a arte hieratica dos pharaós, numa absoluta immobilidade. Os proprios monumentos do tempo de Justinianno, até mesmo os de Constanti- nopla, demonstram esta asserção. Assim, por exemplo, a igreja dos Santos Apostolos (que só conhecemos pela descripção de Procopio, mas de que temos, quanto á disposição geral, duas reproducçoes — S. Marcos em Veneza e S. Front no Périgueux), era de plano cruci- forme, como a de Santa Sophia, mas tinha, em vez de uma cupula, cinco. A igreja de S. Sérgio e S. Baccho, embora tenha como projecção horizontal um octogono inscripto num quadrado, póde considerar-se circular, como observa Corroyer, 1 visto que todas as suas par- tes se agrupam symetricamente em volta da origina- líssima cupula octogonal, que se estriba em oito pila- res, entre as quaes se formam quatro absidiolas, e não tem, ao oriente e ao occidente, abobadas em quarto de esphera a cooperar no seu equilíbrio. A celebre contenda dos iconoclastas, que, segundo parece, não pretendiam unicamente banir dos templos as imagens, pintadas ou esculpidas, qualificando-as de reminiscência da idolatria antiga, mas visavam a li- mitar a influencia, cada vez mais dominadora, do mo- nachato, agitou fortemente, durante mais de um sécu- lo (726 - 842), a sociedade byzantina, reflectindo-se, como é facil suppôr, no movimento artístico, que, no império, era, segundo já frisei, essencialmente religioso. Póde, todavia, affirmar-se que, no meio d’essa vio- lenta crise, a arte ganhou. As pinturas muraes e os mo- saicos foram cobertos de cal ; mas, em breve, paisa- gens e composições de caracter profano e exclusiva- 1 Varchitecture romcme, pag. 11 3. 36 A architectura byzantina mente decorativo os substituiram. E ao lado dos mon- ges-pintores, a quem as ameaças, as perseguições, o ardor da lucta, parece haverem estimulado a activida- de, e cujas obras tomaram então nma physionomia di- versa, tornando-se, como observa C. Dielh, menos convencionaes, mais espontâneas, mais populares, for- mou-se uma nova escola — independente, secular, e em que era mais poderosa a influencia classica. Os imperadores iconoclastas não hostilizavam sem distincção todas as manifestações artísticas, e até um dos que mais vivamente combateram o culto das ima- genes, — Theophilc, — não só realizou obras importan- tes no palacio imperial de Constantinopla e o enrique- ceu com esplendidos mosaicos, mas ordenou a con- strucção de algumas igrejas. A contenda dos iconoclastas como que insuflou uma vida nova no organismo byzantino, que as invasões slavas, as conquistas dos arabes e as incessantes per- turbações internas haviam sensivelmente depauperado. Assim se preparou uma verdadeira renascença política e intellectual, assim se rasgou, mais uma vez, para o império do Oriente, um largo periodo de esplendor, que abrange dois séculos (867-1057), e no qual a civili- zação byzantina tocou porventura o apogeu. Era o hei- lenismo que resurgia, conciliado embora com a fé christã, e que se mostrava ainda poderoso e fecundante. Os slavos, os búlgaros e os arabes são repellidos; a legislação é reformada ; as industrias desenvolvem-se e, pela dififusão dos seus productos, alargam a esphe- ra de influencia de Byzancio ; reabrem-se as escolas de Athenas, aonde affluem estudantes de varias naciona- lidades ; Constantinopla torna-se a verdadeira capitai do mundo civilizado e, ao mesmo passo que se con- stitue emporio do commercio do Oriente, como, depois, Veneza e, mais tarde ainda, Lisboa, attrahe numerosos A architeclura byzantina 37 estrangeiros, é cantada pelos poetas occidentaes, e fere a imaginação popular, que, através das narrativas en- thusiasticas e coloridas dos viajantes e dos peregrinos, a idealiza uma cidade de estonteadoras maravilhas, como outr’ora Babylonia. Na arte, a corrente nova, a corrente profana, que a contenda dos iconoclastas fizera brotar, tende a cres- cer. Os iconoclastas haviam sido vencidos, mas o es- pirito do iconoclastismo triumphára. A arte perde mui- to da sua feição hieratica, torna-se mais]livre, mais pes- soal, mais verdadeira, retemperando-se na admiração consciente dos inexcediveis modelos antigos. Os architectos não podiam ser indifferentes a este movimento artistico. Sem renunciar ao emprego da cu- pula, com todas as suas consequências, que o mesmo seria aniquilar-se, a architectura byzantina affirma-se então mais delicada, mais graciosa, mais elegante, mais equilibrada, nas suas concepções. Pelo abatido da curva e pela collocação directa so- bre os fechos dos arcos em que se estribava, a cupula dos séculos anteriores mal se salientava do corpo do edifício, parecendo sempre mesquinha, vista do exte- rior, ainda quando (como em Santa Sophia), observada do interior da basílica, produzia a mais forte e subju- gadora impressão, pela sua grandeza e majestade. Ima- ginaram por isso os architectos erguê-la sobre um tam- bor que, já de si elevado (por vezes exaggeradamente), mais o parece ainda em consequência da fórma poly- gonal que não raro lhe dão, dos delgados columnellos com que o decoram, e das altas e estreitas janellas que nelle abrem, e cuja parte superior, na segunda me- tade d’este periodo, invade a calota. Esbeltas, erguen- do-se ousadamente acima do massiço da construcção, as cupulas multiplicam-se, attingindo nalguns casos o numero de treze. 38 A architectura byzantina As janellas, em arco de volta inteira, ora são bipar- tidas por um columnello, ora trilobadas. As fachadas, accusando, na linha terminal, as curvas e horizontaes da construcção (só excepcionalmente um frontão occulta a verdadeira fórma das abobadas), offe- recem uma grande variedade de efteitos decorativos, obtidos umas vezes por engenhosas combinações de ti- jolos, outras pelo revestimento mixto, de tijolo e de pe- dra apparelhada, em fiadas que se alternam, outras ainda pela divisão em faixas de diversas cores — processo ornamental que depois se generalizou á guarnição das janellas e ás archivoltas. O plano conserva, no interior, a fórma de cruz gre- ga, porque o coro, que corresponde ao prolongamento do ramo oriental, fica isolado do resto da igreja por um anteparo, ordinariamente de madeira e decorado com imagens, esculpidas ou pintadas, — o iconostase, — que occulta o altar. As absides tornam-se polygonaes e apresentam ar- cadas sobre columnellos. Os architectos, reconhecendo que, para assegurar o equilíbrio das cupulas, não era necessário empregar esses robustíssimos pilares, que tanto espaço roubavam, e em tanta maneira destruíam o effeito perspectico das naves, diminuem lhes a espessura ou substituem- lhes columnas. Estas modificações, que visam a tornar o edifício mais leve, mais gracioso, mais pittoresco. sem o alterar na sua essencia, e que Bayet compara ás que Pythios e os seus discípulos introduziram na architectura jóni- ca, e os artistas do século xiv na architectura ogival 4 , — exemplificam-nas, entre outras, a igreja da Madre de Deus, em Constantinopla, e a dos Santos Apostolos, 1 Lart byçantin, pag, 13 1 . t A architectura byzantina 3 9 em Salonica. A decoração d’essas basílicas era, por ve- zes, de uma deslumbrante magnificência. E’ nesta epoca brilhantissima que o palacio imperial de Constantinopla, fundado por Constantino e depois ampliado e enriquecido por diversos imperadores, attin- ge o maximum do seu esplendor, tornando-se o meio adequado á pompa verdadeiramente oriental de que o monarcha se rodeava. Trocado por uma nova residência, onde o soberano se julgava mais seguro contra as commoçôes populares, esse maravilhoso palacio foi successivamente fornecen- do materiaes para outras construcções, e muito ha que até as suas ruinas desappareceram. Labarte, cujos trabalhos sobre a arte medieval são tão conhecidos e apreciados, colligindo e comparando as descripções e referencias que esse notabilíssimo edi- fício mereceu aos escriptores byzantinos, logrou re- constitui lo, tanto sob o ponto de vista da estructura, como sob o ponto de vista da decoração. Tinha elle com a basílica a mais perfeita analogia. O plano circular, a cupula, a abside, os mármores de diversas cores, os mosaicos, os frescos , os metaes, as pedras preciosas, ap- parecem por toda a parte. D’essa analogia, d’essa uni- dade, conclue Bayet que a arte byzantina, longe de ser um resultado accidental de phantasias individuaes, e de elementos diversos imperfeitamente combinados, é uma arte bem organizada, original, e representativa do gê- nio proprio de um povo. A partir da segunda metade do século xi, importan- tes acontecimentos prepararam a decadência do impé- rio grego. A lucta entre os christãos e os muçulmanos, que se iniciára no século viu, quando invadida pelos arabes a 1 L’art by^antin, pag. 127 e 128; 40 A architectura byzantina Hispanha, passa a ter como theatro o Oriente, onde as conquistas dos agarenos faziam rápidos progressos, e para onde se dirigem, impellidas pelo sentimento reli- gioso e também pela necessidade de expansão que a sociedade europeia começava a sentir, as grandes expe- dições conhecidas pela designação de cruzadas. Esse contacto entre christãos do Occidente e chris- tãos do Oriente não podia ser amistoso e perdurável. A diversidade de origens, e o schisma que determinára, havia pouco, a excommunhão do patriarcha de Cons- tantinopla, Miguel Cerulario, e o separar-se definitiva- mente a igreja grega da igreja latina, oppunham-se a que assim succedesse. Não admira, pois, que os byzantinos considerassem os cruzados mais como adversários, que como alliados contra o muçulmano; que a existência do reino greco- latino de Jerusalem, fundado por Godofredo de Builhão, fosse curta e agitada, e que, afinal, as armas dos cru- zados se dirigissem contra a própria capital do império, Constantinopla, que foi tomada e brutalmente saqueada 1204), perdendo-se então para sempre muitas das obras d’arte que ella enthesourava. Não foi longa a occupação latina ou franca. Em 1261, restaurava se o dominio grego sob o governo dos Pa- leologos; mas este segundo império (séculos xiv e xv) foi apenas um phantasma do primeiro, na phrase de Montesquieu. A influencia d’essa intervenção do Occidente limita- se, na architectura, ás regiões, como a Grécia, onde se mantiveram estabelecimentos latinos. Ahi, a par de igrejas de estylo Occidental, apparecem-nos outras, de caracter mixto, mas que se approximam bastante da basilica latina. Cobertas por abobadas de berço e por uma cupula central, teem tres naves, a que correspon- dem outras tantas absides. As fachadas, em vez de ac- A architectura byzantina 4i cusarem, por uma linha ondulante, a fórma das aboba- das, terminam em frontão, onde se rasga uma janella, simples ou bipartida. Decorações picturaes substituem os mosaicos. As janellas fecham-se po: meio de pedras crivadas de orifícios circulares, e os guarnecimentos das portas são muito trabalhados. Essa architectura heterogenea não constitue, porém, uma nova escola. Quanto á dos cruzados, á das igrejas por elles con- struídas na Palestina, como, por exemplo, a da Nativi" dade, em Bethlem, essa, é a das igrejas que, ao tempo, se edificavam no Occidente. Só a decoração é grega. Em Constantinopla e em todos os outros pontos onde a arte conserva alguma vitalidade, prevalece a tradição byzantina. Sob a dynastia dos Paleologos, ainda se esboça uma renascença, — a ultima, — que se affirma principalmente na pintura decorativa, na miniatura e no mosaico. Mas, extincto já aquelle espirito de liberdade e de humanis- mo, — derradeira fulguração do genio hellenico, — que illuminára o segundo periodo aureo da arte byzantina, de novo imperam a repetição invariável dos modelos consagrados, a immobilidade, o formalismo. A arte propriamente byzantina, comquanto se não extingaj porque sobreviveu mesmo á queda do império, nas construcçoes emprehendidas pelos turcos em Cons- tantinopla até ao começo do século xvn, e na activida- de, quasi mechanica, dos monges-artistas d’essa curiosa e singularíssima republica monastica do Athos, deixa, todavia, de ter historia, porque deixa de evolucionar. IV «No Oriente, a acção da arte byzantina exerceu-se — diz Bayet — em toda a parte onde penetrou o chris- tianismo grego.» 1 Assim, quando, no século x, essa religião foi official- mente adoptada na Rússia, que pouco antes entrára na scena da historia, artistas byzantinos substituiram aos templos de madeira, onde os antigos slavos rendiam culto aos seus idolos, igrejas que, não só na estructura mas também na decoração, reproduziam as do império, como a de Santa Sophia, em Kiev, — a Constantinopla da Rússia, — e a de igual dedicação em Novgorod. A influencia da Armênia, cuja arte, no século xi, se desvia um tanto, como veremos, dos modelos byzanti- nos ; a da Pérsia muçulmana, com quem os russos manteem estreitas e incessantes relações ; a do Occi- dente, de que são portadores os artistas lombardos, que, no século xn, edificam em Vladimiro a celebre ca- thedral da Assumpção da Virgem, que ainda existe ; a mongolica, trazida pela invasão dos tartaros, no se- 1 Lart by^antin, pag. 274. A architeclura byzantina tf culo xiii, todas essas influencias, actuando sobre a arte que primeiro se implantára na Rússia, dão á archite- ctura slava uma accentuação especial. A cupula toma a fórma bulbosa que a Pérsia arabe inaugurára, e, em vez de repousar sobre pendentes, apoia-se numa serie de arcos sobrepostos que estabele- cem a transição do quadrado para a circumferencia ; as torres similham os minaretes de Isfahan e do Cairo ; o arco de duas curvas substitue o arco de volta inteira. Apesar, comtudo, da multiplicidade dos seus antece- dentes e da sua viva e pittoresca originalidade, a arte russa ostenta, bem visivelmente accentuados, traços byzantinos, como que a proclamarem que a civilização imperialista foi a educadora da grande raça dos slavos, — o que não representa, decerto, o mais contestável dos seus titulos de gloria. Na Armênia, collocada entre a Europa e a Asia, en- tre o mundo christão e o mundo arabe, observa-se também, naturalmente, o effeito de uma convergência de correntes diversas. A igreja armênia póde, no entanto, considerar-se uma variante do typo byzantino do século x. No periodo (que as circumstancias politicas limitaram a pouco mais de uma centúria) em que a arte da Ar- mênia se mostra mais original, mais independente, as pequenas igrejas d’essa região distinguem-se pela sua elegancia, devida á adopção do arco impropriamente denominado ogival, e que é, no fundo, a traducção em pedra do arco subido dos persas, como observa Choisy ; pelo perfil conico da cupula, preferido sem duvida por mais adequado á construcção com pedra apparelhada ; peh regularidade artificial da disposição exterior, que occulta a distribuição interna ; pelo relevo dos arcos- mestres que, ao contrario do que se observa nos edifí- cios byzantinos, é accusado logo desde a linha de nas- 44 A architectura byzantina cença ; pelo fraccionamento dos pilares em tantos membros quantas as pressões que recebem ; pelo capi- tel bulboso, que os slavos imitaram, exaggerando-o \ pela decoração interna das paredes com arcaturas, e, emfim, pelo caracter especialissimo da ornamentação, em que predominam os motivos geométricos, de origem persa ou arabe, e cuja escala contrasta frisantemente com as proporções reduzidas do edifício. A cathedral de Ani, construida, segundo uma inseri' pção, pelos annos de ioio, é um dos monumentos ca- racterísticos da architectura, meio byzantina meio persa, da Armênia, que oíferece com a arte Occidental do século xi uma certa analogia, — o que, revelando iden- tidade de origem, é mais uma prova de que o Oriente não foi estranho á formação da arte romanica. Os pintores, esculptores e ourives, se, em geral, ac- ceitam os modelos byzantinos, revelam, comtudo, ori- ginalidade nalgumas obras, como faz notar Btyet, que, no seu livro sobre a arte byzantina, reproduz, 1 em abo- no da sua observação, tres interessantes exemplares toreuticos da Armênia. Mas nem só os paises que no Oriente seguiram o christianismo experimentaram a acção da arte byzan- tina. Também os islamitas lhe deveram muito. A arte arabe só se constituiu depois que os muçul- manos, estimulados pelas promessas consignadas no Alcorão, sairam do Yemen á conquista do mundo- pondo se então em contacto com as civilizações orien- taes, a cujo influxo não procuraram subtrahir-se. Assim como o christianismo, ao succeder á religião pagã, apropriou ao exercício do novo culto as basílicas romanas, assim também os arabes, antes de levantarem 1 A pag 285, 287 e 289. A architectura byzantina 45 edifícios expressamente destinados á celebração dos actos cultuaes do mahometismo, transformaram igrejas chris- tãs em mesquitas. Quando, por sua vez, emprehenderam construcçôes, foi aos byzantinos e aos persas que primeiro recorre- ram. Se os historiadores muçulmanos o não referissem, di-lo-hiam, nos elementos fundamentaes da sua estru- ctura e da sua decoração, os proprios monumentos, não obstante as modalidades diversas que apresentam, e que entre si os distinguem, segundo as épocas e as regiões, e sem embargo da feição original que os ara- bes lograram imprimir-lhes, sobretudo no aspecto e na decoração, que, apparentemente caprichosa, é, no en- tanto, equilibrada, e em que, não só a regularidade das linhas continuas, mas ainda a monotonia das superfícies planas, são meticulosamente evitadas, substituindo-se- lhes as combinações mais imaginosas, mais imprevistas^ de figuras geométricas, e a infinita multiplicação dos planos, da qual resultaram, por exemplo, os pingentes e estalactites que adornam as abobadas. A cupula, a arcada, o capitel cubico, generalizam-se a toda a extensão do vasto domínio arabe. O plano da mesquita é por vezes similhante ao da igreja grega. A influencia exercida pela arte byzantina sobre a arte do Occidente, no periodo medieval, tem sido objecto de longa e por vezes apaixonada discussão. As frequentes relações políticas e commerciaes entre o Occidente e o Oriente, por um lado ; por outro, a intensidade e o brilho com que, no império byzantino, se cultivava a arte, e as circumstancias políticas e so. ciaes das monarchias barbaras, onde as repetidas luctas, o imperfeito das instituições e a rudeza dos costumes eram inconciliáveis com o labor artístico, mas onde a influencia da civilização romana, de que essas monar- 4 6 A architectura byzantina chias eram herdeiras, se revelava, apesar de tudo, en- tre outras fôrmas, por um certo apreço das obras de arte, — apreço de que deram frisantes provas, Theodo- rico e, mais tarde, Carlos Magno, — haviam, inevita- velmente, de tornar o Occidente tributário do Oriente em matéria artística, haviam por força de dar motivo, tanto á reproducção fiel de typos imperialistas, como á reacção da arte byzantina sobre as tradições artísticas, mais ou menos obliteradas, do Occidente. As brilhantes victorias ganhas em Italia pelos exér- citos de Justiniano, pondo termo ao florescente mas ephemero reino dos ostrogodos, encorporaram a pe- nínsula italica no dominio do império. Ao sul, a civilização byzantina manteve durante largo tempo a sua preponderância. Muito mais pertinaz ainda que a resistência material opposta pela Grande Grécia de outr’ora á conquista normanda, foi a resistência moral do hellenismo, que, sobretudo depois da contenda dos iconoclastas, alli se havia firmemente radicado, mercê de uma larga emigração de monges e outros adeptos do culto das imagens. A tal ponto a civilização helleno-byzantina prevalecia nessa região, que, no primeiro periodo do seu dominio, até ao século xni, os normandos acceitaram o grego como uma das línguas oíficiaes, imitaram a moeda im perial, fundaram conventos do rito grego a par de conventos do rito latino, acolheram na sua corte sábios e homens de letras byzantinos, e adoptaram os trajos compridos á moda oriental. Não admira, pois, que um escriptor medievo nos falle de uma basílica, dos fins do viu século, dedicada a Santa Sophia e construída á imitação da que Justiniano edificára em Constantinopla, e não surprehende tam- bém que, em muitas igrejas da parte continental da nova monarchia, nos appareça a cupula, embora alliada A architectura byzantina 47 a fôrmas latinas, e uma decoração em que é evidente a interferencia de pintores, esculptores e mosaistas by* zantinos, de cuja permanência na Italia aproveitaram inquestionavelmente os artistas da região, sem todavia abdicarem a sua originalidade. Na Sicilia, que só dois séculos mais tarde os nor- mandos integraram no seu reino, tendo-a conquistado, não já aos byzantinos, mas aos sarracenos, que em 83 1 d’ella se haviam apossado, preponderou durante muito tempo a architectura byzantina. Os arabes destruiram quasi todos os monumentos que lá encontraram, e que certamente obedeciam ao plano dos de Constantinopla ; mas, na. construcção das suas mesquitas e palacios, empregaram architectos gregos. Sob a dominação normanda, foram também artistas de Byzancio quem delineou as igrejas alli edificadas. A basilica siciliana, reflectindo influencias gregas, arabes e normandas, e tendo de obedecer ás exigên- cias liturgicas do rito latino, offerece, porém, então uma physionomia interessante e original. Assim, com- binando-se por vezes de tal arte, que o edifício, apesar da sua feição mixta, não carece de elegancia nem de unidade, encontram-se, na architectura da Sicilia, a par da projecção latina das naves e do transepto, em fôrma de T, as tres absides da igreja grega ; ao lado da cu- pula e da abobada ogival, o tecto de madeira dividido em caixotóes, ou o madeiramento apparente, decorado com pinturas e doirados *, simultaneamente com os mo- saicos de fundo aureo, as figuras geométricas e as in- scripções cuficas da ornamentação arabe. A capella do palacio real e as igrejas de Santa Ma- ria do Almirante e de Santo Cataldo, em Palermo ; as de Montereal, Messina e Cefalu, todas do século xn, são notáveis. Nçsta ultima, é evidente a influencia nor- 4 8 A architectura byzantina manda, já numa tentativa de construcçao da abobada sobre nervuras, já nalgumas particularidades decorati- vas, que parecem copiadas de igrejas de Caen. 1 Em Roma, se porventura, na decoração, foi poderosa, embora não continua, a influencia da arte do império, a ponto de haver dado origem a constituir-se, no sé- culo xn, a escola de mosaistas que o illustre archeologo Rossi denomina italo-b}^zantina, e cujas obras fundem encantadoramente o estylo grego com a tradição ro- mana dos séculos iv, v e vi— na architectura prevalece- ram as fôrmas latinas. Na parte norte da Italia, foi menos profunda, e, so- bretudo, menos geral, a influencia neo-grega. Os im- perialistas dominaram ahi politicamente, é certo, em- bora por pouco tempo, e constituiram Ravenna séde do exarchado, capital da Italia byzantina. Alem d r isso, estreitas relações commerciaes ligaram, durante secu. los, Veneza e Constantinopla. A verdade, porém, é que a corrente latina preponderou sempre nessa região, com- quanto a basílica de S. Marcos, na bella cidade do Adriático, e a de Vital, em Ravenna, pareçam protestar contra este asserto. E’, porém, necessário distinguir entre a reproducção isolada, accidental, de um modelo estranho, e a diffusão de um estylo, que, mais ou menos profundamente mo- dificado pelas tradições locaes, pelo genio proprio e pelas circumstancias históricas do povo que o recebe, pelo clima, pela natureza dos materiaes, se converte, segundo a elaboração que experimenta é mais ou me- nos completa, numa fórmula artística independente e original, ou num mero sub-estylo. Ora, a básilica de S. Marcos, em Veneza, começada 1 Vid. Choisy, Histoire de V drchiteciure, tom. n, pag. 65. A architectura byzantina 49 nos fins do século x, constitue sem duvida, fosse qual fosse a nacionalidade dos artistas que a edificaram, uma igreja puramente byzantina, mau grado o sentir de al- guns historiadores italianos, que contestam systematica- mente a acção da arte do império sobre a do seu país, e o sentir de Daniel Ramée, para quem S. Marcos só tem de byzantino as cupulas e os mosaicos, admittindo ainda assim a possibilidade de serem da escola de Ra* venna os mais antigos e mais bellos . 1 Mas S. Marcos é uma excepção. Nas ilhas venezianas, preponderava, em geral, a tradição latina, e nenhuma das outras igrejas pelo mesmo tempo alli edificadas póde comparar-se a essa, nem sequer a de Santa Fosca, na ilha de Torcello, que também diverge do typo latino, mas que se liga á arte romano-syria, recordando o pretorio de Musmieh, construido no século 11, e desviando-se do processo by- zantino quanto á disposição da cupula, que não é accusada exteriormente, mas coberta por um madeiramento, e que se liga a um octogono, em que se acha transformado, por meio de percinas, o quadrado central da basilica. A igreja de S. Vital em Ra venna, cuja construcção fora iniciada ainda antes da conquista da Italia pelo exercito de Justiniano, mas quando essa nova cidade mantinha já frequentes relações com a de Constantino- pla, accusa, é certo, uma forte influencia byzantina, so- bretudo na decoração. Mas, ao lado de S. Vital (em que, aliás, a persistência da tradição Occidental é evidente em muitas particularidades, como, por exemplo, a con. strucção da cupula e do tambor em que ella se esteia, cujos núcleos são formados de amphoras de barro, pro- cesso romano que permittia conciliar a resistência com a leveza), outras igrejas contemporâneas se encontram, 1 Histoire générale de Varchitectvre , tomo II, pag. 768 e 769. 4 5o A architectura byzantina em Ravenna, accentuadamente latinas, como a de Santo Apollinario, fóra dos muros da cidade. Carlos Magno, empenhado em restaurar o poderio e a civilização de Roma, fundando, pela energia inquebran- tável da sua espada, quasi sempre victoriosa, um vasto império, organizando-o politica e administrativamente, e promovendo uma renascença artistica e litteraria, — re- nascença, em todo o caso, mais de intenção que de fa- cto, como diz Del Monte, — soccorreu-se (tem se affirma- do) de Constantinopla, donde fez passar á sua corte grande numero de artistas. Se nos fallecem elementos para definir e comprovar esta vaga referencia de chro* nistas medievaes, é, no entanto, fóra de duvida que, en- tre o império carlovingio e o grego, existiam frequentes relações políticas e de commercio, e que os productos orientaes eram tidos em alto apreço no Occidente, con" correndo para estender até aqui a influencia da arte by- zantina. A capella do palacio de Aix-la-Chapelle, residência habitual do imperador, não procede, todavia, directa- mente, da architectura de Byzancio. Esse edifício, o mais notável de quantos o famoso príncipe construiu, e que, pela solicitude que mereceu ao fundador, é comparado por Dartein a Santa Sophia de Constantinopla, deriva da igreja de S. Vital em Ravenna. Ao passo, porém, que é espherica e se liga por uma serie de pendentes com as oito faces do tambor, a cupula de Ravenna — a de Aix- la-Chapelle é octogonal. Na igreja carlovingia é, alem d’isso, muito mais perfeita a disposição das abobadas que circumdam a cupula. A galeria exterior, que fórma um polygono de dezeseis lados, liga-se ao octogono cen- tral por uma serie de abobadas alternadamente quadra- das e triangulares. Dezeseis arcos-mestres, que repre- sentam verdadeiros arcos-botantes, transmittem ás pa- redes do hexadecagono a pressão exercida pela cupula, A architcciura byzantina 5i cuja base, assim escorada, não tem por si própria, nem carecia de ter, grande resistência. Na Allemanha, também a influencia da arte byzantina se fez sentir. No vallc do Rheno, em torno de Colonia, encontram-se igrejas cobertas de cupula, que, divergindo, no plano, da capella de Aix, são talvez mais directa e accentuada- mente orientaes do que a rotunda carlovingia. Colonia, que, na phrase de Vitet, não esperou pelas cruzadas para se relacionar com o Oriente, era a Veneza do Nor- te, o emporio septentrional do comercio do Levante. L’ facto averiguado a presença de artistas gregos na Allemanha, no começo do século xi. Em 972, Othão o Grande , ambicionando integrar nos seus domínios a parte meridional da Italia, ainda em poder dos impera- dores do Oriente, casára seu filho, — depois Othão II, — com a princesa grega Theophania, passando então á Allemanha artistas byzantinos. Durante o século xi, é palpavel a acção da arte do império, sobretudo na ouri- vesaria, no esmalte e na miniatura. Em França, além da influencia da architectura christã da Syria, que os estudos de Vogüé, de Viollet-le-Duc, de Corroyer, teem revelado, é manifesta, em o Périgord e noutras regiões do centro e do meio-dia, a influencia pro- priamente byzantina. Se examinarmos, nos seus elementos essenciaes, a ar- chitectura romanica, que se constituiu e desenvolveu na antiga Aquitania, reconheceremos o influxo dos proces- sos architectonicos da Syria, na abobada espherica sobre plano quadrado, na abobada de aresta construída de pedra apparelhada, no arco ogival e na columna enfei- xada, que, sendo elementos estranhos á arte do Occi- dente, não podem explicar-se pela continuidade da tra- dição romana. A abobada espherica applicada a planos rectangu- 52 A architectura byzantina lares, que, pelo menos em o cruzamento das naves, se encontra em todas as igrejas romanicas, nao provém ex- clusivamente de influencias byzantinas, porque os archi- tectos do império só empregaram o pendente espherico, e, a nao ser noPérigord e na embocadura do Rhodano, a ligação da calota com o plano rectangular faz-se, em geral, por meio de percinas, como na Pérsia e na Syria. Observar-se-ha que talvez este processo fosse, nao imi- tado do Oriente, mas descoberto pelos architectos euro- peus. A difficuldade, porém, de obter a percina com pe- dra apparelhada torna improvável essa hypothese. A abobada de aresta construída de cantaria, que foi também empregada no periodo românico, só se usára na Syria. O arco ogival foi muito applicado nessa região desde a epoca do dominio romano, e também, como vimos, na Armênia. Adoptado nas igrejas construídas pelos cru- zados na Terra Santa, passou, nos fins do século xt, á Europa Occidental. Para a columna enfeixada, são ainda os architectos da Syria quem, desmembrando o pilar, fornece, quando não o modelo, ao menos o principio. Na construcção ogival, é muito mais discutível a in- fluencia do Oriente. Não o seria, se acaso, como se pensa- va, quando, no periodo romântico, se iniciou o estudo dos monumentos da Idade Media, o arco em ponta de Jança fosse o elemento essencial e caracteristico da construcção gothica. Provado, porém, como está, que §ssa curva se encontra em edifícios românicos, e até que, antes do século xm, os architectos o associavam qo arco de volta inteira, parecendo, como nota Choisy, * 3 quem principalmente sigo nesta analyse, terem das -_fe * Histoire de Varchitecture , tom. n, pag. 265. u o A architectura byzantina 53 suas propriedades de equilíbrio uma noção menos lúcida que os da phase romanica, — só poderiamos affirmar que a architectura oriental, — syria ou propriamente by- zantina, — influíra de modo directo na arte ogival, se porventura fosse possivel demonstrar a filiação asiatica das nervuras cruzadas (cvoisée d'ogives ou augives , se- gundo a antiga orthographia francesa), — nervuras que não raro são de volta inteira. Dieulafoy e Corroyer tentaram essa demonstração, o primeiro, relacionando as nervuras ogivaes com uns ar- chetes (arceaux) que, desde a epoca dos Sassanidas, eram applicados na Pérsia e na Syria, e cuja funcção equivalia á d’aqueflas ; o segundo, Corroyer, ligando-as á cupula byzantina, por intermédio da cupula de S. FYont, e considerando-as uma transformação ou, antes, uma simplificação, do pendente. 1 Por outra parte, os estudos de Viollet-le-Duc, Verneilh, Gonse e Lefevre-Pontalis attribuem uma origem francesa ao cruzamento de nervu- ras, que outros historiadores da arte, como Dartein, jul- gam haver sido pela primeira vez empregado na Lom- bardia e representar uma adaptação da armadura de tijolos sobre a qual os romanos construíam as suas abobadas. Quanto á influencia propriamente byzantina em Fran- ça, evidenciam-na alguns monumentos, entre os quaes se notabiliza a igreja de S. Front, em Périgueux. Essa influencia, devida ás relações commerciaes, - políticas e religiosas com o Oriente, e ao estabeleci- mento de colonias imperialistas nalguns pontos do país, 1 Uarchitecture gothique, part. I, cap. II. — U architecture ro- mane , part. II, cap. XII. z As províncias do sul dedicavam-se de preferencia ao commer- cio ; as do norte, á industria. — Vid. G. François, Le Commerce, pag. 25. 54 A architectura byzantina accentuou-se no Périgord e na embocadura doRhodano, cujo valle subiu até ao centro da França. Nessas regiões, apparece-nos a abobada espherica so- bre pendentes, a qual, náo exercendo fortes pressões e podendo construir-se facilmente com extenso diâmetro, permittia a substituição das tres naves da basílica latina por uma nave unica, directamente illuminada. A’ cupula francesa, construida de pedra apparelhada, e não de ti- jolo como a oriental, davam os architectos, para atte- nuarem as difficuldades de execução, um perfil menos abatido. A igreja de S. Front corresponde, na sua disposição geral, como a de S. Marcos, á descripçao que Proco- pio nos legou da igreja dos Santos Apostolos, em Constantinopla. Similhantes quanto ao plano e ao córte, differem, porém, uma da outra na construcção, de modo que, embora se ponha em duvida que a basílica do Périgord precedesse a de Veneza, não póde, comtudo, acceitar-se a hypothese de uma reproducção. A igreja de S. Marcos é construida, segundo as tradições romanas, com ma- teriaes grosseiros, solidamente ligados por excellente argamassa, e depois revestida de mármores polychro- mos e de mosaicos ; ao passo que a igreja de S. Front, edificada pelos processos constructivos da Syria, tão perfeitamente assimilados pelos architectos da Aquitania, é toda de pedra apparelhada, que nenhuma decoração esconde. S. Front, que representa a fusão das tradições ro- manas, dos methodos da Syria e dos princípios byzan- tinos, é, porventura, o berço da architectura ogival. O byzantinismo penetrou por mais de uma via na Península. A romanização fora, em toda a Hispanha, profunda e completa. A mistura das gentes, a variedade de ori- A architectura byzantina 55 gens nos usos, o encontrado e confuso das leis e tra- dições religiosas, determinaram esse phenomeno histó- rico 1 2 * 4 . O dominio visigothico, estabelecido no século v, foi mais político do que social. Prevaleceu o elemento la- tino, e assim se póde explicar como, por espaço de se- tenta annos (553 ou 55q — 624) e apesar dos reiterados esforços dos príncipes visigodos, uma parte considerá- vel da Península, em que estava comprehendido o nosso Algarve, se manteve fiel aos imperialistas, que a insurreição de Athanagildo contra o rei Agila trouxera á Hispanha J . Nessa região, influiu sem duvida a arte byzantina, e não custa crer que d’ella irradiasse para outras, que a persistência da tradição romana tornava naturalmente aptas para acceitarem o influxo da civilização do im- pério. A invasão dos arabes, no começo do século viu, foi outro vehiculo de influencias byzantinas. A arte arabe, que na Península teve phases diversas, perfeitamente caracterizadas, era uma arte complexa, derivada prin- cipalmente da persa e da byzantina. Ao mesmo tempo, nos estados christãos do norte da Hispanha, penetrava a architectura romanica, e, nella integrados, elementos byzantinos, sobretudo ornamen- taes : — capiteis cúbicos decorados com folhagens entrelaçadas, com figuras em baixo-relevo, trajadas á 1 Vid. A. Herculano, Historia de Portugal , tom. I, pag. 21 (4.» ed.). 2 Vid. Joao da Cunha Neves e Carvalho Portugal, Memória sobre os últimos tempos da dominação romana em Hespanha e n’uma parte do território que hoje é Portugal. — (Nas Memórias da Academia Real das Sciencias — classe de sciencias moraes e políticas e bellas-lettras, nova serie, tom. I, part. II.) 56 A arehitectura byzantina oriental, ou com animaes phantasticos ; archivoltas, cordões e fustes ornamentados com tóros quebrados, dentaduras, cabos, desenhos reticulares, plantas exóti- cas. Entre a França e as monarchias neo-gothicas do norte da Península, eram estreitas as relações. Caval- leiros franceses, como Henrique de Borgonha, depois conde de Portugal, vieram á Hispanha tomar parte na lucta contra os sarracenos ; colonias de francos, das quaes faziam parte alguns artistas, fixaram-se em di- versos pontos, como, por exemplo, Guimarães ; sacer- dotes franceses subiram aqui ao solio episcopal ; mon- ges de Cister e de Cluny transposeram os Pyreneus. Em Portugal, chegaram a constituir-se, nos primeiros rei- nados, municipalidades exclusivamente compostas de franceses, como a principio o foram a Athouguia, a Lourinhã, Villa Verde, a Azambuja, Cezimbra e Ponte de Sôr 4 . Nos mais antigos dos monumentos christáos da Pe- nínsula, — nos que a preciosa, embora incompleta, col- lecção dos Monumentos arquitectónicos de Espana (1869- 1879) classifica de latino-by^antinos , latino-romanicos , by\antino-romanicos e românicos , e em as nossas igre- jas romanicas 1 2 , — encontram-se com frequência, na de- coração, elementos byzantinos. Em Portugal, deparam- se-nos em Guimarães (Nossa Senhora da Oliveira), em Coimbra (sé velha, Santdago, S. Salvador, claustro de Cellas), em Lisboa (sé), em Evora (sé), em Lamego (Al- macave), etc. 1 Vid. A. Herculano, Historia de Portugal, tom. ui, pag. 21 6 220 (4- a ed.). 2 D’ellas, especialmente das de Coimbra, occupou se o dr. Au- gusto Filippe Simões na sua obra Relíquias da arehitectura ro- mano -byzantina em Portugal (Lisboa, 1870). A architeclura byzantina 5 ? No Museu Archeologico do Carmo, guarda-se uma pedra com um ornato byzantino. Era do convento de Chellas, edifício interessantissimo sob o ponto de vista da nossa archeologia artistica L O sr. Ernesto Korrodi, architecto, professor da es- cola industrial de Leiria, descobriu ha annos, envolvi- dos num edifício dos fins do século xvn ou do começo do xvin, restos ainda importantes de um monumento anterior ao periodo românico, e no qual é evidentissima a influencia byzantina. Eis a descripção que d’esses ves- tígios o sr. Korrodi nos dá : «Existem nas immediações de Braga, no extincto con- vento de S. Francisco, envolvidos na fabrica d’este edi- fício, que foi construído no principio do século pas- sado ou fim do século xvn, restos importantes de um monumento cuja architectura particular e caracter de suas esculpturas nos auctorisam a attribuil-os a uma epocha muito remota. «Entrando na egreja do dito convento pela porta principal, depara-se-nos ao lado direito uma especie de capella de fórma quadrangular, a que dá accesso uma escada de pedra, de alguns degraus. Esta capella, su- perior ao nivel da nave, é formada por quatro pilares ligados entre si por arcos de volta inteira que suppor- tam as quatro paredes do edifício, coberto por uma cupula de tijolo de fórma achatada, construída sobre pendentes. No vão de tres dos arcos, mais por effeito decorativo, do que em virtude das regras de constru- cção, desenvolve-se uma tríplice arcada, supportada por columnas de mármore, encimadas de capiteis do mesmo material. A modelação e desenho, tanto d’estes como 1 Vid. Vilhena Barbosa, Fragmentos de um roteiro de Lisboa (Archivo Pittoresco , tom. vii, pag. 874 e 379). 58 A architectura byzanlina dos capiteis das pilastras que guarnecem os pilares á al- tura do nascente dos arcos, fazem lembrar á primeira impressão as esculpturas classico-romanas. E n’isto não só definem perfeitamente a epocha que as produziu, mas confirmam mais uma vez que é muito acertada a opinião que, a respeito da arte christã antiga na penín- sula, formaram os archeologos, em vista dos numerosos vestigios encontrados em Hespanha. E’ que esta arte, longe de possuir independencia artística, segue as pra- ticas tradicionaes dos seus antepassados, corrompendo e abastardando a arte romana. «A relativa finura de execução d’estes capiteis em nada harmonisa, porém, com o apparelho, tosco e mal feito, das cantarias de granito, contraste que mais ainda se accentua na cornija do exterior da lanterna ou cupula, onde, ao lado de um friso de mármore, de trabalho cui dado, se encontram uns denticulos de granito, disformes e irregulares. Esta circumstancia, como o facto de se empregar um material mais fino para a execução da parte esculptural, leva-nos a concluir que os artistas constructores, ignorantes no tratamento do granito, vieram de regiões longínquas, e recorreram, para a exe- cução dos trechos ornamentados, a material cujo tra- tamento lhes era familiar. A cornija do exterior mostra isto de maneira mais positiva. Todas estas particulari- des de construcção, a planta e proporções do edifício permittem-nos concluir que estamos em presença de im- portantes vestigios de construcção christã antiga , na fôrma de um corpo central de alguma egreja edificada segundo o plano das basílicas byzantino-latinas.» 1 Esse curioso edifício, de que o sr.Korrodi apresenta, iliustrando o seu artigo, uns interessantes estudos de 1 Boletim da Real Associação dos architectos civis e archeologos portugueses, 3. a serie, tom. viu, pag. 18 . A architectura byzantina 5 9 reconstituição é, sem duvida, originariamente, parte da igreja do mosteiro de S. Salvador, edificado por S. Fru- ctuoso, oitavo bispo dumiense, cuja morte occorreu meado o vn século. A architectura byzantina feve pois uma larga diffusão. Transmittindo á Europa Occidental, mais efficazmente que a invasão arabe, os princípios da arte persa, já combinados, na Syria, na Asia Menor e em Constan- tinopla, com a tradição classica, a architectura byzan- tina contribuiu muito para o radioso desabrochar da architectura romanica, denominada, até, por alguns archeologos — romano -byzantina. ERRATAS Pag. Lin. 3o 8 3 4 >7 35 5 35 10 35 18 3 9 28 Onde se lê de Alcorão e o geographico Justinianno no Périgueux as quaes povo. Leia-se do Alcorão e geographico Justiniano em Périgueux os quaes povo. 1 .